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Este ano comemoro 15 anos de Europa… não vai ter baile de debutantes, mas quero sim
comemorar em alto estilo… por isso este desafio (meu desafio de não esquecer de como foi
difícil partir, chegar e ficar aqui).
Desafio de tornar pública minha (maior) história empreendedora. Sim, pois empreender não
é só abrir uma empresa, registrá-la e gerar lucro. Empreender é ter uma certeza (o porque
como nos dizem os choachs), é sonhar (e planejar) sua realização, estar disposto a enfrentar
as dificuldades (juntar a pedras para construir seu castelo – como gosta de citar minha tia
preferida) e se preciso for, „ajeitar o caminho“.
Desde muito cedo eu tive a certeza e cantei repetidamente com a Legião Urbana „tenho quase
certeza que eu não sou daqui“. Hoje esta certeza se transformou em „tenho certeza de que
eu nunca fui daí (quando penso no Brasil).
Atenção, não estou querendo comparar nem avaliar questões econômicas, políticas, sociais,
comportamentais ou o que quer que seja entre o Brasil (minhas origens, minhas raízes) e o
país onde moro agora. Não existe comparação adequada, não existe país nem lugar perfeito.
O lugar perfeito, o paraíso, é onde conseguimos viver plenamente e felizes. Meu lugar, minha
casa, meu paraíso é aqui, onde estou. Talvez seja outro um dia, já tinha encontrado outros
paraísos antes, mas agora é aqui. No meu escritório-biblioteca, na cave de uma casa
geminada, numa cidadezinha barroca linda no sudeste da Alemanha.
É aqui, no meu escritório-biblioteca, entre post-its, listas e mais listas de anotações, albuns de
fotos, meus livros (alguns deles corrego desde o tempo da faculdade) e discos (CDs na
verdade, mas‚ „livros e discos“ lembra Elis e fica muito mais bonitinho, não?).
No inicío queria escrever um romance, ele até já tinha título, enredo e uma editora disposta a
colocá-lo no mercado (quem sabe ainda escrevo um romance de verdade!) agora quero
simplesmente contar essa história. Contar mesmo, sabe? Como se estivéssimos conversando.
Era para ser um romance, vai virar contação de história!
E a contei no meu blog, durante alguns dias… até que a coisa cresceu!
Duas editoras me cantactaram querendo publicar minha história…
Mas eu já tinha alguém em vista, e ela disse sim!
Ou seja, essa contação de história, vai virar romance sim! Contudo, para isso vou precisar de
mais tempo…. Vou precisar trabalhar muito ainda na escrita e na história! Quero que ela seja
linda, como é linda a minha história! Quero que ela corra por todos os lugares, que inspire
quem, como eu há 15 anos estava precisando de inspiração e precisando mudar o rumo da
sua vida!
Quando eu abri minha sala de estar virtual, no dia 01 de junho deste ano, não imaginei a
repercussão que ela teria.
Eu tinha um objetivo egocêntrico: contar a minha história. A história de uma jovem engajada
politica e socialmente, uma professora que sempre preferiu lecionar em escolas públicas pois
sempre teve consciência da importância do seu trabalho para a população menos favorecida.
Uma sonhadora que levava seus alunos cansados de trabalhar o dia inteiro no pesado, muitas
vezes com fome esperando pela hora do recreio para jantar na escola, para a biblioteca
(também pobre e faminta) da escola e dizer: escolham um livro, sentem-se, deitem-se no chão
e simplesmente aproveitem este momento.
Durante bastante tempo e ainda durante a graduação, lecionei em uma escola que como todas
as escolas públicas no Brasil daquela época, não tinha nada… grande parte dos nossos alunos
eram trabalhadores que vinham lutar por uma vida melhor tentando ao menos terminar o 1°
grau, estudando a noite. Uma parte, tinha vindo do interior do estado para a capital, para não
ficar longe do pai ou da mãe que estava detido na penitenciária estadual que fica quase do
lado da escola em questão. Outra parte eram delinquentes de ocasião: na miséria em que eles
viviam, um roubo poderia significar uma mesa farta para a família inteira… as vezes, eles
faltavam a aula durante uma semana inteira… e quando perguntávamos o porque, a resposta
era sempre a mesma, tinham sido presos.
Na hora da merenda, que era o jantar da escola inteira, nos sentávamos todos juntos: alunos,
diretor, secretárias, professores, merendeira. Jantávamos todos juntos, como em uma família
enorme reunida… as vezes tinha café, mas sempre teve cigarro (hoje seria impossível, mas em
1999 ainda não existia essa perseguição aos fumantes). Éramos todos adultos e não víamos
problema nesta relação.
Fizemos muito por essa escola. Tirávamos mensalmente uma parte do nosso salário (que
todos sabem não é grande coisa) para completar o orçamento da escola, para que nossos
alunos tivessem uma escola limpa, mais bonita, uma comidinha e uma mesa farta na hora do
jantar. É uma satisfação imensa saber que muitos deles foram para a universidade, casaram-
se, tem um bom emprego . E no meu caso, que descobriram o prazer da leitura.
Em 2005, em uma das minhas passagens pelo Brasil, encontrei uma ex-aluna. E sabe a primeira
coisa que ela me disse?
Leila, tenho todos os livros do Drummond!
E tinha tanto orgulho, tanta felicidade nessa frase que eu senti que não tinha sido em vão os
anos em que me dediquei tanto, saindo de casa as 6h45 manhã para as aulas na faculdade e
só chegando depois das 23h depois de muito trabalho.
Mas, esta satisfação só veio muito tempo depois…
É muito difícil ser estudante de letras no Brasil… nunca vou esquecer um comentário que
escutei sobre passar no vestibular para o curso de letras:
Não passar para letras é como reprovar em exame de fezes.
É muito difícil ser professor no Brasil! As condições de trabalho são péssimas, o salário
miserável, o preconceito muito grande. Lembro que nesta mesma época, eu tinha o hábito de
„aproveitar“ o tempo entre uma escola e outra para corrigir trabalhos e provas dos meus
alunos. Gostava de fazer tomando um cafezinho, fumando um cigarrinho em algum lugar do
centro da cidade. Um dia, a secretária de uma das escolas me viu e veio falar comigo:
- Tás corrigindo prova aqui?
- Tô, tenho encontro marcado com uma amiga e enquanto ela não chega, vou aproveitar
para adiantar o trabalho…
- Mas assim, todo mundo vai saber que és professora e não vais arrumar namorado
nunca!
Se a sua cara é uma interrogação gigantesca lendo isso, imagina a minha escutando!
Fato é que no Brasil, não importa se tu es competente ou não, dedicada ou não, se tens feito
o teu trabalho e alcançado teus objetivos ou não. Se es professor, estás fadado aos olhares
penalizados dos que, por terem mais renda, consideram que não tiveste força de vontade (e
capacidade intelectual) para cursar outra faculdade, para exercer outra profissão.
E eu não poderia viver a vida inteira nesta situação. E se eu não ambicionava, também nunca
tive os atrativos necessários para „arrumar um bom marido que me desse uma condição
financeira boa“.
Eu precisava viver a minha vida. Com as condições que eu mesma conseguisse gerar, livre de
pendências financeiras e principalmente, livre da necessidade de „arrumar um marido bom“.
E, se eu queria viver a minha vida, eu também precisava tomar as rédeas dela. Enfretar o
desafio de deixar o quentinho da família e me preparar para os ventos e tempestades. Foi o
que eu fiz!
Tudo era apenas uma brincadeira
E foi crescendo, crescendo, me absorvendo
Quando eu abri minha sala de estar virtual, no dia 01 de junho deste ano, não imaginei a
repercussão que ela teria.
Desde então, tenho contado um pouco do que tem sido a minha vida durante esses anos longe
do quentinho da família e do Brasil. São histórias simples, na maioria engraçadas (ao menos
para mim vendo a situação agora), mas que tem causado uma reação muito interessante dos
leitores.
A proposta da sala de estar é conversar com os leitores como se eles fossem visitas na minha
sala de estar real. Eu conto uma história, eles perguntam, comentam, respondem… e, essa
conversa (para minha surpresa) está ficando cada vez mais intensa. Tanto com as pessoas que
já me conhecem e estão descobrindo uma parte da minha vida que elas não conheciam, com
as que viveram essa história comigo quanto as que estão me conhecendo agora.
São risos, gargalhadas, lembranças, protestos e muitas „conversas ao pé do ouvido“, aquelas
meio em segredo, para ninguém ouvir… essas acontecem por e-mail, por mensagem privada
nas redes sociais… pessoas que também estão precisando mudar o rumo das suas vidas.
Pessoas descontentes, amordaçadas, amargas, entristecidas, sem esperanças. Pessoas que
estão se sentindo como eu estava me sentindo quando resolvi mudar completamente o rumo
da minha vida.
Essas pessoas sabem que precisam tomar uma atitude, mas ficam esperando um sinal… todos
sabemos que é assim. Todos passamos por conflitos internos. Temos medo. Medo de perder
o que conquistamos (que mesmo sendo pouco, é nosso, é a materialização do nosso suor!).
Medo de errar.
Fernando Pesssoa termina o poema Mar Português com verso:
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Eu sei bem que este não é o verso mais conhecido deste poema, mas é o que representa
“quem quer passar além do Bojador”!
E de repente eu me vi assim: completamente seu
Quando eu abri minha sala de estar virtual, no dia 01 de junho deste ano, não imaginei a
repercussão que ela teria. Não imaginei receber tantos e-mails de encorajamento, tantos e-
mails de agradecimento e muito menos e-mails de editoras querendo publicar minha história.
Vi a minha força amarrada no seu passo
Sim, publicar um livro através de uma editora é amarrar sua força. E isso, isso eu não quero
mais. Foram anos buscando a liberdade de caminhar com minhas próprias pernas, não vou
parar agora.
Vi que sem você não tem caminho, eu não me acho
Contudo, conheço minhas limitações. Sei que vou precisar de um guia, de alguém que me
indique o caminho.
Vi um grande amor gritar dentro de mim
Ontem conversei com Sílvia Schmidt escritora, produtora cultural, mulher, letrada, engajada
social e politicamente. Ela foi uma das primeiras pessoas a me incentivar a escrever. Ela, assim
como eu, há 15 anos, está agustiada com o futuro, se sentindo perdida, sem esperanças de
conseguir cumprir sua missão de trabalhar dignamente pela educação e pela cultura do país.
Conversamos durante muito tempo e ela, entre lágrimas de desesperança e de incertezas,
aceitou ler e avaliar meu manuscrito. Quero que ela seja minha leitora porque sei que ela me
dirá a direção (literária) a seguir. Confio plenamente no senso crítico e na capacidade
intelectual dela. Além do que ela, como muitas outras pessoas estão precisando viver esta
experiência comigo. Não será uma experiência transformadora: não tenho a intenção e muito
menos a pretensão de transformar a vida de ninguém. Quero contar minha história (de
preferência de uma forma compreensível e com um pouco de estilo) e se possível, levar um
pouco de esperança e de coragem para quem almeja „passar além da dor“.
Como eu sonhei um dia
Está decidido: este livro será uma „produção independente“. Quero que ele seja avaliado por
alguém que entende do assunto. Quero que ele revisado por um especialista. Quero que ele
seja impresso com padrão de qualidade alemã. Quero enviá-los pessoalmente para cada um
dos leitores.
A esperança é um dom, que eu tenho em mim.
(eu tenho sim).
Eu sei que tem muito trabalho pela frente! Mas Sílvia Schmidt disse SIM e é com ela que eu
quero levar este projeto adiante…
Não vou terminar agora… francamente, preciso de mais tempo! Tempo para escrever, tempo
para dar alma a esse projeto!
Por isso, meu desafio agora não é o de contar esta história em 15 dias, é fazer esta história
criar uma forma até que ela esteja pronta para alcançar o seu público.
Se você quer ser o primeiro a saber das novidades e do desenvolvimento do projeto, basta
enviar um e-mail para leila@adriano-ostoyke.com e eu vou deixar você informado sobre o
desenvolvimento do projeto, ok?
Agora você pode conhecer um pouquinho mais dessa história:
Forrest Gump
Espero que você esteja com paciência, pois falo sem parar e minhas histórias são longas. Fui
até apelidada de Forrest Gump pela minha melhor amiga. Então, prepare-se pois vou começar
do começo, ok?
Eu nasci em Florianópolis (Floripa para os íntimos), numa família simples e muito unida, onde
tudo é motivo para um café no estilo tête-à-tête, ou uma festa – tudo pedende do dia da
semana!
É uma felicidade e uma grande sorte nascer em uma família assim: a gente vive com a certeza
de ter um porto-seguro e isso é realmente um privilégio!
Contudo, essa felicidade não me era suficiente. Eu precisa de mais... tinha um
descontentamento, uma angústia, „uma coisa ruim“ dentro de mim. E não, decididamente
isso não me era o bastante. Não é choramingação, minha vida era boa (estava uma merda
neste momento preciso: com o falecimento da minha mãe, a falta de dinheiro e a volta à
adolescência do meu pai, era quase impossível ficar na nossa casa – neste período os cafés na
casa da Tetei, a tia preferida da qual já falei no início, eram frequentes. Tão frequentes que as
vezes tinha medo de encontrar a porta fechada um dia. Mas não, isso não aconteceu… ela
ouviu todos as minhas reclamações e ajudou a destilar todo o veneno que eu espalhava por
onde eu passava naquela época).
No meio dessa tempestade que foi para mim a passagem entre 2000 e 2001, uma das minhas
alunas do curso de metodologia do ensino de francês pediu „uns minutinhos“ do final da aula
para passar uma mensagem para o grupo: (não me lembro exatamente, mas era mais ou
menos assim)
Procura-se estudante de francês para ajudar mãe de recém-nascido.
Onde? Genebra
Nem prestei muita atenção aos outros detalhes do anúncio, mas quando escutei a palavra
Genebra, todos os meus sentidos se aguçaram em um só desejo: ser a escolhida para ir para
Genebra, limpar o chão onde a mãe desse bebê pensasse em pisar!
Como professora e sabendo que a mensagem era para os alunos, esperei pacientemente a
resposta (negativa, para minha felicidade) de todos e me lancei:
- Ninguém quer? Então eu quero!
E peguei o bilhetinho escrito à mão com todos os detalhes do anúncio, número de telefone e
endereço e-mail.
Não penso ter demorado muito para tomar a atitude de escrever o e-mail que me levaria para
fora daquela situação que me angustiava tanto.
A resposta também foi rápida mas eu ainda precisava ser „a escolhida“ já que o mesmo
anúncio tinha sido publicado em diferentes universidades e alianças francesas espalhadas pelo
Brasil.
Mas neste momento eu já tinha partido, não tinha mais volta!
Minha alma, meu espírito, meu coração e tudo em mim que poderia se mover fora do plano
físico já estava na Suíça.
A notícia de que eu tinha sido „a escolhida“ (teve uma novela com esse nome? Está me
parecendo coisa de novela brega agora) não me „caiu como uma luva“, caiu como um pedregal
na minha cabeça: se meu espírito já saboreava um fondue na beira do Lac Léman, meu corpo
precisava ser transportado!
Se hoje viajar é quase uma necessidade das pessoas bem-sucessidas, curiosas e descoladas,
há 15 anos era bem diferente!
Principalmente para quem não tinha dinheiro, muitas dívidas (na época, todas vindas da
mania de comprar roupa em 5 vezes sem entrada), dois empregos, uma família ainda
desmoronada pela morte da matricarca e, (principalmente talvez) nascida em uma família
onde ninguém nunca tinha saído do Brasil.
E aqui, mais uma vez, a minha admiração e o meu respeito por todos eles: mesmo sem
entender, mesmo sem aceitar, mesmo com medo, todos acharam um jeito de me apoiar!
Como meu dinheiro nunca sobrava e que ninguém poderia me dar os quase 900 dólares da
passagem, fizemos um café colonial para arrecadar o dinheiro da passagem!
É sim, um café colonial! Minhas tias cuidaram de tudo:
- Fizeram pães, bolos, café e uma enormidade de guloseimas
- Venderam (e até compraram) entradas para o café que elas mesmas preparam
- E como ainda tinha um sorteio entre os participantes, fizeram o brinde e o sorteio!
O brinde foi uma tela pintada pela tia preferida e o sorteado foi um dos meus tios! (não falei
que a família é unida??). Me lembro tão bem que ela queria refazer o sorteio pois estava
parecendo „marmelada“ ao que o meu tio respondeu:
Não, não, eu ganhei e é meu! Me dá o quadro aqui! Eu paguei pela entrada!
(parece que estou vendo ele sentando, protestando e com as mãos levantadas esperando para
receber o prêmio).
Conseguimos uma boa parte do dinheiro da passagem com a renda gerada neste dia e sei
muito bem que, se não fosse por este amor, eu talvez não estivesse aqui contando história.
A contabilidade detalhada dessa start up que tem sido a minha vida eu não vou contar aqui…
seria muito complicado. Mas tenho-a em detalhes na minha cabeça e meus credores no
coração…
Com uma mala cinza (presente teu, Zélia, lembras? Agora ela está estragada mas me
acompanhou valentemente por mais de 10 anos… por hora, repousa quietinha aqui na minha
cave), uma pequena bordeaux (se não me falha a memória, comprada no camelô), alguns
míseros dólares guardados como um tesouro na pochete interna (daquelas de colocar na
cintura, mas que fica por dentro da roupa, sabe?) bege da CVC, carregando um corpo retesado
e exausto, embarquei no aeroporto Hecílio Luz (FLN), no dia 12 de junho de 2001.
Que faîtes-vous à Genève Mademoiselle?
- Que faîtes-vous à Genève Mademoiselle?
- Je viens pour le cours d’été à l’université de Genève. Voici mon inscription.
- Mais vous parlez très bien français, pas besoin de faire de cours d’été!
- Merci Monsieur, mais vous savez, quand on a jamais été au pays, on ne croit pas bien
parler une langue.
- Vous avez appris le français à Genève?
- Non, justement, je suis ici pour me rassurer de bien parler français.
- Mais vous parlez très bien Français! Vous avez appris le français à Genève?
- Mais non, je vous ai dit, je suis ici pour me rassurer de bien parler français. C’est ma
première fois en Europe.
- Mais vous parlez très bien Français! Vous avez appris le français à Genève?
E a pergunta „Mais vous parlez très bien Français! Vous avez appris le français à Genève?“ me
foi repetiva muitas vezes... seguida sempre da mesma resposta.
Depois de alguns minutos repetindo esta resposta ridídula mas verdadeira, fui convidada
conversar com outro Monsieur… com minhas malinhas em mãos, acompanhada por um
bonitão da polícia internacional em posse do meu passaporte, fui acompanhada até o
„postinho“ policial (a imigração). Fui amigavelmente convidada sentar e „pacienter“. Eu foi
isso que fiz, me sentei e esperei…
O único medo que eu realmente tinha? O de eles me pedirem cartões de crédito e algum tipo
comprovante de renda… pois era tudo o que eu não tinha!
Com os miseráveis dólares que eu tinha guardadinhos na pochete eles me mandiram para
casa no próximo vôo…
Contudo, todo o resto estava ok: passaporte, endereço da família que ia me hospedar,
inscrição no curso de verão da Universidade de Genebra e até meu contrato com a UFSC eu
tinha na bolsa.
Eles não tinham o que duvidar de mim… só uma coisa estaria completamente errada nos olhos
do governo Suiço: eu não tinha dinheiro para passar o verão linda e formosa aperfeiçoando o
meu francês na Universidade de Genebra (aquela mesma onde o Saussure deu aulas, sabe? –
aliás, dá pra visitar a sala dele!).
