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Loiva Otero Félix
Agostinho Both
Elli Benincá e Grupo de Pesquisa
Astor Antônio Diehl
Fernando Camargo
Universidade de Passo Fundo
2002
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Coj,yright © Editora Universitária
Afaria Emilse Lu.catelli
Editaria de Texto
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Revisão de Emendas
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Editoração e Compasição Eletrônica
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171 p.
1. Histcíria 2. ~kmtiria 3. ltk11ticlach.--t. Educ·aç:o
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COU:l~O.I
C,1talc1g;u;fü111a fi,ntc: hihli<,tt-cária Sai1dr;111. flilhra1l1 'icira (:K.B 10/ 1278
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j Problemática inicial
Na atualidade, estamos vivenciando uma profunda virada
nos modos de pensar e reconstituir o passado. Uma das conse-
qüências dessa virada é o questionamento sobre as formas mo-
dernas de estruturação dos critérios de plausibilidade científica
da história, os quais se assentavam nas concepções de tempo, es-
paço e movimento iluministas. Com o desgaste desses critérios de
plausibilidade da história, surge um leque de opções. A tendência
mais acentuada na historiografia contemporânea recente é a das
compensações pelo trabalho de rememorização, traduzida na
ressubjetivação e repoetização do passado.2
Nesse sentido, memória e identidade assumem posições es-
truturais na sustentação do debate. Tempo, espaço e movimento
passam a compor expectativas essencialmente existenciais, espe-
cialmente nos quadros de ressimbolização e revalorização dos sen-
tidos e funções culturais. Portanto, parece-nos que uma das chaves
de compreensão da situação atual das perspectivas historiográficas
é o estudo da memória e da identidade. Claro está que esse estudo
não mais poderá recorrer à memória como um ato apenas de busca
de informações do passado, tendo em vista a reconstituição do
passado, mas deve ser entendido como um processo dinâmico da
própria rememorização. Também a noção de identidade precisa
ser antropologizada com o objetivo de se ampliar seus aspectos de
possibilidades, saindo-se, assim, da conceituação de identidade como
sendo meramente ideológica.
Assim, tanto a noção de memória como a de identidade precisam
estar envolvidas com aqueles aspectos que proporcionaram odéficit da
historiografia moderna: o tempo, o espaço e o movimento. Dos múlti-
plos cruzamentos entre memória e identidade com as três variáveis
poderão se abriroutras tantas possibilidades paraoestudo da história.
Contudo, esse estudo merece desde já uma delimitação se quisermos
tomar memória e identidade como uma das possíveis chaves da
-· Ver MIRJND/, W. M. (Org.l. N,11·r,i1iva., cf,1 111o<lc•111irl.1d,'. Bdo Horiw11l1·: /ul(111ic,1. 1'J'l'l.
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144 João Carlos Tedcsco
contemporaneidade_'l O estudo e a compreensão da(s) identidade(s) deve
enfrentaraintransparência cultural e a atemporalidade estrutural não
apenas materializadas através dos fatores socioeconômicos, mas
dimensionadas simbolicamente por e em grupos sociais. Nesse ponto
haverá uma forte perspectiva de estetização simbólica nem sempre fácil
de ser rastreada em fontes pelos métodos e técnicas tradicionais.
A situação ele estetização simbólica ou, em outras palavras, a
ornamentação de signos e significados de determinados grupos so-
ciais e étnicos privilegia uma recolonizaçã.o das expe1iências do coti-
diano, especialmente se levando em conta a profunda crise atual de
valores modernos e seus respectivos projetos de futuro. Aqui, no-
vamente o debate em torno da memória e identidade poderá ser
uma opção de entendimento e compreensão. Ademais, a crise das
perspectivas otimistas de redenção do homem no futuro gerou o
imediatismo das ações. O futuro torna-se cada vez mais presente,
diminuindo extraordinariamente o tempo, o espaço e o movimen-
to entre presente e futuro. Portanto, o investimento é reconstruir
o passado pela perspectiva de futuro no passado. Novamente, isso
implica questões que envolvem identidades e processos identitários.
Pretende-se, então, amarrar o debate em dois aspectos: o pri-
meiro envolve as noções de miséria e violência como princípios de
identidade na chamada "cultura do silêncio"; o segundo é orientado
para a relação entre identidade e história, tendo corno elemento-
base a memória. Para a história, não são as memórias e identidades
os pontos centrais, mas as suas respectivas representações nas ex-
periências eexpectativas de vida. São exatamente essas representa-
ções os elementos da compensação do déficit de critérios iluministas
no mundo cultural, cujo processo de rememorização é trazido na
ressubjetivação e repoetização de sentidos culturais do passado.
A questão interessante é a seguinte: é possível compreender
os parâmetros desse complexo na cultura historiográfica e, por-
tanto, por meio de suas representações, e até que ponto é viável
enunciá-los na sua reconstituição através da estruturação de cri-
térios de plausibilidade nas ciências históricas?
Para tanto e numa tentativa de aproximação da questão,
destacaremos dois aspectos: o primeiro compreende a memória
relacionada à história como pressuposto da contemporaneidade e
o segundo volta-se para a identidade e a contemporaneidade.
Vt·r .iqui RICHARD, Ndly. Polili(.,1, cl,1111lrnóri,1 e técnic.is cio e;4ueci111en10. ln: MIRANDA, W,111cler
Melo. Op cit. p. i"21 ·.1 iH.
ll:,os de mcmócías 45
5.1 Memória, história e contemporaneidade
Tempo como força de corrosão, espaço como o locus da expe-
riência da rememorização e o movimento como a estrutura sim-
bólica da cultura são os elementos constituidores da(s) memória(s)
e da(s) identidade(s).
O tempo age sobre o espaço da experiência como força
destituidora, a qual pode ser de diferenciação, bem como de integração,
que, por sua vez, resulta em movimentos culturais identitários. O
espaço da experiênciaproduz, sob a ação do tempo, as possibilidades
de sistematizar os fragmentos do passado (as lembranças) em me-
mória'. Esse processo somente é possível na medida em que existe
consciência da experiência presente (do estar-aí).
Entretanto, o processo de conscientização da experiência pre-
sente, por meio da rememorização, configura-se como ponto-chave
da contemporaneidade daquilo que podemos chamar de "identida-
de". O ato de rememorar produz sentido e significação pela
ressubjetivação do sujeito e pela repoetização do passado, produzin-
do uma nova estética do passado. A nova estética é, nesse caso, a
forma compensadora daqueles elementos culturais do passado im-
possíveis de reconstituição pela rememorização, pois a ação do tem-
po é forte demais. Isso explica que identidade e os processos de iden-
tificação e identitários conseguem apenas ressubjetivar e repoetizar
elementos e sentidos culturais para grupos sociais e, jamais, para a
sociedade como tal. Em caso contrário, identidade passa a ser ideolo-
gia, facilmente vinculada à concepção de cultura nacional.
Foi exatamente esse último movimento de integração o fa-
tor que obstacularizou a compreensão histórica de categoria como
miséria e violência, sobretudo pela possibilidade de produzir, em
termos de memória, a identidade do silêncio.
5.1.2 Lembrança e memória4
A nossa capacidade de lembrar algo é a mesma capacidade
de esquecer. Em termos funcionais de desvelar e trazer para a
superfície da história restos e tradições culturais, talvez seja a
capacidade psicológica mais antiga e elementar.
' Publicado orir:in.ilrnenle <:111 FLORES, Mo.icyr (OrgJ 1893-95. A Revoluç,lo dos Alar,1g.1tos. Pano
Alegre: Edipucrs, 199.l. p. 1Ob-117.
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Nietzsche percebeu, no exercício do lembrar, o começo dos
traços e das características da moral, especialmente no que diz
respeito à lembrança na nossa cultura histórica, a qual é direcio-
nada de forma unilateral e unívoca, pois a capacidade de lembrar
significa lembrar deveres, e não alegrias; lembrança foi combina-
da com "consciência pesada", com sentimento de culpa, com peca-
do por isso raras vezes significa felicidade, perspectiva utópica e
liberdade. Assim, lembrança assume uma função normativo-
impositiva.
Lembrança é apresentada aqui como vivências fragmenta-
das, como rastros e restos de experiências perdidas no tempo,
como pegadas do passado, praticamente impossíveis de serem
atualizadas historicamente. E quando essas lembrançás são
atualizadas, correm o risco de ser idealizações de vivências, po-
dendo, até mesmo, ser pontos de referência para romantizar o
passado. Lembranças estão localizadas no passado de forma está-
tica; são elementos intransparentes, individuais e que perdem gra-
dativamente seus pontos de referência no tênue horizonte entre
o passado e presente.
Já memória significa aqui experiências consistentes, anco-
radas no tempo passado facilmente localizável. Memória possui
contextualidade e é possível de ser atualizada historicamente;
possui maior consistência do que lembrança, uma vez que é uma
representação produzida pela e através da experiência.5 Consti-
tui-se de um saber, formando tradições, caminhos - como canais
de comunicação entre dimensões temporais-, ao invés de rastros
e restos como no caso da lembrança. A memória pode constituir-
se de elementos individuais e coletivos, fazendo parte de perspec-
tivas de futuro, de utopias, de consciências do passado e de sofri-
mentos. Ela possui a capacidade de instrumentalizar canais de
comunicação para a consciência histórica e cultural, uma vez que
pode abranger a totalidade do passado num determinado corte
temporal. Pois bem, nesse sentido, antes de teorizar e metodizar
a memória, dando-lhe, dessa forma, funções e significações histó-
ricas, caracterizemo-la genericamente.
Pelo senso comum, a memória está intimamente ligada às
tradições familiares e a grupos com suas idiossincracias peculiares.
Nesse nível, ela representa possibilidades de aprendizagem e de
" Apontamos o, ~entido atribuído por Waher Benjamim conl. KOTHE, F. R. (Org.). W.1/ter Benjamim.
550 Paulo: Atica, 1985 (Col. Grandes cientistas sociais).
Usos ae mcrnon.s.:.
socialização, expressando, assim, continuidade eidentidade daque-
las tradições. Contudo, a continuidade nem sempre pode ser defini-
da explicitamente. A memória, por também ter características co-
letivas, assume funções tais como de identificação cultural, de con-
trole político-ideológico, de diferenciação e de integração.
