CSI:Portugal - Consultor forense do Alto Comissariado dos Direitos Humanos das Nações Unidas
1. 4 aurinegra #247 | 14SET2012
gente de ouro
FILIPA DO CARMO
filipadocarmo@aurinegra.com
Pensou ser arquitecto mas
acabou por cursar Medicina
na Universidade de Coimbra.
Duarte NunoVieira tem
protagonizado uma carreira
académica e profissional
notável,contribuindo de
forma significativa para a
popularidade e a posição
de prestígio de que goza a
Medicina Legal em Portugal.
Professor Catedrático desde
1998,preside actualmente ao
Instituto Nacional de Medicina
Legal e Ciências Forenses,ao
Conselho Médico-Legal,à
Academia Internacional de
Medicina Legal e o Conselho
Europeu de Medicina Legal,
sendo,ainda,membro e
dirigente de uma mão cheia de
outras instituições.
São às dezenas, as medalhas,
distinções e condecorações que
“forram” o gabinete de Duarte
Nuno Vieira no Instituto Nacio-
nal de Medicina Legal e Ciências
Forenses, em Coimbra. Outros
tantos livros, fotografias da fa-
mília, placas de metal com frases
humorísticas em inglês e ob-
jectos decorativos que evocam
paragens distantes completam
o quadro, “pintado” à conta dos
20 anos que o médico leva em
cargos de chefia na área da Me-
dicina Legal. E isto apesar de ter
pouco mais de 50 anos. É que
Duarte Nuno Vieira começou
cedo nestas andanças, tendo
assumido a primeira posição de
destaque com apenas 32 anos.
Recebe-nos com amabilidade,
sorriso largo estampado no ros-
to,batabrancaabertasobreaca-
misa aos quadrados. “Hoje vim
bastanteinformal”,atira,emjeito
de justificação.
Sabemos serem mais que
muitas as solicitações de que é
alvo o professor catedrático da
Faculdade de Medicina da Uni-
versidade de Coimbra (UC), por
issofazemosporaproveitartodos
os segundos que nos dispensa. É
presença assídua em terminais
deaeroportoumpoucoportodo
o Mundo, sendo rara a semana
em que não tem que se ausen-
tar de Portugal. Apanhámo-lo
“em trânsito” entre a Holanda e
Marrocos, para onde irá integra-
do numa missão da Organiza-
ção das Nações Unidas (ONU).
Começamos, naturalmente,
pelo princípio: “Dividi a minha
infância entre Coimbra, onde
nasci, Tomar e Figueira da Foz,
por força da profissão dos meus
pais, ambos professores de Mate-
mática. Comecei a escolaridade
em Coimbra, fiz a quarta classe
em Tomar e o Ciclo na Figueira
da Foz. O Liceu coincidiu com o
regresso a Coimbra”, conta.
Estudou no então D. João III
(maistarde José Falcão), transi-
tando para o D. Maria, após o
25 de Abril: “O Liceu passou a
ser misto, mas foram poucos os
rapazes que transitaram para o
D. Maria, tal como foram pou-
cas as meninas que mudaram
para o José Falcão.Éramos qua-
tro rapazes e 26 raparigas na
minha turma, mas eu não me
queixei, até achei simpático”.
PAIXÃO POR...
ARQUITECTURA
Há, no concelho de Canta-
nhede, uma localidade a que
Duarte Nuno Vieira está ligado
de forma especial: “Tenho, desde
sempre, uma ligação à zona de
Ançã,pois os meus avós,paternos
e maternos,eram de lá.Sempre lá
passei o Natal, a Páscoa e alguns
dias durante as férias.Ainda hoje
lá vou com alguma frequência,
a uma quinta que a minha mãe
mantém em Ançã”. Desses tem-
pos guarda “as melhores recor-
dações”, assegurando ter vivido
“momentos muito felizes e agra-
dáveis”, apesar de a realidade
ser, então, outra: “Lembro-me de
não haver água canalizada, por
exemplo. Utilizava-se a que vi-
nha da fonte. Na maioria das ca-
sas não havia luz eléctrica, utili-
zavam-se os‘petromax’.A do meu
avô, na Granja de Ançã, tinha
um gerador próprio, porque era
gente abastada. Penso que seria
provavelmente a única casa que
tinha televisão. Algo que hoje nos
parece impossível e impensável”.
As assimetrias entre o campo e
a cidade eram, então, ainda mais
notórias.