Por isso, fiz a minha melhor cara de rica e esperei pelo próximo interrogatório!
Não sei quanto tempo esperei, mas, para mim, foram séculos!
- Que faîtes-vous à Genève Mademoiselle?
(eu, com cara de rica:)
- Je viens pour le cours d’été à l’université de Genève. Vous voyez bien mon inscription.
(sim, pois ele estava com todos os papeis!).
- Et bien, bon séjour!
- Merci, Monsieur!
Agora, era achar minha anja guardiã… e talvez nada até agora tenha sido tão fácil! Ela já estava
anciosa me esperando, com a mão separando a testa da porta de vidro do aeroporto, me
procurando!
Me viu e já me lançou um sorriso largo de boas vindas!
Me abraçou e logo me perguntou:
- Não pegasse um carrinho?
- Não…
Na verdade, nem vi carrinhos de malas pelo caminho, tamanho era o stress daquele momento.
- Vamos, vamos, a Isabelle já está na maternidade!
Como assim? Eu não teria duas semanas para me ambientar em Genebra antes de o bebê
nascer?
Não, realmente não tive semanas, mas tive alguns dias é verdade…
Alguns dias para aceitar a completa mudança de status social:
De professora substituta de uma universidade federal (ganhando tão mal que precisa de um
outro emprego para poder ajudar a pagar as contas da casa, é verdade, mas com um certo
orgulho de ser professora na mesma universidade em que tinha me formado há menos de 2
anos) à emprega doméstica em pouquíssimo tempo…
Mas tudo bem, na minha cabeça estava tudo certo: iria passar os meses de junho, julho e
agosto (aproveitando as férias de julho na universidade – foi uma trabalheira conseguir
organizar tudo com a universidade para conseguir fazer isso… passei a viagem e algumas
noites em Genebra corrigindo trabalhos e fechando notas) na Europa, aproveitaria para dar
uma passadinha em Paris e voltava tranquilamente para minha vidinha de M. em Floripa.
Apesar do choque cultural (é tudo muito diferente!) e da queda repentina da nuvenzinha que
eu pintava todos os dias para tentar levar uma vida mais legalzinha, percebi muito
rapidamente que: preferiria ser empregada doméstica na Suíça para sempre, à voltar para a
sala de aula no Brasil.
Contudo, eu tinha um compromisso e uma passagem de volta marcada… além disso, os e-
mails que eu conseguia trocar com minha família sempre me faziam lembrar do laço agri-doce
que nos unia:
„ oi irmã, tudo bem? aqui está tudo normal, recebi a sua carta e até chorei :( na mesma hora
escrevi uma pra ti. Vê se compra um perfuminho aí pra mim. O NATAN está aqui ele mesmo
escreveu o nome dele,sempre pergunta porque você esta demorando tanto.
As coisas por aqui estão na mesma esperando melhoras.“
BEIJOS E SAUDADES
Andreza, Natan Kamila e Tetei :)
Ói eu aqui traveis, só para dizer que só depois de te escrever e reclamar por noticias é que vi
teu recadinho. se estas feliz, nós tambem ficamos, quanto a saudade, teremos tempo para
recuperar essa distancia e alem do mais não se vai para a Suiça todos os dias, tens mais é que
aproveitar ao máximo. o barril de carvalho está transbordando de saudade, mas nós somos
fortes.
beijos, te amamos muito
Vania
Minhas primeiras impressões de Genebra?
É tudo muito caro, principalmente a comida! A gente se espanta até com o preço de um
sanduiche de supermercado;
Minhas roupas, meus sapatos e meu comportamento são completamente inadequados.
Sempre me achei „fina“ e com boas maneiras, vejo que sou uma verdadeira grosseirona.
Aqui, qualquer pessoa fala no mínimo 4 línguas, não necessariamente perfeitamente, mas
aprendem alemão, francês, italiano, romanche (as línguas oficiais) e inglês, claro.
Qualquer pessoa, trabalhando ou não, tem acesso a tudo o que precisa para viver bem: saúde,
educação pública de alto nível, transportes em comum, vida cultural (tem muita atividade
gratuita também)
Usar os transportem em comum, a bicicleta ou o patinete (era moda entre os engravatados
na época, lembro que fiquei encantada com isso: homens lindos, perfeitamente vestidos, de
mochila e patinete indo para o trabalho) não significa „não ter condições financeiras de ter
um carro“ significa „consciência“ ecológica, física e mental.
As ruas são limpas e jogar lixo no chão é mais do que um crime, é uma vergonha!
Os homens não te „comem“ com os olhos quando passas pelas ruas, ninguém te chama de
„gostosa“ ou te diz „ ahh se eu te pego“ (descobri com o tempo que eu adoro isso!)
Aqui, a máxima „achado não é roubado“ não existe! Esqueci minha bolsa em um quiosque na
estação de trem uma vez. Tinha ido comprar cigarro antes de pegar o trem para ir trabalhar.
Peguei o cigarro e na pressa (11:43 é 11:43 e não tem desculpa, o trem sai e te deixa!) esqueci
a bolsa (com carteira, celular, documentos, chave, tudo!) no balcão do quiosque.
Esbaforida para entrar no trem, fui pegar a carteira para poder mostrar meu cartão de
transporte… cade a bolsa?
Voltei e ela estava lá! Exatamente no mesmo lugar! Nem a balconista, nem nenhum cliente
tocou nela!
O que aprendi logo de cara?
Trabalhar é bonito, é uma honra! Não importa o tipo de trabalho.
Empregado não faz „favorzinho“ para patrão. Ele cumpre um tarefa e é remunerado para isso.
Economizar não é vergonha! Por que sair para comer todos os dias naquele restaurante
nojento do lado do escritório só porque é „baratinho, limpinho e prático“? Uma marmita, com
o resto do jantar, uma salada ou um sanduiche feito em casa é muito mais saudável, muito
mais gostoso e tu sabes exatamente o que tem dentro dela. É mais barato e não engorda!
Jornal, livro e revista é para ser lido! Então, por que jogar no lixo se outra pessoa talvez queira
ler?
Não é porque ninguém controla que você pode fazer algo errado! É justamente o contrário:
se você não fizer nada de errado, não precisá ser controlado.
Todo mundo já vi uno cimena (ou em viagens, claro) aquelas máquinas de jornal onde se
coloca uma moeda para pegar o jornal, não é mesmo? Geralmente, você só vai poder pegar o
jornal depois de pagar por ele. Na Suiça, você pode pegar primeiro o jornal e depois pagar (ou
não!). E por que? Porque todo mundo paga!
Ter bunda grande é feio.
Usar roupas muito justas / curtas é vulgar.
Sapatos de salto muito altos não são legais.
Maquiagem é para todos os dias e não para „sair“.
Muita maquiagem é vulgar.
Ou seja, eu era completamente inadequada!
O encontro
Imagine este auditório lotado… são 642 lugares e de julho à setembro ele reúne estudantes
de várias partes do mundo para os testes de proficiência de língua francesa. Eu cheguei cedo,
peguei um lugarzinho bom, fiquei apreciando o movimento e me concentrando em ativar
todos os meus conhecimentos na língua de Molière… sendo eu mesma professora de francês,
seria muito feio não ficar entre os top candidatos, n’est-ce pas?
Foi em um desses momentos de „apreciação do movimento“ que era grande, pois o teste ia
começar em alguns minutos e claro, quem não estivesse sentadinho, bonitinho, com todos os
seus pertences guardados, não receberia o teste (que era enorme!) que o vi pela primeira vez.
Camisa de mangas curtas em azul e branco desleichadamente abotoada por fora da bermuda
cargo bege, sandálias de couro, olhos azuis que iluminavam o caminho que atravessava, um
sorriso que sorri em sintonia perfeita com o lampejar dos olhos. Eu me disse em segredo: é
ele!
Não saberia explicar de onde me veio esta certeza, tenho mania de acreditar que vou
conseguir o que quero – principalmente nas relações amorosas, mas também sei que nem
sempre consigo (óbvio!).
Contudo eu sabia: era ele! Ele seria o meu homem! Ridículo para quem estava com a passagem
de volta marcada para setembro do mesmo ano. Ridículo se pensarmos que ele nem tinha me
visto!
Não, ele não sentou do meu lado no para fazer o teste… (o que foi uma pena!)
E não, eu não fui diretamente para o último nível do curso que reunia os top entre os top.
Passei horas procurando meu nome nas listas afichadas no mural (tipo de vestibular antes de
tudo estar na internet, sabe?) pois claro, acreditava estar entre os „bons“. Fiquei até com raiva
do Monsieur que me disse que eu não precisava fazer o curso… estava provado: eu não era
top!
O nível avançado do curso era divido em três grupos:
- Os top do top
- Os top
- Aspirantes a top
O meu desempenho no teste mostrou que eu não passava de uma „aspirante a top“, o que
me deixou bem decepcionada comigo mesma… mas o que fazer? Agora era achar a sala e
tentar virar top!
Claro que não entrei na sala sem olhar para todos os lados, procurando, procurando na
esperança de que os olhos azuis me enchergassem!
Sem chance... impossível achá-lo nos corredores da universidade!
Simplesmente porque ele já estava sentadinho na sala onde eu acabava de entrar!
Foi uma batição de coração sem fim… e agora? Dou uma de louca e me sento do lado dele?
Não…
Sim…
Não..
Bom, o não falou mais alto e me sentei bem na frente. Para dar uma de boa aluna? Claro que
não! Para poder me virar e olhar pra ele na hora da apresentação! Na primeira aula de
qualquer curso de língua todo mundo se apresenta… eu tinha a possibilidade de me fazer de
„exótica“ dizendo que eu vinha de uma ilha no sul do Brasil (o que é a pura verdade e que até
hoje causa um efeito tremendo nas pessoas!). Em seguida, poderia me virar para olhar para
cada um dos alunos que estavam se apresentando, certo?
„Bem educada e interessada em conhecer outras pessoas e culturas“ também deveria contar
entre as minhas qualidades…
Apesar de eu realmente me interessar por outras culturas, o que me interessava mesmo era
que ele me visse, claro!
Para cada apresentação nova eu dava um sorrisinho e olhava em direção ao loirinho de olhos
brilhantes… Sabemos todos que é impossível não retribuir um ohar insistente e uma hora ele
me viu!
Sorte dele, eu estava com o sorriso „dando laço“. Continuei no mesmo joguinho e, sorte
minha, ele entrou no jogo!
Major do exército alemão, 34 anos, doutor em direito internacional, membro das forças de
paz da ONU, aproveitando o tempo entre uma missão e outra para melhorar seu francês…
Meu! Meu! Meu! Pensei…
Na pausa já foi diferente… como falei o „morar em uma ilha no sul do Brasil“ causa muito
efeito! Acho que eles ficam imaginando a gente dançando pelado na praia, sabe? Adoro a
parte da conversa em que posso dizer que temos uma das melhores universidades do país
bem no centro desta ilha que por sua vez, é a capital do estado.
Mas eu não era a única interessada no soldadinho… e as que falavam alemão tinham uma
grande vantagem sobre mim…
Em pouco tempo formamos um grupo muito ativo, cosmopolita e querendo aproveitar ao
máximo o verão em Genebra! Quem conhece os verões europeus sabe que as festas, festivais
e feiras de rua são uma constante e logo chegou o dia da Love Parade, um acontecimento!
Vamos, vamos, todo mundo estaria lá! Isso mesmo, todo mundo!
No ponto de encontro estávamos quase todos exatamente na hora marcada (aqui
provavelmente todos já tinham seus relógios suíços no pulso). Não, Marcus (o soldadinho se
chama Marcus) não estava… com o coração apertado, mas não querendo me separar do
grupo, fui acompanhar a „parade“ (o que era completamente novo para mim).
Entre indas e vindas para pegar o que quer que fosse, mas passear e tentar achar quem ainda
não estava presente, encontrei-o alegre e sorridente como sempre. Mas quem era aquela
mulher (também sorridente) que não me disse uma palavra se quer mas que não me pareceu
incomodada com a minha presença?
Não lembrava mais o nome dela (acho que nem escutei mesmo!) mas uma coisa era certa: na
segunda-feira iria achar um jeito de saber quem era.
E sim, foi bem isso! Aquela mulher feliz e dona de si era a namorada dele!
Isso diminuia ainda mais as minhas chances… não bastasse a suiça-alemã e a alemã lindíssimas
da nossa turma que também pareciam muito interessadas, ele tinha „dona“ e ela parecia estar
certa do seu reinado.
Mas o verão continuou e a dona não apareceu mais em Genebra… agora era ele quem se
deslocava para passar os finais de semana em casa e na mesma cidade onde a namorada
morava.
Menos neste final de semana… tinha mais uma festa na cidade e mais uma vez todos estariam
presentes!
Dessa vez, ele também estava no ponto de encontro, na hora marcada, olhinhos brilhando em
perfeita sintonia com o sorriso…
Era a minha chance… nossos (meus) dias estavam contados… ele deixaria definitivamente
Genebra no dia 26 de agosto pois partiria para Saraievo já nos primeiros dias de setembro. Ele
ficaria um ano inteiro em Saraievo. Eu partiria também em setembro, mas de volta para casa.
A festa era enorme e ocupou vários lugares da cidade… cada espaço com música ao vivo,
barraquinhas de bebida e comida… andamos por todos os lugares, vimos a noite cair (no verão
o ceu só escuresce lá pelas 10 horas da noite o que ainda me faz perder um pouco a noção do
tempo). O grupo foi se dispersando aos poucos e agora éramos só nois dois dançando na
frente de um dos palcos… alguém já dançou com um alemão? É comum eles fazerem curso de
dança e todos eles dançam o tal do discofox, veja o vídeo para ter uma ideia da loucura:
https://www.youtube.com/watch?v=lGTbP72hxdQ
olha que eu achava que sabia dançar legalzinho, mas o tal do discofox me embaralha as pernas
até hoje! Numa dessas „figuras“ (como eles chamam os passos da dança) ele me levantou de
modo que nossos narizes se uniram. Não foi suficiente, ele me rodopiou assim, de nariz colado
comigo.
Como eu tinha a vantagem de estar com o nariz em cima do dele, o rodopio foi o tempo de
decidir: nem que ele me large repentinamente de susto e eu caia no chão, mas na hora que
ele parar de rodar eu vou acabar com essa brincadeira boba!
Meu tempo estava acabando, eu precisava saber se poderia viver ao menos um pedaço da
história que eu já tinha feito na minha cabeça!
Fixei meus olhos dos dele, depois fechei os meus e como quem parte para „um tudo ou nada“
com a esperança de começar o resto da sua vida, beijei-o.
Beijei-o, amei-o com todas as minhas forças, intensa e repetidamente até o dia 26 de agosto
de 2001.
Dia em que ele voltou para sua cidade natal para se preparar para partir por um ano em missão
de paz em Saraievo. Ele ainda teria alguns dias em Freiburg na Alemanha, não longe de
Genebra (na verdade, nada é longe de Genebra), mas precisaria também passar uns dias com
a namorada… afinal, ela ficaria sem o namorado durante tanto tempo.
Se despediu de mim com a frase (mais ou menos assim):
„existem casos descomplicados, sem esperança
e existem casos muito complicados, com esperança“
e afirmou:
eu tenho esperança!
Em seguida, embarcou no trem que o levaria para longe de mim.
No 11 de setembro de 2001. Onde você estava?
Eu sempre tenho um sorrisinho nos lábios quando ouço esta pergunta… eu, eu estava em
Paris!!
O caso era complicado. Era muito complicado, mas eu estava decidida a ter esperança! Minha
passagem tinha validade de um ano e a data da volta já tinha sido remarcada. Agora, precisava
achar um jeito de ficar! E o único jeito, era achar uma outra família precisando de ajuda!
Minhas pesquisas de deram rapidinho uma direção: Paris! Ainda hoje fico impressionada com
a facilidade que é arrumar um „emprego“ de nounou. E francamente, me impressiona ainda
mais que as famílias recebam nas suas casas alguém que eles acabaram de conhecer, dando
um lugar para morar (na maioria das vezes, um quarto dentro da sua própria casa), uma cópia
da chave e os filhos!
Mas, minha primeira estadia em Paris não foi muito bem-sucessida… de um dia para o outro
minha família não precisava mais de mim, pode? E quando digo de um dia para o outro é que
não fiquei nem uma semana nesta casa! Contudo, e isso é outra coisa que me impressiona por
aqui, eles não me colocaram na rua por não precisar de mim… não, não, eles me ajudaram a
arrumar outro trabalho, conversaram com a nova família para me indicar como alguém de
confiança, pagaram minha passagem (a nova família morava na Bélgica) e ainda me levaram
na estação de trem! Devem ter feito um „ufa“ ao me ver entrando no trem… mas não me
abandoram! E o pai ainda me disse (me dando uns Francos para fazer um lanchinho no trem):
Para QUALQUER coisa que precisares, nós estaremos aqui!
Agora era achar a próxima família e tentar convencê-la de ficar comigo, certo?
Eu, novamente, tinha esperança: eles já tinham tido (e amado) uma outra nounou brasileira…
esqueci o nome dela agora, mas acho que era Pricila, uma coisa assim…
Pai: chefe de cozinha,
Mãe: administradora de hotel
Julien: 7 anos, gostava de comer meleca do nariz e ninguém via isso como um problema pois
„era bom para o paladar“ (em uma família onde todos os homens eram chefes de cozinha, ter
um paladar ruim era uma dificiência!) – mas não, ele não se tornou chefe de cozinha e sim
piloto de avião!
Julie: 4 anos, lindinha e choroninha. Ainda naquela fase que querer estar grudada na mãe,
sabe?
Todos reunidos os pais trabalhando e os filhos brincando em um hotel de sonhos…
perfeitamente decorado, uma cozinha ambicionando uma estrela no Michelin e um serviço
de alto nível.
Para ajudar, a cidade Bouillon, é um vale: de um lado, o castelo de Godefroy de Bouillon (de
onde saiu a primeira cruzada) do outro o hotel Panorama, no meio a cidade que é cortada por
um riozinho. Euzinha? Ganhei um quarto no hotel, com vista para o castelo!
O que eu via da minha janela era mais ou menos isso:
http://www.panoramahotel.be/fr/la-terrasse
Meus dois primeiros atos na cidade?
Enviar um e-mail à Genebra indicando meu novo endereço e pedindo que meu correio fosse
redirecionado… meu soldadinho escrevia cartas! E isso, quase que diariamente! E assinava:
„ton (teu) Marcus“ o que me enchia ainda mais de esperanças…
E uma carta à Saraievo dizendo onde e até quando eu ficava! (em princípico, até dezembro de
2001).
Quarta-feira, 03 de outubro:
- Leila! Téléphone!!
Era ele! Estaria na Alemanha em duas semanas, queria me encontrar, estava livre!
Eu demorei para entender em qual cidade eu deveria estar para encontrar com ele… pedi para
soletrar: M-A-N-N-H-E-I-M.
A carta, explicando todos os detalhes do encontro não demorou para chegar: Nos
encontramos em Mannheim, hotel X, não sei a que horas chego, será tarde, me espera no
hotel, quarto reservado em nosso nome.
Sair de Bouillon para chegar em qualquer lugar é complicado! Ainda mais para quem ainda
não tinha muita experiência com trens….
Mas eu não tinha escolha, eu precisa ir! Para vocês terem uma ideia do trajeto:
Libramont – Mannheim (Bouillon não tem estação de trem, é preciso chegar primeiro em
outra cidade)
E em 2001 acho que nem tinha, ao menos eu não conhecia o Google Maps.
