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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
DE SÃO PAULO
PUC-SP
VIVIANI SOUSA DO CARMO
ANONIMATO DE VIDA E DE MORTE:
CONTEMPORANEIDADE E LAÇO SOCIAL
NA ADOLESCÊNCIA
SÃO PAULO
2011
VIVIANI SOUSA DO CARMO
ANONIMATO DE VIDA E DE MORTE:
CONTEMPORANEIDADE E LAÇO SOCIAL
NA ADOLESCÊNCIA
Tese apresentada ao
Programa de Psicologia Social da
Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – PUC-SP para
Obtenção do título de Doutor
Em Psicologia Social
Orientador (a): Miriam Debieux Rosa
São Paulo
2011
ERRATA 1 :
Onde se lê : RÉSUMÉ en français
Leia-se : CARMO, V. S. L’anonymat de vie et de mort : le lien social à
l’adolescence. 2011. pp. 217 Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em
Psicologia Social – Pontifiícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, em
co-tutela com o Programa de Sciences de l’Education da Universidade de Paris 8 –
Vincennes, Seine Saint-Denis, França. 2011.
RÉSUMÉ : L’anonymat de vie et de mort: le lien social à l’adolescence
Le sujet de cette thèse porte sur les vicissitudes de l’inscription dans le lien social par
les adolescents qui vivent dans les grands centres urbains marqués par le contexte
de l’anomie et de la violence urbaine. Nous sommes intéressés par leurs stratégies
de subjectivation : comment faire lien dans un contexte, où la vie s’inscrit et s’efface
dans une mort presque certaine et anonyme ? Comment ils font lien alors que leur
vie et leur mort n’ont plus de valeur sociale? Pour cette recherche, nous nous
sommes adressés aux adolescents dans leurs milieux scolaires, à partir de la
création de groupes de conversations à thématiques libres. Ces groupes cliniques de
conversations que nous avons coordonné, ont eu une orientation psychanalytique et
ils nous ont permis la construction de quelques vignettes cliniques qui sont
éparpillées dans le corps de la thèse. Nous avons choisi une disposition en quatre
chapitres, dont le premier porte sur la construction adolescente dans le lien social,
mais surtout, sur les difficultés de se faire lien dans un contexte d’un Autre social
anomique. Le deuxième chapitre, traite du travail clinique réalisé avec des
adolescents en milieu scolaire. Ce travail c’est concrétisé par la création de groupes
de conversations avec une orientation psychanalytique. Le troisième chapitre s’ancre
sur une forte discussion théorique sur le lien social dans l’œuvre de Freud et Lacan.
Avec Freud on pourra affirmer que, avec l’arrivée du concept de surmoi, le lien social
se ferra par la voie du sentiment de culpabilité. Avec Lacan, nous allons parcourir le
chemin du dépassement d’une théorie de l’intersubjectivité vers la construction
discursive du lien social. On pourrait dire que, si avec Freud, le lien social se
maintien grâce au sentiment de culpabilité, avec Lacan, se sera l’obéissance le
premier fondement du lien, structuré à partir du discours du maître. Finalement, le
quatrième chapitre revient sur le court-circuit dans le lien social et la violence
urbaine comme conséquence d’une déréglementation anomique du socius. Après
l’époque de la discipline, on passerait sous l’influence du discours du capitalisme, ce
qui nous conduira à passer du triomphe de la culpabilité au royaume de la
jouissance. Ce contexte peut être dévastateur pour le sujet adolescent, qui trouvera
des difficultés pour se subjectiver dans un monde où l’Autre est anomique. Dans un
contexte, où la vie s’inscrit et s’efface dans une mort presque certaine et anonyme, la
violence urbaine apparaît dans le discours adolescent moins comme une donnée de
la réalité de ses jeunes, mais comme le seul moyen qu’ils trouvent pour se construire
face à l’autre, non pas en acte, mais en parole, un sujet que se raconte par la voie
d’une fiction violente, une histoire violente, où le sujet s’exile et disparaît.
Mots-clés : adolescence ; lien social ; anomie ; violence ; psychanalyse
ERRATA 2 :
Onde se lê, p.17 : « As sociedades de controle, organizadas sob a égide do
discurso do capitalista, será a de um Outro social anômico, não limitador do gozo
pleno. »
Leia-se: « As sociedades de controle, organizadas sob a égide do discurso do
capitalista, será a de um Outro social anômico, não limitador do gozo pleno. Com
este conceito de um Outro social que seria anômico, não pretendemos afirmar que o
Outro do contemporâneo seria vazio de suas marcas significantes, não podendo
disponibilizá-las aos sujeitos. Mas, diremos que o conjunto de significantes que este
Outro coloca a disposição do sujeito adolescente dos grandes bolsões
pauperizados, guetos e favelas, são portadores de desqualificação e geradores de
dificuldades de inscrição adolescente no laço social. Esses jovens são confrontados
a um futuro incerto; relatórios1
apontam que, pelo menos, 81 mil adolescentes foram
assassinados no Brasil nos últimos dez anos. Tratam-se de vidas desqualificadas,
jovens de futuro incerto, cercados pelo espectro de uma morte prematura e
anônima. Sua vida e sua morte não possuem qualquer valor social positivo, são
anônimas. Diremos que este efeito de enganchamento significante pelo pior é mais
evidente nesses bolsões em que a lei é desregrada, anômica, e que Agamben
(2002) pôde nomear como zonas de exceção. Ou seja, a noção de anonimato e de
anomia não se confundem na tese. No último capítulo desta tese, abordaremos o
conceito de anomia e sua origem na obra de Durkheim, bem como a posterior torção
no conceito que é dada por Agamben. A partir daí, tomaremos estas noções, anomia
e exceção, como centrais para caracterizarmos as sociedades do capitalismo
avançado contemporâneo, das quais extrairemos todas nossas análises
posteriores.”
 
                                                        
1 Unicef. (25 de fevereiro de 2011). UNICEF: investimento na adolescência para
romper os ciclos da pobreza e da iniquidade, acesso em 25 de fevereiro de 2011 
Nome: CARMO, V. S. Anonimato de vida e de morte:
contemporaneidade e laço social na adolescência
Tese apresentada ao
Programa de Psicologia Social da
Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – PUC-SP para
Obtenção do título de Doutor
Em Psicologia Social
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________
Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________
Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________
Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________
Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________
Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________
Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________
Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________
Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________
Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________
Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________
Julgamento: ___________ Assinatura:___________________
Aos grandes olhos curiosos de Lola Huerta
À José Huerta, que me ensinou que o amor e a resistência
são vermelhos
AGRADECIMENTOS
À Miriam Debieux Rosa, minha orientadora, por ter sido um tão belo
encontro. Pela amizade, pelas idéias sempre pertinentes e tão bem
pensadas. Por ter me feito acreditar, novamente, que todo
pensamento só pode ter sentido pra vida, quando é pensado
coletivamente. Pelo cuidado. Pelo respeito. Por nunca ter colocado
em dúvida. Por ter mantido as portas sempre abertas.
