1. 12aurinegra #233 | 02MAR2012
FILIPA DO CARMO
filipadocarmo@aurinegra.com
12 reportagem
O AuriNegra acompanhou,
na manhã de 24 de Fevereiro,
uma patrulha da Guarda
Nacional Republicana de
Cantanhede afecta à Secção
de Programas Especiais,em
concreto do programa de apoio
a idosos que vivem sós.Porque
por detrás dos números
existem pessoas,quisemos
conhecer as histórias e as
vidas que a solidão teima em
esconder.
“Idosoencontradomortoem
casa”,“Corpo de idosa, em avan-
çado estado de decomposição,
encontrado em casa”, “Acamada
chamou cinco dias pelo marido
morto”. São títulos reais, de no-
tícias reais, que nos chocam por
aquilo que escondem: a solidão
de quem a sociedade deixou de
considerar útil, de quem a fa-
mília deixou de procurar, ou de
quem nem sequer tem alguém
a quem possa chamar família
ou amigo. O egoísmo e o con-
ceito de produtividade por que
se avalia a utilidade dos seres
humanos empurram estas pes-
soas para um mundo à parte,
uma existência nas sombras
com a solidão por companhei-
ra. Tornam-se invisíveis para os
demais e são, inevitavelmente,
esquecidos.
O cenário desolador tra-
çado pelos sociólogos do País,
quando tentam, em programas
televisivos ou em declarações
aos jornais, explicar este “fenó-
meno”, devia fazer-nos parar e
pensar. Mas como se explica o
inexplicável? Como se justifica
o abandono e a negligência a
que votamos os nossos idosos?
Os nossos próprios avós, pais e
tios? Chocam-nos os números
negros das pessoas que vivem
os últimos anos das suas vidas
nestas circunstâncias mas, na
verdade, para nós não passam
disso mesmo: números negros.
Porque com cada idoso que
morre só, no silêncio, fica uma
história por contar, quisemos
conhecer algumas das vidas que
se escondem por detrás dos nú-
meros.
“SOZINHA NO MEIO
DESTA GÂNDARA”
Só no concelho de Can-
tanhede, a Guarda Nacional
Republicana (GNR) tem sinali-
zados 132 idosos que residem
sós, ou sem a companhia de
alguém que lhes possa prestar
auxílio e cuidados em caso de
necessidade. São pessoas que
o Destacamento Territorial de
Cantanhede identificou, no âm-
bito do Censos Sénior, realizado
como medida complementar
do programa Apoio 65 – Idosos
em Segurança [ver caixa]. Pou-
co depois das nove da manhã,
seguimosnumdoscarrosdepa-
trulha rumo à Malhada de Bai-
xo, freguesia de Covões. Vamos
visitar Maria do Céu Chastres,
de 82 anos, que vive numa casa
isolada junto a um pinhal, na
companhia de um filho surdo-
-mudo, com 48 anos e um pro-
blema grave de alcoolismo.
Deixamos para trás o casario
eenveredamosporumcaminho
emterra,queculminanacasade
Maria do Céu. Recebe-nos com
um sorriso nos lábios, enquanto
distribui cumprimentos pelos
militares da patrulha, já seus co-
nhecidos. Feitas as apresenta-
ções, Céu da Malhada, como diz
ser conhecida, começa a con-
tar-nos a última que “aprontou”
o seu filho. “Bebe muito, logo
em jejum, e depois não toma a
medicação”, desabafa. Surdo-
mudo, amigo da bebida e com
problemas psiquiátricos, é a sua
maior preocupação: “O que vai
ser dele quando eu morrer?”,per-
gunta-nos. Gostávamos de ter a
resposta, de tranquilizar Maria
do Céu, mas morrem-nos as
palavras ainda antes de as pro-
ferirmos.
“Não tenho medo de viver
aqui, sozinha no meio desta
gândara.Já fiz muita coisa nesta
vida, fui peixeira, veleira, tremo-
ceira, vendi sal e doces, fui pa-
deira mais de 20 anos. Saía da-
qui de casa às cinco da manhã,
fizesse frio, chuva ou trovoada.
Nunca fui casada mas todos me
respeitam, mas agora, com esta
idade, começam a faltar-me as
forças”, desabafa. Os militares
são ouvintes atentos e respon-
dem quando a ocasião o exige.
“Gosto muito de receber estas
visitas, sabe muito bem. Mas às
vezes penso, ‘pobres dos homens,
andam a ter tanto trabalho con-
nosco’”. Maria do Céu percebe
que o fim da visita se aproxima.
Puxa mais um assunto de con-
versa mas tem mesmo que ser,
não nos podemos deter mais.