No nível das mentalidades coletivas, essas funções perpetuam
os critérios de seletividades desses grupos sociais. É evidente que
essas funções nem sempre são perspectiváveis de forma transpa-
rente, ainda mais porque o historiador não possui um arsenal téc-
nico-metodológico para garimpar tais variações internas, elevan-
do-as para o nível da argumentação histórica. Nesse caso, a memó-
ria assume a função genérica ligada à tradição. Mesmo assim, não
perde sua complexidade e continua sendo uma constelação que con-
templa as estruturas de mudanças temporais nos seus aspectos
qualitativos. Isso significa que também é caracterizada pela relação
presente-passado-presente. E é exatamente essa capacidade
tridimensional do tempo da memória que facilita ao historiador
tomá-la como fonte imprescindível para a ciência histórica.
A memória, como qualquer outra fonte histórica, sofre de uma
fraqueza que é o seu desgaste através do tempo. Tomemos como
exemplo a memória colocada no tempo histórico. O tempo históri-
co é uma flecha disparada de um determinado ponto para o futuro.
O ponto de partida é, historicamente, o iluminismo, quando, pela
primeira vez, resolveu-se a problemática da sucessão temporal pas-
sando do fixismo da mecânica renascentista para a linearidade do
tempo socioistórico, do aperfeiçoamento progressivo. Com o
iluminismo, o desenvolvimento recebeu a adjetivação histórica, ou
seja, um processo - histórico - com um fim. Essa flecha, à medida
que se distancia do ponto disparado, sofre simultaneamente dois
processos: primeiramente, perde velocidade enquanto se distancia,
o que permite que os intervalos de tempo aumentem e o objeto se
torne cada vez mais difícil de ser alcançado; segundo, para um
medidor de tempo (transpondo isso para ohistoriador), quanto mais
próximo estiver localizado do ponto de disparo, tanto menor será o
intervalo de tempo, dificultando a medição, o que somente será
possível com instrumentos bem aferidos (coloquemos aqui as técni-
cas e métodos de pesquisa histórica).
Com a memória se passa algo muito parecido, tomadas, é
claro, as devidas diferenças. A memória, à medida que estiver
localizada bem distante do fato, da época, do contexto-tomado como
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148 João Carlos Tedesco
objeto de pesquisa, tanto mais desgastada estará. A esse processo
de desgaste podemos chamar de corrosão temporal. Ela vai per-
dendo força, capacidade explicativa, capacidade de informar, de se
tornar transparente, pontos de referência substantiva para man-
ter suas funções, como descrevemos antes. Esse desgaste pode
chegar ao ponto de na memória apenas persistirem restos,
vivências, fragmentos do passado e, nesse caso, apenas lembran-
ças descoloridas. A perda de significação pelo desgaste tem sua
origem na forma de representação da concepção de tempo históri-
co. Geralmente, concebemos o tempo pelo viés positivo-
evolucionista-linear-progressivo, que é, na verdade, uma opera-
cionalização novecentista da idéia de tempo do iluminismo.6
Portanto, poderíamos dizer que a memória precisa ser
"refrescada" constantemente. Mas como isso ocorre? Para
operacionalizar esse processo existem várias formas, das quais a
mais comum na história consiste em grafá-la, narrá-la ou, ainda,
em torná-la fonte histórica. A esse processo chamaremos aqui de
rememoração da memória, o que significa rememoraras experiên-
cias no passado.
5.2 Memória e história
Descrevemos acima que a memória possui características
que a diferenciam da lembrança. Essa diferença qualitativa "a mais"
permite torná-la fonte histórica, assumindo, a partir de então,
características e funções novas. A memória, para poder ser torna-
da histórica, gozar das prerrogativas de científicidade ou, pelo
menos, aspirar a ser fonte histórica com credibilidade dentro da
"província" dos historiadores, precisa, necessariamente, passar pelo
processo crítico que chamaremos pelas expressões teorização e
metodização.1
Teorizar significa pensar a memória como fonte
· histórica em termos de especificidade científica, como elemento
'· Ci. KOSELLECK, ReinhMch. ve1;r:a11;r:e11e Zuk1111{t. rrankfurt: Suhrbrnp, 1<)79, especialmenle pane
11 "Zur Theorie und Methocle Hislorischer Zeilheslmmung", p. 107-207. Também ver TOPOLSKI,
Jersy. O conteüclolemporal da narrativa hi>tórica. Hi.stóri,,: Que.stõe.s e Debate.<, Curitiba, v. 7, n. l ,'.,
p. 41-56, 198(,.
l:m re1Jç5o à hi5tôri,1 con10 ciência, estes aspecto~ foram J1n1>l,111wnte desenvolvicfo5 n.J trilogi.i d~·
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Ve~~a11.~e11/1eit . Gõltingen: Vanclenhoeck e Ruprecht, 198ó; Lel,e11cfige Ge,cliid,re. Giitlingen:
Vanclenhoeck e Ruprecht, 1989), os quJis trouxemos parJ cliscussJosohre a memória.
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Usos de mcmór"i.l.s 149
contextualizado de interpretação histórica; significa perspectivar
a memória como elemento de orientação sobre a experiência do
passado humano. Teorizar representa as diversas estratégias de
argumentação na forma de teorias explicativas e de interpreta-
ção, cm outras palavras, seria o caso de perguntar como <:8<i::i
teoria ou referencial teórico irá perspectivar o passado, dando-lhe
sentido e significação.
A discussão sobre o aspecto de como a pesquisa histórica
deve lidar com a memória como "armazém" informativo-factual e
fonte de representação da cultura historiográfica do passado ain-
da é uma questão em aberto. Mesmo com essa dificuldade, alguns
pontos podem ser mapeados em relação à memória, tais como: a
necessidade de contextualidade do objeto da memória assim como
do agente rememorador, a necessidade de temporalidade, a ne-
cessidade da narrativa (da poética) e, finalmente, a necessidade
de sua problematização.
Sob a expressão teorizar está a questão pertinente das ope-
rações de consciência, as quais somente ficam evidentes quando
questionadas sobre o sentido que possuem nas experiências da
vida. Se pensarmos memória dentro dessa perspectiva, então ela
não aparece como fonte de informações para o conhecimento his-
tórico, mas como expressão do próprio pensar histórico. Portan-
to, a questão central na teorização da memória poderá ter fun-
ções de experiência temporal e de identidade histórica.
Metodizar é genericamente entendido como processo que
permite inserir a memória - a experiência - do passado nas pers-
pectivas orientadas sobre esse mesmo passado, de tal forma que a
memória adquira o qualificativo de histórico. Metodizar significa
buscar regras da pesquisa histórica que tornam o passado históri-
co, objetivo e com plausibilidade científica. No entanto, essa obje-
tividade é relativa uma vez que o historiador lança mão de crité-
rios sobre o entendimento do passado corno vivido por homens
reais numa dimensão social. O critério da objetividade fragiliza-se
ainda mais porque a memória - tomada como fonte - já é uma
representação daquelas experiências vividas por homens numa
dimensão social. Esse aspecto representa uma necessária crítica
interna e externa. Mais do que nunca, questões vinculadas às po-
sições político-ideológicas do narrador - memoralista - e do histo-
riador são relevantes aqui. Explica-se, assim, a necessidade de
critérios claramente definidos e de regras de pesquisa quando tra-
tamos da memória como fonte histórica.
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150 1oao L.anus .1.cuesco
Sob a rubrica metodizar estão expostas as possibilidades de
a memória ser fonte de experiência, de continuidade/ruptura, de
identidade, de sentido e de comunicação. Com essas possibilida-
des, a memória adquire qualidade em, pelo menos, quatro níveis:
como consciência histórica, como argumento, como explicação
histórica e como narrativa.
5.3 Memória
crise e narração histórica
Argumentamos, inicialmente, sobre a estreita relação entre
memória e experiência, porém distinguimos experiência de
vivência. Walter Benjamim aponta para a experiência como um
conceito típico de sociedade pré-moderna, caracterizada essencial-
mente pela sociabilidade comunitária, ao passo que vivência se
refere às sociedades modernas e à sua dinâmica traumatológica.
A sociabilidade comunitária permite o nascimento da tradição, onde
o coletivo e o individual se fundem, dando origem ao fundo anímico
comum capaz de ser transmissível às futuras gerações, ao passo
que as vivências apenas produzem um homem sem história e,
portanto, um homem sem memória, um homem condenado a er-
rar como um autômato na história, sem passado e sem futuro.8
A proposta benjaminiana direciona-se para a análise históri-
ca, que, na ausência das condições sociais que possibilitariam a
experiência (sociabilidade comunitária), poderia evocar a memória
(involuntária), sepultada pelo desenvolvimento histórico.9
Com a
evocação da memória, o passado tornar-se-ia acessível ao homem.
No processo de evocar estão alojadas as lembranças e as esperan-
ças. Essa busca permite identificar o caráter reconstrutivo da his-
tória. O historiador, nessa perspectiva, seria capaz de recuperar as
virtualidades inibidas pelo desenvolvimento histórico linear e pro-
gressivo, as quais têm depositado registros de derrotas, o testemu-
nho das frustrações no passado. Está aí nossa preocupação inicial
em dizer que, atualmente, a memória assume papel central na
reconstituição do passado, este jogado na "lata de lixo" pelos proje-
" BENJAMIM. Walter. Erfohrung und Armul. ln: ll/1mú11,11io11em, Ausgewahlte 5,hrifien. Frankffurt:
Suhrkarnp, 1980. Também ln: W. Benjamim GS li. p. 644-647.
" Ver aqui as análises feitas por GAGNEBIN, Jeanne Marie. 1994 e 1997. op. cit.
Usos de mernôrias
J.J l
tos triunfalistas. Mas quem disse que a "lata de lixo" não pode ser
uma excelente fonte de informações sobre aquele que enche essa
lata, seu modo de vida, suas experiências, seus projetos? Assim,
também a memória pode se constituir numa fonte histórica, como
se ela fosse um negativo de uma época ou fato.
Pois bem, a pergunta instigante é a seguinte: por que a me-
mória coletiva e individual assume atualmente um papel central
na historiografia? Penso ser possível mapear argumentos centrais,
entre outros. O primeiro argumento vincula-se à crise da história
como ciência; o segundo, às formas de representação histórica,
ou melhor, a narração histórica (a poética da história).