À Maria Cristina Vicentin, parceira tão presente na articulação deste
caminho intelectual. Pela força política de sua intervenção.
À Ilana Mountian, um forte e belo encontro pelas ruas de Paris. Por ter
acreditado, mais do que ninguém, na pertinência deste trabalho. Por
me ter feito seguir em frente neste caminho. Pelas discussões, pelas
idéias, pelos projetos. Pela grande amizade.
À Laurence Gavarini, minha co-orientadora, por ter aceito e apoiado
este projeto do outro lado do Atlântico. Por sua paixão pelo trabalho
de campo.
À Serge Lesourd, por ter aceito compor esta banca. Pela conversa
que me deu tantas idéias.
À Ana Paula Musatti Braga, pelo amor pela escola, por sua paixão
pelos alunos. Por ter tornado possível este encontro com a escola.
Pela parceria de trabalho, sempre prazeirosa, afetiva e gratificante.
Pelo trabalho que fizemos juntas; pelos trabalhos que ainda faremos.
À Ana Elisa Siqueira.
À Sandra Alencar, companheira das angústias; companheira de
idéias. Por ter me ajudado a transformar São Paulo, numa casa.
À Raquel Marinho, pela força e pela lição de não ter cedido em seu
desejo. Pela coerência, pelo cuidado com as coisas e com as
pessoas. Pelos bolos com café. Por ter me trazido de volta à boca o
sotaque mineiro das minhas raízes.
À Isabela Cardoza, por ter me confirmado aquilo que eu já sabia: que
é possível fazer um bom trabalho e ainda assim, guardar todos os
dias um belo sorriso. Pelo senso de humor.
À Ilaria Pirone, por ter me apresentado aos meninos de Seine-Saint-
Denis. Pela boa companhia em terra estrangeira.
À Aurelie Morin e Leticia Castro
À Ernane Catroli, por entender o que é um projeto de vida. Por
acreditar no valor das coisas. Pelo apoio e pela exigência. Pela lição
de amor.
À Maria do Carmo, pelo apoio, pelo amor e pelo orgulho que sempre
soube que sentia.
À Sueli Andrade, a mais querida amiga. Minha procuradora, onde
sempre me acho. Minha cumadre na vida. Meu porto-seguro em
qualquer lugar. À quem eu confiei meu tesouro de vida.
À José Huerta, companheiro amado e dedicado. Por estar presente e
também ausente, fazendo filmes pelo mundo afora. Pelo senso de
justiça. Pelo senso de humor. Pelos combates contra uma sociedade
de cínicos. Pelo combate. Pelo amor. E por Lola.
Ao CNPq pelo financiamento desta tese de doturado.
À CAPES pelo financiamento de estágio de doutoramento no exterior.
RESUMO
CARMO, V. S. Anonimato de vida e de morte: contemporaneidade e laço
social na adolescência. 2011. pp. 217 Tese (Doutorado) – Programa de Pós
Graduação em Psicologia Social – Pontifiícia Universidade Católica de São Paulo
– PUC-SP. São Paulo, 2011.
Esta tese busca investigar as vicissitudes da inscrição no laço social dos
adolescentes dos grandes centros urbanos, quando estes encontram-se imersos
num cenário de anomia social e de violência. Interessar-nos-á investigar as
estratégias de subjetivação adolescente, num contexto onde sua vida se inscreve
e se apaga numa morte provável e anônima. Assim, como poderá se fazer a
inscrição do adolescente no laço social quando nem sua vida, nem tampouco sua
morte, possuem qualquer valor social positivo? Para realizar esta pesquisa, nos
baseamos em nosso trabalho clínico com o sujeitos adolescente em meio escolar.
Realizamos, numa escola estadual de São Paulo, um trabalho de grupos de
conversação, cuja inspiração teórica e clínica buscamos na psicanálise.
Traremos, nesta tese, dois casos clínicos construídos a partir deste trabalho de
conversação.Esta tese é disposta em quatro capítulos. O primeiro deles irá tratar
da construção do sujeito adolescente e sua inscrição no laço social. Mas,
sobretudo, das dificuldades do laço social num contexto, que diremos, de um
Outro social anômico. O terceiro capítulo desta tese, trará uma forte digressão
teórica sobre o laço social nas obras de Freud e Lacan. Em Freud, afirmamos que
a partir do conceito de supereu, a manutenção dos homens no laço social irá se
dar pela via do sentimento de culpa. Em Lacan, a partir do ultrapassamento do
conceito de intersubjetividade, o psicanalista irá traçar uma teoria do laço social, a
parti de sua montagem discursiva. Podemos afirmar que, se em Freud o laço
social entre os homens se manteria graças ao sentimento de culpa, em Lacan,
será a obediência, o primeiro fundamento do laço social, estruturado a partir do
discurso do Mestre.Finalmente, no quarto capítulo desta tese, afirmaremos que
algo da ordem de um curto-circuito nos laços sociais e da emergência do
fenômeno de uma violência generalizada, como consequencia de uma
desregulamentação anômica do socius. Entramos numa época regida pelo
discurso do capitalista, o que irá impor uma passagem entre um laço estruturado
pelo triunfo da culpa e o outro (des)orientado pelo reinado do gozo. Diremos que
este cenário poderá ser devastador para o sujeito adolescente, que encontrará
algumas dificuldades em seu processo de subjetivação.Em um contetxo, onde a
vida se inscreve e se apaga numa morte quase sempre anônima, a violência
aparece no discurso adolescente não apenas como um dado da realidade diária,
mas como um dos modos que o jovem encontrará para se construir face aos
outros. A violência será não apenas ato, mas forma de palavra, para um sujeito
que só poderá se contar pela via de uma ficção desqualificada, uma história
violenta, onde o sujeito se exila e desaparece.