Depois de horas trocando de trens com atrasos cheguei em Mannheim depois das 19h. Na
estação de trem, somente os vendendores de comida e os funcionários da estação ainda
estavam trabalhando e eu não tinha nem um Deutsche Mark! (a mundança para a moeda em
comum, o Euro só aconteceu em janeiro de 2002). Eu tinha Franco Belga, Franco Francês e até
Dolar (alguns que tinham vindo comigo do Brasil) mas eles não me adiantavam de nada!
Sem falar nenhuma palavra de alemão, com um inglês macarrônico e um francês na ponta da
língua que ninguém entendia, pedi no guichê da estação para usar o telefone (eu não tinha
mais celular nesta época… tive um alaranjado emprestado na Suíça, mas agora já tinha
devolvido).
- Estou na estação de trem, onde estás?
- Nosso vôo atrasou, não sei quando vou chegar. Vai para o hotel e me espera lá.
- Mas onde é o hotel? Como chegar até lá?
- Tens que pegar o transporte, ou um taxi. Fala o nome do hotel para o taxista que ele
te leva.
Mas como?? Como?? Sem falar alemão e principalmente, sem dinheiro alemão?
Depois de indas e vindas pela estação e de perguntar milhares de vezes em francês onde
acharia uma casa de câmbio ou se alguém aceitava dolar, franco e coisa e tal, o moço do guichê
me eu um ticket de transporte público e me disse para eu sair da estação pegar o trenzinho
tal (me escreveu o número) e ir de uma vez (acho que ele não me aguentava mais!). Eu não
entendi uma palavra se quer, mas o contexto… e fui!
Ele realmente chegou muito tarde e me deixou no outro dia cedinho com uma nova charada:
nos encontramos na „torre de água“, às 12h.
Deixou escrito no bloquinho do hotel, em francês. O que não ajudava em absolutamente nada
pois os mapas da cidade estavam todos em alemão e eu não tinha a menor ideia de que a
„Tour d’eau“ se chamava Wasserturm!
Cada encontro e cada despedida eram grandes desafios… cada encontro uma charada que eu
precisa desvendar, um mapa do tesouro. Cada despedida, um pedaço de mim que ficava.
Em Bouillon a vida seguia e uma vez por semana eu passava roupa: as minhas e as das crianças
escutando a fita K7 que tinha recebido pelo correio, diretamente de Saraievo. Entre as que eu
sempre voltava para escutar mais uma vez:
Joe Cocker - Unchain My Heart
Johnny Hallyday - Que Je T'aime (essa eu colocava mais alto e cantava junto igual a uma louca!)
CHARLES AZNAVOUR Non Je n'ai rien oublié
Ele veio a Bouillon. Eu quase fui passar o natal em Saraievo (e ainda bem que a Bósnia não me
deu o visto, pois o vôo que eu tinha previsto pegar teve problemas na aterrizagem e quase
todos os passageiros ficaram feridos e passaram o natal no hospital).
Viajei pela Belgica e pela França: nesta época, 2 amigas da faculdade estavam morando em
Paris. Como o que ganhávamos era somente um „argent de poche“ (tipo mesada que os pais
dão para os filhos) nosso dinheiro era usado como mesada: para a diversão!
Marcávamos encontros por e-mail e logo estávamos juntas descobrindo um lugar novo!
Éramos experts em passagem de trem com desconto, hotel barato e atividades gratuitas! Um
bom exemplo foi este aqui em Reims:
Esta é a cave da Veuve Clicquot. A visita guiada é gratuita e no final dela, o guia abre uma
garrafa de champagne e serve uma bandeija de petit fours… luxo puro para nós três naquela
época!
Mas 2002 chegou, o Euro chegou e demos adeus à infinidade de moedas que tínhamos
guardadas e reservadas para passar a fronteira.
Minha passagem era válida somente até maio e de janeiro a maio foi uma semana! Entre
mapas do terouso, as crianças e os encontros entre amigas, também comecei a planejar minha
volta. Para o Brasil? Não! Para a Europa!
Eu estava envolvida demais no meu negócio para desistir dele. No amor como nos negócios é
preciso ter coragem para tomar decisões. É preciso ir até o fim mesmo que para isso tenhamos
que nos privar, mesmo que para isso seja preciso enfrentar nossos medos, atravessar
tempestades. Desistir nunca tinha sido o meu forte e eu sempre acreditei (e continuo
acreditando) que um amor deve ser vivido até o último suspiro.
Comecei então a procurar pelas universidades: assim teria uma „boa desculpa“ para voltar. Se
eu queria viver esta história eu também queria escrevê-la e não seria trabalhando de babá
numa cidadezinha minúscula da Belgica. Era hora de expandir o meu negócio!
Sem que eu tivesse uma resposta sobre a possibilidade real de voltar para a Europa, deixei
Bouillon na segunda de pentecostes, o ensolarado 20 maio de 2002. Nathalie (a mãe das
crianças) abriu uma garrafa de champagne para brindarmos juntos esta nova etapa. Marcus,
eu e ela brindamos e nos despedimos com abraços apertados que simbolizavam a verdadeira
relação de carinho e amizade que tínhamos contruido durante estes meses. As crianças
tinham ido para a casa da avó para evitar a despedida e o pai não apareceu.
Partimos em direção à Heidelberg na Alemanha, sempre com a (in)segurança do wiedersehen.
O trem que me levou para Genebra (de onde saiu meu vôo de volta para Floripa), partiu na
manhã do dia 26. Desta vez, era ele quem ficara na estação. Desta vez, era eu quem partia.
Certa de que a única coisa que eu realmente queria era ficar, aqui ou seja lá onde fosse, mas
com ele. Sem a menor ideia de poder realmente voltar, de quando poderia voltar e de se meu
negócio teria um futuro, solucei alto durante toda a viagem entre Heidelberg e Mannheim
(onde precisava trocar de trem, ainda sem falar alemão e com duas malas pesadíssimas!).
Engoli meu choro mais uma vez (como tinha aprendido desde criança sob o olhar tenebroso
do meu pai que odenava em alto e bom tom a cada ameaça de uma lágrima: „engole o choro!“
e como tenho feito, muitas vezes na vida), peguei minhas malas e troquei de trem.
11 de setembro de 2002
Do horror do 11 de setembro de 2001, todos nos lembranos. Mas a mesma data, um ano
depois já é mais difícil de lembrar, não é mesmo?
Eu me lembro bem: no 11 de setembro de 2002 eu estava novamente me despedindo do
Brasil, determinada a só voltar quando eu pudesse comprar minha passagem de ida-e-volta
na Europa.
Se morar no Brasil tinha sido difícil para mim durante os quase 25 anos que eu tinha vivido no
país, agora com o coração deixado na Europa, era impossível!
Não só porque eu tinha um amor a ser amado, mas porque eu era outra e o país era o mesmo.
Mesmo tendo levado o dinheiro da passagem de volta na bagagem (na tal pochete… ela me
acampanhou durante muito tempo) ele não resistiu às dificuldades financeiras que
continuavam assolando minha família na época: mal abri as malas e fui „convidada“ a assumir
minha parte das contas que eram dividas por 3.
É muito triste ver como a falta de dinheiro torna as relações mais estreitas e doces (como a
que tenho com meu pai e minha irmã), ásperas e rudes.
Não me senti bem-vinda de volta como a ovelha perdida que volta para o rebanho. Eu precisa
muito mais do que simplesmente meu quarto e minha cama. Meu quarto me foi devolvido
como um favor. E de todo o resto que eu precisava, não houve sinal.
Existia uma mágoa profunda entre nós e um verdadeiro abismo nos separava. Nossa
convivência não era nem saudável… as brigas eram constantes e o „tu foste, eu fiquei aqui“
estava em todas as discussões.
Desta vez, também não teve café e ninguém estava achando legal minha obsessão de voltar
para a Europa.
- Por que tu arrumas um emprego aqui? Daí tu podes visitar o Marcus quando quiseres.
Uma vez tu vais, outra vez ele vem te ver. (??)
- Mas tu vais morar com ele?
- Mas se tu vais morar em Paris e ele na Alemanha, de qualquer forma vocês não vão
ficar juntos!
- Arruma um emprego bom aqui, economiza dinheiro e depois tu vais…
Eram tantas as sugestões, tantas as perguntas e cada uma delas me deixava mais segura: eu
não volto nunca mais!
Se é verdade que em 2001 eu tinha ido „para voltar“, agora eu queria ir „para ficar“!
Durante os três meses que fiquei no Brasil, eu não arrumei um emprego, eu gastei toda a
reserva de dinheiro que eu tinha, mas eu me inscrevi em um programa de Au Pair na França:
o que me garantia um lugar para morar, comida, carte orange (carte de transporte) e míseros
200 euros por mês. Mas eu precisava de um visto e precisava de algum tipo de segurança para
poder morar na França e esta era a melhor opção.
Desta vez não teve café e quem se comoveu com minha obsessão foi uma grande amiga dos
tempos de faculdade. Éramos muito diferentes: ela loira, magra, com cara de princesa e boa
situação financeira. Eu, bom, vocês estão vendo as fotos por aí…
Ela conseguiu convencer o noivo (única pessoa apaixonada o suficiente para aceitar este tipo
de proposta) a usar seu cartão de crédito (pois o cartão dela não tinha limite suficiente) para
parcelar minha passagem. Eu enviaria mensalmente o valor das parcelas.
De onde eu tirava esse dinheiro? As vezes eu também me pergunto, sabe? Mas em princípio,
dos 200 euros que ganhava por mês!
Achei minha „planilha“:
Esse foi o sistema que encontrei para conseguir cumprir meu compromisso. Para economizar
as taxas de envio eu mandava cartas semanais recheadas de euros para ela…
Pagar esta passagem foi um verdadeiro sacrifício para mim. Eu simplesmente nunca tinha
dinheiro para nada!
Não tinha dinheiro, mas tinha uma obsessão, um amor e uma amiga!
Se meu amor demorou para vir me encontrar em Paris, minha amiga estava sempre comigo!
E todas as sexta-feiras tínhamos um encontro marcado! Juntávamos nosso dinheirinho (o dela
também não era muito) e passávamos na Galeries Gourmondes comprávamos o que tinha de
mais baratinho, inclusive um Pol Rémy (espumante mais barato do supermercado e da França,
talvez) e nos reuníamos nos 14 metros quadrados em que ela morava para assistir Sex and the
City! Era o nosso momento „gourmet“ da semana…
Sonhávamos em poder consumir o que elas consumiam e programávamos as atividades
(gratuitas) para o final de semana. E sempre tínhamos atividades!! Fizemos o tour dos museus
gratuitos (são muitos em Paris), esperávamos o primeiro domingo do mês para visitar dos
pagos, íamos regularmente a concertos nas igrejas e até em bares! Alguns deles eram
gratuitos com uma taxa de consumo de 1 cerveja… passávamos horas deliciando um copo de
cerveja!
As fotos também eram um pouco reguladas em 2002: as máquinas não eram digitais e a
revelação um absurdo de caro.
Esta anotação (confesso que tem sido bastante doloroso para mim reler minhas anotações
antigas) mostra bem como foram estes primeiros meses em Paris:
Em Strasbourg, esperando o trem que me levaria de volta para „a dura cidade dos meus
sonhos“ escrevi para minha amiga e na época, ainda credora da passagem:
Amiga Tina,
2002 está no fim… esta segunda metade do ano foi (está sendo) bem difícil para mim. A grana
curta, as dívidas grandes. As vezes me pergunto se eu mereço mesmo estar aqui já que estou
devendo tanto dinheiro. Meu trabalho aqui não é nada legal. Já te disse isso, neh? Hoje tive
que pedir dinheiro pro Marcus e isso me deixa super mal. Hoje também decidi que vou procurar
um outro emprego. Esse negócio de ficar só reclamando e não fazer nada pra me ajudar não
adianta muito, não é?
A vida, as coisas em geral são muito caras em Paris e por isso não consigo guardar dinheiro.
Bom, essas são algumas das resoluções para o ano novo. Esperanças não faltam… falta um
pouco mais de ânimo para enfrentar mais uma maratona. Mas é a maratona da vida, não é?
Estamos sempre travando batalhas! Sempre correndo para alcançar alguma coisa. Eu preciso
me estabelecer na Europa e não posso ficar de braços cruzados.
Agora estou esperando o trem para voltar para Paris. Marcus me deixou aqui há mais ou
menos meia hora. Ele ainda terá 5 horas de viagem até Haale, no leste da Alemanha e eu
outras 4 horas até Paris. Estamos juntos desde o dia 24. O Natal e os dias que sucederam foram
muito bons. Ele tem um jeito muito especial de ser especial… Para esse ano novo eu queria
alguma coisa a mais. Espero poder alcançar. Mais meios de viver bem, uma estabilidade maior
e um compromisso maior do meu amor.
Não sei como terminou esta carta, mas com certeza ela foi recheada com alguns euros…
Ahh, e por que não passamos o réveillon juntos?
Também foi minha pergunta na época… não me lembro mais a resposta que tive, mas o
verdadeiro motivo eu só fui descobrir um bom tempo depois!
O crime do Sr. Lange
2003 eu decididamente não remoer: descobri ter sido traída desde a minha estadia no Brasil
(por isso, não passamos o réveillon juntos… ele dividiu direitinho: natal com uma, réveillon
com a outra), briguei, chorei, me descabelei e perdoei. Virada de 2003 para 2004, pedi-o em
casamento (a louca!).
A reposta? Isso quem deve fazer é o homem.
Mas, eu já tinha me liberado das cartinhas recheadas, estava terminando meu curso de
especialização na Sorbonne e tinha um emprego novo, que me garantia uma graninha legal e
mais conforto. Já não era mais nounou e sim „aide dévoirs“, ou seja, um tipo de professora
particular que faz os deveres com as crianças.
E principalmente, não éramos mais somente duas, éramos muitos!
Graças à Simone e a sua vontade de fazer amigos, já éramos um grupo badalando nas ruas de
Paris (não estamos todos na foto, mas dá para ter uma ideia):
Em 2004, passei meu primeiro verão em Paris… Marcus tinha ido em missão para Kabul no
início do mês de julho e em agosto ainda não tinha dado sinal de vida. Mas agora eu tinha
amigos e Paris no verão é uma festa sem fim! Não vou escrever muito hoje, mas achei estes
e-mails que foram enviados exatamente em agosto de 2004:
Email para Si (Simone estava de férias no Brasil e precisava receber notícias, certo ?)
Subject : Notícias para Si
Date : 16/08/04
Tem um Paris que a gente nem sempre vê... falta de tempo? Falta de organização?
Comodismo? Isso mesmo, pode ser comodismo… a rotina se instala em todos os lugares e,
quando a gente vê, já estamos com aqueles velhos hábitos que trazemos desde sempre!
È que depois de algum tempo, nada mais é tão novidade, já não procuramos
desesperadamente amigos e companhia para o final de semana… no máximo, tentamos saber
onde vamos nos encontrar, o que vamos comer e quais DVDs assistiremos! A preocupação de
não gastar muito, o último metro, o papel importante que se perdeu no espaço mínimo de um
quarto de estudante, a tese, o namorado, os pais que voltaram para casa, a viagem pro Brasil,
e isso e aquilo e aquele outro... tomam uma importância quase que vital!
Neste verão, o que estamos fazendo? E a casa que íamos alugar pra passar uns dias juntos?
Dividido por quase dez não ia ser tão caro assim... mas o empreguinho de verão não rolou, o
trem custa caro, as viagens de última hora foram muitas, os presentes para família no Brasil
custaram caro, os planos mudaram muito depressa...
Assim sendo, somos uma meia dúzia por aqui!
O que fazer? O que fazer pra não morrer de calor? Comprar um ventilador? Ajuda, mas não é
suficiente ... neste final de semana mais gente se mandou daqui, os que ficam se consolam
com as lembranças do ano passado... lembra daquela festa? E com a idéia de passar um verão
em Paris... tinha que acontecer um dia, não é?
Então, porque não aproveitar a programação cultural da cidade luz? Afinal, se aqui não tem
praia, tem parque, museu e até cinema de graça com telão gonflável!
Sábado a noite lá estávamos nós, éramos três... Place de Vosges, telão, música de fundo,
cervejinha, biscoitinhos, canga espalhada sobre a grama, esperando o filme: “o crime do
senhor Lange”, dirigido pelo Renoir, com diálogos de Brel.
No final, éramos cinco! Os meninos da frente, talvez um pouco irritados com o nosso falatório,
resolveram entrar no papo...
Papo daqui, papo dali, gatinho, gatinho, troca de telefones e a fatídica frase: eu preciso fazer
pipi! Quem tem tempo pra pipi, tem tempo pra mais um cigarrinho, um café ou uma
cervejinha... de qualquer forma, não vamos voltar pra casa, vamos dormir no Jean...
Uma mensagem que chega:
- traz brega!
É o sinal, Jean Pierre nos espera.
Trinta minutos mais tarde, estávamos numa mercearia comprando cerveja. Quase duas da
manhã, chegamos. Cervejinha, papinho, choramingos... ai o meu namorado que não dá
notícias, ai os meus pais que foram embora...
Quatro da manhã:
- empresta uma camiseta pra eu dormir?
- Um short?
- Mais duas camisetas?
- Eu durmo aqui,
- eu durmo ali...
- Que pernocas heim Flávia?
- Que pé preto heim Camila!
- Não vai dizer que é doença! Eu não sei o que é, já lavei e tudo, tá limpinho, é que no verão
ele fica assim!
Finalmente o sono foi mais forte... dormimos, o sono de criança que não aguenta mais e
desmaia...
Seis da manhã:
- Desliga esse telefone!
- Não é o meu!
- Quem é cara! Desliga isso...
- Camila, Camila é o teu!
- O que? Ah é o meu! Que vontade de comer uma coisinha...
- Pô Camila, paçoquita as seis da manhã?
Silêncio...
- Onze da manhã:
- Vou embora!
- Fica aí cara, “vamo toma café”!
- Tô fazendo café!
- Espera eu me acordar que vou comprar baguette e a gente faz um café da manhã legal...
- Tó o café!
- Traz um pra mim?
- Que sol, cara!
- Vou pra casa!
- Fica aí! Que coisa!
- Tenho que aproveitar enquanto tá fresquinho pra trabalhar, preciso terminar o capítulo
sobre os personagens...
- Eu também vou, vou procurar o meu papel...
- Fica aí, deixa eu acordar!
Fui comprar baguette, Jean foi lavar roupa... depois, Paris Plage... mas isso é assunto pra outro
e-mail!
E vocês aí na terrinha? Muito churrasco? Peixinho? Cervejinha gelada? Ôôô vidão!!!!
Ficou com saudadinha de nóis? Espero que sim mesmo sabendo que estás feliz aí no calor da
família! Aproveita que nós estamos aqui esperando a volta!
Beijos pra todos,
Leila
Email para Kamila (prima e confidente)
Subject : São demais os perigos dessa vida …
Date : 16/08/04
« São demais os perigos dessa vida para quem tem paixão... » não era isso que cantava
Vinícius? ele tinha razão, os poetas sempre têm razão (?) isso é questionável…
Bom, o fato é que estou seguindo os traços de Dora Maar & Picasso… curiosidade? Obsessão?
Essa classificação eu deixo pra ti…
Paris do entre duas guerras, repressão, surrealismo, cubismo, tudo explode, tudo vem à tona!