A crise que a história como ciência enfrenta hoje vincula-se à,
crise do tempo histórico linear-progressivo e às formas estruturais
de conceber a própria explicação histórica. Essa idéia pode ser
exemplificada quando pensamos a história como um receptáculo
oco no qual estariam encaixados os fatos históricos vitoriosos, orien-
tados numa direção predeterminada. Dessa forma, a história é con-
cebida como um "armazém" onde estão depositadas, acumuladas,
as vitórias, que expressam, inexoravelmente, a realização da hu-
manidade. A história seria vista como a marcha de vitória em vitó-
ria, de triunfo em triunfo, como se história e realização fossem
sinônimos, numa espécie de epopéia do vencedor. Aqµi, o tempo
histórico não deve ser entendido como linear, direcionado para a
perfeição - como no iluminismo -, mas como ruptura destinada a
salvar o passado. O tempo não pode ser mais concebido como linear
porque o presente (do historiador) é visado pela memória passada.
Portanto, a tarefa do historiador não consiste mais no obje-
tivo de estudar o passado para prever e controlar o futuro, mas de
libertar as esperanças contidas na experiência histórica do passa-
do, ou seja, libertar a memória. A crise a que assistimos hoje tem
como horizonte a polarização entre razão e vida, entre experiên-
cia e abstração, entre atualidade e história. Nesse sentido, a me-
mória pode ser fator de superação da história do desejo, da frag-
mentação da ciência histórica e, assim, estabelecer uma espécie
de arqueologia das possibilidades culturais.
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152 Joio Carlos Tcdes-r:o
5.4 Memória e narrativa historiográfica
Quando falamos sobre historiografia, vem-nos logo a idéia
de que se trata da história do escrito histórico, da história da his-
tória, da história do pensamento histórico, as quais comumente
classificamos em diversas tendências teóricas, tais como historio-
grafia romântica, determinista, marxista, etc., ou em narrativas
eruditas, retóricas, criticas, revisionistas. Essa forma de proceder
não está equivocada, mas incompleta porque encobre, pelo me-
nos, outras possibilidades de se conceber a historiografia, por não
alcançar a essência substantiva das narrativas. Uma primeira pos-
sibilidade reside em denominar a narrativa a partir das formas de
representação do conhecimento histórico. Essas formas estão an-
coradas no caráter literário das próprias fontes de pesquisa, nesse
caso, as memórias, que têm uma autonomia formal diante da cons-
trução da ciência histórica. Aqui estão todas as formas de textos
nos quais se manifesta o potencial argumentativo próprio da
temporalidade de um saber histórico científico, aspecto que confe-
re plausibilidade explicativa ao saber produzido.
Com a memória se passa algo parecido, pois cornumente são
catalogadas como tradicionais, críticas, heróicas, sem que seja pEff-
guntado sobre as formas narrativas, as quais já estão contidas nas
memórias como fontes da história, pois elas já são representações
de experiências do passado. Nesse sentido, memória pode vir asso-
ciada a sofrimento e a violência. A forma narrativa da memória,
além de sua parte substantiva do conteúdo, representa a estratégja
da argumentação através da concepção do tempo histórico. Essas
estratégias formam quatro constelações do discurso histórico na
memória, as quais dão sentido de ordenamento, formam a espinha
dorsal de uma história, bem como constituem critérios que am-
pliam o horizonte da estrutura narrativa da história e as possibili-
dades da própria história como ciência.
Constelação narrativa tradicional: A constelação tradicional é
uma forma de narrativa que empresta sentido à argumentação his-
tórica no que diz respeito às mudanças temporais de homens e seu
mundo através da representação de duração, funções e formas de
experiências estabelecidas. A narrativa tradicional rememora as
origens de concepções de mundo e de vida, cuja continuidade é
representada pela duração na mudança. As formas de comunicação
apresentam-se sob o nível da aceitação pacífica, pois a identidade é
l.J~os de mcinllri.as
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formada pela repetição de normas preestabelecidas. A espinha
dorsal do tempo será perpetuada com sentido imutável.
1
"
Constelação narrativa exemplar: A constelação exemplar é
uma forma de narrativa de argumentação histórica que se dife-
rencia da tradicional pela. ampliação do nível de experiência e pela
maior elaboração abstrativa da práxis relacionada com osaber his-
tórico. A memória exemplar rememora acontecimentos e casos que
demonstram regras de ações gerais, cuja continuidade é represen-
tada pela repetição de ações que estruturam diferentes formas de
vivências. Com isso, essa narrativa ganha sentido moral através
de ações individuais. As formas de comunicação apresentam-se
sob o nível de argumentação com força de juízo, pois identidade é
formada pela competência em resolver questões e situações de
ação (sabedoria de ter tomada esta ou aquela ação). O tempo rece-
berá sentido de especialidade.
Constelação narrativa crítica: A constelação crítica é uma for-
ma de narrativa de argumentação histórica na qual importa, sobre-
tudo, demonstrar conseqüentes modelos de pensamento histórico-
cultural que apresentem mobilidade da própria experiência históri-
ca. A memória critica rememora fatos que questionam orientações
históricas consolidadas, cuja continuidade é representada sob a for-
ma de ruptura com conseqüentes mudanças temporais. As formas
de comunicação apresentam-se em forma de um ponto de referên-
cia contra situações sociais preestabelecidas, uma vez que a identi-
dade éformada através da presença de experiências temporalmen-
te criticáveis. O tempo será narrado com o sentido de ruptura.
Constelaçã.o narrativa genética: A constelação genética apa-
rece nas formas historiográficas de memórias quando são coloca-
dos em evidência os momentos de mudanças temporais do traba-
lho de identificação histórica. O tempo histórico corno mudança
ganha uma qualidade positiva. As mudanças aparecem não mais
como ameaça histórica, mas são explicitadas como qualidade em
termos de vida humana e como chance para a superação das con-
dições estabelecidas, como perspectiva de futuro, as quais vão além
dojá alcançado. Assim, a memória rememora as mudanças trazidas
de fora para dentro e, com isso, ocorre a ampliação do horizonte
1" [,.q,1.:;; qu.itro fonnJs lor~11n clc..:--envolvicl,1s por ROsen Cld">cndigt• G<·~chit h1e. C1p. ( it., p. ~t)-;l()l l'tl:
termo~ histnriogrtificos e: dt• r<:•prt.·~·n1~1c:,io do conlll'Ôllll'lllo hi..;tc"iri1.o. Proprnnn:-- lrdl'.VI e~:,;i;'~
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hi.
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154 João Carlos Tedcsco
histórico. A continuidade estabelece-se como desenvolvimento, no
qual as formas de vida vão mudando para poderem, dinamica-
mente, enfrentar o tempo futuro. As formas de comunicação apa-
recem como elementos discursivos de diferentes pontos de vista e
perspectivas de mudanças. A identidade configura-se por meio dos
processos de individualização das experiências, ao passo que o tem-
po é narrado como temporalidade do próprio tempo.
Levando-se em consideração essas quatro constelações da
narrativa historiográfica da memória, a história, como ciência,
ganha elementos imprescindíveis para ampliar o potencial
argumentativo das formas de representação do conhecimento e,
finalmente, plausibilidade explicativa. De forma genérica, dois
pontos são relevantes: incluindo-se tais constelações narrativas,
a historiografia consegue superar as tradicionais classificações de
memórias e, em segundo lugar, ampliando esse horizonte, enca-
minhar novas estratégias de reconstrução do passado, sem, no
entanto, cair na fragmentação das representações ditas pós-mo-
dernas. Mantém-se, assim, uma historiografia moderna, mapeada
com base em novas concepções do tempo histórico.
5.5 Identidade como chave da
contemporaneidade
Assim como na memória, também com identidade podemos par-
tir das três dimensões - tempo, espaço e movimento-, como elementos
constituidores e agentes dos processos identitários. Tal aspecto envolve
duas situações: a constituição e a definição de identidade. A destituição
de id~ntidade, via de regra, implica a fragmentação da personalidade
identitáiia de um sujeito histórico, sendo esse um processo de extrema
violência pelaintroduçãoou, mesmo, utilização do terrormassivo. Exem-
plo desse processo ilustra que, nas nações européias colonizadoras des-
de o Renascimento, encontramos os mecanismos de terror e brutal
força de submissão.11
Assim, acreditar que o caráter nacional espanhol
possui uma disposição específica para o exercício do terror ou dizer que
a colonização inglesa foi mais humanitária significa desfocalizar a rea-
lidade histórica com a lente das três dimensões referidas.
" Vt•r MATOS. Olg.íria Cl.iin íéres. Esp,it·o público e lolerânc:ia polilica. ln: MIRANDA Wander
Melo. Op cil., p. ºll'l-l4 l.
usos ac memonas
Somente esse exemplo já é capaz de nos dar os elementos
capazes de ilustrar a complexidade da questão e da sua atualidade
contemporânea pelos sentidos e significados culturais que a iden-
tidade assume como cultura. Identidade é uma espécie de
metadiscurso sobre experiências históricas de difícil apreensão
empírico-histórica. Essa dificuldade de apreensão tem sua origem
na aplicação, por vezes, dos métodos analíticos, que não conse-
guem descer até o sentido pedagógico da violência e da miséria;
quando muito, constatam uma pedagogia do silêncio, como resul-
tado da violência e uma racionalidade para explicar a miséria.
Com a dificuldade implícita dos métodos analíticos, devería-
mos procurar as possibilidades ele reconstituição desse metadiscurso
em métodos hermenêuticos, estes, sim, capazes de alcançar uma
arqueologia do ser-outro, com os quais pudéssemos ter como ponto
de partida uma didática e urna pedagogia. Com esse ponto de parti-
da, poder-se-ia, então, pretender compreender a eticidade e a
moralidade, a crítica e a política subjacente dos processos destituidores
e constituidores de identidade e, sem dúvida, chegar à dinâmica con-
traditória entre constituição e destruição de identidade na
tridimensionalidade do tempo, espaço e movimento na sua
contemporaneidade. Repetindo o que já disse em item anterior: o
tempo como força de corrosão, o espaço como lorns da experiência
da remorização e omovimento como a estrutura simbólica (e agora
metadiscurso) da cultura como os elementos constituidores da(sl
memória(s) e da(s) identidade(s).
Sem esse pladoyer hermenêutico, facilmente se poderia cair
na armadilha do reducionismo teórico-metodológico analítico. Muito
mais do que entender apenas a arqueologia do silêncio, está a ques-
tão metodológica sobre a qual se assenta o foco central da discussão.