Palavras-chave: adolescência; laço social; anomia; violência; psicanálise
RESUMÉ
CARMO, V. S. Anonimato de vida e de morte: contemporaneidade e laço
social na adolescência. 2011. pp. 217 Tese (Doutorado) – Programa de Pós
Graduação em Psicologia Social – Pontifiícia Universidade Católica de São Paulo
– PUC-SP. São Paulo, 2011.
Le sujet de cette thèse porte sur les vicissitudes de l’inscription dans le lien social
par les adolescentes qui vivent dans les grands centres urbaines pauvres
marquées par le contexte de la violence urbaine. Nous sommes intéresses par
leurs stratégies de subjectivation : comment faire lien dans un contexte, où la vie
s’inscrit et s’efface dans un mort presque certaine et anonyme ? Comment ils font
lien alors que leur vie et leur mort n’a plus de valeur sociale ?Pour cette recherche
nous nous sommes adressés aux adolescentes dans leurs milieux scolaires, à
partir de la création de groupes de conversations de thématique libre. Ces
groupes cliniques de conversations que nous avons coordonnées, ont eu une
orientation psychanalytique et ils nous ont permis la construction de quelques
vignettes cliniques qui sont éparpillés dans le corps de la thèse.Nous avons choisi
une disposition en quatre chapitres, dont le premier portera sur la construction
adolescente dans le lien social, mais surtout, sur les difficultés de se faire lien
dans un contexte d’un Autre social anomiqueLe troisième chapitre s’ancre sur une
forte discussion théorique sur le lien social dans l’œuvre de Freud et Lacan. En
Freud on pourra affirmer que, avec l’arrivé du concept de surmoi, le lien social se
ferra par la voie du sentiment de culpabilité. En Lacan, on ira parcourir le chemin
du dépassement d’une théorie de l’intersubjectivité vers la construction discursive
du lien social. On pourrait dire que, si en Freud, le lien social se maintien grâce au
sentiment de culpabilité, en Lacan, sera l’obéissance le premier fondement du
lien, structuré a partir du discours du maître.Finalement, le quatrième chapitre
revient sur le court-circuit dans le lien social et la violence urbaine comme
conséquence d’une déréglementation anomique du socius. Après l’époque de la
discipline, on rentrera sur l’égide du discours du capitalisme, ce que nos fera
passer du triomphe de la culpabilité au royaume de la jouissance. Ce contexte
peut être dévastateur pour le sujet adolescente, qui trouvera des difficultés pour
se subjectiver dans un monde où l’Autre est anomique. Dans un contexte, où la
vie s’inscrit et s’efface dans un mort presque certaine et anonyme, la violence
urbaine apparaît dans le discours adolescent n’ont pas comme un donnée de la
réalité de ses jeunes, mais comme le seul moyen qu’ils trouvent pour se construire
face à l’autre, non pas en acte, mais en parole, un sujet que se raconte par la voie
d’une fiction violente, une histoire violente, où le sujet s’exile et disparaître.
Mots-clés : adolescence ; lien social ; anomie ; violence ; psychanalyse
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
CAPÍTULO I O adolescente no contemporâneo: as aventuras do enlaçamento
diante de um Outro social anômico
1.1. Adolescência e Laço Social: uma introdução 18
1.2. A questão adolescente e o encontro com a perda do objeto 21
1.3. A questão adolescente e o encontro traumático com o Outro sexo 32
1.4. A questão adolescente no contemporâneo: o desamparo diante de um
Outro social anômico 41
CAPÍTULO II - A psicanálise e os grupos : uma conversação com os
adolescentes
2.1. A ética e a política da psicanálise: os quatro impossíveis 57
2.2. A Conversação e a pesquisa em psicanálise 67
2.3. Uma conversação: entre a escola, a demanda e os sujeitos adolescentes 73
2.4. A psicanálise e os grupos 81
2.5.Os casos clínicos. As melindrosas 93
2.6. Os casos clínicos. Os temerários 108
CAPÍTULO III – O eu e o outro: o problema do laço social em psicanálise
3.1. Freud: Laço Social via sentimento de culpa 122
3.1.1.O Narcisismo: da semelhança radical a um outro parcial e
descontínuo 123
3.1.2. O surmoi: o nascimento do sentimento de culpa e o laço social 128
3.2. Lacan: Laço Social via obediência 137
3.2.1. Da intersubjetividade ao laço social 146
3.2.2. O discurso do Mestre: “travailler plus pour gagner plus” 150
3.2.3. A Histérica, o Universitário e o Analista 158
CAPÍTULO IV – Curto-circuito no laço social: a violenta rede simbólica do
contemporâneo
4.1.Da disciplina ao capitalista : do triunfo da culpa ao reinado do gozo 168
4.2.A anomia: rumo a uma dessubjetivação do socius 180
4.3. O menino-mulsuman e a violência como ficção
de uma vida desqualificada 190
CONCLUSÃO 198
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 209
INTRODUÇÃO
Esta tese busca investigar as vicissitudes da inscrição no laço social
dos adolescentes dos grandes centros urbanos, nos casos em que estes,
encontram-se imersos num cenário de anomia social e de violência. Interessar-
nos-á investigar as estratégias de subjetivação adolescente, num contexto onde
sua vida se inscreve e se apaga numa morte provável e anônima. Assim, como
poderá se fazer a inscrição do adolescente no laço social quando nem sua vida,
nem tampouco sua morte, possuem qualquer valor social positivo?
Essa tese surgiu do trabalho clínico com adolescentes, em consultório
privado e em grupos de conversa realizados em ambiente escolar. Sempre me
entusiasmei com a relação verídica com que os adolescentes se posicionavam
diante de seu desejo e com sua resposta colérica face às artimanhas do poder,
parental ou de Estado, que tentavam lhe subjugar. Mas, se a adolescência pode
ser considerada como um tempo de contestação, muitas outras imagens foram se
somando para a construção do imaginário social contemporâneo que alia, não
poucas vezes, esse tempo do sujeito à violência, à delinquência e a
agressividade. Esse efeito de colagem entre adolescência, delinquência e
comportamento violento, é alimentado por fatos fortemente midiatizados:
adolescentes de classe média agridem e matam trabalhadores na rua,
adolescentes trabalhadores no mercado do tráfico e seus „acertos de conta‟
violentos e mortais, adolescentes que, na escola, perseguem e atormentam
meninos mais frágeis, adolescentes que agridem verbalmente ou fisicamente os
pais, avós ou professores. Enfim, o leque é vasto, e o cotidiano dos jornais está
repleto desss episódios que tentam dar provas de que a associação
adolescência-agressividade não é sem razão de ser.