Poderia ter escolhido um outro casal, uma história mais bem sucedida, ou poderia ser
Beauvoir & Sartre? É podia… mas foi Dora quem cruzou o meu camino e com ela, Picasso…
Museus, ruas, ateliers, tudo está no meu roteiro… e, acaso? “o crime do Sr. Lange” está em
cartaz…
Cinema à luz da lua, telão inflável na place de Vosges, filme de Jean Renoir, diálogos do Brel,
Paris, 1935…
Foi na estréia deste filme, em 1936 que Dora viu Picasso pela primeira vez… eu precisava saber
o que acontecia no filme… fui! duas amigas, cervejinha gelada, biscoitos de chocolate, canga
pra sentar na grama… ambiente de pic-nic para assistir um filme em preto e branco! Eu, como
Dora há 68 anos, tinha a minha máquina fotográfica em mãos… um cenário desses merecia
uma foto! Os meninos da frente se oferecem para entrar na foto…
- Todos juntos?
perguntam.
- Tinha pensado em fazer uma foto do telão nesta praça mas se vocês quiserem entrar
não tem problema, vou poder pegar tudo!
E, clik! A foto estava feita!
- Tu me mandas a foto por e-mail?
- Claro, me dá o teu e-mail depois, o filme vai começar…
- Vocês querem uns docinhos?
- Obrigada, mas nós temos!
- Porque não aceitasse, ao menos podíamos falar um pouco mais com ele, visse que
gatinho?
- Aceita, então!
The end… esperamos a praça esvaziar um pouco, tempo de conversar mais um pouco, trocar
e-mails, telefone… papo bom, gatinho, gatinho… as meninas estavam empolgadíssimas… Eu
precisava fazer pipi ! achamos um café, daí mais um café, mais uma cevejinha… impressões
da França e dos franceses, risos, esteriótipos sobre o Brasil, risos, três brasileiras que moram
sozinhas em Paris, que não precisam deles para achar o caminho pra voltar, que não precisam
de ninguém pra pagar a conta… estranho, estranho…
Nos separamos com a idéia de assistir um outro filme na quarta, no jardim do Trocadeiro…
telão de um lado, torre iluminada de outro… o sonho…
O domingo passou e o assunto foram os meninos… As meninas pareciam bem interessadas
(ou era eu a interessada?) e eu não quercia estragar o barato delas, mas não acreditava muito
que iríamos nos encontrar mais uma vez por acaso com os meninos já que eu não estava
pensando em gastar meu dinheirinho pra ligar para um deles e que eu sabia que elas também
não fariam…
Quarta a tarde estou na piscina… já que não tem praia … telefone toca:
- Oi Leila é o Eme!
- Quem? … claro, oi!
- Vocês vão assistir o filme hoje?
- Vamos claro!
- Então a gente podia se encontrar não é? Estaremos lá as 8h15 …
- Ahh, eu combinei as 8h30 com as meninas….
- Não tem problema, nós chegamos mais cedo e guardamos um lugar para vocês!
- Bem legal, obrigada!
- Então a gente se encontra lá!
- Nós levamos as cervejas e uns docinhos… mas precisa de alguma coisa pra sentar pois
lá não será na grama mas na calçada…
- Tudo bem, a gente leva a canga e uns chocalates…
Tudo bem, tudo bem, cervejinha, cigarrinho, filme bom, noite boa, lugar de cartão postal…
- Engraçadas essas balinhas, de onde vêm? Do Brasil?
- Não, da Alemanha!
- O que tens com a Alemanha, falas sempre de lá!
- Meu namorado é alemão!
Sorriso amarelo, e o assunto morreu ali!
Papo daqui papo dali…
- onde vocês moram?
- No terminal do metrô que ela pegou no filme!
- Ah, em Neuilly? Eu também!
- Não? em que rua?
- Rue Parmentier!
- Incrível! moro duas ruas depois, a gente teve que ir na Place de Vosges pra se
encontrar, que coincidência!
- O acaso não existe!
Papo daqui, papo dali…
- Temos que ir embora, se não vamos perder o metro!
- Se bem que a gente está super perto de casa…
- É verdade, mas não estou com muita vontade de andar…
- Então tá, vamos…
- Tchau, tchau, … nada no programma…
- Voltamos as três...
- Amanhã vamos fazer compras? Preciso ir no super…
- Ah, então vamos as três…
Outro dia, compras, chuva, dia para filme e bolinho de banana… então, todas na minha casa!
Comilhança, filme do Almodovar, e mensagem do Eme convidando para jantar… mensagem
direta para mim, as meninas já no meu pé: vais aceitar neh?
Elas foram embora, acabei dando uma desculpa qualquer para ele ao que ele responde que a
proposta está de pé, eu escolho o dia, ele cuida do resto!
No outro dia… que tal um barzinho no Champs-Elysées, nada longe de casa, nada muito
barulhento, bom pra conversar, se conhecer …
Papo ótimo, tudo ótimo… ele é um gato, jornalista, querido… mas será que eu estou
interessada nele ou em fazer dele o meu Picasso? Ano passado Marguerite Duras me jogou
nos braços do Amante, será que esse ano Dora Maar vai me jogar nos braços de outro ? Se o
acaso não existe, como insiste em repetir Eme, então não foi por acaso que os nossos olhares
também se cruzaram, quase setenta anos depois, no mesmo filme? Ou tudo será só literatura?
Email para Kamila
Subject: jantar à beira do Seina
Data : 23/ 08/ 04
“ hallo Leila do Brasil, meu convite para jantar ainda está de pé…”
Vindo de Eme
16:36:14
18/08/04
“hallo Leila do Brasil… meu convite para jantar está de pé… então pede conselho ao teu
estômago, e escolhe a data…”
vindo de Eme
16 :42 :09
18/08/04
Resposta :
« não precisa ficar nervosinho ! podemos jantar hoje se estás tão esfomeado! Ou amanhã,
ou depois… »
« que causticidade, isso é bem feminino, e talvez bem brasileiro também. Então, reservo
uma mesa para amanhã a noite na beira do Seine…”
vindo de Eme
16:54:18
« perfeito ! até amanhã… »
E o dia continuou normalmente …
O outro dia já não começou normalmente… já era o dia do jantar… que roupa usar? Nada
muito arrumado, nada muito provocante, nada que o faça pensar que eu me preparei para a
ocasião… mas ele não liga para confimar… a que horas? Onde exatamente? Será que não
deveria comprar alguma coisa nova? Um sapato? Tenho que lavar roupa, vou almoçar na
Flávia, na volta eu vejo!
Voltei já era meia tarde… artifícios do subconsciente… arrumei a roupa lavada, em todos os
casos, aproveitei para passar um vestidinho preto…
Fui tomar um banho… e, claro, foi nessa hora que o telefone tocou ! deixei cair na secretária…
depois eu vejo!
Confirmado para as 20h30, na Ganguette de Neuilly, final do Boulevard Bineau, atravessando
a ponte, já na Ilha da Jatte … senti o drama… não somente ele está querendo me impressionar
com o local mas ainda quer me fazer acreditar que para ele não há nada de mais normal esse
restaurante já que ele mora quase ao lado… sem falar que morar quase ao lado também já
quer dizer alguma coisa…
Tudo bem que ele queira, o problema é que eu também quero!
Mais uma vez fechamos o restaurante … isso tá virando um hábito… mas temos tanto para
falar...
- Acho que é melhor irmos embora, eles querem fechar…
- Será que hoje eu posso te convidar pra ir na minha casa?
Olhares, sorrisos, é claro que pode!!! Mas precisa convidar???
- Mas já é um pouco tarde, não?
- Da outra vez tu disseste que deverias ter pensado mais antes de responder...
Eu disse mesmo, mas por mensagem telefônica, é claro!
- Pois é... mas é estranho me pedires assim desse jeito...
- Então eu só conheco outro jeito…
(beijo: longo, francês, muito francês)
- E agora, tu vens? Em Neuilly a gente não deve ficar se beijando no meio da rua… só
nos bairros populares …
(Risos, beijos)
- Mas eu não vou dormir na tua casa !
- Não tem problema, eu te levo quando quiseres…
Na manhã seguinte:
“talvez não tenhas dormido o sufficiente, mas espero que tenhas tido bons sonhos… bonne
journée, beijo… » (ele já sabe dizer beijo em português)
alguns minutos depois, mas que me pareceram uma eternidade:
« não dormi direito, o vinho me deu dor de cabeça, mas Leila me fez muito bem… beijo »
Depois de uns dias de silêncio, envio a mensagem:
“ vou assistir um Ettore Scola, hoje, às 19h ou 21h30, no cinema Balzac, no Champs-Elysées…
se quiseres me acompanhar podes escolher a hora…”
Telefone toca (segundos depois):
- oi Leila, Eme!
- ah, oi! (ar de desinteressada…) então, o que estás fazendo de bom?
- tô trabalhando …
(filho de uma puta! Já tá me contando história, pensei)
- ah coitadinho!
- mas eu não to triste não, adoro o meu trabalho
(filho de uma puta!!!! )
- mas é ótima a idéia do cinema! Eu só não sei a que horas vou estar livre.. a gente já podia
marcar para as 19h e se tiver algum problema eu te aviso …
- então tá! Sabes onde é o cinema ? na rue Balzac, perto da loja da Peugeot, sabe? mas se não
puderes as 7h me avisa bem antes pois tinha previsto de ver um amigo…
- se preferires marcamos pras 9h30, não tem problema…
- eu prefiro… deveria ter saído mais cedo de casa, mas estou aqui na preguiça!
-te anima e sai, tem um sol lindo na rua! Então te ligo mais tarde…
- ok !
- ok ! tchau !
Nos encontramos as 8h30, no Champs-Elysées, metrô Georges V, na frente da Louis Vuitton...
la classe! Comemos uma coisinha antes do cinema, fui comprar cigarro enquanto ele falava
com a mãe no telefone, nos perdemos um do outro, nos achamos, mudamos de filme...
minha mãe perguntou de que nacionalidade tu eras...
- e?
- só respondi que eras da América Latina
- ok! Ela deve estar pensando que eu sou cubana ou venezuelana...
Mas porque a mãe dele já sabe de mim? Ela nem mora em Paris!
- ah, JB te mandou um abraço!
- vocês fizeram alguma coisa pro aniversário dele?
- não, mas te incluí na mensagem de feliz aniversário... escrevi assim: Leila junta-se a mim para
te desejar feliz aniversário...
Precisando de uma musiquinha para esperar o próximo capítulo?
Clique para escutar https://www.youtube.com/watch?v=rHM4ElVgc9s
Chegou a hora de a gente se casar…
- Estarei na Alemanha do 21 ou 31 de outubro. Prepara tudo para a gente se casar!
- Como assim?
- Em uma semana a gente resolve tudo!
- Como sim?
Foi assim:
No dia 22, antes de eu sair para pegar o trem, ele já tinha ido no cartório pegar a lista de
documentos necessários para o casamento. De lá mesmo ele me ligou dizendo a relação de
documentos que eu precisaria mandar vir do Brasil... que tudo deveria ser feito na máxima
urgência pois tinha uma "vaga" na próxima sexta-feira, dia 29/10.
Anotei, liguei a para a única pessoa no Brasil que eu tinha certeza de que faria o possível e o
impossível para me ajudar (como continua fazendo!) e pedi tudo com a máxima urgência.
Viajei pra Freiburg no 22 a noite...
No sábado já fomos na joalheria medir o meu dedo... a aliança já estava escolhida e reservada.
Depois, vestido.... não teve o segredo do vestido, na verdade, mais uma vez foi ele quem
escolheu:
Ele tinha um sonho, que a noiva dele casasse de Dirndl (aquele vestido típico da baviera,
sabe?) e segundo ele, tinha certeza de que ficaria ótimo em mim!
Me convenceu a entrar em uma loja especializada e escolhi o mais feio que achei para provar
(não queria usar traje típico no casamento, neh? Eu não sou alemã!).
Até eu gostei do vestido feio em mim e quando vi os olhos dele brilhando de emoção, não
pude mais me negar a comprar um deles. Mas então, que fosse um bonito! E é! Meu Dirndl é
lindo e ainda uso quando tenho oportunidade.
Durante a semana, foi uma correria danada: papéis, prefeitura, tradutor... uma loucura! Mas,
resumo da ópera, só tivemos certeza de poder casar na sexta 29, na quinta, 28 a tarde!
Qualquer pessoa pode imaginar o stress, não é mesmo?
O que me ajudou durante a semana foi o fato de não estar convencida de conseguirmos
preparar tudo durante a semana. Na verdade, não estava certa de querer casar assim nesse
desatinho... e como achava que não ia dar certo (principalmente que não ia dar tempo de
receber a papelada vinda do Brasil), fiquei tranquila a semana toda! Ele, ao contrário num
stress sem fim....
Marcus sempre teve essa coisa de tourino (eu nem acredito muito nessa coisa de signos, mas
aqui era incrivelmente visível) de colocar uma coisa na cabeça e não parar de correr para
alcançá-la.
O pedido?
O pedido foi feito na chuva, na quinta-feira (já madrugada pra sexta) na fretne do bar onde
tinha ido com a Camila e os amigos dela...
Camila foi minha madrinha de casamento e mesmo sem ter certeza de que realmente teria
casamento na sexta, organizou uma „despedida de solteiro“ para mim.
Não uma dessas despedidas de solteiro tradicionais… foi somente o „sair de casa para não
ficar enlouquecida sem saber o que fazer“.
Marcus tinha uma mania chata de me deixar „sob a responsabilidade“ de alguém e ir cuidar
dos seus interesses… Aqui ainda foi tudo bem, pois Camila e eu já éramos amigas do tempo
dos capuchinos à 1 euro, ruins e extremamente doces da Sorbonne: já tínhamos feito
mudanças (de casa mesmo) de metrô, dividido comida, casa, um pouco de tudo.
Ela tinha trocado Paris por Freiburg no início de outubro… ela tinha visto um menino bonito
nas fotos da festa de aniversário do Marcus no ano anterior e se apaixonou por ele… pode?
Armamos uma festa de „réveillon brasileira“ na Alemanha, oportunidade para que eles se
encontrassem… foi tudo!
O amor dos dois „não vingou“ mas ali, naquela passagem de 2003 para 2004, nasceu um outro
amor: o amor de Camila por Freiburg.
Me lembro tão bem de ela dizer na estação de trem (na volta para Paris):
- Eu venho morar aqui!
E foi! Antes de mim!! Eu tive raiva de ela ir primeiro. Inveja de ela aprender alemão tão rápido
e um ciúme doentio de uma blusa preta que ela tinha…
Ela, como eu, não é do tipo „típica mulher brasileira“, mas ela tem coragem de usar os decotes
que eu não uso, entende?
Bom, nem preciso dizer que eu aceitei o pedido, dormi tranquila e acordei uma pilha de
nervos!
Me arrumei às pressas, respirei fundo e disse JA! (sim, em alemão… isso eu já tinha aprendido)
A cerimônia foi bem simples, na Rathaus, depois Sekt com alguns amigos, fotos, restaurante
... essas coisas!
Passamos um final de semana de casados, preparando a próxima separação. Na segunda pela
manhã, eu voltei para Paris e ele para Kabul...
O início do fim.
Fim. Palavra tão definitiva e ao mesmo tempo imensurável… quando é o fim? O fim, em
princípicio não existe, já que tudo recomeça, tudo brota, tudo floresce, tudo é reciclável.
Mas o fim, em toda a sua incerteza é inevitável: tudo se transforma.
O fim sempre tem o seu início e mesmo que ele seja inidentificável, ele existe. Se acreditamos
que „cada encontro é também despedida“ como canta Milton, então o início do fim foi no
exato momento em que o vi pela primeira vez, no auditório da Universidade de Genebra, antes
mesmo do primeiro olhar, antes mesmo do primeiro beijo.
Ou teria sido no Crime do Sr. Lange, Place des Vosges? Sempre acreditei e continuo
acreditando que envolvimentos com uma terceira pessoa são sinais da fraqueza de um
relacionamento. Não sou moralista ao ponto de pregar a fidelidade eterna. Sei muito bem que
o ser humano tem muitas facetas, necessidades físicas e emocionais que nem sempre são
supridas por uma única pessoa. Não acredito em amor incondicional, li muito Vinícius na
adolescência para poder acreditar nisso. Mas sempre amei incondicionalmente os homens
com quem me relacionei e isto para mim, sempre inclui exclusividade. O amor carnal,
enquanto existe, não permite invasões! E para mim, o sinal de que um amor estava no fim,
sempre foi sentir que meu coração estava de portas abertas para os invasores.
Aqui não, eu estava tão convencida de que este amor era o meu que o „infinito enquanto
dure“ não tinha mais nenhum valor para mim (o que sempre tinha sido o meu lema nas
questões amorosas).
Aqui não, eu queria este amor. Eu queria que ele fosse para sempre. Ou, eu queria um
passaporte europeu? É incrível como quando o amor acaba a gente começar a duvidar da
existência dele…
Uma vez, em Auvers-sur-Oise (cidade onde Van Gogh passou seus últimos meses de vida e
pagou sua hospedagem e alimentação pintando personagens e a cidade inteira – a cidade
inteira serviu de inspiração para o gênio e, andando pelas ruas de Auvers, encontramos
indicados os lugares onde foram pintadas algumas das últimas obras dele) o senhor que nos
fotografou disse ao devolver a máquina fotográfica:
- Vous avez êtes fait pour vous rencontrer…
Não tenho dúvidas disso. Ter amado este homem me fez descobrir uma coragem, uma
determinação e a auto-suficiência que eu nem sabia que tinha.
Com ele eu aprendi, principalmente, a viver sozinha.
Du bist alleine, Du arme!
Exclamava constantemente Holm, pai dele.
Mas eu descobri que posso sim, viver sozinha… o que mudou completamente minha relação
com o mundo, com as pessoas, com a vida em si.
Marcus tinha a adorável mania de me deixar „sob a responsabilidade“ de alguém e ir „cuidar
da sua vida“. Geralmente ele procurava alguém que tivesse tido aulas de francês na escola.
Provavelmente achava estar fazendo um favor para „o escolhido“ pois ele teria a possibilidade
de colocar o seu francês em prática. Na prática, era completamente diferente. Marcus era
membro de diferentes Burschenschafts, que são as fraternidades de estudantes aqui na
Alemanha. E nesses lugares existe uma hierarquia muito bem determinada, o que faz com que
os mais velhos tenham bastante influência sobre os mais novos. Assim, ele se aproveitava
dessa vantagem (e da falta de coragem deles em se negar a fazer um favor) para me deixar
„sob a responsabilidade“ de alguém. Era sempre muito constrangedor pois esses momentos
eram sempre as festas, a casa da fraternidade estava sempre cheia e a última coisa que eles
queriam era „cuidar“ da mulher de alguém… eles queriam achar as suas próprias mulheres…
o que é perfeitamente normal.
O papo terminava rápido, já que o vocabulário deles em francês era pouco e o meu alemão
ainda inexistente… uma vez, em Tübingen, ele me deixou conversando com um casal muito
simpático: o marido falava perfeitamente francês, a mulher não, mas estava disposta a não
me deixar sozinha.
Neste dia, Marcus resolveu que precisava visitar outras fraternidades e não achou pertinente
me avisar que não estaria mais na mesma festa que eu… passadas algumas horas, o assunto
entre eu meu „responsável“ tinha acabado, a mulher dele já não estava mais tão disposta a
não me deixar sozinha (já que agora era ela quem estava sozinha, pois isolada
linguisticamente).
O celular? Desligado, claro! (outra mania adorável…).
- Onde vocês estão hospedados? Nós te levamos até o hotel e deixamos avisado aqui na
casa que tu já foste para o hotel.
(sugere meu responsável, que àquela hora da madrugada queria simplesmente voltar para
sua casa em paz com sua mulher).
Eu não sabia… eu não sabia onde passaria aquela noite. Eu não sabia onde estava meu
namorado que me fazia gastar todas as minhas economias para vir encontrá-lo no país dele e
me deixava sozinha. Eu sabia o que fazer.