A tradição historiográfica dessa arqueologia está vinculada
ao espaço de experiências do iluminismo, quando tal espaço passa
a ser formulado e representado pelas histórias exemplares e ca-
pazes de fornecer saberes sobre o passado num último processo
de racionalização. A racionalidade apresenta-se sob uma formula-
ção pedagógica da história. A representação do passado - a tradi-
ção e a memória coletiva - fica sob restrito controle, disciplinada
por aquilo que Paul Veyne denomina como "doutrina das coisas
atuais", pois é no presente que o passado, ou os elementos de
interesse do passado, contemporaneizado através dos filtros da
razão seletiva. Nesse sentido, pretende-se a confirmação de uma
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156 João Carlos Tedt..•sco
plausibilidade (relativa), e não a confirmação factual, razão pela
qual, na plausibilidade relativa, os valores ético-pedagógicos exer-
cem papel fundamental do discurso iluminista.
Com oprocesso de racionalização dos saberes sobre o passado
na passagem da segunda metade do século XIX e com a aceleração
do tempo moderno, os valores éticos passariam a ser abandonados
em nome da imparcialidade e da objetividade, afiançados pelos pro-
cedimentos críticos das fontes. A absolvição dos procedimentos crí-
ticos desperta a mais completa desconfiança sobre o passado. Tudo
deve1ia passar pela erudição, e o historiador passaria a ser um
especialista cumpridor de regras metodológicas positivas.
Com o advento da modernidade, instala-se também uma pro-
funda insegurança, pois o passado e, nele, a memória passam a
ser sinônimo de desconfiança. A tradição da historiografia exem-
plar iluminista é corroída pelo tempo acelerado do progresso. Ao
mesmo tempo em que o futuro passaria a ser o horizonte das
expectativas, assegurado pela linearidade do tempo e pelo pro-
gresso cumulativo, a memória é apresentada como ruína e como
restos de uma caminhada que conhece o seu sentido na frente.
Esse aspecto faz com que, progressivamente, seja desativado o
potencial explicativo da memória, a qual passa a ser lugar som-
brio, quase esquecido e matéria de terror. Está aí a razão do foco
de desaparecimento da violência e da miséria no passado. O ima-
ginário social incorpora uma espécie de passado higienizado pela
doutrina das coisas atual, a qual referimos anteriormente.
Entretanto, como se poderia projetar o futuro sem passado que
pudesse ser o lastro sobre o qual se assentaria? Seria possível, sim,
projetar o futuro desde que se voltasse ao passado com um aparelho
crítico, um método capaz de extirpar dali o terror e a desordem.
Haveria a possibilidade de reconstituir e verdadeiro passado,
porém seria preciso que o historiador estivesse munido de méto-
dos, técnicas, fontes capazes de um corte cirúrgico das possíveis
fontes de horror e terror da memória, sem, no entanto, aleijá-la a
ponto de ela ser incapaz de dar explicações sobre o passado. Nesse
sentido, enquanto o processo civilizatório se alastrasse objetiva-
mente para um fim a priori estabelecido, a função da história seria
a de deslocar-se para o passado - em sentido contrário ao processo
civilizatóiio - procurando expurgar o caos, a desordem e o terror
que ali pudessem ser encontrados e que poderiam ser fonte de iden-
tidades ou processos identidários de grupos culturais.
Usos de memórias li7
Portanto, pelo método moderno, não seria possível enten-
der e compreender o ser-outro. A ordem quase natural das coisas
era a de ser integrado ao projeto ou não existir o que vai além do
não-reconhecimento.12
O método crítico situa-se fora da história, fora do tempo e se
movimenta contra o processo, com um fantástico potencial
disciplinador. Essa sua característica lhe impõe a função de
desprestigiar a tradição e a memória, separando o espaço de expe-
riências do horizonte de expectativas. Assim, extirpava-se o trági-
co do imaginário que no passado pudesse brotar. Além ele o histo-
riador e seu método não serem mais parte do espaço das expe-
riências, o horizonte das expectativas passa a ser idealizado de
forma ornamental, tendo como base a estética clássica. Só seria
entendido e passível de compreensão aquilo que estivesse numa
ordem evolutiva e enquadrável pela razão. A estética discursiva
garantiria aos homens o futuro no plano do projeto, mas, por ou-
tro lado, apagaria as luzes do passado, diminuindo drasticamente
a capacidade dos homens se orientarem dentro dele.
Assim, a radicalização da estética moderna gerou seu pró-
prio avatar: o passado como o desconhecido, um monstro sujeito a
produzir insegurança em relação ao próprio futuro. Objetivamen-
te, o tempo linear, o progresso cumulativo e a visão otimista gera-
vam excrementos, como a miséria e a violência, a ponto de produ-
zir a terrível incerteza pelo esquecimento do passado. O vazio
produzido entre o horizonte de expectativas e as experiências do
passado seria ocupado pelo próprio redimensionamento da ciên-
cia moderna. Essa deveria instituir-se com regras metodológicas
capazes de ocupar os vazioi'l e continuar garantindo que a
posterioridade não reservasse abismos e tragédias, pois o vazio
poderia ser fonte de dúvidas, contingências e de imprevisibilidades
capazes de colocar em xeque o projeto de futuro.
A nova estética narrativa seriá uma forma ele compensar a
insegurança. A estética caracteriza-se pela ocultação do narrador
via objetividade, porém dando-lhe legitimidade pela sua autorida-
de. O espaço da autoridade adquirida pela formação e pela especia-
lização substituiria a tradição; somente a especialização não seria
suficiente. Seria preciso acoplar-lhe uma narrativa com um enredo
N~1 t·~col.J rnetôdic~1, essl'-pron:•sso i.· t:xpliC'ito. Vc.::r R[IS, Jost• C~1rlo~. A l,j_,;.1d1i,1 enlrc fi/oi.0/i,1 e ,1
cii'nr i.i. 2. ecl. S.lo P,,ulo: Á1ica. 1<J9lJ.
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158 João Carlos Tedesco
que tivesse um discurso fundante, um início, meio e fim, em se-
qüências relacionais de causa e efeito. Essa narrativa seria, então,
capaz de produzir totalidades significativas, porém fechadas, e que
ocupariam todos os espaços possíveis. Tal método disciplinador ge-
rou, como significado cultural, um imaginário antitrágico com alto
grau de persuasão, exemplificado na cultura chamada "erudita",
incorporada e incorporando elementos populares.
Em hipótese, parece-nos que somente seguindo por esse viés
não chegaremos muito longe na discussão sobre identidade, pois a
ciência, pelo seu alto teor seletivo e ampla capacidade disciplinadora,
manteve um controle relativo sobre a memória e os processos
identitários dentro dos processos de modernização e da identidade
integrativa dos modelos tradicionais e universais.
Para um contraponto, é necessário buscar a noção de identi-
dade distintiva, ou seja, aquela que se movimenta no espaço inte-
rior de uma especificidade cultural. Em outras palavras, significa
dar sentido àquilo que é específico de uma cultura. Na especificida-
de estão os impulsos capazes de intermediar identidades. Não fala-
mos mais em formação de identidade que era produzida de fora
para dentro; a tônica, agora, deve recair sobre uma teoria arqueo-
lógica da cultura, buscando os elementos de negociação externa. O
enfoque recaindo sobre o plano da negociação cultural levaria à
possibilidade de vincularmos identidade e emancipação numa espé-
cie de ontologia da cultura da violência e da miséria. Identidade e
emancipação, nesse caso, seriam elementos constituidores de
impulsos utópicos.
O reconhecimento da teoria arqueológica da cultura e, nela,
da especificidade não significa negar metodologicamente a mo-
dernização e a modernidade, pois tal posição levaria, sem dúvida,
ao esgotamento da teoria em si mesma pela intencionalidade, per-
cebida, por exemplo, em alguns movimentos sociais. A questão
central é, portanto, encontrar-se um caminho metodológico capaz
de dar conta da complexidade das noções do tempo, espaço e mo-
vimento dentro de uma configuração que contenha uma certa
plausibilidade explicativa.
Estou convencido de que tal negociação consegue transmitir
possibilidades de uma temporalidade para conceber a articulação
de elementos antagônicos. Como escreve Homi K. Bhabha: "Uma
dialética sem a emergência de uma história teleológica ou trans-
cendente, situada além da forma prescrita da leitura sintomática,
em que os tiques nervosos à superfície da ideologia revelam a
'contradição materialista real' que a história encatna."1
'
1
Portanto,
continuamos a viver culturalmente na fronteira entre memória-
identidade e ressubjetivação-repoetização do passado.
Referências bibliográficas
BENJAMIM, Walter. Erfahrung und Armut. ln: Illuminationem.
Ausgewdhlte Schriften. Frankffurt: Suhrka:mp, 1980.
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DIEHL, Astor Antfülio. A matriz da cultura histórica brasileira.
Uma introdução. I. Porto Alegre: Edipucrs, 1993.
FÉLIX, Loiva Otero. História e memória. Passo Fundo: Ediupf,
1998.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter
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Jo.i.tl Carios Tcdcsco
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WHITE, Hayden. A meta-história. A imaginação histórica do sé-
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Usos da memória na historiografia contemporânea

  • 1. ~!f)' (r:Y ia1Jf QÔ ~"/ °" Aº o João Carlos Tedesco Organizador Usos DE M .,, EMOl~:lA.S Loiva Otero Félix Agostinho Both Elli Benincá e Grupo de Pesquisa Astor Antônio Diehl Fernando Camargo Universidade de Passo Fundo 2002 ~ Hrlil Coj,yright © Editora Universitária Afaria Emilse Lu.catelli Editaria de Texto Sa{,ino Gallon Revisão de Emendas Gilmar José Voloslli AssisteAte de Edição Charles Pimentel da Silva Produção da Capa !v!oar.ir Pimentel Goelzer Editoração e Compasição Eletrônica Este livro no todo ou em parte, conforme determinação legal, não" pode ser reproduzido por qualquer meio sem autori- zação expressa e por escrito do autor ou da editora. l 1}Hi l 1 sos ck· 111t·n11ºu-ias / [rn·ga11i;,,1do po1·]Jo;fo ( ::trios"'4.:clt·s<'O Pas.,,;o Fu11do: lll1 E ~<Ht:!. 171 p. 1. Histcíria 2. ~kmtiria 3. ltk11ticlach.--t. Educ·aç:o ::,_ l'nlítica ti. Historiogratia 1. 'l<.·clc:sco,Jo;o Cados. «.•rg. COU:l~O.I C,1talc1g;u;fü111a fi,ntc: hihli<,tt-cária Sai1dr;111. flilhra1l1 'icira (:K.B 10/ 1278 ISBN: 85-7515-059-6 UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO EDITORA UNIVERSITÁRIA Campus 1, BR 285 - Km 171 - Bairro São José Fone/Fax: (54) 316-8373 CEP 99001-970 - Passo Fundo - RS - Brasil Home-page www.upf.tche.br/editora E-mail editora@upf.br
  • 2.