No decorrer do tempo, essa inaptidão da estrutura adolescente à
submissão, fez com que caísse nas malhas das políticas de controle social. Ou
melhor, talvez o próprio conceito de adolescência tenha sido cunhado, a partir do
momento em que as sociedades sentiram necessidade de se proteger dos
arroubos da juventude. De toda forma, o ato positivo de contestação adolescente,
imprescindível para o desenvolvimento das civilizações, foi capturado pelo
discurso médico e jurídico, transformado em patologia, crime e desvio a ser
normatizado. Daí, estarmos a um passo para a associação que faz equivaler
adolescência e comportamento violento. Sobretudo, quando se trata do sujeito
adolescente pauperizado dos guetos e favelas dos grandes centros urbanos
mundiais.
O imaginário social evidencia, segundo Castoriadis (1998), o lugar
concreto que ocupa o sujeito na sociedade. Veremos nessa tese, como esse lugar
é uma posição discursiva, que evidencia a dimensão do laço social que liga o
sujeito a seu gozo, aos outros e ao Outro. A adolescência não é apenas um
tempo estrutural da subjetivação ou uma operação psíquica desenraízada das
malhas discursivas que enlaçam o sujeito. É também um tempo, onde a dimensão
da angústia, do trauma e do mal-estar, serão vivenciados pelo sujeito à flor da
pele. É por isso que esta tese, será construída a partir da teoria dircursiva de
Jacques Lacan, que levará em conta a dimensão da perda de gozo necessária a
toda inscrição no laço social. Sua formalização em quatro discursos, + 1, irá nos
possibilitar situar as posições que ocupará o sujeito diante dos outros, do Outro e
de seu gozo. Veremos como os quatro discursos lacanianos: mestre, histérica,
analista e universitário, e mais o discurso do capitalista, o + Um desse esquema,
nos permitirá construir todas as análises dessa tese.
De volta à adolescência, veremos que sua inscrição no laço social é
um modo de passagem rumo a um lugar de pertencimento a cena social. No
entanto, muitas vezes, o lugar que é destinado ao jovem sujeito num determinado
contexto social, pode produzir apenas abandono e deriva subjetiva. Rosa e
Vicentin (2010) apontam que, muitas vezes, no caso de famílias marginalizadas e
pauperizadas, o discurso familiar é desautorizado pelo discurso social, que
patologiza e criminaliza atos e práticas de existência. O sujeito adolescente adere
a esse lugar que lhe é atribuído pelo campo social, que lhe priva de um nome e
lhe atribui apenas um número: um entre outros, a entrar e a sair da instituição
correcional, prisional, escolar. Diremos que esse Outro do social incapaz de
nomear e atribuir um lugar de pertencimente ao sujeito, será um Outro social
anômico. Este, abrirá mão da nomeação para atribuir ao sujeito um número; um
entre tantos outros: uma estatísca da vida, um sujeito desprovido de história.
A travessia adolescente rumo à cena social irá evidenciar os impasses
da subjetivação nos tempos atuais. A ausência de garantias do contemporâneo
irá se atualizar na adolescência. Uma das discussões que instigaram a
elaboração desta tese, foi a de que haveria uma pane no tempo de subjetivação
da adolescência, o que seria evidenciado pela relação dos jovens para com seus
semelhantes, autoridade parental ou com seus pares. Afirmar tal pane, seria
também conceber que o processo de subjetivação adolescente deveria ser
„consertado‟. Nesta tese, iremos trazer elementos que nos permitiram afirmar que
não há nada a ser consertado na estrutura adolescente, pois a peça que falta ao
„sistema‟ é perdida desde sempre. Iremos, no decorrer desta tese, fornecer
elementos que permitem nos posicionar contrariamente a essa hipótese de que o
sujeito entraria em pane estrutural.
Nosso guia neste trabalho, foi o seguinte problema: quais as
vicissitudes da inscrição no laço social na passagem adolescente, sobretudo
quando esta se encontra inscrita num contexto incerto, onde os sonhos de
projeção num futuro coletivo, rapidamente podem ser atravessados e impedidos
pela violência da realidade? Em um contexto onde a vida desses jovens se
inscreve e se apaga numa morte muitas vezes provável e anônima, quais as
possibilidades de inscrição no laço social, quando sua vida ou sua morte não têm
qualquer valor social positivo?
Para a elaboração desta tese, definimos um recorte de nosso tema em
quatro partes. Na primeira delas, nos debruçamos sobre as teorias psicanalíticas
de Freud e Lacan, acerca deste tempo psíquico que separa a infância da idade
adulta. Como veremos, Freud não irá tratar diretamente do tema da adolescência,
preferindo o termo puberdade. Veremos como o termo da puberdade pôde servir
ao psicanalista, que no início de sua obra estava mais preocupado com a
formalização de um tempo biológico do desenvolvimento da sexualidade. A partir
dos novos elementos trazidos pelo texto de 1914 Sobre o Narcisismo, Freud
abrirá os limites de sua teoria, ao incluir a dimensão de uma busca por um objeto
no exterior do aparelho psíquico, que poderia substituir o primeiro objeto de amor,
sempre incestuoso e para sempre perdido.
Se no texto de 1905, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade,
Freud estará ainda preso ao desenvolvimento autoerótico da sexualidade infantil.
A partir das considerações de uma fase narcísica de escolha de objeto, que
precederia a escolha de objeto sexual da idade adulta, presente no mundo
exterior, o psicanalista irá se dirigir rumo a uma teoria da subjetividade, onde o
sujeito se apresenta em função de uma busca objetal.
Será com a chegada adolescência que o real do corpo reativará os
interditos do incesto, antes adormecidos pelo período de latência, e irá trazer à
tona a frustração de uma satisfação pulsional impossível a ser alcançada. Será
esta mesma decepção que forçará o jovem sujeito, a um olhar mais adiante, em
direção ao exterior do círculo familiar, para buscar no social, o objeto de amor que
fará suplência a satisfação perdida. Mas para que esta operação seja bem
sucedida, caberá ao jovem se separar dos ideais parentais e seus significantes
que o marcaram em sua infância. A promessa familiar não poderá mais ser o
único esteio para o sujeito adolescente. Ele irá se dirigir à cena social, buscando
novos saberes com os quais poderá se identificar e se construir como sujeito
singular.