“Gostava de um dia poder fechar
os olhos e saber que ele ficava
bem, que tomavam conta dele”,
diz-nos, emocionada, em jeito
de súplica. Entramos no carro
em silêncio, com a sensação de
que por mais que se faça, há
ainda tanto que fica por fazer.
TRISTE É A NOITE
Encontrámos Maria Rosa
Cardoso de enxada na mão, na
companhia da sua irmã mais
velha, Maria Anunciação Car-
doso. Maria Rosa tem 74 anos e
Maria Anunciação tem 79, são
ambas viúvas, e vivem as duas
sozinhas. Vale-lhes viverem a
escassos metros uma da outra.
“Há sete anos que vivo sozinha,
que é desde que morreu a minha
mãe. O meu marido já tinha
falecido antes, já lá vão uns 15
anos”, conta-nos a mais nova.
Tem uma filha em Verdemilho,
próximo de Aveiro, e dois netos
rapazes, que a visitam “quase to-
dos os domingos”. Maria Rosa é
um dos casos menos problemá-
ticos, mas não esconde alguma
tristeza por viver só: “Quando
vem a noite é o pior. A solidão
dói muito. Se não for a televisão,
que nos vai distraindo, é uma
escuridão total”, partilha. A irmã
concorda. Há nove anos que se
deita e acorda sozinha, sem al-
guém a quem dar as boas noites
e desejar um bom dia.
Tem dois filhos, um deles
emigrado no Canadá, que vê de
quando em quando. A compa-
nhia da irmã é que lhe vai aque-
cendo o coração: “De dia anda-
mos quase sempre juntas”, diz
Maria Anunciação. A visita da
GNR também é apreciada: “Fa-
zem-nos mais felizes, sempre dá
para conversar”, confirma Maria
Rosa. “O dinheiro da reforma
vai todo em medicamentos e nos
médicos, safa-se a pinguita, que
é o que nos faz andar”, brinca.
Aproxima-se a hora de almo-
ço e ainda nos falta uma visita.
Despedimo-nos, e voltamos a
fazer-nos à estrada. “Obrigada!
Voltem sempre”, ouvimos, en-
quanto deixamos as irmãs Car-
doso para trás. Segue-se Outil e
um dos casos“bicudos”.
30 ANOS DE SOLIDÃO
Na orla da floresta, junto a
um caminho estreito, encontra-
mos a casa de Alzira. Uma bar-
reira de troncos e galhos, qual
dique construído por castores,
faz as vezes de portão, assina-
lando a entrada nos domínios
da solitária senhora. Um dos
militares chama por Alzira, re-
cebendo em resposta um coro
de latidos e algumas miadelas
GNR de Cantanhede sinalizou 132 idosos
A solidão por companhia
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Céu da Malhada aproveita as visitas dos militares para “pôr a conversa em dia”
2. 13 aurinegra #233 | 02MAR2012
reportagem
tímidas. A casa está rodeada de
chapas, tábuas e arames, uma
espécie de barreira improvi-
sada contra olhares curiosos e
“amigos do alheio”. No quintal,
Alzira responde. Passado alguns
segundos, está ao nosso lado,
limpando as mãos ensanguen-
tadas: “Estava a tratar de umas
galinhas”,justifica.
Tem 73 anos e já perdeu a
conta a quantos desses viveu só:
“Há muito que vivo por minha
conta, desde que a minha filha
saiu de casa. Há seguramente
30 anos”, diz. “Ela casou-se e eu
fiquei sozinha”. Perguntamos se
nunca sente medo, se não teme
visitas indesejadas. A resposta
é pronta: “Não tenho medo ne-
nhum,ainda tratava era de ensi-
nar uma lição a quem me tentas-
se roubar”. Os militares explicam
que é aconselhável não oferecer
resistência, para evitar males
maiores, mas a solidão e a ne-
cessidade de se desenvencilhar
e defender sozinha, tornaram
Alzira dura e destemida. “Já tive
cinco companheiros, mas já fo-
ram todos para o barroco”, atira.
Por estes dias, a sua única
companhia sãos os cães e gatos
de que se rodeia. “Apanho todos
os que andam por aí perdidos
ou aqui vêm dar. Os animais são
a minha companhia”, assevera.
Rosa, Leão, Sapo, Fusca, Joana
são alguns dos seus amigos,
com quem partilha a sua vida e
o seu quotidiano. Eles e os ele-
mentos da Secção de Programas
Especiais, que são, muitas vezes,
as únicas pessoas que cruzam
o caminho de Alzira. A patrulha
aproxima-se do fim. Despedi-
mo-nos dos nossos “compa-
nheirosdeviagem”eretomamos
a nossa rotina assaltados por um
mistodeemoções:tristezaefrus-
tração, por sabermos que como
estas quatro idosas há milhares
em todo o País; e alegria e opti-
mismo, por sentirmos que, ainda
que por breves instantes, fomos
ouvintes atentos e vimos um
sorriso iluminar-lhes o rosto.