  • 3. li ' ' 'j: ;L f: 1: Ji ~ : ~ 'i-' 1 ~íl' il ! '!!,!, '1lt ,l .i Ir 1 ti 11' : i~,_ '. l~!li Jl! ~1u lt.i! 11-i! ;~ i n ~1 '1'1 1 i. ,. k 1 j Problemática inicial Na atualidade, estamos vivenciando uma profunda virada nos modos de pensar e reconstituir o passado. Uma das conse- qüências dessa virada é o questionamento sobre as formas mo- dernas de estruturação dos critérios de plausibilidade científica da história, os quais se assentavam nas concepções de tempo, es- paço e movimento iluministas. Com o desgaste desses critérios de plausibilidade da história, surge um leque de opções. A tendência mais acentuada na historiografia contemporânea recente é a das compensações pelo trabalho de rememorização, traduzida na ressubjetivação e repoetização do passado.2 Nesse sentido, memória e identidade assumem posições es- truturais na sustentação do debate. Tempo, espaço e movimento passam a compor expectativas essencialmente existenciais, espe- cialmente nos quadros de ressimbolização e revalorização dos sen- tidos e funções culturais. Portanto, parece-nos que uma das chaves de compreensão da situação atual das perspectivas historiográficas é o estudo da memória e da identidade. Claro está que esse estudo não mais poderá recorrer à memória como um ato apenas de busca de informações do passado, tendo em vista a reconstituição do passado, mas deve ser entendido como um processo dinâmico da própria rememorização. Também a noção de identidade precisa ser antropologizada com o objetivo de se ampliar seus aspectos de possibilidades, saindo-se, assim, da conceituação de identidade como sendo meramente ideológica. Assim, tanto a noção de memória como a de identidade precisam estar envolvidas com aqueles aspectos que proporcionaram odéficit da historiografia moderna: o tempo, o espaço e o movimento. Dos múlti- plos cruzamentos entre memória e identidade com as três variáveis poderão se abriroutras tantas possibilidades paraoestudo da história. Contudo, esse estudo merece desde já uma delimitação se quisermos tomar memória e identidade como uma das possíveis chaves da -· Ver MIRJND/, W. M. (Org.l. N,11·r,i1iva., cf,1 111o<lc•111irl.1d,'. Bdo Horiw11l1·: /ul(111ic,1. 1'J'l'l.
  • 4. ttj 1 .f:: :f.~ 1 'fi :·I f:. '. 1! ,, fl !: I' ( lih ·1;1 1l'. 11: ,L -ii l' i " ij ll j, :l; ':t ,1 :1j ' ,l;: 11:,':;. '-i ilL ; :! : J l:í l, i 1 i1' ,1' ' :- l l1 i· ·1 J 1.1.i ',: 1 lii ' l ~':! ~ .., 144 João Carlos Tedcsco contemporaneidade_'l O estudo e a compreensão da(s) identidade(s) deve enfrentaraintransparência cultural e a atemporalidade estrutural não apenas materializadas através dos fatores socioeconômicos, mas dimensionadas simbolicamente por e em grupos sociais. Nesse ponto haverá uma forte perspectiva de estetização simbólica nem sempre fácil de ser rastreada em fontes pelos métodos e técnicas tradicionais. A situação ele estetização simbólica ou, em outras palavras, a ornamentação de signos e significados de determinados grupos so- ciais e étnicos privilegia uma recolonizaçã.o das expe1iências do coti- diano, especialmente se levando em conta a profunda crise atual de valores modernos e seus respectivos projetos de futuro. Aqui, no- vamente o debate em torno da memória e identidade poderá ser uma opção de entendimento e compreensão. Ademais, a crise das perspectivas otimistas de redenção do homem no futuro gerou o imediatismo das ações. O futuro torna-se cada vez mais presente, diminuindo extraordinariamente o tempo, o espaço e o movimen- to entre presente e futuro. Portanto, o investimento é reconstruir o passado pela perspectiva de futuro no passado. Novamente, isso implica questões que envolvem identidades e processos identitários. Pretende-se, então, amarrar o debate em dois aspectos: o pri- meiro envolve as noções de miséria e violência como princípios de identidade na chamada "cultura do silêncio"; o segundo é orientado para a relação entre identidade e história, tendo corno elemento- base a memória. Para a história, não são as memórias e identidades os pontos centrais, mas as suas respectivas representações nas ex- periências eexpectativas de vida. São exatamente essas representa- ções os elementos da compensação do déficit de critérios iluministas no mundo cultural, cujo processo de rememorização é trazido na ressubjetivação e repoetização de sentidos culturais do passado. A questão interessante é a seguinte: é possível compreender os parâmetros desse complexo na cultura historiográfica e, por- tanto, por meio de suas representações, e até que ponto é viável enunciá-los na sua reconstituição através da estruturação de cri- térios de plausibilidade nas ciências históricas? Para tanto e numa tentativa de aproximação da questão, destacaremos dois aspectos: o primeiro compreende a memória relacionada à história como pressuposto da contemporaneidade e o segundo volta-se para a identidade e a contemporaneidade. Vt·r .iqui RICHARD, Ndly. Polili(.,1, cl,1111lrnóri,1 e técnic.is cio e;4ueci111en10. ln: MIRANDA, W,111cler Melo. Op cit. p. i"21 ·.1 iH. ll:,os de mcmócías 45 5.1 Memória, história e contemporaneidade Tempo como força de corrosão, espaço como o locus da expe- riência da rememorização e o movimento como a estrutura sim- bólica da cultura são os elementos constituidores da(s) memória(s) e da(s) identidade(s). O tempo age sobre o espaço da experiência como força destituidora, a qual pode ser de diferenciação, bem como de integração, que, por sua vez, resulta em movimentos culturais identitários. O espaço da experiênciaproduz, sob a ação do tempo, as possibilidades de sistematizar os fragmentos do passado (as lembranças) em me- mória'. Esse processo somente é possível na medida em que existe consciência da experiência presente (do estar-aí). Entretanto, o processo de conscientização da experiência pre- sente, por meio da rememorização, configura-se como ponto-chave da contemporaneidade daquilo que podemos chamar de "identida- de". O ato de rememorar produz sentido e significação pela ressubjetivação do sujeito e pela repoetização do passado, produzin- do uma nova estética do passado. A nova estética é, nesse caso, a forma compensadora daqueles elementos culturais do passado im- possíveis de reconstituição pela rememorização, pois a ação do tem- po é forte demais. Isso explica que identidade e os processos de iden- tificação e identitários conseguem apenas ressubjetivar e repoetizar elementos e sentidos culturais para grupos sociais e, jamais, para a sociedade como tal. Em caso contrário, identidade passa a ser ideolo- gia, facilmente vinculada à concepção de cultura nacional. Foi exatamente esse último movimento de integração o fa- tor que obstacularizou a compreensão histórica de categoria como miséria e violência, sobretudo pela possibilidade de produzir, em termos de memória, a identidade do silêncio. 5.1.2 Lembrança e memória4 A nossa capacidade de lembrar algo é a mesma capacidade de esquecer. Em termos funcionais de desvelar e trazer para a superfície da história restos e tradições culturais, talvez seja a capacidade psicológica mais antiga e elementar. ' Publicado orir:in.ilrnenle <:111 FLORES, Mo.icyr (OrgJ 1893-95. A Revoluç,lo dos Alar,1g.1tos. Pano Alegre: Edipucrs, 199.l. p. 1Ob-117.