Mas o imaginário social é avesso às criações, e já possui um lugar
determinado para o sujeito: de acolhida ou de abandono. No entanto, o sujeito
adolescente é aquele que não consente facilmente. Este saber formatado pelo
social, ele tampouco o aceita. É por isso que diremos, que o sujeito adolescente
entrará no laço social, fazendo greve! Recusando-se a aceitar as coisas como
elas são! O adolescente é aquele que não se contenta em ser contado pelo Outro.
É na adolescência que se dará a passagem da cena familiar para a
cena social (ROSA, 2002), graças a experiência de um luto subjetivo que implica
que o jovem abra mão de sua fantasia de completude/fantasia de gozo pleno,
aspecto esse, muitas vezes inviabilizado pelo cenário contemporâneo. Esta
passagem, como veremos, implicará a superação da autoridade do pai-
imaginário, não-castrado, acima das leis da civilização, por aquela do pai-
simbólico, castrado, um sujeito do social, e por isso capaz de acompanhar seus
filhos pelas leis da cultura, ajudando-os a suportarem a perda do gozo renunciado
. Esse é um dos aspectos que entram em pane na contemporaneidade, pois o
pai-imaginário é mantido como presença. Não que ele seja, em nossos dias,
ainda representado pela figura do pai da autoridade. Ele é substituído em sua
potência de completude pela promessa do mercado que tentará garantir ao sujeito
o direito ao gozo irrestrito, via objetos de consumo descartáveis. Veremos no
segundo capítulo dessa tese, como esses aspectos do contemporâneo colocarão
em perigo o processo de subjetivação singular da passagem adolescente.
Nessa segunda parte, iremos nos debruçar sobre o trabalho clínico
com os adolescentes, pois foi ele, um dos pontos de partida para nosso
questionamento acerca das vicissitudes da inscrição no laço social do sujeito
adolescente, no contexto de um Outro social anômico. Realizamos, durante
aproximadamente oito meses, numa escola estadual de São Paulo, Brasil, um
trabalho de grupos com adolescentes entre 12 e 16 anos de idade. Esses grupos
foram constituídos como grupos de conversação, cuja inspiração teórica e clínica
buscamos na psicanálise e no trabalho do CIEN (Centre interdisciplinar de
l‟enfant).
O que pretendemos com esses grupos de conversação foi criação de
um espaço onde os adolescentes pudessem encontrar, pela via da palavra, um
Outro receptivo, à escuta, e que não fosse portador dos significantes que
identificam e aprisionam, no imaginário social, esses jovens. Assim, nosso
compromisso ético foi o de tentar descolar o grupo e os sujeitos adolescentes da
aderência aos significantes-mestre que os identificam no social; significantes que
puderam aparecer no decorrer do trabalho. Para isso, mantivemos todo o cuidado
em lhes oferecer garantias de que outras possibilidades de existência poderiam
ser pensadas. Tentamos, através dos grupos de conversação, garantir para a
palavra adolescente, um esteio, para que ela não fosse apenas um instrumento
de puro gozo. Como diremos na tese, a palavra utilizada como puro gozo é
apenas destituição de território. Os grupos de conversação foram nossa tentativa
de construção, com os adolescentes - sujeitos de palavra -, de um laço ficcional
que os ligasse numa história coletiva e singular. Com os adolescentes, em grupo,
pudemos perceber as estratégias de captura e de resistência que puderam
construir frente ao insuportável do encontro com esse Outro que diremos
anômico. Que modos de inscrição no laço social estes adolescentes atualizaram
ou construíram?
Traremos, ainda neste capítulo, nossa construção clínica sobre dois
desses grupos. Neles, nos confrontamos com as histórias de Clara e Roberto.
Obviamente, estes, são nomes fictícios que escolhemos para podermos construir
suas histórias, seus caminhos e descaminhos em suas tentativas de subjetivação
num contexto muito pouco receptivo a qualquer existência como singularidade.
Diremos que Clara, cairá na cilada armada pelos laços do contemporâneo, e irá
deslizar entre consentir em seu desejo e resistir em afirmá-lo. Roberto irá assentir,
temporariamente, à segregação do laço social, ocupará uma posição de resto do
social, o que irá apartá-lo de sua dimensão de sujeito.
Mas, para entendermos como o sujeito se inscreve no laço social e
entra na cultura, nos foi necessária a construção de um extenso caminho teórico
pelas obras de Freud e Lacan. Será este o objetivo do terceiro capítulo desta
tese. Se em Freud, a manutenção dos homens no laço social só será possível
graças a ação do sentimento de culpa. Em Lacan, o sujeito estará preso nas
garras da linguagem, na qual se aliena e se transforma em um ser-da-civilização.
Lacan poderá formalizar uma teoria do laço social graças ao conceito de
alienação, que o levará a sua montagem discursiva de quatro patas. A teoria dos
discursos colocará em cena quatro pontos, posições que podem ocupar o sujeito
em relação aos outros, ao Outro e ao seu gozo. O sujeito entra no laço social pelo
discurso do Mestre, que é também o discurso próprio ao inconsciente. E sua porta
de entrada é pela via da obediência.
A teoria dos discursos de Lacan, nos levará ao discurso do capitalismo,
esse +1 dos modos de enlaçamento do social. Diremos, na parte final desta tese,
que as sociedades contemporâneas se organizariam segundo a égide desse
discurso, e que isso traria consequências importantes para os modos de
subjetivação e singularização do sujeito. O discurso do capitalista é aquele que
pretende abolir a barra que separa o sujeito de seu gozo e que o transforma num
ser da civilização. É um discurso que enlaça desconsiderando a dimensão da Lei
- o sujeito só é sujeito desejante, quando castrado. Graças a isso, afirma-se num
processo de subjetivação móvel, regido pelo objeto causa do desejo que o guia
em sua busca por satisfação, sentido e pertencimento. O sujeito resta paralizado
no laço do capitalismo, pois adquire um estatudo de consumidor. Ou será que
desaparece ao ser, ele mesmo, consumido pelo objeto do consumo?
Algumas perguntas foram nossos guias neste último capítulo: já que o
sujeito perde seu estatuto móvel de desejante e se relaciona com objetos
destinados a tamponar sua falta a ser estrutural, como poderá fazer laço com os
outros e com o Outro, se não há nada que lhe falte que lhe faça caminhar?
Quando a lei social é deixada de lado em prol do imperativo do capitalista que
promete direito ao gozo a todos, de que forma os adolescentes expostos a esta
anomia reagem, resistem e fazem laço?