“Idosos em Segurança”
no concelho de Cantanhede
Um dos Programas Espe-
ciais que a GNR de Cantanhe-
de tem no terreno é o Apoio
65 – Idosos em Segurança,
que presta assistência e acom-
panhamento, para além de
identificar, seniores que vivem
em situação de isolamento,
quer geográfico, quer humano.
O Censos Sénior, que é feito
anualmente e terminou no fi-
nal de Fevereiro, começa por
sinalizar os casos que reúnem
as condições para serem poste-
riormente acompanhados pelos
militares da GNR, afectos à
SPE - Secção de Programas Es-
peciais (quatro elementos, no
caso do Destacamento Territo-
rial de Cantanhede).
Depois, as patrulhas diá-
rias, feitas no período da ma-
nhã ou da tarde, tratam de
visitar os idosos sinalizados,
dispersos por todo o Concelho.
Neste momento, estão identifi-
cados 132 homens e mulheres
que vivem nestas condições,
um número que pode crescer
quando forem cruzados os da-
dos do mais recente Censos
Sénior. “Tentamos visitá-los a
todos uma ou duas vezes por
mês. Nem sempre é possível,
já que ao número reduzido de
meios humanos, junta-se o
facto de estes quatro militares
terem que assegurar o funcio-
namento dos outros Programas
Especiais”, explicou ao Auri-
Negra Cláudio Lopes, respon-
sável pelo Destacamento Terri-
torial de Cantanhede.
Entre os outros programas
de que fala o Tenente, encon-
tram-se Escola Segura, Farmá-
cia Segura e Comércio Seguro,
por exemplo, o que faz com
que o tempo e os meios tenham
que ser extremamente bem
geridos para dar resposta a to-
das as solicitações no âmbito
da SPE. Em 2011, eram 144
os idosos sinalizados, número
que desceu para 132 no início
de 2012, por falecimento dos
restantes. “O Programa não
se resume a visitar as pessoas
sinalizadas. Compreende, tam-
bém, acções de sensibilização
e aconselhamento, nomeada-
mente no que respeita a burlas,
por exemplo”.
Nos casos mais críticos, a
GNR entra em contacto com Ins-
tituições Particulares de Solida-
riedade Social (IPSS’s), para que
prestem os cuidados necessá-
rios, quer em termos de higiene
e alimentação, quer de acom-
panhamento médico. “Esta res-
ponsabilidade tem que ser par-
tilhada, não pode ser assumida
em exclusivo por nós”, defende
Cláudio Lopes. Apesar de esta-
rem preparados para este tipo
de função e para as situações
delicadas com que se deparam,
aquilo que vêem e que vivem
deixa marcas nos militares da
Secção: “Naturalmente cria-se
uma ligação, mas temos que
aprender a separar as coisas.
Não ficamos indiferentes, mas
não podemos deixar que as
emoções nos controlem”.
GNR de Cantanhede apreende
34 plantas de cannabis
O Destacamento Territo-
rial de Cantanhede da Guarda
Nacional Republicana (GNR)
apreendeu, na manhã de 15
de Fevereiro, uma quantidade
apreciável de plantas de canna-
bisnasuaáreadeintervenção.O
Comandante de Destacamento,
o Núcleo de Investigação Cri-
minal, um binómio de detecção
de droga composto por um mi-
litar e um cão, e duas patrulhas
policiais desenvolveram buscas
domiciliárias nas residências de
indivíduos, suspeitos da prática
de diversos crimes na área do
Destacamento. “Destas diligên-
cias, resultou a detenção de dois
indivíduos maiores, um de 21 e
outro de 25 anos de idade,que fi-
caram detidos nas nossas insta-
lações e foram depois presentes a
tribunal, no dia 16 de Fevereiro”,
assegurou fonte do Destaca-
mento em comunicado.
Na sequência da operação
realizada pelos militares, foram
apreendidas 34 plantas de can-
nabis, 140,9 gramas de folhas
da planta, 0,8 gramas de haxixe,
várias sementes, balanças de
precisão e fertilizantes e outros
componentes utilizados no cul-
tivo e na criação de um ambien-
te de estufa. Os indivíduos fica-
ram sujeitos a apresentações
periódicas semanais, nos Postos
Territoriais das respectivas áreas
de residência.
Maria Anunciação ouve os conselhos do GNR Alzira já perdeu a conta aos anos de solidão