  • 5. ll' u n: i-~ -;.;· ~- J n, IU ti: (.1 ; í; ~ . : J! 'JÍ i: ! r: :P li i; u f t ü ji i 'IÍ !i ~t _ri 14; [l :rf J: 1 ti ,ri 1 ~l 1 1! r 1 :li ~I 1 ,,1 I L j ··i Uí 'll! tit Nietzsche percebeu, no exercício do lembrar, o começo dos traços e das características da moral, especialmente no que diz respeito à lembrança na nossa cultura histórica, a qual é direcio- nada de forma unilateral e unívoca, pois a capacidade de lembrar significa lembrar deveres, e não alegrias; lembrança foi combina- da com "consciência pesada", com sentimento de culpa, com peca- do por isso raras vezes significa felicidade, perspectiva utópica e liberdade. Assim, lembrança assume uma função normativo- impositiva. Lembrança é apresentada aqui como vivências fragmenta- das, como rastros e restos de experiências perdidas no tempo, como pegadas do passado, praticamente impossíveis de serem atualizadas historicamente. E quando essas lembrançás são atualizadas, correm o risco de ser idealizações de vivências, po- dendo, até mesmo, ser pontos de referência para romantizar o passado. Lembranças estão localizadas no passado de forma está- tica; são elementos intransparentes, individuais e que perdem gra- dativamente seus pontos de referência no tênue horizonte entre o passado e presente. Já memória significa aqui experiências consistentes, anco- radas no tempo passado facilmente localizável. Memória possui contextualidade e é possível de ser atualizada historicamente; possui maior consistência do que lembrança, uma vez que é uma representação produzida pela e através da experiência.5 Consti- tui-se de um saber, formando tradições, caminhos - como canais de comunicação entre dimensões temporais-, ao invés de rastros e restos como no caso da lembrança. A memória pode constituir- se de elementos individuais e coletivos, fazendo parte de perspec- tivas de futuro, de utopias, de consciências do passado e de sofri- mentos. Ela possui a capacidade de instrumentalizar canais de comunicação para a consciência histórica e cultural, uma vez que pode abranger a totalidade do passado num determinado corte temporal. Pois bem, nesse sentido, antes de teorizar e metodizar a memória, dando-lhe, dessa forma, funções e significações histó- ricas, caracterizemo-la genericamente. Pelo senso comum, a memória está intimamente ligada às tradições familiares e a grupos com suas idiossincracias peculiares. Nesse nível, ela representa possibilidades de aprendizagem e de " Apontamos o, ~entido atribuído por Waher Benjamim conl. KOTHE, F. R. (Org.). W.1/ter Benjamim. 550 Paulo: Atica, 1985 (Col. Grandes cientistas sociais). Usos ae mcrnon.s.:. socialização, expressando, assim, continuidade eidentidade daque- las tradições. Contudo, a continuidade nem sempre pode ser defini- da explicitamente. A memória, por também ter características co- letivas, assume funções tais como de identificação cultural, de con- trole político-ideológico, de diferenciação e de integração. No nível das mentalidades coletivas, essas funções perpetuam os critérios de seletividades desses grupos sociais. É evidente que essas funções nem sempre são perspectiváveis de forma transpa- rente, ainda mais porque o historiador não possui um arsenal téc- nico-metodológico para garimpar tais variações internas, elevan- do-as para o nível da argumentação histórica. Nesse caso, a memó- ria assume a função genérica ligada à tradição. Mesmo assim, não perde sua complexidade e continua sendo uma constelação que con- templa as estruturas de mudanças temporais nos seus aspectos qualitativos. Isso significa que também é caracterizada pela relação presente-passado-presente. E é exatamente essa capacidade tridimensional do tempo da memória que facilita ao historiador tomá-la como fonte imprescindível para a ciência histórica. A memória, como qualquer outra fonte histórica, sofre de uma fraqueza que é o seu desgaste através do tempo. Tomemos como exemplo a memória colocada no tempo histórico. O tempo históri- co é uma flecha disparada de um determinado ponto para o futuro. O ponto de partida é, historicamente, o iluminismo, quando, pela primeira vez, resolveu-se a problemática da sucessão temporal pas- sando do fixismo da mecânica renascentista para a linearidade do tempo socioistórico, do aperfeiçoamento progressivo. Com o iluminismo, o desenvolvimento recebeu a adjetivação histórica, ou seja, um processo - histórico - com um fim. Essa flecha, à medida que se distancia do ponto disparado, sofre simultaneamente dois processos: primeiramente, perde velocidade enquanto se distancia, o que permite que os intervalos de tempo aumentem e o objeto se torne cada vez mais difícil de ser alcançado; segundo, para um medidor de tempo (transpondo isso para ohistoriador), quanto mais próximo estiver localizado do ponto de disparo, tanto menor será o intervalo de tempo, dificultando a medição, o que somente será possível com instrumentos bem aferidos (coloquemos aqui as técni- cas e métodos de pesquisa histórica). Com a memória se passa algo muito parecido, tomadas, é claro, as devidas diferenças. A memória, à medida que estiver localizada bem distante do fato, da época, do contexto-tomado como
  • 6. f1'': 't r! l' rr 1;: 1:.: n: li: i' ![ li ·11 :1 il ii ~i l 1· 11. Jl :-: !li 1, t 1.1. ·I!, Jii .111 148 João Carlos Tedesco objeto de pesquisa, tanto mais desgastada estará. A esse processo de desgaste podemos chamar de corrosão temporal. Ela vai per- dendo força, capacidade explicativa, capacidade de informar, de se tornar transparente, pontos de referência substantiva para man- ter suas funções, como descrevemos antes. Esse desgaste pode chegar ao ponto de na memória apenas persistirem restos, vivências, fragmentos do passado e, nesse caso, apenas lembran- ças descoloridas. A perda de significação pelo desgaste tem sua origem na forma de representação da concepção de tempo históri- co. Geralmente, concebemos o tempo pelo viés positivo- evolucionista-linear-progressivo, que é, na verdade, uma opera- cionalização novecentista da idéia de tempo do iluminismo.6 Portanto, poderíamos dizer que a memória precisa ser "refrescada" constantemente. Mas como isso ocorre? Para operacionalizar esse processo existem várias formas, das quais a mais comum na história consiste em grafá-la, narrá-la ou, ainda, em torná-la fonte histórica. A esse processo chamaremos aqui de rememoração da memória, o que significa rememoraras experiên- cias no passado. 5.2 Memória e história Descrevemos acima que a memória possui características que a diferenciam da lembrança. Essa diferença qualitativa "a mais" permite torná-la fonte histórica, assumindo, a partir de então, características e funções novas. A memória, para poder ser torna- da histórica, gozar das prerrogativas de científicidade ou, pelo menos, aspirar a ser fonte histórica com credibilidade dentro da "província" dos historiadores, precisa, necessariamente, passar pelo processo crítico que chamaremos pelas expressões teorização e metodização.1 Teorizar significa pensar a memória como fonte · histórica em termos de especificidade científica, como elemento '· Ci. KOSELLECK, ReinhMch. ve1;r:a11;r:e11e Zuk1111{t. rrankfurt: Suhrbrnp, 1<)79, especialmenle pane 11 "Zur Theorie und Methocle Hislorischer Zeilheslmmung", p. 107-207. Também ver TOPOLSKI, Jersy. O conteüclolemporal da narrativa hi>tórica. Hi.stóri,,: Que.stõe.s e Debate.<, Curitiba, v. 7, n. l ,'., p. 41-56, 198(,. l:m re1Jç5o à hi5tôri,1 con10 ciência, estes aspecto~ foram J1n1>l,111wnte desenvolvicfo5 n.J trilogi.i d~· lorn Rüsen (Hi.<tori.scl,e Venw11li. Gültingen: Vandenhoeck e· Ruprecht, l 'IR3; Reko11,tniktin11 der Ve~~a11.~e11/1eit . Gõltingen: Vanclenhoeck e Ruprecht, 198ó; Lel,e11cfige Ge,cliid,re. Giitlingen: Vanclenhoeck e Ruprecht, 1989), os quJis trouxemos parJ cliscussJosohre a memória. ,, Usos de mcmór"i.l.s 149 contextualizado de interpretação histórica; significa perspectivar a memória como elemento de orientação sobre a experiência do passado humano. Teorizar representa as diversas estratégias de argumentação na forma de teorias explicativas e de interpreta- ção, cm outras palavras, seria o caso de perguntar como <:8<i::i teoria ou referencial teórico irá perspectivar o passado, dando-lhe sentido e significação. A discussão sobre o aspecto de como a pesquisa histórica deve lidar com a memória como "armazém" informativo-factual e fonte de representação da cultura historiográfica do passado ain- da é uma questão em aberto. Mesmo com essa dificuldade, alguns pontos podem ser mapeados em relação à memória, tais como: a necessidade de contextualidade do objeto da memória assim como do agente rememorador, a necessidade de temporalidade, a ne- cessidade da narrativa (da poética) e, finalmente, a necessidade de sua problematização. Sob a expressão teorizar está a questão pertinente das ope- rações de consciência, as quais somente ficam evidentes quando questionadas sobre o sentido que possuem nas experiências da vida. Se pensarmos memória dentro dessa perspectiva, então ela não aparece como fonte de informações para o conhecimento his- tórico, mas como expressão do próprio pensar histórico. Portan- to, a questão central na teorização da memória poderá ter fun- ções de experiência temporal e de identidade histórica. Metodizar é genericamente entendido como processo que permite inserir a memória - a experiência - do passado nas pers- pectivas orientadas sobre esse mesmo passado, de tal forma que a memória adquira o qualificativo de histórico. Metodizar significa buscar regras da pesquisa histórica que tornam o passado históri- co, objetivo e com plausibilidade científica. No entanto, essa obje- tividade é relativa uma vez que o historiador lança mão de crité- rios sobre o entendimento do passado corno vivido por homens reais numa dimensão social. O critério da objetividade fragiliza-se ainda mais porque a memória - tomada como fonte - já é uma representação daquelas experiências vividas por homens numa dimensão social. Esse aspecto representa uma necessária crítica interna e externa. Mais do que nunca, questões vinculadas às po- sições político-ideológicas do narrador - memoralista - e do histo- riador são relevantes aqui. Explica-se, assim, a necessidade de critérios claramente definidos e de regras de pesquisa quando tra- tamos da memória como fonte histórica.
  • 7. ~: ff 1:: 1t· l~ ti 1! ]: ~ ~ 1 í ! ! 1i ~ : u l ~ t! l l, t 1 ·1:2 k, /l J '_·1''.,1 i ::1 i ~ · 1 'f_ii 111;! l' ··l·!r- :·1: ;.:f "T ~1r -u!L 150 1oao L.anus .1.cuesco Sob a rubrica metodizar estão expostas as possibilidades de a memória ser fonte de experiência, de continuidade/ruptura, de identidade, de sentido e de comunicação. Com essas possibilida- des, a memória adquire qualidade em, pelo menos, quatro níveis: como consciência histórica, como argumento, como explicação histórica e como narrativa. 5.3 Memória crise e narração histórica Argumentamos, inicialmente, sobre a estreita relação entre memória e experiência, porém distinguimos experiência de vivência. Walter Benjamim aponta para a experiência como um conceito típico de sociedade pré-moderna, caracterizada essencial- mente pela sociabilidade comunitária, ao passo que vivência se refere às sociedades modernas e à sua dinâmica traumatológica. A sociabilidade comunitária permite o nascimento da tradição, onde o coletivo e o individual se fundem, dando origem ao fundo anímico comum capaz de ser transmissível às futuras gerações, ao passo que as vivências apenas produzem um homem sem história e, portanto, um homem sem memória, um homem condenado a er- rar como um autômato na história, sem passado e sem futuro.8 A proposta benjaminiana direciona-se para a análise históri- ca, que, na ausência das condições sociais que possibilitariam a experiência (sociabilidade comunitária), poderia evocar a memória (involuntária), sepultada pelo desenvolvimento histórico.9 Com a evocação da memória, o passado tornar-se-ia acessível ao homem. No processo de evocar estão alojadas as lembranças e as esperan- ças. Essa busca permite identificar o caráter reconstrutivo da his- tória. O historiador, nessa perspectiva, seria capaz de recuperar as virtualidades inibidas pelo desenvolvimento histórico linear e pro- gressivo, as quais têm depositado registros de derrotas, o testemu- nho das frustrações no passado. Está aí nossa preocupação inicial em dizer que, atualmente, a memória assume papel central na reconstituição do passado, este jogado na "lata de lixo" pelos proje- " BENJAMIM. Walter. Erfohrung und Armul. ln: ll/1mú11,11io11em, Ausgewahlte 5,hrifien. Frankffurt: Suhrkarnp, 1980. Também ln: W. Benjamim GS li. p. 644-647. " Ver aqui as análises feitas por GAGNEBIN, Jeanne Marie. 1994 e 1997. op. cit. Usos de mernôrias J.J l tos triunfalistas. Mas quem disse que a "lata de lixo" não pode ser uma excelente fonte de informações sobre aquele que enche essa lata, seu modo de vida, suas experiências, seus projetos? Assim, também a memória pode se constituir numa fonte histórica, como se ela fosse um negativo de uma época ou fato. Pois bem, a pergunta instigante é a seguinte: por que a me- mória coletiva e individual assume atualmente um papel central na historiografia? Penso ser possível mapear argumentos centrais, entre outros. O primeiro argumento vincula-se à crise da história como ciência; o segundo, às formas de representação histórica, ou melhor, a narração histórica (a poética da história). A crise que a história como ciência enfrenta hoje vincula-se à, crise do tempo histórico linear-progressivo e às formas estruturais de conceber a própria explicação histórica. Essa idéia pode ser exemplificada quando pensamos a história como um receptáculo oco no qual estariam encaixados os fatos históricos vitoriosos, orien- tados numa direção predeterminada. Dessa forma, a história é con- cebida como um "armazém" onde estão depositadas, acumuladas, as vitórias, que expressam, inexoravelmente, a realização da hu- manidade. A história seria vista como a marcha de vitória em vitó- ria, de triunfo em triunfo, como se história e realização fossem sinônimos, numa espécie de epopéia do vencedor. Aqµi, o tempo histórico não deve ser entendido como linear, direcionado para a perfeição - como no iluminismo -, mas como ruptura destinada a salvar o passado. O tempo não pode ser mais concebido como linear porque o presente (do historiador) é visado pela memória passada. Portanto, a tarefa do historiador não consiste mais no obje- tivo de estudar o passado para prever e controlar o futuro, mas de libertar as esperanças contidas na experiência histórica do passa- do, ou seja, libertar a memória. A crise a que assistimos hoje tem como horizonte a polarização entre razão e vida, entre experiên- cia e abstração, entre atualidade e história. Nesse sentido, a me- mória pode ser fator de superação da história do desejo, da frag- mentação da ciência histórica e, assim, estabelecer uma espécie de arqueologia das possibilidades culturais.