Nosso objetivo neste último capítulo da tese, será o de traçar as bordas
inteligíveis desse sombrio contexto social. Para tanto, começaremos lançando
mão das análises de Foucault (1987, 1999) sobre as sociedades disciplinares e
suas estratégias de exercício de poder sobre os corpos e seu controle sobre as
populações. Buscaremos nas sociedades disciplinares os primeiros sinais de uma
sociedade de controle contemporânea, anômica, que terá como paradigma de sua
organização, a elevação à regra dos estados de exceção. Para estas reflexões,
iremos nos basear nas análises feitas por Giorgio Agambem (2002). Pensaremos,
num segundo momento, as sociedades disciplinares de Foucault e as sociedades
de controle contemporâneas, a partir do esquema discursico lacaniano, pois este
nos permitirá enlaçar o sujeito às artimanhas do poder ao qual se sujeita, resiste,
adoece.
Desta forma, lançaremos mão da psicanálise para evidenciar as
astúcias do exercício do poder do capitalismo contemporâneo, associando-o a um
de seus efeitos imediatos, um curto-circuito do laço social, o que irá contribuir
para a emergência de uma nova especificidade do fenômeno da violência na
atualidade. Violência sem culpa, o que se convencionou chamar, a banalização
da violência. Iremos afirmar, neste capítulo, que com o discurso do Capitalista,
saímos definitivamente de uma lógica social fundada na culpa deixada pela
castração, para entrarmos na era onde o gozo triunfa. Essa hegemonia do gozo
sobre a culpa aparece sob a forma do desregramento da lei. As sociedades de
controle, organizadas sob a égide do discurso do capitalista, será a era de um
Outro social anômico, não limitador do gozo pleno.
O discurso do capitalismo tentaria garantir a consistência da fantasia
de completude, onde sujeito e gozo poderiam, finalmente, se encontrar num
mesmo destino. No entanto, algo ou alguém viria para poluir esta cena de perfeita
satisfação. O sistema capitalista contemporâneo, se sustenta na produção de
excessos e excedentes que constituem o grande impasse de nosso tempo.
Destes excedentes, ou seja, pessoas produzidas como mercadorias, a civilização
quer se desvencilhar e eliminar, mas ao mesmo tempo, sua manutenção é, ela
mesma, inerente e fundamental a estruturação das sociedades contemporâneas.
De toda forma, sua vida e sua morte não portará qualquer valor social.
Assim, num mundo, onde o sujeito se cala e apenas consome, justifica-
se a nossa pergunta: como e quais são os modos de inscrição no laço social dos
adolescentes dos grandes centros urbanos, que são pobres demais para a dívida
capitalista (1992), mas também numerosos demais para o encarceramento?
Como fazer laço, quando suas vidas se encontram imersas num cenário de
anomia social, de violência, sem garantias de inserção num projeto pessoal e
coletivo? Quais são as vicissitudes e as estratégias de subjetivação adolescente,
num contexto onde sua vida se inscreve e se apaga numa morte provável e
anônima?
CAPÍTULO I - O adolescente no contemporâneo: as
aventuras do enlaçamento diante de um Outro social
anômico
1.1.Adolescência e Laço Social: uma introdução
1.2. A questão adolescente e o encontro com a perda do objeto
1.3. A questão adolescente e o encontro traumático com o Outro sexo
1.4. A questão adolescente no contemporâneo: o desamparo diante de um
Outro social anômico
1.1.Adolescência e Laço social: uma introdução
Rousseau (1964), no livro IV de Emile, irá afirmar que o que está em
jogo na adolescência é um segundo nascimento; não um nascimento para a
espécie Ŕ que seria o primeiro deles -, mas um nascimento para a questão da
sexualidade. É por isso que ao problematizarmos a noção de adolescência,
devemos diferenciar dois campos distintos que tomarão, num deles, a
adolescência como um fenômeno social, e num outro, como um tempo do sujeito,
que marca o nascimento para o Outro sexo, que chamaremos com Matheus
(2008), a questão adolescente. Se o termo adolescência, do latin (adulescentia),
já era utilizado nos tempos do Império Romano, como nos lembra Matheus
(2008), será somente na Idade Moderna que irá se consolidar como objeto de
estudo, na medida em que será nesse momento que a tradição racionalista irá
forjar a idéia de um indivíduo da qual será derivada. Nas palavras de Matheus,
Desponta como corolário da noção de indivíduo, a crise da
adolescência, que acaba funcionando como condição para
sua efetivação: circunscreve a um momento específico da
vida, com um fim previamente estabelecido, turbulências
inevitáveis que cada sujeito é convocado a experimentar, a
fim de conquistar a condição de indivíduo, seguindo as
diretrizes do ideário da modernidade. A crise é, então, fruto
do exercício da interioridade de cada um, em função das
tensões e conflitos que a configuram como tal (...) Essa
experiência subjetiva, ao ser circunscrita à interioridade de
cada indivíduo, resulta, aliás, no velamento do jogo de forças
sociais do qual é resultante, servindo de apoio às estruturas
sociais vigentes. (MATHEUS, 2008.p.618).
Vemos então, como o interesse pelo fenômeno da adolescência como
um fato social, que inscreveria um tempo subjetivo no interior de um contexto
específico, serve exatamente para desresponsabilizar o campo social de seus
efeitos na construção das subjetividades. Ao naturalizar o tempo da adolescência
numa etapa do desenvolvimento biológico, acentua-se a tese de uma cisão entre
social e individual; ao privilegiar os aspectos estruturais da individuação, mascara-
se as incidências do social para a construção das subjetividades.
A psicanálise freudiana, principalmente a partir das obras de 1914 e do
texto Sobre o Narcisismo, irá se posicionar contrariamente a esta cisão, ao
apontar para a dimensão do mal-estar inerente a toda inscrição do sujeito na
civilização. Lacan segue as pistas deixadas por Freud, leva em consideração
essa dimensão do mal-estar para cunhar seu conceito de objeto a, o quinhão de
gozo a que todos devem consentir em perder para a entrada no mundo da cultura.
Se tratamos, aqui, de modo displicente toda essa teorização a respeito da
dimensão do mal-estar e do objeto a, é porque dela, iremos nos ocupar do
decorrer de toda essa tese.
