O documento apresenta trechos de um livro que conta a história secreta da língua portuguesa de forma imaginativa, através de personagens e eventos históricos. O autor convida o leitor a imaginar histórias de falantes do português ao longo dos séculos e destaca a importância dos livros para dar força e espalhar a língua para além das fronteiras.
2. Consegues imaginar Camões à bulha nas ruas de
Lisboa? Ou a ligação entre Gil Vicente e uma
colecionadora de livros? O que terá acontecido entre
uma lisboeta com sal na pele e um brasileiro
azarado?
Qual o teor da discussão entre Camilo Castelo-Branco
e Eça de Queirós enquanto comiam umas belas
amêijoas?
E porque aparece um galego a fugir da guerra no
passeio de Ricardo Reis e Álvaro de Campos ao
Baleal?
Esta é uma viagem pela História da nossa língua,
contada como se fosse um romance, recheada de
deliciosas surpresas e um toque de humor.
3. “ A nossa língua nasceu há muito tempo, numa região esquecida num canto
do Império Romano. Convido-vos a imaginar algumas das
histórias de quem falou a língua ao longo dos séculos: uma
celta e um romano aos beijos, um assassino galego em Toledo, uma ninfa do
Mondego a ensinar um jogral a escrever, um amigo de D. Afonso Henriques à
procura de mouras encantadas, Gil Vicente a perseguir um homem perigoso
pelas ruas de Lisboa, uma colecionadora de livros a fugir numa carroça para
Amsterdão, Camões ao murro por causa de uma dama da corte, uma lisboeta
que cresce no meio do mar e morre no Grande Terramoto, grandes escritores
a discutir à volta de um prato de amêijoas, dois poetas imaginários que
encontraram um galego a fugir de uma guerra bem real e uma professora
minhota que descobre a mais antiga gravação em português. Chegámos assim
ao nosso tempo, com o português já espalhado por outros
continentes, sem nunca ter abandonado esse rio Minho,
ao redor do qual tudo começou. É uma história que todos pensamos
conhecer, mas que guarda os seus deliciosos segredos…”
Neves,Marco.(2017).AIncrívelHistóriaSecretadaLínguaPortuguesa
(p.11).Lisboa:GuerraePaz.
4. “ […] gostava que pensassem um pouco no poder dos livros.
[…] O livro espalha-se com facilidade e transporta as palavras para
muito longe. Se a palavra falada pode incendiar uma multidão –
lembremo-nos de Frei Contreiras – , a palavra impressa em centenas
de exemplares incendeia as almas espalhadas pelo país.
Os vários poderes perceberam rapidamente que os livros são
um instrumento poderoso – para o bem e para o mal.
Assim, um dos poderes do Estado passou a ser o de censurar o que
se publicava.
Os livros ajudaram a dar força à língua de prestígio. A
língua, na nossa boca, parece qualquer coisa que se diz e desaparece
– mas a língua dos livros permanece, tem outro peso. […]
Os livros dão-nos ideias, mostram-nos o mundo,
contam histórias, apetecem como um fruto. Nessa
época de Gil Vicente, ainda eram segredos guardados a sete chaves.
Hoje, estão ao dispor de todos nós – isto, claro, se os soubermos
aproveitar…”
Neves,Marco.(2017).AIncrívelHistóriaSecretadaLínguaPortuguesa
(pp.96-97).Lisboa:GuerraePaz.
5. Neves,Marco.(2017).AIncrívelHistóriaSecretadaLínguaPortuguesa
(pp126-127).Lisboa:GuerraePaz.
“ - Aqui o Luís é um grande poeta… E até imagino
o que estás aqui a fazer, não é? À procura da Ana…
- Claro!
E ficaram todos a olhar. De repente, uma dama da corte sai da
carruagem e Luís desata a correr.
- Ana, Ana!
A mulher olha-o, fica um pouco perturbada, e uma senhora
pomposa obriga-a a entrar de novo na carruagem. Os três irmãos
ouviram então a senhora a pedir a um dos guardas, em
castelhano, para tratar do assunto…
O guarda chega-se ao pé do Luís e, com maus modos, grita-lhe:
- Nunca mais te aproximes dela, ouviste? Parto-te a boca
toda se te vir outra vez!
Claro que Luís de Camões não ficou calado
e os três irmãos tiveram de o arrastar dali para fora. “
6. Neves,Marco.(2017).AIncrívelHistóriaSecretadaLínguaPortuguesa
(pp.108).Lisboa:GuerraePaz.
“Sim, eu sei: se a língua nasceu na rua, os
escritores e os gramáticos deram-lhe lustro, limaram-lhe as
arestas, escolheram isto em vez daquilo. Mas a verdade,
também, é que a literatura se alimenta dessas correntes
obscuras, da língua doutros sítios, doutras gentes — não é de
todo feita duma linguagem depurada: muito antes pelo
contrário. Poucos bons escritores
conseguiriam escrever se a língua fosse
qualquer coisa de artificial ou um bicho
domado. Não: a literatura vive desse
bicho selvagem criado nas ruas, nas camas, nas
noites — a língua de todos, de quem insulta e ama, de quem
vende e compra — e por isso tem de misturar, aprender,
mudar — de quem tem pouca paciência para queixas, de
quem precisa, agora, de falar, às vezes à pressa, muitas vezes
com um sorriso na boca, ou um grito, ou um segredo, ou um
beijo.”
7. Neves,Marco.(2017).AIncrívelHistóriaSecretadaLínguaPortuguesa
(p.109).Lisboa:GuerraePaz.
“[…] o português, como todas as línguas, é um fenómeno
natural, um sistema complexo e desordenado, que podemos
estudar, usar, moldar para nosso proveito — mas que
dificilmente podemos controlar. Podemos (isso sim)
conhecer e até amar esse bicho bastardo.
Podemos ainda — aliás, devemos — cada um de
nós, tentar falar e escrever cada vez
melhor a língua que nos calhou na rifa.
É bastarda, mas é nossa.”