Na verdade, nem me lembro mais o que fiz naquela noite. Mas provavelmente, fiz o que me
era de costume: esperei por ele, sorri encantada quando ele voltou (sorrindo) para me pegar,
fui para onde ele quis me levar.
Foi aqui o início do fim?
Não, não pode ser…
Ainda tinha tido aquela noite sozinha em Frankfurt, em Speier, em Haale, em Mannheim, em
Heidelberg, em Freiburg, aqueles jantares intermináveis onde a isolada linguística era eu,
dezenas de festas em dezenas de fraternidades onde ele enchia o peito para me apresentar:
Leila Adriano, brasileira, estudante na Sorbonne, veio de Paris para esta festa. Hoje não sei o
que pensar sobre esta apresentação mas tenho um desprezo cruel por mim mesma por ter
gostado um dia.
Ou teria sido nas escadarias do Charles de Gaule?
No Rio de Janeiro?
Em Florianópolis?
Em Santiago?
Em Freiburg?
(…)
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  • 3. Este ano comemoro 15 anos de Europa… não vai ter baile de debutantes, mas quero sim comemorar em alto estilo… por isso este desafio (meu desafio de não esquecer de como foi difícil partir, chegar e ficar aqui). Desafio de tornar pública minha (maior) história empreendedora. Sim, pois empreender não é só abrir uma empresa, registrá-la e gerar lucro. Empreender é ter uma certeza (o porque como nos dizem os choachs), é sonhar (e planejar) sua realização, estar disposto a enfrentar as dificuldades (juntar a pedras para construir seu castelo – como gosta de citar minha tia preferida) e se preciso for, „ajeitar o caminho“. Desde muito cedo eu tive a certeza e cantei repetidamente com a Legião Urbana „tenho quase certeza que eu não sou daqui“. Hoje esta certeza se transformou em „tenho certeza de que eu nunca fui daí (quando penso no Brasil). Atenção, não estou querendo comparar nem avaliar questões econômicas, políticas, sociais, comportamentais ou o que quer que seja entre o Brasil (minhas origens, minhas raízes) e o país onde moro agora. Não existe comparação adequada, não existe país nem lugar perfeito. O lugar perfeito, o paraíso, é onde conseguimos viver plenamente e felizes. Meu lugar, minha casa, meu paraíso é aqui, onde estou. Talvez seja outro um dia, já tinha encontrado outros paraísos antes, mas agora é aqui. No meu escritório-biblioteca, na cave de uma casa geminada, numa cidadezinha barroca linda no sudeste da Alemanha. É aqui, no meu escritório-biblioteca, entre post-its, listas e mais listas de anotações, albuns de fotos, meus livros (alguns deles corrego desde o tempo da faculdade) e discos (CDs na verdade, mas‚ „livros e discos“ lembra Elis e fica muito mais bonitinho, não?). No inicío queria escrever um romance, ele até já tinha título, enredo e uma editora disposta a colocá-lo no mercado (quem sabe ainda escrevo um romance de verdade!) agora quero simplesmente contar essa história. Contar mesmo, sabe? Como se estivéssimos conversando. Era para ser um romance, vai virar contação de história! E a contei no meu blog, durante alguns dias… até que a coisa cresceu! Duas editoras me cantactaram querendo publicar minha história… Mas eu já tinha alguém em vista, e ela disse sim! Ou seja, essa contação de história, vai virar romance sim! Contudo, para isso vou precisar de mais tempo…. Vou precisar trabalhar muito ainda na escrita e na história! Quero que ela seja linda, como é linda a minha história! Quero que ela corra por todos os lugares, que inspire quem, como eu há 15 anos estava precisando de inspiração e precisando mudar o rumo da sua vida!
  • 4. Quando eu abri minha sala de estar virtual, no dia 01 de junho deste ano, não imaginei a repercussão que ela teria. Eu tinha um objetivo egocêntrico: contar a minha história. A história de uma jovem engajada politica e socialmente, uma professora que sempre preferiu lecionar em escolas públicas pois sempre teve consciência da importância do seu trabalho para a população menos favorecida. Uma sonhadora que levava seus alunos cansados de trabalhar o dia inteiro no pesado, muitas vezes com fome esperando pela hora do recreio para jantar na escola, para a biblioteca (também pobre e faminta) da escola e dizer: escolham um livro, sentem-se, deitem-se no chão e simplesmente aproveitem este momento. Durante bastante tempo e ainda durante a graduação, lecionei em uma escola que como todas as escolas públicas no Brasil daquela época, não tinha nada… grande parte dos nossos alunos eram trabalhadores que vinham lutar por uma vida melhor tentando ao menos terminar o 1° grau, estudando a noite. Uma parte, tinha vindo do interior do estado para a capital, para não ficar longe do pai ou da mãe que estava detido na penitenciária estadual que fica quase do lado da escola em questão. Outra parte eram delinquentes de ocasião: na miséria em que eles viviam, um roubo poderia significar uma mesa farta para a família inteira… as vezes, eles faltavam a aula durante uma semana inteira… e quando perguntávamos o porque, a resposta era sempre a mesma, tinham sido presos. Na hora da merenda, que era o jantar da escola inteira, nos sentávamos todos juntos: alunos, diretor, secretárias, professores, merendeira. Jantávamos todos juntos, como em uma família enorme reunida… as vezes tinha café, mas sempre teve cigarro (hoje seria impossível, mas em 1999 ainda não existia essa perseguição aos fumantes). Éramos todos adultos e não víamos problema nesta relação.
  • 5. Fizemos muito por essa escola. Tirávamos mensalmente uma parte do nosso salário (que todos sabem não é grande coisa) para completar o orçamento da escola, para que nossos alunos tivessem uma escola limpa, mais bonita, uma comidinha e uma mesa farta na hora do jantar. É uma satisfação imensa saber que muitos deles foram para a universidade, casaram- se, tem um bom emprego . E no meu caso, que descobriram o prazer da leitura. Em 2005, em uma das minhas passagens pelo Brasil, encontrei uma ex-aluna. E sabe a primeira coisa que ela me disse? Leila, tenho todos os livros do Drummond! E tinha tanto orgulho, tanta felicidade nessa frase que eu senti que não tinha sido em vão os anos em que me dediquei tanto, saindo de casa as 6h45 manhã para as aulas na faculdade e só chegando depois das 23h depois de muito trabalho. Mas, esta satisfação só veio muito tempo depois… É muito difícil ser estudante de letras no Brasil… nunca vou esquecer um comentário que escutei sobre passar no vestibular para o curso de letras: Não passar para letras é como reprovar em exame de fezes. É muito difícil ser professor no Brasil! As condições de trabalho são péssimas, o salário miserável, o preconceito muito grande. Lembro que nesta mesma época, eu tinha o hábito de „aproveitar“ o tempo entre uma escola e outra para corrigir trabalhos e provas dos meus alunos. Gostava de fazer tomando um cafezinho, fumando um cigarrinho em algum lugar do centro da cidade. Um dia, a secretária de uma das escolas me viu e veio falar comigo: - Tás corrigindo prova aqui? - Tô, tenho encontro marcado com uma amiga e enquanto ela não chega, vou aproveitar para adiantar o trabalho… - Mas assim, todo mundo vai saber que és professora e não vais arrumar namorado nunca! Se a sua cara é uma interrogação gigantesca lendo isso, imagina a minha escutando! Fato é que no Brasil, não importa se tu es competente ou não, dedicada ou não, se tens feito o teu trabalho e alcançado teus objetivos ou não. Se es professor, estás fadado aos olhares penalizados dos que, por terem mais renda, consideram que não tiveste força de vontade (e capacidade intelectual) para cursar outra faculdade, para exercer outra profissão.
  • 6. E eu não poderia viver a vida inteira nesta situação. E se eu não ambicionava, também nunca tive os atrativos necessários para „arrumar um bom marido que me desse uma condição financeira boa“. Eu precisava viver a minha vida. Com as condições que eu mesma conseguisse gerar, livre de pendências financeiras e principalmente, livre da necessidade de „arrumar um marido bom“. E, se eu queria viver a minha vida, eu também precisava tomar as rédeas dela. Enfretar o desafio de deixar o quentinho da família e me preparar para os ventos e tempestades. Foi o que eu fiz! Tudo era apenas uma brincadeira E foi crescendo, crescendo, me absorvendo Quando eu abri minha sala de estar virtual, no dia 01 de junho deste ano, não imaginei a repercussão que ela teria. Desde então, tenho contado um pouco do que tem sido a minha vida durante esses anos longe do quentinho da família e do Brasil. São histórias simples, na maioria engraçadas (ao menos para mim vendo a situação agora), mas que tem causado uma reação muito interessante dos leitores. A proposta da sala de estar é conversar com os leitores como se eles fossem visitas na minha sala de estar real. Eu conto uma história, eles perguntam, comentam, respondem… e, essa conversa (para minha surpresa) está ficando cada vez mais intensa. Tanto com as pessoas que já me conhecem e estão descobrindo uma parte da minha vida que elas não conheciam, com as que viveram essa história comigo quanto as que estão me conhecendo agora. São risos, gargalhadas, lembranças, protestos e muitas „conversas ao pé do ouvido“, aquelas meio em segredo, para ninguém ouvir… essas acontecem por e-mail, por mensagem privada nas redes sociais… pessoas que também estão precisando mudar o rumo das suas vidas. Pessoas descontentes, amordaçadas, amargas, entristecidas, sem esperanças. Pessoas que estão se sentindo como eu estava me sentindo quando resolvi mudar completamente o rumo da minha vida. Essas pessoas sabem que precisam tomar uma atitude, mas ficam esperando um sinal… todos sabemos que é assim. Todos passamos por conflitos internos. Temos medo. Medo de perder o que conquistamos (que mesmo sendo pouco, é nosso, é a materialização do nosso suor!). Medo de errar.
  • 7. Fernando Pesssoa termina o poema Mar Português com verso:
  • 8. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Eu sei bem que este não é o verso mais conhecido deste poema, mas é o que representa “quem quer passar além do Bojador”! E de repente eu me vi assim: completamente seu Quando eu abri minha sala de estar virtual, no dia 01 de junho deste ano, não imaginei a repercussão que ela teria. Não imaginei receber tantos e-mails de encorajamento, tantos e- mails de agradecimento e muito menos e-mails de editoras querendo publicar minha história. Vi a minha força amarrada no seu passo Sim, publicar um livro através de uma editora é amarrar sua força. E isso, isso eu não quero mais. Foram anos buscando a liberdade de caminhar com minhas próprias pernas, não vou parar agora. Vi que sem você não tem caminho, eu não me acho Contudo, conheço minhas limitações. Sei que vou precisar de um guia, de alguém que me indique o caminho. Vi um grande amor gritar dentro de mim Ontem conversei com Sílvia Schmidt escritora, produtora cultural, mulher, letrada, engajada social e politicamente. Ela foi uma das primeiras pessoas a me incentivar a escrever. Ela, assim como eu, há 15 anos, está agustiada com o futuro, se sentindo perdida, sem esperanças de conseguir cumprir sua missão de trabalhar dignamente pela educação e pela cultura do país. Conversamos durante muito tempo e ela, entre lágrimas de desesperança e de incertezas, aceitou ler e avaliar meu manuscrito. Quero que ela seja minha leitora porque sei que ela me dirá a direção (literária) a seguir. Confio plenamente no senso crítico e na capacidade intelectual dela. Além do que ela, como muitas outras pessoas estão precisando viver esta experiência comigo. Não será uma experiência transformadora: não tenho a intenção e muito menos a pretensão de transformar a vida de ninguém. Quero contar minha história (de preferência de uma forma compreensível e com um pouco de estilo) e se possível, levar um pouco de esperança e de coragem para quem almeja „passar além da dor“.
  • 9. Como eu sonhei um dia Está decidido: este livro será uma „produção independente“. Quero que ele seja avaliado por alguém que entende do assunto. Quero que ele revisado por um especialista. Quero que ele seja impresso com padrão de qualidade alemã. Quero enviá-los pessoalmente para cada um dos leitores. A esperança é um dom, que eu tenho em mim. (eu tenho sim). Eu sei que tem muito trabalho pela frente! Mas Sílvia Schmidt disse SIM e é com ela que eu quero levar este projeto adiante… Não vou terminar agora… francamente, preciso de mais tempo! Tempo para escrever, tempo para dar alma a esse projeto! Por isso, meu desafio agora não é o de contar esta história em 15 dias, é fazer esta história criar uma forma até que ela esteja pronta para alcançar o seu público. Se você quer ser o primeiro a saber das novidades e do desenvolvimento do projeto, basta enviar um e-mail para leila@adriano-ostoyke.com e eu vou deixar você informado sobre o desenvolvimento do projeto, ok? Agora você pode conhecer um pouquinho mais dessa história:
  • 10. Forrest Gump Espero que você esteja com paciência, pois falo sem parar e minhas histórias são longas. Fui até apelidada de Forrest Gump pela minha melhor amiga. Então, prepare-se pois vou começar do começo, ok? Eu nasci em Florianópolis (Floripa para os íntimos), numa família simples e muito unida, onde tudo é motivo para um café no estilo tête-à-tête, ou uma festa – tudo pedende do dia da semana! É uma felicidade e uma grande sorte nascer em uma família assim: a gente vive com a certeza de ter um porto-seguro e isso é realmente um privilégio! Contudo, essa felicidade não me era suficiente. Eu precisa de mais... tinha um descontentamento, uma angústia, „uma coisa ruim“ dentro de mim. E não, decididamente isso não me era o bastante. Não é choramingação, minha vida era boa (estava uma merda neste momento preciso: com o falecimento da minha mãe, a falta de dinheiro e a volta à adolescência do meu pai, era quase impossível ficar na nossa casa – neste período os cafés na casa da Tetei, a tia preferida da qual já falei no início, eram frequentes. Tão frequentes que as vezes tinha medo de encontrar a porta fechada um dia. Mas não, isso não aconteceu… ela ouviu todos as minhas reclamações e ajudou a destilar todo o veneno que eu espalhava por onde eu passava naquela época). No meio dessa tempestade que foi para mim a passagem entre 2000 e 2001, uma das minhas alunas do curso de metodologia do ensino de francês pediu „uns minutinhos“ do final da aula para passar uma mensagem para o grupo: (não me lembro exatamente, mas era mais ou menos assim) Procura-se estudante de francês para ajudar mãe de recém-nascido. Onde? Genebra Nem prestei muita atenção aos outros detalhes do anúncio, mas quando escutei a palavra Genebra, todos os meus sentidos se aguçaram em um só desejo: ser a escolhida para ir para Genebra, limpar o chão onde a mãe desse bebê pensasse em pisar! Como professora e sabendo que a mensagem era para os alunos, esperei pacientemente a resposta (negativa, para minha felicidade) de todos e me lancei: - Ninguém quer? Então eu quero! E peguei o bilhetinho escrito à mão com todos os detalhes do anúncio, número de telefone e endereço e-mail. Não penso ter demorado muito para tomar a atitude de escrever o e-mail que me levaria para fora daquela situação que me angustiava tanto.
  • 11. A resposta também foi rápida mas eu ainda precisava ser „a escolhida“ já que o mesmo anúncio tinha sido publicado em diferentes universidades e alianças francesas espalhadas pelo Brasil. Mas neste momento eu já tinha partido, não tinha mais volta! Minha alma, meu espírito, meu coração e tudo em mim que poderia se mover fora do plano físico já estava na Suíça. A notícia de que eu tinha sido „a escolhida“ (teve uma novela com esse nome? Está me parecendo coisa de novela brega agora) não me „caiu como uma luva“, caiu como um pedregal na minha cabeça: se meu espírito já saboreava um fondue na beira do Lac Léman, meu corpo precisava ser transportado! Se hoje viajar é quase uma necessidade das pessoas bem-sucessidas, curiosas e descoladas, há 15 anos era bem diferente! Principalmente para quem não tinha dinheiro, muitas dívidas (na época, todas vindas da mania de comprar roupa em 5 vezes sem entrada), dois empregos, uma família ainda desmoronada pela morte da matricarca e, (principalmente talvez) nascida em uma família onde ninguém nunca tinha saído do Brasil. E aqui, mais uma vez, a minha admiração e o meu respeito por todos eles: mesmo sem entender, mesmo sem aceitar, mesmo com medo, todos acharam um jeito de me apoiar! Como meu dinheiro nunca sobrava e que ninguém poderia me dar os quase 900 dólares da passagem, fizemos um café colonial para arrecadar o dinheiro da passagem! É sim, um café colonial! Minhas tias cuidaram de tudo: - Fizeram pães, bolos, café e uma enormidade de guloseimas - Venderam (e até compraram) entradas para o café que elas mesmas preparam - E como ainda tinha um sorteio entre os participantes, fizeram o brinde e o sorteio! O brinde foi uma tela pintada pela tia preferida e o sorteado foi um dos meus tios! (não falei que a família é unida??). Me lembro tão bem que ela queria refazer o sorteio pois estava parecendo „marmelada“ ao que o meu tio respondeu: Não, não, eu ganhei e é meu! Me dá o quadro aqui! Eu paguei pela entrada! (parece que estou vendo ele sentando, protestando e com as mãos levantadas esperando para receber o prêmio). Conseguimos uma boa parte do dinheiro da passagem com a renda gerada neste dia e sei muito bem que, se não fosse por este amor, eu talvez não estivesse aqui contando história. A contabilidade detalhada dessa start up que tem sido a minha vida eu não vou contar aqui… seria muito complicado. Mas tenho-a em detalhes na minha cabeça e meus credores no coração… Com uma mala cinza (presente teu, Zélia, lembras? Agora ela está estragada mas me acompanhou valentemente por mais de 10 anos… por hora, repousa quietinha aqui na minha
  • 12. cave), uma pequena bordeaux (se não me falha a memória, comprada no camelô), alguns míseros dólares guardados como um tesouro na pochete interna (daquelas de colocar na cintura, mas que fica por dentro da roupa, sabe?) bege da CVC, carregando um corpo retesado e exausto, embarquei no aeroporto Hecílio Luz (FLN), no dia 12 de junho de 2001.
  • 13. Que faîtes-vous à Genève Mademoiselle? - Que faîtes-vous à Genève Mademoiselle? - Je viens pour le cours d’été à l’université de Genève. Voici mon inscription. - Mais vous parlez très bien français, pas besoin de faire de cours d’été! - Merci Monsieur, mais vous savez, quand on a jamais été au pays, on ne croit pas bien parler une langue. - Vous avez appris le français à Genève? - Non, justement, je suis ici pour me rassurer de bien parler français. - Mais vous parlez très bien Français! Vous avez appris le français à Genève? - Mais non, je vous ai dit, je suis ici pour me rassurer de bien parler français. C’est ma première fois en Europe. - Mais vous parlez très bien Français! Vous avez appris le français à Genève? E a pergunta „Mais vous parlez très bien Français! Vous avez appris le français à Genève?“ me foi repetiva muitas vezes... seguida sempre da mesma resposta. Depois de alguns minutos repetindo esta resposta ridídula mas verdadeira, fui convidada conversar com outro Monsieur… com minhas malinhas em mãos, acompanhada por um bonitão da polícia internacional em posse do meu passaporte, fui acompanhada até o „postinho“ policial (a imigração). Fui amigavelmente convidada sentar e „pacienter“. Eu foi isso que fiz, me sentei e esperei… O único medo que eu realmente tinha? O de eles me pedirem cartões de crédito e algum tipo comprovante de renda… pois era tudo o que eu não tinha! Com os miseráveis dólares que eu tinha guardadinhos na pochete eles me mandiram para casa no próximo vôo… Contudo, todo o resto estava ok: passaporte, endereço da família que ia me hospedar, inscrição no curso de verão da Universidade de Genebra e até meu contrato com a UFSC eu tinha na bolsa. Eles não tinham o que duvidar de mim… só uma coisa estaria completamente errada nos olhos do governo Suiço: eu não tinha dinheiro para passar o verão linda e formosa aperfeiçoando o meu francês na Universidade de Genebra (aquela mesma onde o Saussure deu aulas, sabe? – aliás, dá pra visitar a sala dele!). Por isso, fiz a minha melhor cara de rica e esperei pelo próximo interrogatório! Não sei quanto tempo esperei, mas, para mim, foram séculos! - Que faîtes-vous à Genève Mademoiselle? (eu, com cara de rica:) - Je viens pour le cours d’été à l’université de Genève. Vous voyez bien mon inscription.