Para fins deste capítulo, buscaremos entrecruzar três temas, a
passagem adolescente, sua inscrição no laço social e os percalços desta
inscrição quando o Outro social se mostra anômico. A partir da teorização sobre o
objeto a, Lacan irá construir seu esquema discursivo de quatro patas, o laço
social, que é uma forma de aparelhar as relações entre o sujeito e seu gozo, para
além da fala, incluindo também a dimensão do objeto na estrutura significante.
Vale ainda ressaltar, que será pela formalização dos discursos em quatro
posições que o sujeito poderá vir a ocupar, que iremos captar suas relações com
os outros e com o Outro: a posição que ocupa no laço social.
A inscrição no laço social está fortemente ligada à estrutura da
adolescência, onde há a descoberta do logro da promessa edipiana de satisfação
plena pelo objeto, instaurada pela castração. Esta promessa sustenta o
narcisismo primário da criança, anterior a clivagem estabelecida pela entrada do
infans na linguagem, acesso fundamental que marcaria a ruptura e a
diferenciação entre gozo da carne e corpo destinado ao prazer. De acordo com
Lesourd, “(...) o gozo primeiro do corpo nesse tempo deve ser entendido como
excitação-satisfação em uma psique em que a carne e o objeto, o sujeito e o
Outro ainda não são distinguidos um do outro, e em que a carne é tanto excitação
quanto satisfação (...)”. (LESOURD, 2004.p.46)
Na adolescência, o corpo pubertário reativa essa experiência anterior
infantil - que havia ficado adomecida no período de latência -, em que a carne é
tanto excitação como satisfação, e lança o sujeito adolescente no vazio, que é
experimentado como ausência de pertencimento trazida pelo esfacelamento do
véu fálico e do encontro do significante da falta no Outro parental, o que fará com
que o adolescente dirija seu olhar para o exterior, numa tentativa de re-encontrar,
ou melhor, re-criar, o esteio significante que lhe garanta uma existência como
pertencimento do social.
Afirmaremos, aqui e no decorrer dessa tese, que o adolescente enlaça,
via de regra, pelo modus operandi do discurso da histérica. Essa tese é de Serge
Lesourd que iremos partilhar. Mas, o que isso quer dizer? Em poucas palavras,
que ele não se deixa escravizar pelo Mestre; que ele não cede em seu saber; que
não aceita o saber que lhe querem imputar à sua revelia! O adolescente, entra no
laço social fazendo greve1
! Temos, no discurso da histérica, o $ (sujeito) no lugar
do desejo, se dirigindo ao Outro, fazendo um apelo, que o interroga, colocando
em xeque os significantes-mestre que lhes foram atribuídos.
1
A expressão “fazendo greve” foi utilizada por Lacan, no O Seminario, livro 17, a propósito do
laço discursivo da histérica.
Vemos, cotidianamente, o adolescente numa posição que interroga o
adulto, disqualificando o saber que ele detém sobre seu desejo, o que no
momento anterior da infância, era o que garantia sua existência num universo de
sentido: familiar, parental. Diremos que a passagem adolescente interroga e
desqualifica o discurso imaginário do adulto, seu antigo mestre. O discurso da
histérica, traz o sujeito ( $ ) no lugar do agente, exatamente este sujeito barrado,
da dúvida, que interroga com seu sintoma, os signficantes que marcam sua
história. “Diga-me quem eu sou?”, é a pergunta que dirige ao lugar do Outro,
ocupado pelo Mestre. Ela, a histérica e o sujeito adolescente, não se contentam
em serem contados pelo Outro; interrogam-no, de modo que os significantes
mestres que marcaram sua história sejam equivocados. Nas palavras de Lesourd
(2002),
É por essa contestação dos significantes parentais, que
organizam as relações sociais, que se funda a ideologia de
uma geração e sua forma de gerir suas relações com o
mundo. É então, a partir desse duplo aspecto, de
identificação aos siginificantes sociais e de contestação
destes mesmos significantes, que o adolescente constitui
sua relação ao mundo e se posiciona subjetivamente por
relação aos significantes do Outro em sua versão social.2
(LESOURD, 2002. p. 261 ; trad. nossa)
1.2.A questão adolescente o encontro com a perda
traumática do objeto
2
Do texto original : « C‟est par cette contestation des signifiants parentaux, qui organisent les
rapports sociaux, que se bâtit l‟idéologie d‟une génération et sa façon de gérer ses rapports au
monde. C‟est donc dans une démarche double, d‟identification aux signifiants sociaux et de
contestation de ces mêmes signifiants sociaux, que l‟adolescent constitue son rapport au monde et
se positionne subjectivement dans les signifiants de l‟Autre dans sa version sociale. » In :
LESOURD, S. Adolescences... rencontre du féminin : essai psychanalytique sur la différence des
sexes. [Ramontville Saint-Agne] : Erès, 2002. p. 161.
Se Freud fez raro o uso do termo adolescência em sua obra, no
entanto, inúmeras são as referências na obra do criador da psicanálise, ao termo
puberdade. Como nos lembra Ouvry (2004), o termo adolescência não fazia ainda
parte do imaginário social da época de Freud. Talvez por isso ele tenha se
referido ao termo, apenas de forma esparsa e imprecisa no curso de sua obra,
optando pelo uso corrente de puberdade. No entanto, mesmo o termo puberdade
irá sofrer na obra de Freud, algumas transformações de sentido, ao passar do
campo do desenvolvimento biológico e adquirir a dimensão de um tempo de
passagem à cena social, onde o encontro com o Outro sexo se atualiza e inscreve
o mal-estar dos laços sociais no coração do sujeito adolescente. Veremos como
isso se dá no curso da obra do criador da psicanálise. Para Matheus (2008),
Se no texto sobre a puberdade Freud havia apontado a
síntese das pulsões parciais, posteriormente irá sublinhar o
caráter incompleto desse processo e o mal-estar dele
resultante. Há que se considerar que a própria puberdade
está sujeita à intervenção do universo simbólico na qual se
inscreve, ainda que não esteja a ele subordinado, podendo
ser antecipada ou postergada conforme o contexto no qual
cada indivíduo se insere e a história de vida que o
singulariza” (MATHEUS, 2008. p.621)
Em uma de suas cartas a Fliess, que data de 20-05-1896 (1956), Freud
irá distinguir, se utilizando de num quadro demonstrativo, quatro períodos da vida.