  • 8. '~ l : r> J,~. :;i; iY' , r· i ~ /:. ! ~ l li li li if f h (, ~ l : J; ;• ! i 152 Joio Carlos Tcdes-r:o 5.4 Memória e narrativa historiográfica Quando falamos sobre historiografia, vem-nos logo a idéia de que se trata da história do escrito histórico, da história da his- tória, da história do pensamento histórico, as quais comumente classificamos em diversas tendências teóricas, tais como historio- grafia romântica, determinista, marxista, etc., ou em narrativas eruditas, retóricas, criticas, revisionistas. Essa forma de proceder não está equivocada, mas incompleta porque encobre, pelo me- nos, outras possibilidades de se conceber a historiografia, por não alcançar a essência substantiva das narrativas. Uma primeira pos- sibilidade reside em denominar a narrativa a partir das formas de representação do conhecimento histórico. Essas formas estão an- coradas no caráter literário das próprias fontes de pesquisa, nesse caso, as memórias, que têm uma autonomia formal diante da cons- trução da ciência histórica. Aqui estão todas as formas de textos nos quais se manifesta o potencial argumentativo próprio da temporalidade de um saber histórico científico, aspecto que confe- re plausibilidade explicativa ao saber produzido. Com a memória se passa algo parecido, pois cornumente são catalogadas como tradicionais, críticas, heróicas, sem que seja pEff- guntado sobre as formas narrativas, as quais já estão contidas nas memórias como fontes da história, pois elas já são representações de experiências do passado. Nesse sentido, memória pode vir asso- ciada a sofrimento e a violência. A forma narrativa da memória, além de sua parte substantiva do conteúdo, representa a estratégja da argumentação através da concepção do tempo histórico. Essas estratégias formam quatro constelações do discurso histórico na memória, as quais dão sentido de ordenamento, formam a espinha dorsal de uma história, bem como constituem critérios que am- pliam o horizonte da estrutura narrativa da história e as possibili- dades da própria história como ciência. Constelação narrativa tradicional: A constelação tradicional é uma forma de narrativa que empresta sentido à argumentação his- tórica no que diz respeito às mudanças temporais de homens e seu mundo através da representação de duração, funções e formas de experiências estabelecidas. A narrativa tradicional rememora as origens de concepções de mundo e de vida, cuja continuidade é representada pela duração na mudança. As formas de comunicação apresentam-se sob o nível da aceitação pacífica, pois a identidade é l.J~os de mcinllri.as ··153 formada pela repetição de normas preestabelecidas. A espinha dorsal do tempo será perpetuada com sentido imutável. 1 " Constelação narrativa exemplar: A constelação exemplar é uma forma de narrativa de argumentação histórica que se dife- rencia da tradicional pela. ampliação do nível de experiência e pela maior elaboração abstrativa da práxis relacionada com osaber his- tórico. A memória exemplar rememora acontecimentos e casos que demonstram regras de ações gerais, cuja continuidade é represen- tada pela repetição de ações que estruturam diferentes formas de vivências. Com isso, essa narrativa ganha sentido moral através de ações individuais. As formas de comunicação apresentam-se sob o nível de argumentação com força de juízo, pois identidade é formada pela competência em resolver questões e situações de ação (sabedoria de ter tomada esta ou aquela ação). O tempo rece- berá sentido de especialidade. Constelação narrativa crítica: A constelação crítica é uma for- ma de narrativa de argumentação histórica na qual importa, sobre- tudo, demonstrar conseqüentes modelos de pensamento histórico- cultural que apresentem mobilidade da própria experiência históri- ca. A memória critica rememora fatos que questionam orientações históricas consolidadas, cuja continuidade é representada sob a for- ma de ruptura com conseqüentes mudanças temporais. As formas de comunicação apresentam-se em forma de um ponto de referên- cia contra situações sociais preestabelecidas, uma vez que a identi- dade éformada através da presença de experiências temporalmen- te criticáveis. O tempo será narrado com o sentido de ruptura. Constelaçã.o narrativa genética: A constelação genética apa- rece nas formas historiográficas de memórias quando são coloca- dos em evidência os momentos de mudanças temporais do traba- lho de identificação histórica. O tempo histórico corno mudança ganha uma qualidade positiva. As mudanças aparecem não mais como ameaça histórica, mas são explicitadas como qualidade em termos de vida humana e como chance para a superação das con- dições estabelecidas, como perspectiva de futuro, as quais vão além dojá alcançado. Assim, a memória rememora as mudanças trazidas de fora para dentro e, com isso, ocorre a ampliação do horizonte 1" [,.q,1.:;; qu.itro fonnJs lor~11n clc..:--envolvicl,1s por ROsen Cld">cndigt• G<·~chit h1e. C1p. ( it., p. ~t)-;l()l l'tl: termo~ histnriogrtificos e: dt• r<:•prt.·~·n1~1c:,io do conlll'Ôllll'lllo hi..;tc"iri1.o. Proprnnn:-- lrdl'.VI e~:,;i;'~ tipos icle;iic. para a prohlt.·1n.:ítir;i d,1 n1<:"111óri.:1. Ver t,1mlu;111 ,, ohr.1 clt· VVHITL H~,yclen. , mcl,1- hi. ..;f()r;a. ! i1nilgi1K1çilo his1<·1ric,1 do :--éculo XIX. S,io P.:1uln: [du~p. llP·U.
  • 9. ;rn::' fi!:[ ii!!l 1d. i '.!· ! i' i ! ' 1 ', í: i; 1]; !l;' :j ,til 154 João Carlos Tedcsco histórico. A continuidade estabelece-se como desenvolvimento, no qual as formas de vida vão mudando para poderem, dinamica- mente, enfrentar o tempo futuro. As formas de comunicação apa- recem como elementos discursivos de diferentes pontos de vista e perspectivas de mudanças. A identidade configura-se por meio dos processos de individualização das experiências, ao passo que o tem- po é narrado como temporalidade do próprio tempo. Levando-se em consideração essas quatro constelações da narrativa historiográfica da memória, a história, como ciência, ganha elementos imprescindíveis para ampliar o potencial argumentativo das formas de representação do conhecimento e, finalmente, plausibilidade explicativa. De forma genérica, dois pontos são relevantes: incluindo-se tais constelações narrativas, a historiografia consegue superar as tradicionais classificações de memórias e, em segundo lugar, ampliando esse horizonte, enca- minhar novas estratégias de reconstrução do passado, sem, no entanto, cair na fragmentação das representações ditas pós-mo- dernas. Mantém-se, assim, uma historiografia moderna, mapeada com base em novas concepções do tempo histórico. 5.5 Identidade como chave da contemporaneidade Assim como na memória, também com identidade podemos par- tir das três dimensões - tempo, espaço e movimento-, como elementos constituidores e agentes dos processos identitários. Tal aspecto envolve duas situações: a constituição e a definição de identidade. A destituição de id~ntidade, via de regra, implica a fragmentação da personalidade identitáiia de um sujeito histórico, sendo esse um processo de extrema violência pelaintroduçãoou, mesmo, utilização do terrormassivo. Exem- plo desse processo ilustra que, nas nações européias colonizadoras des- de o Renascimento, encontramos os mecanismos de terror e brutal força de submissão.11 Assim, acreditar que o caráter nacional espanhol possui uma disposição específica para o exercício do terror ou dizer que a colonização inglesa foi mais humanitária significa desfocalizar a rea- lidade histórica com a lente das três dimensões referidas. " Vt•r MATOS. Olg.íria Cl.iin íéres. Esp,it·o público e lolerânc:ia polilica. ln: MIRANDA Wander Melo. Op cil., p. ºll'l-l4 l. usos ac memonas Somente esse exemplo já é capaz de nos dar os elementos capazes de ilustrar a complexidade da questão e da sua atualidade contemporânea pelos sentidos e significados culturais que a iden- tidade assume como cultura. Identidade é uma espécie de metadiscurso sobre experiências históricas de difícil apreensão empírico-histórica. Essa dificuldade de apreensão tem sua origem na aplicação, por vezes, dos métodos analíticos, que não conse- guem descer até o sentido pedagógico da violência e da miséria; quando muito, constatam uma pedagogia do silêncio, como resul- tado da violência e uma racionalidade para explicar a miséria. Com a dificuldade implícita dos métodos analíticos, devería- mos procurar as possibilidades ele reconstituição desse metadiscurso em métodos hermenêuticos, estes, sim, capazes de alcançar uma arqueologia do ser-outro, com os quais pudéssemos ter como ponto de partida uma didática e urna pedagogia. Com esse ponto de parti- da, poder-se-ia, então, pretender compreender a eticidade e a moralidade, a crítica e a política subjacente dos processos destituidores e constituidores de identidade e, sem dúvida, chegar à dinâmica con- traditória entre constituição e destruição de identidade na tridimensionalidade do tempo, espaço e movimento na sua contemporaneidade. Repetindo o que já disse em item anterior: o tempo como força de corrosão, o espaço como lorns da experiência da remorização e omovimento como a estrutura simbólica (e agora metadiscurso) da cultura como os elementos constituidores da(sl memória(s) e da(s) identidade(s). Sem esse pladoyer hermenêutico, facilmente se poderia cair na armadilha do reducionismo teórico-metodológico analítico. Muito mais do que entender apenas a arqueologia do silêncio, está a ques- tão metodológica sobre a qual se assenta o foco central da discussão. A tradição historiográfica dessa arqueologia está vinculada ao espaço de experiências do iluminismo, quando tal espaço passa a ser formulado e representado pelas histórias exemplares e ca- pazes de fornecer saberes sobre o passado num último processo de racionalização. A racionalidade apresenta-se sob uma formula- ção pedagógica da história. A representação do passado - a tradi- ção e a memória coletiva - fica sob restrito controle, disciplinada por aquilo que Paul Veyne denomina como "doutrina das coisas atuais", pois é no presente que o passado, ou os elementos de interesse do passado, contemporaneizado através dos filtros da razão seletiva. Nesse sentido, pretende-se a confirmação de uma