  • 14. (sim, pois ele estava com todos os papeis!). - Et bien, bon séjour! - Merci, Monsieur! Agora, era achar minha anja guardiã… e talvez nada até agora tenha sido tão fácil! Ela já estava anciosa me esperando, com a mão separando a testa da porta de vidro do aeroporto, me procurando! Me viu e já me lançou um sorriso largo de boas vindas! Me abraçou e logo me perguntou: - Não pegasse um carrinho? - Não… Na verdade, nem vi carrinhos de malas pelo caminho, tamanho era o stress daquele momento. - Vamos, vamos, a Isabelle já está na maternidade! Como assim? Eu não teria duas semanas para me ambientar em Genebra antes de o bebê nascer? Não, realmente não tive semanas, mas tive alguns dias é verdade… Alguns dias para aceitar a completa mudança de status social: De professora substituta de uma universidade federal (ganhando tão mal que precisa de um outro emprego para poder ajudar a pagar as contas da casa, é verdade, mas com um certo orgulho de ser professora na mesma universidade em que tinha me formado há menos de 2 anos) à emprega doméstica em pouquíssimo tempo… Mas tudo bem, na minha cabeça estava tudo certo: iria passar os meses de junho, julho e agosto (aproveitando as férias de julho na universidade – foi uma trabalheira conseguir organizar tudo com a universidade para conseguir fazer isso… passei a viagem e algumas noites em Genebra corrigindo trabalhos e fechando notas) na Europa, aproveitaria para dar uma passadinha em Paris e voltava tranquilamente para minha vidinha de M. em Floripa. Apesar do choque cultural (é tudo muito diferente!) e da queda repentina da nuvenzinha que eu pintava todos os dias para tentar levar uma vida mais legalzinha, percebi muito rapidamente que: preferiria ser empregada doméstica na Suíça para sempre, à voltar para a sala de aula no Brasil. Contudo, eu tinha um compromisso e uma passagem de volta marcada… além disso, os e- mails que eu conseguia trocar com minha família sempre me faziam lembrar do laço agri-doce que nos unia: „ oi irmã, tudo bem? aqui está tudo normal, recebi a sua carta e até chorei :( na mesma hora escrevi uma pra ti. Vê se compra um perfuminho aí pra mim. O NATAN está aqui ele mesmo escreveu o nome dele,sempre pergunta porque você esta demorando tanto. As coisas por aqui estão na mesma esperando melhoras.“
  • 15. BEIJOS E SAUDADES Andreza, Natan Kamila e Tetei :) Ói eu aqui traveis, só para dizer que só depois de te escrever e reclamar por noticias é que vi teu recadinho. se estas feliz, nós tambem ficamos, quanto a saudade, teremos tempo para recuperar essa distancia e alem do mais não se vai para a Suiça todos os dias, tens mais é que aproveitar ao máximo. o barril de carvalho está transbordando de saudade, mas nós somos fortes. beijos, te amamos muito Vania Minhas primeiras impressões de Genebra? É tudo muito caro, principalmente a comida! A gente se espanta até com o preço de um sanduiche de supermercado; Minhas roupas, meus sapatos e meu comportamento são completamente inadequados. Sempre me achei „fina“ e com boas maneiras, vejo que sou uma verdadeira grosseirona. Aqui, qualquer pessoa fala no mínimo 4 línguas, não necessariamente perfeitamente, mas aprendem alemão, francês, italiano, romanche (as línguas oficiais) e inglês, claro. Qualquer pessoa, trabalhando ou não, tem acesso a tudo o que precisa para viver bem: saúde, educação pública de alto nível, transportes em comum, vida cultural (tem muita atividade gratuita também) Usar os transportem em comum, a bicicleta ou o patinete (era moda entre os engravatados na época, lembro que fiquei encantada com isso: homens lindos, perfeitamente vestidos, de mochila e patinete indo para o trabalho) não significa „não ter condições financeiras de ter um carro“ significa „consciência“ ecológica, física e mental. As ruas são limpas e jogar lixo no chão é mais do que um crime, é uma vergonha! Os homens não te „comem“ com os olhos quando passas pelas ruas, ninguém te chama de „gostosa“ ou te diz „ ahh se eu te pego“ (descobri com o tempo que eu adoro isso!) Aqui, a máxima „achado não é roubado“ não existe! Esqueci minha bolsa em um quiosque na estação de trem uma vez. Tinha ido comprar cigarro antes de pegar o trem para ir trabalhar. Peguei o cigarro e na pressa (11:43 é 11:43 e não tem desculpa, o trem sai e te deixa!) esqueci a bolsa (com carteira, celular, documentos, chave, tudo!) no balcão do quiosque. Esbaforida para entrar no trem, fui pegar a carteira para poder mostrar meu cartão de transporte… cade a bolsa? Voltei e ela estava lá! Exatamente no mesmo lugar! Nem a balconista, nem nenhum cliente tocou nela!
  • 16. O que aprendi logo de cara? Trabalhar é bonito, é uma honra! Não importa o tipo de trabalho. Empregado não faz „favorzinho“ para patrão. Ele cumpre um tarefa e é remunerado para isso. Economizar não é vergonha! Por que sair para comer todos os dias naquele restaurante nojento do lado do escritório só porque é „baratinho, limpinho e prático“? Uma marmita, com o resto do jantar, uma salada ou um sanduiche feito em casa é muito mais saudável, muito mais gostoso e tu sabes exatamente o que tem dentro dela. É mais barato e não engorda! Jornal, livro e revista é para ser lido! Então, por que jogar no lixo se outra pessoa talvez queira ler? Não é porque ninguém controla que você pode fazer algo errado! É justamente o contrário: se você não fizer nada de errado, não precisá ser controlado. Todo mundo já vi uno cimena (ou em viagens, claro) aquelas máquinas de jornal onde se coloca uma moeda para pegar o jornal, não é mesmo? Geralmente, você só vai poder pegar o jornal depois de pagar por ele. Na Suiça, você pode pegar primeiro o jornal e depois pagar (ou não!). E por que? Porque todo mundo paga! Ter bunda grande é feio. Usar roupas muito justas / curtas é vulgar. Sapatos de salto muito altos não são legais. Maquiagem é para todos os dias e não para „sair“. Muita maquiagem é vulgar. Ou seja, eu era completamente inadequada!
  • 17. O encontro Imagine este auditório lotado… são 642 lugares e de julho à setembro ele reúne estudantes de várias partes do mundo para os testes de proficiência de língua francesa. Eu cheguei cedo, peguei um lugarzinho bom, fiquei apreciando o movimento e me concentrando em ativar todos os meus conhecimentos na língua de Molière… sendo eu mesma professora de francês, seria muito feio não ficar entre os top candidatos, n’est-ce pas? Foi em um desses momentos de „apreciação do movimento“ que era grande, pois o teste ia começar em alguns minutos e claro, quem não estivesse sentadinho, bonitinho, com todos os seus pertences guardados, não receberia o teste (que era enorme!) que o vi pela primeira vez. Camisa de mangas curtas em azul e branco desleichadamente abotoada por fora da bermuda cargo bege, sandálias de couro, olhos azuis que iluminavam o caminho que atravessava, um sorriso que sorri em sintonia perfeita com o lampejar dos olhos. Eu me disse em segredo: é ele! Não saberia explicar de onde me veio esta certeza, tenho mania de acreditar que vou conseguir o que quero – principalmente nas relações amorosas, mas também sei que nem sempre consigo (óbvio!). Contudo eu sabia: era ele! Ele seria o meu homem! Ridículo para quem estava com a passagem de volta marcada para setembro do mesmo ano. Ridículo se pensarmos que ele nem tinha me visto!
  • 18. Não, ele não sentou do meu lado no para fazer o teste… (o que foi uma pena!) E não, eu não fui diretamente para o último nível do curso que reunia os top entre os top. Passei horas procurando meu nome nas listas afichadas no mural (tipo de vestibular antes de tudo estar na internet, sabe?) pois claro, acreditava estar entre os „bons“. Fiquei até com raiva do Monsieur que me disse que eu não precisava fazer o curso… estava provado: eu não era top! O nível avançado do curso era divido em três grupos: - Os top do top - Os top - Aspirantes a top O meu desempenho no teste mostrou que eu não passava de uma „aspirante a top“, o que me deixou bem decepcionada comigo mesma… mas o que fazer? Agora era achar a sala e tentar virar top! Claro que não entrei na sala sem olhar para todos os lados, procurando, procurando na esperança de que os olhos azuis me enchergassem! Sem chance... impossível achá-lo nos corredores da universidade! Simplesmente porque ele já estava sentadinho na sala onde eu acabava de entrar! Foi uma batição de coração sem fim… e agora? Dou uma de louca e me sento do lado dele? Não… Sim… Não.. Bom, o não falou mais alto e me sentei bem na frente. Para dar uma de boa aluna? Claro que não! Para poder me virar e olhar pra ele na hora da apresentação! Na primeira aula de qualquer curso de língua todo mundo se apresenta… eu tinha a possibilidade de me fazer de „exótica“ dizendo que eu vinha de uma ilha no sul do Brasil (o que é a pura verdade e que até hoje causa um efeito tremendo nas pessoas!). Em seguida, poderia me virar para olhar para cada um dos alunos que estavam se apresentando, certo? „Bem educada e interessada em conhecer outras pessoas e culturas“ também deveria contar entre as minhas qualidades… Apesar de eu realmente me interessar por outras culturas, o que me interessava mesmo era que ele me visse, claro! Para cada apresentação nova eu dava um sorrisinho e olhava em direção ao loirinho de olhos brilhantes… Sabemos todos que é impossível não retribuir um ohar insistente e uma hora ele me viu! Sorte dele, eu estava com o sorriso „dando laço“. Continuei no mesmo joguinho e, sorte minha, ele entrou no jogo!
  • 19. Major do exército alemão, 34 anos, doutor em direito internacional, membro das forças de paz da ONU, aproveitando o tempo entre uma missão e outra para melhorar seu francês… Meu! Meu! Meu! Pensei… Na pausa já foi diferente… como falei o „morar em uma ilha no sul do Brasil“ causa muito efeito! Acho que eles ficam imaginando a gente dançando pelado na praia, sabe? Adoro a parte da conversa em que posso dizer que temos uma das melhores universidades do país bem no centro desta ilha que por sua vez, é a capital do estado. Mas eu não era a única interessada no soldadinho… e as que falavam alemão tinham uma grande vantagem sobre mim… Em pouco tempo formamos um grupo muito ativo, cosmopolita e querendo aproveitar ao máximo o verão em Genebra! Quem conhece os verões europeus sabe que as festas, festivais e feiras de rua são uma constante e logo chegou o dia da Love Parade, um acontecimento! Vamos, vamos, todo mundo estaria lá! Isso mesmo, todo mundo! No ponto de encontro estávamos quase todos exatamente na hora marcada (aqui provavelmente todos já tinham seus relógios suíços no pulso). Não, Marcus (o soldadinho se chama Marcus) não estava… com o coração apertado, mas não querendo me separar do grupo, fui acompanhar a „parade“ (o que era completamente novo para mim). Entre indas e vindas para pegar o que quer que fosse, mas passear e tentar achar quem ainda não estava presente, encontrei-o alegre e sorridente como sempre. Mas quem era aquela mulher (também sorridente) que não me disse uma palavra se quer mas que não me pareceu incomodada com a minha presença? Não lembrava mais o nome dela (acho que nem escutei mesmo!) mas uma coisa era certa: na segunda-feira iria achar um jeito de saber quem era. E sim, foi bem isso! Aquela mulher feliz e dona de si era a namorada dele! Isso diminuia ainda mais as minhas chances… não bastasse a suiça-alemã e a alemã lindíssimas da nossa turma que também pareciam muito interessadas, ele tinha „dona“ e ela parecia estar certa do seu reinado. Mas o verão continuou e a dona não apareceu mais em Genebra… agora era ele quem se deslocava para passar os finais de semana em casa e na mesma cidade onde a namorada morava. Menos neste final de semana… tinha mais uma festa na cidade e mais uma vez todos estariam presentes! Dessa vez, ele também estava no ponto de encontro, na hora marcada, olhinhos brilhando em perfeita sintonia com o sorriso… Era a minha chance… nossos (meus) dias estavam contados… ele deixaria definitivamente Genebra no dia 26 de agosto pois partiria para Saraievo já nos primeiros dias de setembro. Ele ficaria um ano inteiro em Saraievo. Eu partiria também em setembro, mas de volta para casa.
  • 20. A festa era enorme e ocupou vários lugares da cidade… cada espaço com música ao vivo, barraquinhas de bebida e comida… andamos por todos os lugares, vimos a noite cair (no verão o ceu só escuresce lá pelas 10 horas da noite o que ainda me faz perder um pouco a noção do tempo). O grupo foi se dispersando aos poucos e agora éramos só nois dois dançando na frente de um dos palcos… alguém já dançou com um alemão? É comum eles fazerem curso de dança e todos eles dançam o tal do discofox, veja o vídeo para ter uma ideia da loucura: https://www.youtube.com/watch?v=lGTbP72hxdQ olha que eu achava que sabia dançar legalzinho, mas o tal do discofox me embaralha as pernas até hoje! Numa dessas „figuras“ (como eles chamam os passos da dança) ele me levantou de modo que nossos narizes se uniram. Não foi suficiente, ele me rodopiou assim, de nariz colado comigo. Como eu tinha a vantagem de estar com o nariz em cima do dele, o rodopio foi o tempo de decidir: nem que ele me large repentinamente de susto e eu caia no chão, mas na hora que ele parar de rodar eu vou acabar com essa brincadeira boba! Meu tempo estava acabando, eu precisava saber se poderia viver ao menos um pedaço da história que eu já tinha feito na minha cabeça! Fixei meus olhos dos dele, depois fechei os meus e como quem parte para „um tudo ou nada“ com a esperança de começar o resto da sua vida, beijei-o. Beijei-o, amei-o com todas as minhas forças, intensa e repetidamente até o dia 26 de agosto de 2001. Dia em que ele voltou para sua cidade natal para se preparar para partir por um ano em missão de paz em Saraievo. Ele ainda teria alguns dias em Freiburg na Alemanha, não longe de Genebra (na verdade, nada é longe de Genebra), mas precisaria também passar uns dias com a namorada… afinal, ela ficaria sem o namorado durante tanto tempo. Se despediu de mim com a frase (mais ou menos assim): „existem casos descomplicados, sem esperança e existem casos muito complicados, com esperança“ e afirmou: eu tenho esperança! Em seguida, embarcou no trem que o levaria para longe de mim.
  • 21. No 11 de setembro de 2001. Onde você estava? Eu sempre tenho um sorrisinho nos lábios quando ouço esta pergunta… eu, eu estava em Paris!! O caso era complicado. Era muito complicado, mas eu estava decidida a ter esperança! Minha passagem tinha validade de um ano e a data da volta já tinha sido remarcada. Agora, precisava achar um jeito de ficar! E o único jeito, era achar uma outra família precisando de ajuda! Minhas pesquisas de deram rapidinho uma direção: Paris! Ainda hoje fico impressionada com a facilidade que é arrumar um „emprego“ de nounou. E francamente, me impressiona ainda mais que as famílias recebam nas suas casas alguém que eles acabaram de conhecer, dando um lugar para morar (na maioria das vezes, um quarto dentro da sua própria casa), uma cópia da chave e os filhos! Mas, minha primeira estadia em Paris não foi muito bem-sucessida… de um dia para o outro minha família não precisava mais de mim, pode? E quando digo de um dia para o outro é que não fiquei nem uma semana nesta casa! Contudo, e isso é outra coisa que me impressiona por aqui, eles não me colocaram na rua por não precisar de mim… não, não, eles me ajudaram a arrumar outro trabalho, conversaram com a nova família para me indicar como alguém de confiança, pagaram minha passagem (a nova família morava na Bélgica) e ainda me levaram na estação de trem! Devem ter feito um „ufa“ ao me ver entrando no trem… mas não me abandoram! E o pai ainda me disse (me dando uns Francos para fazer um lanchinho no trem): Para QUALQUER coisa que precisares, nós estaremos aqui! Agora era achar a próxima família e tentar convencê-la de ficar comigo, certo? Eu, novamente, tinha esperança: eles já tinham tido (e amado) uma outra nounou brasileira… esqueci o nome dela agora, mas acho que era Pricila, uma coisa assim… Pai: chefe de cozinha, Mãe: administradora de hotel Julien: 7 anos, gostava de comer meleca do nariz e ninguém via isso como um problema pois „era bom para o paladar“ (em uma família onde todos os homens eram chefes de cozinha, ter um paladar ruim era uma dificiência!) – mas não, ele não se tornou chefe de cozinha e sim piloto de avião! Julie: 4 anos, lindinha e choroninha. Ainda naquela fase que querer estar grudada na mãe, sabe? Todos reunidos os pais trabalhando e os filhos brincando em um hotel de sonhos… perfeitamente decorado, uma cozinha ambicionando uma estrela no Michelin e um serviço de alto nível. Para ajudar, a cidade Bouillon, é um vale: de um lado, o castelo de Godefroy de Bouillon (de onde saiu a primeira cruzada) do outro o hotel Panorama, no meio a cidade que é cortada por um riozinho. Euzinha? Ganhei um quarto no hotel, com vista para o castelo!
  • 22. O que eu via da minha janela era mais ou menos isso: http://www.panoramahotel.be/fr/la-terrasse Meus dois primeiros atos na cidade? Enviar um e-mail à Genebra indicando meu novo endereço e pedindo que meu correio fosse redirecionado… meu soldadinho escrevia cartas! E isso, quase que diariamente! E assinava: „ton (teu) Marcus“ o que me enchia ainda mais de esperanças… E uma carta à Saraievo dizendo onde e até quando eu ficava! (em princípico, até dezembro de 2001). Quarta-feira, 03 de outubro: - Leila! Téléphone!! Era ele! Estaria na Alemanha em duas semanas, queria me encontrar, estava livre! Eu demorei para entender em qual cidade eu deveria estar para encontrar com ele… pedi para soletrar: M-A-N-N-H-E-I-M. A carta, explicando todos os detalhes do encontro não demorou para chegar: Nos encontramos em Mannheim, hotel X, não sei a que horas chego, será tarde, me espera no hotel, quarto reservado em nosso nome. Sair de Bouillon para chegar em qualquer lugar é complicado! Ainda mais para quem ainda não tinha muita experiência com trens…. Mas eu não tinha escolha, eu precisa ir! Para vocês terem uma ideia do trajeto: Libramont – Mannheim (Bouillon não tem estação de trem, é preciso chegar primeiro em outra cidade) E em 2001 acho que nem tinha, ao menos eu não conhecia o Google Maps. Depois de horas trocando de trens com atrasos cheguei em Mannheim depois das 19h. Na estação de trem, somente os vendendores de comida e os funcionários da estação ainda estavam trabalhando e eu não tinha nem um Deutsche Mark! (a mundança para a moeda em comum, o Euro só aconteceu em janeiro de 2002). Eu tinha Franco Belga, Franco Francês e até Dolar (alguns que tinham vindo comigo do Brasil) mas eles não me adiantavam de nada! Sem falar nenhuma palavra de alemão, com um inglês macarrônico e um francês na ponta da língua que ninguém entendia, pedi no guichê da estação para usar o telefone (eu não tinha mais celular nesta época… tive um alaranjado emprestado na Suíça, mas agora já tinha devolvido). - Estou na estação de trem, onde estás? - Nosso vôo atrasou, não sei quando vou chegar. Vai para o hotel e me espera lá. - Mas onde é o hotel? Como chegar até lá? - Tens que pegar o transporte, ou um taxi. Fala o nome do hotel para o taxista que ele te leva.