Concluídos os estudos lice-
ais, era tempo de decidir que
rumo seguir. Medicina não era,
contudo, a primeira escolha do
atual Presidente do Instituto Na-
cional de Medicina Legal. “A mi-
nha vocação principal na altura
seria talvez a Arquitetura, curso
que não escolhi apenas por não
haver em Coimbra.Medicina era,
B.I. Duarte Nuno Pessoa Vieira nasceu em Coimbra, a 13 de Novembro de 1959, uma sexta-feira. Filho de professores de Matemática, dividiu a infância entre a
“cidade dos estudantes”, Tomar e a Figueira da Foz, visitando regularmente Ançã, terra dos seus avós. Pensou cursar Arquitectura, mas o desejo de se manter na sua terra natal
acabou por ditar o ingresso em Medicina, curso que concluiu em 1983. Especializou-se em Medicina Legal, uma área que, por aqueles dias, era das menos procuradas, tendo
trilhado um percurso de sucesso e de reconhecido mérito, dentro e fora do nosso País. Presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, ocupa lugar
de destaque em diversas entidades nacionais e internacionais ligadas à área científica em que se especializou.
CSI:Portugal
Enviado especial
Consultor forense do Alto Comissariado dos Direitos Humanos das
Nações Unidas, perito do Comité Internacional de Reabilitação de Ví-
timas de Tortura e Consultor forense do Comité Internacional da Cruz
Vermelha, encontra-se, neste momento, em Marrocos, onde visitará vá-
rias prisões a fim de avaliar a situação de presos que alegam terem sido
torturados. “Vou como perito forense, especialista na área da tortura e
das violações dos direitos humanos. Compete-me examinar alegadas
vítimas de tortura e maus-tratos, a fim de averiguar se tais alegações
correspondem à realidade ou não”. Actua em prisões, tendo estado em
locais como o Cazaquistão, a Moldávia, a Indonésia, a Nigéria, o Brasil
ou a Papua Nova Guiné, entre muitos outros, acompanhando em mui-
tas delas o Relator Especial das Nações Unidas Contra a Tortura. Em
Guantánamo, o célebre cárcere que o regime norte-americano mantém
em território cubano, o Relator Especial ficou literalmente, à porta: “A
visita acabou por não se concretizar por causa de condições impostas
pelo Governo dos Estados Unidos da América, que eram inaceitáveis
nos termos do mandato do Relator Especial. Nestas visitas não pode
haver guardas presentes, nem podem ser identificados os indivíduos
com quem se fala e que se examinam, até pelo risco de represálias.
Não aceitaram as condições do Relator Especial e acabou por não se
fazer a visita”, explica.
“Ainda há tortura e maus tratos em todos os países do Mundo, mes-
mo naqueles que têm uma adequada política e actuação nesta área. Há
sempre um agente que prevarica; o fundamental é que haja investiga-
ções e que se faça por cumprir o que está consignado na Declaração
Universal de Direitos Humanos e nas convenções internacionais”, de-
fende. Este é um trabalho que considera muito interessante e alician-
te, mas que tem uma carga emocional muito forte: “As pessoas não
imaginam as condições sub-humanas em que alguns presos vivem. Isso
interfere muito com a nossa maneira de ser... não consigo estar numa
festa sem imaginar, de repente, que há gente em sofrimento particular-
mente intenso. A resistência humana é, realmente, notável”.
2. aurinegra #247 | 14SET2012
5gente de ouro
A “moda” das ciências forenses
As sagas de séries de ficção que têm
como protagonistas especialistas na área
forense, como “CSI” e “Ossos”, têm con-
tribuído para dar mais visibilidade a uma
especialidade que, em tempos, gozou de
fraca reputação. Para o especialista, o fe-
nómeno tem vantagens e desvantagens,
sendo que, ainda assim, as primeiras su-
peram as segundas. “Para além de darem
visibilidade às ciências legais e forenses,
retiraram-lhe muito do carácter negativo,
que fazia as pessoas imaginarem uns in-
divíduos macilentos a trabalharem nuns
sítios horrorosos, mostrando que é uma
prática que tem muito de científico e tec-
nológico. Hoje há muitos jovens a quere-
rem seguir esta carreira e a oferta forma-
tiva aumentou substancialmente, é uma
área que está muito na moda”.
Do outro lado da balança fica a ideia
passada pela ficção de que tudo é pos-
sível: “É tudo muito rápido, há sempre
umas máquinas que fazem tudo e mais
alguma coisa, nunca há amostras conta-
minadas nem adulteradas e, infelizmen-
te, na prática forense é o que há mais.