  • 10. 'li '._Ir i: 1·1 ···' r :· i .t l :f! 1 li[1 ii ,j:i li,; .1 . 1' í.. !,. ii 1! j! 1! li il' . ' '' . 1 ! i. ! i! L L E íl 11:1 .. , 1, l' :, il :;I jel "ti1 111 li!;! i.' •I .i .1 'li:: .t 1 -~ j~ 11 li i! 11 ;! 1,; ~I '{! ~ 1 1,,I· 156 João Carlos Tedt..•sco plausibilidade (relativa), e não a confirmação factual, razão pela qual, na plausibilidade relativa, os valores ético-pedagógicos exer- cem papel fundamental do discurso iluminista. Com oprocesso de racionalização dos saberes sobre o passado na passagem da segunda metade do século XIX e com a aceleração do tempo moderno, os valores éticos passariam a ser abandonados em nome da imparcialidade e da objetividade, afiançados pelos pro- cedimentos críticos das fontes. A absolvição dos procedimentos crí- ticos desperta a mais completa desconfiança sobre o passado. Tudo deve1ia passar pela erudição, e o historiador passaria a ser um especialista cumpridor de regras metodológicas positivas. Com o advento da modernidade, instala-se também uma pro- funda insegurança, pois o passado e, nele, a memória passam a ser sinônimo de desconfiança. A tradição da historiografia exem- plar iluminista é corroída pelo tempo acelerado do progresso. Ao mesmo tempo em que o futuro passaria a ser o horizonte das expectativas, assegurado pela linearidade do tempo e pelo pro- gresso cumulativo, a memória é apresentada como ruína e como restos de uma caminhada que conhece o seu sentido na frente. Esse aspecto faz com que, progressivamente, seja desativado o potencial explicativo da memória, a qual passa a ser lugar som- brio, quase esquecido e matéria de terror. Está aí a razão do foco de desaparecimento da violência e da miséria no passado. O ima- ginário social incorpora uma espécie de passado higienizado pela doutrina das coisas atual, a qual referimos anteriormente. Entretanto, como se poderia projetar o futuro sem passado que pudesse ser o lastro sobre o qual se assentaria? Seria possível, sim, projetar o futuro desde que se voltasse ao passado com um aparelho crítico, um método capaz de extirpar dali o terror e a desordem. Haveria a possibilidade de reconstituir e verdadeiro passado, porém seria preciso que o historiador estivesse munido de méto- dos, técnicas, fontes capazes de um corte cirúrgico das possíveis fontes de horror e terror da memória, sem, no entanto, aleijá-la a ponto de ela ser incapaz de dar explicações sobre o passado. Nesse sentido, enquanto o processo civilizatório se alastrasse objetiva- mente para um fim a priori estabelecido, a função da história seria a de deslocar-se para o passado - em sentido contrário ao processo civilizatóiio - procurando expurgar o caos, a desordem e o terror que ali pudessem ser encontrados e que poderiam ser fonte de iden- tidades ou processos identidários de grupos culturais. Usos de memórias li7 Portanto, pelo método moderno, não seria possível enten- der e compreender o ser-outro. A ordem quase natural das coisas era a de ser integrado ao projeto ou não existir o que vai além do não-reconhecimento.12 O método crítico situa-se fora da história, fora do tempo e se movimenta contra o processo, com um fantástico potencial disciplinador. Essa sua característica lhe impõe a função de desprestigiar a tradição e a memória, separando o espaço de expe- riências do horizonte de expectativas. Assim, extirpava-se o trági- co do imaginário que no passado pudesse brotar. Além ele o histo- riador e seu método não serem mais parte do espaço das expe- riências, o horizonte das expectativas passa a ser idealizado de forma ornamental, tendo como base a estética clássica. Só seria entendido e passível de compreensão aquilo que estivesse numa ordem evolutiva e enquadrável pela razão. A estética discursiva garantiria aos homens o futuro no plano do projeto, mas, por ou- tro lado, apagaria as luzes do passado, diminuindo drasticamente a capacidade dos homens se orientarem dentro dele. Assim, a radicalização da estética moderna gerou seu pró- prio avatar: o passado como o desconhecido, um monstro sujeito a produzir insegurança em relação ao próprio futuro. Objetivamen- te, o tempo linear, o progresso cumulativo e a visão otimista gera- vam excrementos, como a miséria e a violência, a ponto de produ- zir a terrível incerteza pelo esquecimento do passado. O vazio produzido entre o horizonte de expectativas e as experiências do passado seria ocupado pelo próprio redimensionamento da ciên- cia moderna. Essa deveria instituir-se com regras metodológicas capazes de ocupar os vazioi'l e continuar garantindo que a posterioridade não reservasse abismos e tragédias, pois o vazio poderia ser fonte de dúvidas, contingências e de imprevisibilidades capazes de colocar em xeque o projeto de futuro. A nova estética narrativa seriá uma forma ele compensar a insegurança. A estética caracteriza-se pela ocultação do narrador via objetividade, porém dando-lhe legitimidade pela sua autorida- de. O espaço da autoridade adquirida pela formação e pela especia- lização substituiria a tradição; somente a especialização não seria suficiente. Seria preciso acoplar-lhe uma narrativa com um enredo N~1 t·~col.J rnetôdic~1, essl'-pron:•sso i.· t:xpliC'ito. Vc.::r R[IS, Jost• C~1rlo~. A l,j_,;.1d1i,1 enlrc fi/oi.0/i,1 e ,1 cii'nr i.i. 2. ecl. S.lo P,,ulo: Á1ica. 1<J9lJ.
  • 11. ' :; t ~ ·i 158 João Carlos Tedesco que tivesse um discurso fundante, um início, meio e fim, em se- qüências relacionais de causa e efeito. Essa narrativa seria, então, capaz de produzir totalidades significativas, porém fechadas, e que ocupariam todos os espaços possíveis. Tal método disciplinador ge- rou, como significado cultural, um imaginário antitrágico com alto grau de persuasão, exemplificado na cultura chamada "erudita", incorporada e incorporando elementos populares. Em hipótese, parece-nos que somente seguindo por esse viés não chegaremos muito longe na discussão sobre identidade, pois a ciência, pelo seu alto teor seletivo e ampla capacidade disciplinadora, manteve um controle relativo sobre a memória e os processos identitários dentro dos processos de modernização e da identidade integrativa dos modelos tradicionais e universais. Para um contraponto, é necessário buscar a noção de identi- dade distintiva, ou seja, aquela que se movimenta no espaço inte- rior de uma especificidade cultural. Em outras palavras, significa dar sentido àquilo que é específico de uma cultura. Na especificida- de estão os impulsos capazes de intermediar identidades. Não fala- mos mais em formação de identidade que era produzida de fora para dentro; a tônica, agora, deve recair sobre uma teoria arqueo- lógica da cultura, buscando os elementos de negociação externa. O enfoque recaindo sobre o plano da negociação cultural levaria à possibilidade de vincularmos identidade e emancipação numa espé- cie de ontologia da cultura da violência e da miséria. Identidade e emancipação, nesse caso, seriam elementos constituidores de impulsos utópicos. O reconhecimento da teoria arqueológica da cultura e, nela, da especificidade não significa negar metodologicamente a mo- dernização e a modernidade, pois tal posição levaria, sem dúvida, ao esgotamento da teoria em si mesma pela intencionalidade, per- cebida, por exemplo, em alguns movimentos sociais. A questão central é, portanto, encontrar-se um caminho metodológico capaz de dar conta da complexidade das noções do tempo, espaço e mo- vimento dentro de uma configuração que contenha uma certa plausibilidade explicativa. Estou convencido de que tal negociação consegue transmitir possibilidades de uma temporalidade para conceber a articulação de elementos antagônicos. Como escreve Homi K. Bhabha: "Uma dialética sem a emergência de uma história teleológica ou trans- cendente, situada além da forma prescrita da leitura sintomática, em que os tiques nervosos à superfície da ideologia revelam a 'contradição materialista real' que a história encatna."1 ' 1 Portanto, continuamos a viver culturalmente na fronteira entre memória- identidade e ressubjetivação-repoetização do passado. Referências bibliográficas BENJAMIM, Walter. Erfahrung und Armut. ln: Illuminationem. Ausgewdhlte Schriften. Frankffurt: Suhrka:mp, 1980. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. DIEHL, Astor Antfülio. A matriz da cultura histórica brasileira. Uma introdução. I. Porto Alegre: Edipucrs, 1993. FÉLIX, Loiva Otero. História e memória. Passo Fundo: Ediupf, 1998. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamim. Campinas: Unicamp, 1994. --. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Ja- neiro: Imago, 1997. HALBAWACHS, Maurice. A memória coletiva.. São Paulo: Vérti- ce, 1990. ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginá.rio: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: Verj, 1996. KOTHE, F. R. (Org.). Walter Benjamim. São Paulo: Ática,1985. (Col. Grandes Cientistas Sociais). KOSELLECK, Reinhardt. Vergangene Zukunft. Frankfurt: Suhrkamp, 1979. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990. MIRANDA, Wander Melo. (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. '' BH/BHA. Homi K. O /oc.il ela n,//11r,1. Relo Horiwnte: Editora UíMG. 19'18. p. r, 1.
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