  • 23. Mas como?? Como?? Sem falar alemão e principalmente, sem dinheiro alemão? Depois de indas e vindas pela estação e de perguntar milhares de vezes em francês onde acharia uma casa de câmbio ou se alguém aceitava dolar, franco e coisa e tal, o moço do guichê me eu um ticket de transporte público e me disse para eu sair da estação pegar o trenzinho tal (me escreveu o número) e ir de uma vez (acho que ele não me aguentava mais!). Eu não entendi uma palavra se quer, mas o contexto… e fui! Ele realmente chegou muito tarde e me deixou no outro dia cedinho com uma nova charada: nos encontramos na „torre de água“, às 12h. Deixou escrito no bloquinho do hotel, em francês. O que não ajudava em absolutamente nada pois os mapas da cidade estavam todos em alemão e eu não tinha a menor ideia de que a „Tour d’eau“ se chamava Wasserturm! Cada encontro e cada despedida eram grandes desafios… cada encontro uma charada que eu precisa desvendar, um mapa do tesouro. Cada despedida, um pedaço de mim que ficava. Em Bouillon a vida seguia e uma vez por semana eu passava roupa: as minhas e as das crianças escutando a fita K7 que tinha recebido pelo correio, diretamente de Saraievo. Entre as que eu sempre voltava para escutar mais uma vez: Joe Cocker - Unchain My Heart Johnny Hallyday - Que Je T'aime (essa eu colocava mais alto e cantava junto igual a uma louca!) CHARLES AZNAVOUR Non Je n'ai rien oublié Ele veio a Bouillon. Eu quase fui passar o natal em Saraievo (e ainda bem que a Bósnia não me deu o visto, pois o vôo que eu tinha previsto pegar teve problemas na aterrizagem e quase todos os passageiros ficaram feridos e passaram o natal no hospital). Viajei pela Belgica e pela França: nesta época, 2 amigas da faculdade estavam morando em Paris. Como o que ganhávamos era somente um „argent de poche“ (tipo mesada que os pais dão para os filhos) nosso dinheiro era usado como mesada: para a diversão! Marcávamos encontros por e-mail e logo estávamos juntas descobrindo um lugar novo! Éramos experts em passagem de trem com desconto, hotel barato e atividades gratuitas! Um bom exemplo foi este aqui em Reims:
  • 24. Esta é a cave da Veuve Clicquot. A visita guiada é gratuita e no final dela, o guia abre uma garrafa de champagne e serve uma bandeija de petit fours… luxo puro para nós três naquela época! Mas 2002 chegou, o Euro chegou e demos adeus à infinidade de moedas que tínhamos guardadas e reservadas para passar a fronteira. Minha passagem era válida somente até maio e de janeiro a maio foi uma semana! Entre mapas do terouso, as crianças e os encontros entre amigas, também comecei a planejar minha volta. Para o Brasil? Não! Para a Europa! Eu estava envolvida demais no meu negócio para desistir dele. No amor como nos negócios é preciso ter coragem para tomar decisões. É preciso ir até o fim mesmo que para isso tenhamos que nos privar, mesmo que para isso seja preciso enfrentar nossos medos, atravessar tempestades. Desistir nunca tinha sido o meu forte e eu sempre acreditei (e continuo acreditando) que um amor deve ser vivido até o último suspiro. Comecei então a procurar pelas universidades: assim teria uma „boa desculpa“ para voltar. Se eu queria viver esta história eu também queria escrevê-la e não seria trabalhando de babá numa cidadezinha minúscula da Belgica. Era hora de expandir o meu negócio! Sem que eu tivesse uma resposta sobre a possibilidade real de voltar para a Europa, deixei Bouillon na segunda de pentecostes, o ensolarado 20 maio de 2002. Nathalie (a mãe das crianças) abriu uma garrafa de champagne para brindarmos juntos esta nova etapa. Marcus, eu e ela brindamos e nos despedimos com abraços apertados que simbolizavam a verdadeira relação de carinho e amizade que tínhamos contruido durante estes meses. As crianças tinham ido para a casa da avó para evitar a despedida e o pai não apareceu.
  • 25. Partimos em direção à Heidelberg na Alemanha, sempre com a (in)segurança do wiedersehen. O trem que me levou para Genebra (de onde saiu meu vôo de volta para Floripa), partiu na manhã do dia 26. Desta vez, era ele quem ficara na estação. Desta vez, era eu quem partia. Certa de que a única coisa que eu realmente queria era ficar, aqui ou seja lá onde fosse, mas com ele. Sem a menor ideia de poder realmente voltar, de quando poderia voltar e de se meu negócio teria um futuro, solucei alto durante toda a viagem entre Heidelberg e Mannheim (onde precisava trocar de trem, ainda sem falar alemão e com duas malas pesadíssimas!). Engoli meu choro mais uma vez (como tinha aprendido desde criança sob o olhar tenebroso do meu pai que odenava em alto e bom tom a cada ameaça de uma lágrima: „engole o choro!“ e como tenho feito, muitas vezes na vida), peguei minhas malas e troquei de trem.
  • 26. 11 de setembro de 2002 Do horror do 11 de setembro de 2001, todos nos lembranos. Mas a mesma data, um ano depois já é mais difícil de lembrar, não é mesmo? Eu me lembro bem: no 11 de setembro de 2002 eu estava novamente me despedindo do Brasil, determinada a só voltar quando eu pudesse comprar minha passagem de ida-e-volta na Europa. Se morar no Brasil tinha sido difícil para mim durante os quase 25 anos que eu tinha vivido no país, agora com o coração deixado na Europa, era impossível! Não só porque eu tinha um amor a ser amado, mas porque eu era outra e o país era o mesmo. Mesmo tendo levado o dinheiro da passagem de volta na bagagem (na tal pochete… ela me acampanhou durante muito tempo) ele não resistiu às dificuldades financeiras que continuavam assolando minha família na época: mal abri as malas e fui „convidada“ a assumir minha parte das contas que eram dividas por 3. É muito triste ver como a falta de dinheiro torna as relações mais estreitas e doces (como a que tenho com meu pai e minha irmã), ásperas e rudes. Não me senti bem-vinda de volta como a ovelha perdida que volta para o rebanho. Eu precisa muito mais do que simplesmente meu quarto e minha cama. Meu quarto me foi devolvido como um favor. E de todo o resto que eu precisava, não houve sinal. Existia uma mágoa profunda entre nós e um verdadeiro abismo nos separava. Nossa convivência não era nem saudável… as brigas eram constantes e o „tu foste, eu fiquei aqui“ estava em todas as discussões. Desta vez, também não teve café e ninguém estava achando legal minha obsessão de voltar para a Europa. - Por que tu arrumas um emprego aqui? Daí tu podes visitar o Marcus quando quiseres. Uma vez tu vais, outra vez ele vem te ver. (??) - Mas tu vais morar com ele? - Mas se tu vais morar em Paris e ele na Alemanha, de qualquer forma vocês não vão ficar juntos! - Arruma um emprego bom aqui, economiza dinheiro e depois tu vais… Eram tantas as sugestões, tantas as perguntas e cada uma delas me deixava mais segura: eu não volto nunca mais! Se é verdade que em 2001 eu tinha ido „para voltar“, agora eu queria ir „para ficar“! Durante os três meses que fiquei no Brasil, eu não arrumei um emprego, eu gastei toda a reserva de dinheiro que eu tinha, mas eu me inscrevi em um programa de Au Pair na França: o que me garantia um lugar para morar, comida, carte orange (carte de transporte) e míseros
  • 27. 200 euros por mês. Mas eu precisava de um visto e precisava de algum tipo de segurança para poder morar na França e esta era a melhor opção. Desta vez não teve café e quem se comoveu com minha obsessão foi uma grande amiga dos tempos de faculdade. Éramos muito diferentes: ela loira, magra, com cara de princesa e boa situação financeira. Eu, bom, vocês estão vendo as fotos por aí… Ela conseguiu convencer o noivo (única pessoa apaixonada o suficiente para aceitar este tipo de proposta) a usar seu cartão de crédito (pois o cartão dela não tinha limite suficiente) para parcelar minha passagem. Eu enviaria mensalmente o valor das parcelas. De onde eu tirava esse dinheiro? As vezes eu também me pergunto, sabe? Mas em princípio, dos 200 euros que ganhava por mês! Achei minha „planilha“: Esse foi o sistema que encontrei para conseguir cumprir meu compromisso. Para economizar as taxas de envio eu mandava cartas semanais recheadas de euros para ela… Pagar esta passagem foi um verdadeiro sacrifício para mim. Eu simplesmente nunca tinha dinheiro para nada! Não tinha dinheiro, mas tinha uma obsessão, um amor e uma amiga!
  • 28. Se meu amor demorou para vir me encontrar em Paris, minha amiga estava sempre comigo! E todas as sexta-feiras tínhamos um encontro marcado! Juntávamos nosso dinheirinho (o dela também não era muito) e passávamos na Galeries Gourmondes comprávamos o que tinha de mais baratinho, inclusive um Pol Rémy (espumante mais barato do supermercado e da França, talvez) e nos reuníamos nos 14 metros quadrados em que ela morava para assistir Sex and the City! Era o nosso momento „gourmet“ da semana… Sonhávamos em poder consumir o que elas consumiam e programávamos as atividades (gratuitas) para o final de semana. E sempre tínhamos atividades!! Fizemos o tour dos museus gratuitos (são muitos em Paris), esperávamos o primeiro domingo do mês para visitar dos pagos, íamos regularmente a concertos nas igrejas e até em bares! Alguns deles eram gratuitos com uma taxa de consumo de 1 cerveja… passávamos horas deliciando um copo de cerveja! As fotos também eram um pouco reguladas em 2002: as máquinas não eram digitais e a revelação um absurdo de caro. Esta anotação (confesso que tem sido bastante doloroso para mim reler minhas anotações antigas) mostra bem como foram estes primeiros meses em Paris:
  • 29. Em Strasbourg, esperando o trem que me levaria de volta para „a dura cidade dos meus sonhos“ escrevi para minha amiga e na época, ainda credora da passagem: Amiga Tina, 2002 está no fim… esta segunda metade do ano foi (está sendo) bem difícil para mim. A grana curta, as dívidas grandes. As vezes me pergunto se eu mereço mesmo estar aqui já que estou devendo tanto dinheiro. Meu trabalho aqui não é nada legal. Já te disse isso, neh? Hoje tive que pedir dinheiro pro Marcus e isso me deixa super mal. Hoje também decidi que vou procurar um outro emprego. Esse negócio de ficar só reclamando e não fazer nada pra me ajudar não adianta muito, não é? A vida, as coisas em geral são muito caras em Paris e por isso não consigo guardar dinheiro. Bom, essas são algumas das resoluções para o ano novo. Esperanças não faltam… falta um pouco mais de ânimo para enfrentar mais uma maratona. Mas é a maratona da vida, não é? Estamos sempre travando batalhas! Sempre correndo para alcançar alguma coisa. Eu preciso me estabelecer na Europa e não posso ficar de braços cruzados. Agora estou esperando o trem para voltar para Paris. Marcus me deixou aqui há mais ou menos meia hora. Ele ainda terá 5 horas de viagem até Haale, no leste da Alemanha e eu outras 4 horas até Paris. Estamos juntos desde o dia 24. O Natal e os dias que sucederam foram muito bons. Ele tem um jeito muito especial de ser especial… Para esse ano novo eu queria alguma coisa a mais. Espero poder alcançar. Mais meios de viver bem, uma estabilidade maior e um compromisso maior do meu amor. Não sei como terminou esta carta, mas com certeza ela foi recheada com alguns euros… Ahh, e por que não passamos o réveillon juntos? Também foi minha pergunta na época… não me lembro mais a resposta que tive, mas o verdadeiro motivo eu só fui descobrir um bom tempo depois!
  • 30. O crime do Sr. Lange 2003 eu decididamente não remoer: descobri ter sido traída desde a minha estadia no Brasil (por isso, não passamos o réveillon juntos… ele dividiu direitinho: natal com uma, réveillon com a outra), briguei, chorei, me descabelei e perdoei. Virada de 2003 para 2004, pedi-o em casamento (a louca!). A reposta? Isso quem deve fazer é o homem. Mas, eu já tinha me liberado das cartinhas recheadas, estava terminando meu curso de especialização na Sorbonne e tinha um emprego novo, que me garantia uma graninha legal e mais conforto. Já não era mais nounou e sim „aide dévoirs“, ou seja, um tipo de professora particular que faz os deveres com as crianças. E principalmente, não éramos mais somente duas, éramos muitos! Graças à Simone e a sua vontade de fazer amigos, já éramos um grupo badalando nas ruas de Paris (não estamos todos na foto, mas dá para ter uma ideia): Em 2004, passei meu primeiro verão em Paris… Marcus tinha ido em missão para Kabul no início do mês de julho e em agosto ainda não tinha dado sinal de vida. Mas agora eu tinha amigos e Paris no verão é uma festa sem fim! Não vou escrever muito hoje, mas achei estes e-mails que foram enviados exatamente em agosto de 2004: Email para Si (Simone estava de férias no Brasil e precisava receber notícias, certo ?) Subject : Notícias para Si Date : 16/08/04
  • 31. Tem um Paris que a gente nem sempre vê... falta de tempo? Falta de organização? Comodismo? Isso mesmo, pode ser comodismo… a rotina se instala em todos os lugares e, quando a gente vê, já estamos com aqueles velhos hábitos que trazemos desde sempre! È que depois de algum tempo, nada mais é tão novidade, já não procuramos desesperadamente amigos e companhia para o final de semana… no máximo, tentamos saber onde vamos nos encontrar, o que vamos comer e quais DVDs assistiremos! A preocupação de não gastar muito, o último metro, o papel importante que se perdeu no espaço mínimo de um quarto de estudante, a tese, o namorado, os pais que voltaram para casa, a viagem pro Brasil, e isso e aquilo e aquele outro... tomam uma importância quase que vital! Neste verão, o que estamos fazendo? E a casa que íamos alugar pra passar uns dias juntos? Dividido por quase dez não ia ser tão caro assim... mas o empreguinho de verão não rolou, o trem custa caro, as viagens de última hora foram muitas, os presentes para família no Brasil custaram caro, os planos mudaram muito depressa... Assim sendo, somos uma meia dúzia por aqui! O que fazer? O que fazer pra não morrer de calor? Comprar um ventilador? Ajuda, mas não é suficiente ... neste final de semana mais gente se mandou daqui, os que ficam se consolam com as lembranças do ano passado... lembra daquela festa? E com a idéia de passar um verão em Paris... tinha que acontecer um dia, não é? Então, porque não aproveitar a programação cultural da cidade luz? Afinal, se aqui não tem praia, tem parque, museu e até cinema de graça com telão gonflável! Sábado a noite lá estávamos nós, éramos três... Place de Vosges, telão, música de fundo, cervejinha, biscoitinhos, canga espalhada sobre a grama, esperando o filme: “o crime do senhor Lange”, dirigido pelo Renoir, com diálogos de Brel. No final, éramos cinco! Os meninos da frente, talvez um pouco irritados com o nosso falatório, resolveram entrar no papo... Papo daqui, papo dali, gatinho, gatinho, troca de telefones e a fatídica frase: eu preciso fazer pipi! Quem tem tempo pra pipi, tem tempo pra mais um cigarrinho, um café ou uma cervejinha... de qualquer forma, não vamos voltar pra casa, vamos dormir no Jean... Uma mensagem que chega: - traz brega! É o sinal, Jean Pierre nos espera. Trinta minutos mais tarde, estávamos numa mercearia comprando cerveja. Quase duas da manhã, chegamos. Cervejinha, papinho, choramingos... ai o meu namorado que não dá notícias, ai os meus pais que foram embora... Quatro da manhã: - empresta uma camiseta pra eu dormir? - Um short? - Mais duas camisetas? - Eu durmo aqui, - eu durmo ali... - Que pernocas heim Flávia? - Que pé preto heim Camila! - Não vai dizer que é doença! Eu não sei o que é, já lavei e tudo, tá limpinho, é que no verão ele fica assim!
  • 32. Finalmente o sono foi mais forte... dormimos, o sono de criança que não aguenta mais e desmaia... Seis da manhã: - Desliga esse telefone! - Não é o meu! - Quem é cara! Desliga isso... - Camila, Camila é o teu! - O que? Ah é o meu! Que vontade de comer uma coisinha... - Pô Camila, paçoquita as seis da manhã? Silêncio... - Onze da manhã: - Vou embora! - Fica aí cara, “vamo toma café”! - Tô fazendo café! - Espera eu me acordar que vou comprar baguette e a gente faz um café da manhã legal... - Tó o café! - Traz um pra mim? - Que sol, cara! - Vou pra casa! - Fica aí! Que coisa! - Tenho que aproveitar enquanto tá fresquinho pra trabalhar, preciso terminar o capítulo sobre os personagens... - Eu também vou, vou procurar o meu papel... - Fica aí, deixa eu acordar! Fui comprar baguette, Jean foi lavar roupa... depois, Paris Plage... mas isso é assunto pra outro e-mail! E vocês aí na terrinha? Muito churrasco? Peixinho? Cervejinha gelada? Ôôô vidão!!!! Ficou com saudadinha de nóis? Espero que sim mesmo sabendo que estás feliz aí no calor da família! Aproveita que nós estamos aqui esperando a volta! Beijos pra todos, Leila Email para Kamila (prima e confidente) Subject : São demais os perigos dessa vida … Date : 16/08/04 « São demais os perigos dessa vida para quem tem paixão... » não era isso que cantava Vinícius? ele tinha razão, os poetas sempre têm razão (?) isso é questionável… Bom, o fato é que estou seguindo os traços de Dora Maar & Picasso… curiosidade? Obsessão? Essa classificação eu deixo pra ti…
  • 33. Paris do entre duas guerras, repressão, surrealismo, cubismo, tudo explode, tudo vem à tona! Poderia ter escolhido um outro casal, uma história mais bem sucedida, ou poderia ser Beauvoir & Sartre? É podia… mas foi Dora quem cruzou o meu camino e com ela, Picasso… Museus, ruas, ateliers, tudo está no meu roteiro… e, acaso? “o crime do Sr. Lange” está em cartaz… Cinema à luz da lua, telão inflável na place de Vosges, filme de Jean Renoir, diálogos do Brel, Paris, 1935… Foi na estréia deste filme, em 1936 que Dora viu Picasso pela primeira vez… eu precisava saber o que acontecia no filme… fui! duas amigas, cervejinha gelada, biscoitos de chocolate, canga pra sentar na grama… ambiente de pic-nic para assistir um filme em preto e branco! Eu, como Dora há 68 anos, tinha a minha máquina fotográfica em mãos… um cenário desses merecia uma foto! Os meninos da frente se oferecem para entrar na foto… - Todos juntos? perguntam. - Tinha pensado em fazer uma foto do telão nesta praça mas se vocês quiserem entrar não tem problema, vou poder pegar tudo! E, clik! A foto estava feita! - Tu me mandas a foto por e-mail? - Claro, me dá o teu e-mail depois, o filme vai começar… - Vocês querem uns docinhos? - Obrigada, mas nós temos! - Porque não aceitasse, ao menos podíamos falar um pouco mais com ele, visse que gatinho? - Aceita, então! The end… esperamos a praça esvaziar um pouco, tempo de conversar mais um pouco, trocar e-mails, telefone… papo bom, gatinho, gatinho… as meninas estavam empolgadíssimas… Eu precisava fazer pipi ! achamos um café, daí mais um café, mais uma cevejinha… impressões da França e dos franceses, risos, esteriótipos sobre o Brasil, risos, três brasileiras que moram sozinhas em Paris, que não precisam deles para achar o caminho pra voltar, que não precisam de ninguém pra pagar a conta… estranho, estranho… Nos separamos com a idéia de assistir um outro filme na quarta, no jardim do Trocadeiro… telão de um lado, torre iluminada de outro… o sonho… O domingo passou e o assunto foram os meninos… As meninas pareciam bem interessadas (ou era eu a interessada?) e eu não quercia estragar o barato delas, mas não acreditava muito que iríamos nos encontrar mais uma vez por acaso com os meninos já que eu não estava pensando em gastar meu dinheirinho pra ligar para um deles e que eu sabia que elas também não fariam… Quarta a tarde estou na piscina… já que não tem praia … telefone toca: - Oi Leila é o Eme! - Quem? … claro, oi! - Vocês vão assistir o filme hoje? - Vamos claro! - Então a gente podia se encontrar não é? Estaremos lá as 8h15 … - Ahh, eu combinei as 8h30 com as meninas…. - Não tem problema, nós chegamos mais cedo e guardamos um lugar para vocês! - Bem legal, obrigada! - Então a gente se encontra lá!