As pessoas partem dessas ideias erradas
e não compreendem que possam ser ne-
cessários meses até que se chegue a um
resultado. Felizmente, na maior parte dos
casos não é assim – o ano passado fize-
mos 180 mil perícias, sendo que em 177
mil os resultados saíram em menos de 90
dias”.
também, uma das minhas preferências,
por isso acabei por seguir essa área. Ainda
ponderei EngenhariaCivil,masaindabem
quenãofui,poisagoraestáterrível”,brinca.
“Provavelmente, se houvesse Arquitectura
em Coimbra em 1977,era onde teria entra-
do”. Tinha apenas 17 anos quando ingres-
sou no Ensino Superior:“Fiz a primeira e a
segunda classes no mesmo ano”, justifica.
“É verdade que fiz 18 anos logo em Novem-
bro, mas ainda assim entrei com 17 anos.
Nunca considerei sair de Coimbra, primei-
ro porque gosto muito da cidade, e depois
porque também me interessava muito a
Medicina”.
ConcluialicenciaturaemJulhode1983,
com apenas 23 anos, desempenhando, já,
as funções de monitor de Biomatemática
eBioestatísticanaFaculdadedeMedicina.
Pouco tempo depois passaria a assistente
estagiáriodecarreiradamesmadisciplina,
momento em que começou a orientar o
seu percurso no sentido da especialidade
médica: “Naquele tempo, os assistentes de
carreira nas cadeiras básicas não precisa-
vam sequer de fazer exame para entrarem
para a especialidade, podiam escolher a
área que quisessem. Era o meu caso, e es-
tava inclinado para Obstetrícia,uma espe-
cialidade de que gostava muito”, assegura.
“Dava-me muito bem com o professor
Mário Mendes e com outros médicos desse
serviço, mas um café com amigos, na Pra-
ça da República,acabou por mudar o meu
destino”. Nesse encontro no Café Cartola
foi desafiado pelos colegas a inscrever-se
noCursoSuperiordeMedicinaLegal,uma
pós-graduação que já não abria há muitos
anos em Coimbra. “Como tinha tempo
livre, inscrevi-me. Gostei muito e, quando
estava quase a terminar o curso, o profes-
sor Oliveira Sá, meu antecessor, convidou-
me para fazer a especialidade naquela
área. Aceitei e mudei a minha vida toda.
A não ter sido assim, hoje, provavelmente,
seria obstreta e professor de Bioestatística.
Há momentos que nos mudam a vida por
completo”, garante.
NO TOPO AOS 40
Estavadadooprimeiropassoparauma
carreira brilhante, numa área que muitos
viam como menor dentro da Medicina:
“Era uma área muito esquecida, por isso
entendi que podia dar um contributo mui-
to maior escolhendo esta especialidade, ao
invés de outras que já estavam muito mais
desenvolvidas.Gostodessetipodedesafios”.
A Medicina Legal era quase o “parente po-
bre”das especialidades médicas, um ramo
que muitos olhavam “como uma escolha
de segunda, onde se ganhava, até, menos
do que noutras”.
Um paradigma que, também graças
ao contributo de Duarte NunoVieira, mu-
dou: “Hoje não é nada assim, a Medicina
Legal está totalmente equiparada às outras
especialidades e tem até algumas vanta-
gens. Por aquilo que já disse, porque fiquei
admirador incondicional do professor Oli-
veira Sá,meu mestre e elemento inspirador,
e pelas boas relações que estabeleci com
outros profissionais aqui no Instituto de
Medicina Legal, como o Dr. Evaristo Pinto,
director do Serviço de Autópsias, que era
uma pessoa excepcional, acabei por esco-
lher esta área”. Desde 1984 que percorre os
corredores e os gabinetes do Instituto de
Medicina legal, em Coimbra, a sua “casa”
há quase três décadas. Seguem-se os pas-
sos habituais na carreira de docente, com
o doutoramento a assegurar a progressão
para professor auxiliar, que antecedeu a
passagem a professor associado e, depois,
associado com agregação. É Catedrático
desde 1998, leccionando nas Faculdades
de Medicina e Direito da UC.
“Fui director de serviços – do Servi-
ço de Tanatologia Forense – sucedendo
ao Dr. Evaristo Pinto, aos 34 anos. Aos 36,
por aposentação do professor Oliveira Sá,
assumi as funções de director do Instituto
de Medicina Legal de Coimbra, e por volta
dos 40 anos, por ocasião da fusão de todos
os Institutos num só,passei a presidente do
Instituto Nacional”, recorda. Dito assim,
como uma sucessão quase lógica, parece
fácil.Masnãoé.Foiumcaminhopercorri-
docommuitadedicaçãoetrabalho,como
entusiasmo e a paixão de quem ama aqui-
lo que faz e não vira as costas a nenhum
desafio. “São circunstâncias da vida, as
coisas às vezes conjugam-se”.Viu o seu mé-
rito e o seu percurso serem reconhecidos
internacionalmente com o convite para
presidir à Academia Internacional de Me-
dicina Legal, uma vez mais, precocemen-
te: “Tinha 46 anos na altura,o que suscitou
alguma celeuma, pois é habitual que esta
organização seja presidida por especialis-
tas mais em idade de pré-reforma”.
A estas funções junta a presidência
do Conselho Europeu de Medicina Legal,
que manterá pelo menos até ao final de
2015, tendo chefiado até ao ano passado a
Associação Internacional de Ciências Fo-
renses, com sede nos Estados Unidos da
América, e a Associação Mundial de Mé-
dicos de Polícia, com sede em Hong Kong,
e, até 2007, a Academia Mediterrânica de
Ciências Forenses. Como se não bastasse,
integra o Conselho Nacional de Ética para
as Ciências da Vida, a Comissão Nacional
deProtecçãoCivil,aDirecçãodaRedeIbe-
ro-Americana de Instituições de Medicina
Legal e de Ciências Forenses e a Confede-
ração Europeia de Médicos Especialistas
emAvaliaçãodoDanoCorporal,pararefe-
rir apenas algumas (de uma extensa, para
não dizer quilométrica, lista).
“Houve uma altura em que era presi-
dente de várias organizações internacio-
nais ao mesmo tempo e as pessoas per-
guntavam como era possível. A verdade é
que a água não passa duas vezes debaixo
da ponte e existem momentos únicos em
que, quando as oportunidades surgem, as
temos de aproveitar. Até porque Portugal
praticamente não existia dentro destas or-
ganizações,e esta presença foi boa também
para a imagem do País”, defende. O preço
a pagar incluiu uma agenda totalmente
preenchida,muitashoraspassadasemae-
roportos e aviões e, talvez o aspecto mais
negativo, o sacrifício de alguns aspectos
da vida pessoal e familiar. “Houve um ano
em que cheguei a realizar 82 saídas para o
estrangeiro.No corrente ano já estive em 18
países”. A componente lectiva continua,
também, a ser muito importante para o
professor Catedrático, não apenas na UC,
mas também noutras universidades, em
Portugal e no estrangeiro, onde é docente
convidado.
Não admira, portanto, que o tempo
para o ócio seja escasso (ou, arriscamos,
nenhum!). “Passo muito tempo em aero-
portos,o que me vale é que o jet lag não me
afecta minimamente.Também não preciso
de muitas horas de sono, bastam-me cinco
ouseis,masmesmoassimtenhopouquíssi-
mo tempo livre”.Seassimnãofosse,gostaria
de dedicar mais tempo à leitura recreativa,
por oposição à de artigos científicos e revis-
tas da especialidade, que lhe é exigida por
motivos profissionais. “Quando penso que
ascoisasvãoaliviar,surgesempreoutracoisa
qualquer”, desabafa. Há vidas que são vivi-
dasassim,amilàhora.Algumasnãodeixam
rasto,outras,comoadeDuarteNunoVieira,
marcamomundoeasociedade,qualcauda
decometa fulgurante pintando o céu.
A primeira autópsia
Já lá vão muitos anos, mas Duarte Nuno Vieira ainda guarda na memória a primeira
autópsia a que assistiu. “Marcou-me muito, é uma imagem que a pessoa guarda para
sempre. O primeiro contacto com uma pessoa morta impressiona muito, sobretudo para
nós, médicos, que somos treinados para preservar a vida humana. Depararmo-nos com um
corpo inerte e contactarmos com esta outra dimensão da vida marca-nos profundamente,
apesar de eu acreditar que é fundamental. Digo sempre aos novos internos que aqui che-
gam, que no dia em que forem para casa e conseguirem dormir tranquilamente depois
de terem vivido situações dramáticas, devem começar a preocupar-se, pois é sinal de que
estão a perder a sensibilidade. O mesmo é dizer que estão a deixar de ser médicos e a
perder a vertente humana, a sensibilidade que é fundamental manter em qualquer área
da medicina”, assevera.