  • 34. - Nós levamos as cervejas e uns docinhos… mas precisa de alguma coisa pra sentar pois lá não será na grama mas na calçada… - Tudo bem, a gente leva a canga e uns chocalates… Tudo bem, tudo bem, cervejinha, cigarrinho, filme bom, noite boa, lugar de cartão postal… - Engraçadas essas balinhas, de onde vêm? Do Brasil? - Não, da Alemanha! - O que tens com a Alemanha, falas sempre de lá! - Meu namorado é alemão! Sorriso amarelo, e o assunto morreu ali! Papo daqui papo dali… - onde vocês moram? - No terminal do metrô que ela pegou no filme! - Ah, em Neuilly? Eu também! - Não? em que rua? - Rue Parmentier! - Incrível! moro duas ruas depois, a gente teve que ir na Place de Vosges pra se encontrar, que coincidência! - O acaso não existe! Papo daqui, papo dali… - Temos que ir embora, se não vamos perder o metro! - Se bem que a gente está super perto de casa… - É verdade, mas não estou com muita vontade de andar… - Então tá, vamos… - Tchau, tchau, … nada no programma… - Voltamos as três... - Amanhã vamos fazer compras? Preciso ir no super… - Ah, então vamos as três… Outro dia, compras, chuva, dia para filme e bolinho de banana… então, todas na minha casa! Comilhança, filme do Almodovar, e mensagem do Eme convidando para jantar… mensagem direta para mim, as meninas já no meu pé: vais aceitar neh? Elas foram embora, acabei dando uma desculpa qualquer para ele ao que ele responde que a proposta está de pé, eu escolho o dia, ele cuida do resto! No outro dia… que tal um barzinho no Champs-Elysées, nada longe de casa, nada muito barulhento, bom pra conversar, se conhecer … Papo ótimo, tudo ótimo… ele é um gato, jornalista, querido… mas será que eu estou interessada nele ou em fazer dele o meu Picasso? Ano passado Marguerite Duras me jogou nos braços do Amante, será que esse ano Dora Maar vai me jogar nos braços de outro ? Se o acaso não existe, como insiste em repetir Eme, então não foi por acaso que os nossos olhares também se cruzaram, quase setenta anos depois, no mesmo filme? Ou tudo será só literatura? Email para Kamila Subject: jantar à beira do Seina Data : 23/ 08/ 04 “ hallo Leila do Brasil, meu convite para jantar ainda está de pé…” Vindo de Eme
  • 35. 16:36:14 18/08/04 “hallo Leila do Brasil… meu convite para jantar está de pé… então pede conselho ao teu estômago, e escolhe a data…” vindo de Eme 16 :42 :09 18/08/04 Resposta : « não precisa ficar nervosinho ! podemos jantar hoje se estás tão esfomeado! Ou amanhã, ou depois… » « que causticidade, isso é bem feminino, e talvez bem brasileiro também. Então, reservo uma mesa para amanhã a noite na beira do Seine…” vindo de Eme 16:54:18 « perfeito ! até amanhã… » E o dia continuou normalmente … O outro dia já não começou normalmente… já era o dia do jantar… que roupa usar? Nada muito arrumado, nada muito provocante, nada que o faça pensar que eu me preparei para a ocasião… mas ele não liga para confimar… a que horas? Onde exatamente? Será que não deveria comprar alguma coisa nova? Um sapato? Tenho que lavar roupa, vou almoçar na Flávia, na volta eu vejo! Voltei já era meia tarde… artifícios do subconsciente… arrumei a roupa lavada, em todos os casos, aproveitei para passar um vestidinho preto… Fui tomar um banho… e, claro, foi nessa hora que o telefone tocou ! deixei cair na secretária… depois eu vejo! Confirmado para as 20h30, na Ganguette de Neuilly, final do Boulevard Bineau, atravessando a ponte, já na Ilha da Jatte … senti o drama… não somente ele está querendo me impressionar com o local mas ainda quer me fazer acreditar que para ele não há nada de mais normal esse restaurante já que ele mora quase ao lado… sem falar que morar quase ao lado também já quer dizer alguma coisa… Tudo bem que ele queira, o problema é que eu também quero! Mais uma vez fechamos o restaurante … isso tá virando um hábito… mas temos tanto para falar... - Acho que é melhor irmos embora, eles querem fechar… - Será que hoje eu posso te convidar pra ir na minha casa? Olhares, sorrisos, é claro que pode!!! Mas precisa convidar??? - Mas já é um pouco tarde, não? - Da outra vez tu disseste que deverias ter pensado mais antes de responder... Eu disse mesmo, mas por mensagem telefônica, é claro!
  • 36. - Pois é... mas é estranho me pedires assim desse jeito... - Então eu só conheco outro jeito… (beijo: longo, francês, muito francês) - E agora, tu vens? Em Neuilly a gente não deve ficar se beijando no meio da rua… só nos bairros populares … (Risos, beijos) - Mas eu não vou dormir na tua casa ! - Não tem problema, eu te levo quando quiseres… Na manhã seguinte: “talvez não tenhas dormido o sufficiente, mas espero que tenhas tido bons sonhos… bonne journée, beijo… » (ele já sabe dizer beijo em português) alguns minutos depois, mas que me pareceram uma eternidade: « não dormi direito, o vinho me deu dor de cabeça, mas Leila me fez muito bem… beijo » Depois de uns dias de silêncio, envio a mensagem: “ vou assistir um Ettore Scola, hoje, às 19h ou 21h30, no cinema Balzac, no Champs-Elysées… se quiseres me acompanhar podes escolher a hora…” Telefone toca (segundos depois): - oi Leila, Eme! - ah, oi! (ar de desinteressada…) então, o que estás fazendo de bom? - tô trabalhando … (filho de uma puta! Já tá me contando história, pensei) - ah coitadinho! - mas eu não to triste não, adoro o meu trabalho (filho de uma puta!!!! ) - mas é ótima a idéia do cinema! Eu só não sei a que horas vou estar livre.. a gente já podia marcar para as 19h e se tiver algum problema eu te aviso … - então tá! Sabes onde é o cinema ? na rue Balzac, perto da loja da Peugeot, sabe? mas se não puderes as 7h me avisa bem antes pois tinha previsto de ver um amigo… - se preferires marcamos pras 9h30, não tem problema… - eu prefiro… deveria ter saído mais cedo de casa, mas estou aqui na preguiça! -te anima e sai, tem um sol lindo na rua! Então te ligo mais tarde… - ok ! - ok ! tchau ! Nos encontramos as 8h30, no Champs-Elysées, metrô Georges V, na frente da Louis Vuitton... la classe! Comemos uma coisinha antes do cinema, fui comprar cigarro enquanto ele falava com a mãe no telefone, nos perdemos um do outro, nos achamos, mudamos de filme... minha mãe perguntou de que nacionalidade tu eras... - e?
  • 37. - só respondi que eras da América Latina - ok! Ela deve estar pensando que eu sou cubana ou venezuelana... Mas porque a mãe dele já sabe de mim? Ela nem mora em Paris! - ah, JB te mandou um abraço! - vocês fizeram alguma coisa pro aniversário dele? - não, mas te incluí na mensagem de feliz aniversário... escrevi assim: Leila junta-se a mim para te desejar feliz aniversário... Precisando de uma musiquinha para esperar o próximo capítulo? Clique para escutar https://www.youtube.com/watch?v=rHM4ElVgc9s
  • 38. Chegou a hora de a gente se casar… - Estarei na Alemanha do 21 ou 31 de outubro. Prepara tudo para a gente se casar! - Como assim? - Em uma semana a gente resolve tudo! - Como sim? Foi assim: No dia 22, antes de eu sair para pegar o trem, ele já tinha ido no cartório pegar a lista de documentos necessários para o casamento. De lá mesmo ele me ligou dizendo a relação de documentos que eu precisaria mandar vir do Brasil... que tudo deveria ser feito na máxima urgência pois tinha uma "vaga" na próxima sexta-feira, dia 29/10. Anotei, liguei a para a única pessoa no Brasil que eu tinha certeza de que faria o possível e o impossível para me ajudar (como continua fazendo!) e pedi tudo com a máxima urgência. Viajei pra Freiburg no 22 a noite... No sábado já fomos na joalheria medir o meu dedo... a aliança já estava escolhida e reservada. Depois, vestido.... não teve o segredo do vestido, na verdade, mais uma vez foi ele quem escolheu: Ele tinha um sonho, que a noiva dele casasse de Dirndl (aquele vestido típico da baviera, sabe?) e segundo ele, tinha certeza de que ficaria ótimo em mim! Me convenceu a entrar em uma loja especializada e escolhi o mais feio que achei para provar (não queria usar traje típico no casamento, neh? Eu não sou alemã!). Até eu gostei do vestido feio em mim e quando vi os olhos dele brilhando de emoção, não pude mais me negar a comprar um deles. Mas então, que fosse um bonito! E é! Meu Dirndl é lindo e ainda uso quando tenho oportunidade. Durante a semana, foi uma correria danada: papéis, prefeitura, tradutor... uma loucura! Mas, resumo da ópera, só tivemos certeza de poder casar na sexta 29, na quinta, 28 a tarde! Qualquer pessoa pode imaginar o stress, não é mesmo? O que me ajudou durante a semana foi o fato de não estar convencida de conseguirmos preparar tudo durante a semana. Na verdade, não estava certa de querer casar assim nesse desatinho... e como achava que não ia dar certo (principalmente que não ia dar tempo de receber a papelada vinda do Brasil), fiquei tranquila a semana toda! Ele, ao contrário num stress sem fim.... Marcus sempre teve essa coisa de tourino (eu nem acredito muito nessa coisa de signos, mas aqui era incrivelmente visível) de colocar uma coisa na cabeça e não parar de correr para alcançá-la. O pedido?
  • 39. O pedido foi feito na chuva, na quinta-feira (já madrugada pra sexta) na fretne do bar onde tinha ido com a Camila e os amigos dela... Camila foi minha madrinha de casamento e mesmo sem ter certeza de que realmente teria casamento na sexta, organizou uma „despedida de solteiro“ para mim. Não uma dessas despedidas de solteiro tradicionais… foi somente o „sair de casa para não ficar enlouquecida sem saber o que fazer“. Marcus tinha uma mania chata de me deixar „sob a responsabilidade“ de alguém e ir cuidar dos seus interesses… Aqui ainda foi tudo bem, pois Camila e eu já éramos amigas do tempo dos capuchinos à 1 euro, ruins e extremamente doces da Sorbonne: já tínhamos feito mudanças (de casa mesmo) de metrô, dividido comida, casa, um pouco de tudo. Ela tinha trocado Paris por Freiburg no início de outubro… ela tinha visto um menino bonito nas fotos da festa de aniversário do Marcus no ano anterior e se apaixonou por ele… pode? Armamos uma festa de „réveillon brasileira“ na Alemanha, oportunidade para que eles se encontrassem… foi tudo! O amor dos dois „não vingou“ mas ali, naquela passagem de 2003 para 2004, nasceu um outro amor: o amor de Camila por Freiburg. Me lembro tão bem de ela dizer na estação de trem (na volta para Paris): - Eu venho morar aqui! E foi! Antes de mim!! Eu tive raiva de ela ir primeiro. Inveja de ela aprender alemão tão rápido e um ciúme doentio de uma blusa preta que ela tinha… Ela, como eu, não é do tipo „típica mulher brasileira“, mas ela tem coragem de usar os decotes que eu não uso, entende? Bom, nem preciso dizer que eu aceitei o pedido, dormi tranquila e acordei uma pilha de nervos! Me arrumei às pressas, respirei fundo e disse JA! (sim, em alemão… isso eu já tinha aprendido) A cerimônia foi bem simples, na Rathaus, depois Sekt com alguns amigos, fotos, restaurante ... essas coisas! Passamos um final de semana de casados, preparando a próxima separação. Na segunda pela manhã, eu voltei para Paris e ele para Kabul...
  • 40. O início do fim. Fim. Palavra tão definitiva e ao mesmo tempo imensurável… quando é o fim? O fim, em princípicio não existe, já que tudo recomeça, tudo brota, tudo floresce, tudo é reciclável. Mas o fim, em toda a sua incerteza é inevitável: tudo se transforma. O fim sempre tem o seu início e mesmo que ele seja inidentificável, ele existe. Se acreditamos que „cada encontro é também despedida“ como canta Milton, então o início do fim foi no exato momento em que o vi pela primeira vez, no auditório da Universidade de Genebra, antes mesmo do primeiro olhar, antes mesmo do primeiro beijo. Ou teria sido no Crime do Sr. Lange, Place des Vosges? Sempre acreditei e continuo acreditando que envolvimentos com uma terceira pessoa são sinais da fraqueza de um relacionamento. Não sou moralista ao ponto de pregar a fidelidade eterna. Sei muito bem que o ser humano tem muitas facetas, necessidades físicas e emocionais que nem sempre são supridas por uma única pessoa. Não acredito em amor incondicional, li muito Vinícius na adolescência para poder acreditar nisso. Mas sempre amei incondicionalmente os homens com quem me relacionei e isto para mim, sempre inclui exclusividade. O amor carnal, enquanto existe, não permite invasões! E para mim, o sinal de que um amor estava no fim, sempre foi sentir que meu coração estava de portas abertas para os invasores. Aqui não, eu estava tão convencida de que este amor era o meu que o „infinito enquanto dure“ não tinha mais nenhum valor para mim (o que sempre tinha sido o meu lema nas questões amorosas). Aqui não, eu queria este amor. Eu queria que ele fosse para sempre. Ou, eu queria um passaporte europeu? É incrível como quando o amor acaba a gente começar a duvidar da existência dele… Uma vez, em Auvers-sur-Oise (cidade onde Van Gogh passou seus últimos meses de vida e pagou sua hospedagem e alimentação pintando personagens e a cidade inteira – a cidade inteira serviu de inspiração para o gênio e, andando pelas ruas de Auvers, encontramos indicados os lugares onde foram pintadas algumas das últimas obras dele) o senhor que nos fotografou disse ao devolver a máquina fotográfica: - Vous avez êtes fait pour vous rencontrer… Não tenho dúvidas disso. Ter amado este homem me fez descobrir uma coragem, uma determinação e a auto-suficiência que eu nem sabia que tinha. Com ele eu aprendi, principalmente, a viver sozinha. Du bist alleine, Du arme! Exclamava constantemente Holm, pai dele. Mas eu descobri que posso sim, viver sozinha… o que mudou completamente minha relação com o mundo, com as pessoas, com a vida em si.
  • 41. Marcus tinha a adorável mania de me deixar „sob a responsabilidade“ de alguém e ir „cuidar da sua vida“. Geralmente ele procurava alguém que tivesse tido aulas de francês na escola. Provavelmente achava estar fazendo um favor para „o escolhido“ pois ele teria a possibilidade de colocar o seu francês em prática. Na prática, era completamente diferente. Marcus era membro de diferentes Burschenschafts, que são as fraternidades de estudantes aqui na Alemanha. E nesses lugares existe uma hierarquia muito bem determinada, o que faz com que os mais velhos tenham bastante influência sobre os mais novos. Assim, ele se aproveitava dessa vantagem (e da falta de coragem deles em se negar a fazer um favor) para me deixar „sob a responsabilidade“ de alguém. Era sempre muito constrangedor pois esses momentos eram sempre as festas, a casa da fraternidade estava sempre cheia e a última coisa que eles queriam era „cuidar“ da mulher de alguém… eles queriam achar as suas próprias mulheres… o que é perfeitamente normal. O papo terminava rápido, já que o vocabulário deles em francês era pouco e o meu alemão ainda inexistente… uma vez, em Tübingen, ele me deixou conversando com um casal muito simpático: o marido falava perfeitamente francês, a mulher não, mas estava disposta a não me deixar sozinha. Neste dia, Marcus resolveu que precisava visitar outras fraternidades e não achou pertinente me avisar que não estaria mais na mesma festa que eu… passadas algumas horas, o assunto entre eu meu „responsável“ tinha acabado, a mulher dele já não estava mais tão disposta a não me deixar sozinha (já que agora era ela quem estava sozinha, pois isolada linguisticamente). O celular? Desligado, claro! (outra mania adorável…). - Onde vocês estão hospedados? Nós te levamos até o hotel e deixamos avisado aqui na casa que tu já foste para o hotel. (sugere meu responsável, que àquela hora da madrugada queria simplesmente voltar para sua casa em paz com sua mulher). Eu não sabia… eu não sabia onde passaria aquela noite. Eu não sabia onde estava meu namorado que me fazia gastar todas as minhas economias para vir encontrá-lo no país dele e me deixava sozinha. Eu sabia o que fazer. Na verdade, nem me lembro mais o que fiz naquela noite. Mas provavelmente, fiz o que me era de costume: esperei por ele, sorri encantada quando ele voltou (sorrindo) para me pegar, fui para onde ele quis me levar. Foi aqui o início do fim? Não, não pode ser… Ainda tinha tido aquela noite sozinha em Frankfurt, em Speier, em Haale, em Mannheim, em Heidelberg, em Freiburg, aqueles jantares intermináveis onde a isolada linguística era eu, dezenas de festas em dezenas de fraternidades onde ele enchia o peito para me apresentar: Leila Adriano, brasileira, estudante na Sorbonne, veio de Paris para esta festa. Hoje não sei o que pensar sobre esta apresentação mas tenho um desprezo cruel por mim mesma por ter gostado um dia.
  • 42. Ou teria sido nas escadarias do Charles de Gaule? No Rio de Janeiro? Em Florianópolis? Em Santiago? Em Freiburg? (…)