Um deles será claramente nomeado como pré-pubertário (até 14 anos), e será
seguido por um outro período que ele denomina apenas como B (13 à 17 anos),
onde nos diz ser um momento de transição relacionado ao recalcamento. Freud
irá conceber, inicialmente, a puberdade como um processo posterior ao período
de latência infantil, através de toda uma série de signos corporais visíveis e
invisíveis. Soma-se a isso, a afirmação de que será na puberdade que
encontraremos uma cisão entre dois modos de prazer, o primeiro deles,
preliminar, do mesmo tipo que aquele produzido pela pulsão sexual infantil,
destinado a não-realização; e um outro, distinto, que Freud irá chamar, prazer de
satisfação, próprio a atividade sexual realizada.
Mas será no texto de 1905, Trois essais sur la théorie sexuelle que ele
irá dedicar um ensaio inteiro às reconfigurações da puberdade. Neste texto, Freud
irá desenvolver a distinção entre a vida sexual infantil e sua passagem à
configuração normal definitiva, própria da fase adulta. De acordo com o
psicanalista, haveria já na infância, uma forma precária de escolha de objeto,
mas nesse tempo do desenvolvimento, as pulsões sexuais não seguiriam nenhum
tipo de unificação, seriam sempre parciais, e sem objetivo definido. Já na
puberdade, essas pulsões passariam a se organizar sob o primado das zonas
genitais, com seu claro objetivo reprodutivo. Freud, no texto intitulado, De la
psychanalyse (1909), dará continuação as teses do texto Trois Essais sur la
théorie sexuelle (1905), afirmando que a vida sexual infantil é rica, mas dispersa,
pois cada pulsão parcial buscará garantir sua própria experiência de prazer, e
será somente na puberdade que a direção sexual do sujeito encontrará sua forma
definitiva que restará na fase adulta. Freud nos diz no texto Trois Essais sur la
théorie sexuelle,
Com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças
que levam a vida sexual infantil a sua configuração normal
definitiva. Até esse momento, a pulsão sexual era
predominantemente auto-erótica; agora, encontra o objeto
sexual. Até ali, ela atuava partindo de pulsões e zonas
erógenas distintas que, independendo umas das outras
buscavam um ecrto tipo d eprazer como alvo sexual
exclusivo. Agora, porém, surge um novo alvo sexual para
cuja consecução todas as pulsões sexuais se conjugam,
enquanto as zonas erógenas subordinam-se ao primado da
zona genital.” 3
(FREUD, 1905/2006. p.196)
3
Tradução extraída de: FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade. In
Edição Standard das Obras Completas, vol.VII. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 196. Do texto
consultado : « Avec l‟arrivée de la puberté interviennent les transformations qui doivent faire
passer la vie sexuelle à sa configuration normale définitive. La pulsion sexuelle était jusqu‟ici
principalement auto-érotique, elle trouve maintenant l‟objet sexuel. Elle s‟exerçait jusqu‟ici à partir
de pulsions et de zones érogènes isolées qui, indépendamment les unes des autres, cherchaient
comme but sexuel unique un certain plaisir. Maintenant un nouveau but sexuel est donné et toutes
les pulsions partielles agissent conjointement pour l‟atteindre, tandis que les zones érogènes se
subordonnent au primat de la zone génitale. » (FREUD, 1905/2006. p. 145) Freud, S. (1905) Trois
Essais sur la théorie sexuelle. In : Œuvres Complètes : psychanalyse. Volume VI. 1901-1905.
Podemos dizer que o ponto forte do desenvolvimento da teoria
freudiana, no que concerne ao tempo pubertário, diz respeito as vicissitudes do
objeto sexual. Freud, anuncia nesse terceiro ensaio (1905/2006), o
desenvolvimento da teoria do objeto sexual caracterizado como para sempre
perdido; “o encontro com o objeto é, propriamente falando, um reencontro”4
”
(FREUD, 1905/2006, p. 16. trad. nossa). Inicialmente, como nos diz Freud, a
primeira satisfação sexual, de amor, se daria entre o bebê e sua mãe, que lhe
oferece o seio e atende sua demanda de alimento que lhe assegura a vida. Seria
este, o momento magistral em que pulsão sexual e pulsão do ego serão
indistintas, e que será regido pela corrente que Freud irá nomear como, corrente
afetiva (courant tendre) (Freud, 1912a/1969), originária na tenra infância, dirigida
àqueles que dedicaram os primeiros cuidados à criança, e correspondente a
escolha primária do objeto infantil.
Esse momento onde nada falta, irá durar pouco tempo, pois logo o
bebê percebe que o seio não é parte constituinte de seu próprio corpo, e que não
vêm à boca a todo momento desejado. Algo irrompe nessa relação dual entre
mãe-bebê, entre pulsão sexual e pulsão do ego, algo então, da ordem de uma
falta se instala, e a criança descobre que pode achar satisfação em uma parte de
seu próprio corpo, sugando o polegar, por exemplo, próprio da etapa autoerótica.
Mas esta etapa, irá se constituir ainda como o modelo segundo o qual o sujeito irá
buscar se reencontrar com esse primeiro objeto sexual para sempre perdido. Na
infância, graças a castração, o encontro com objeto será interditado. Têm início,
graças ao recalcamento, o período de latência, próprio ao desenvolvimento sexual
infantil.
O tempo de latência é, como nos diz Freud (1923-25/1992), o momento
da disparição do complexo de Édipo, da criação e da consolidação do supereu e
da edificação dos diques morais do ego, que irão cuidar da contenção do amor
incestuoso. Nas palavras de Freud, no texto « De la psychanalyse » (1909),
[Paris] : Presses Universitaire de France, 2006. p. 145.
4
Do original : “la trouvaille de l‟objet est, à proprement parler, une retrouvaille » FREUD, S.
(1905) Trois Essais sur la théorie sexuelle. In : Œuvres Complètes : psychanalyse. Volume VI.
1901-1905. [Paris] : Presses Universitaire de France, 2006. p. 16
Mesmo antes do tempo da puberdade, sob a influência da
educação, o recalcamento extremamente enérgico de certas
pulsões foram impostos e algumas forças anímicas como o
pudor, o asco, a moral foram instaurados, forças que, como
guardiães, mantém esses recalcamentos. (FREUD,
1909/1993. p. 44 trad. nossa)5
Com a chegada da puberdade, vemos se levantar uma outra corrente,
corrente sensual, que não cessará de percorrer todos os caminhos que levam ao
objeto escolhido na primeira fase da infância. Com o impossível do incesto,
trazido à tona pela passagem pelo complexo de Édipo, restará à tendência
sensual investir outras vias, que levarão a escolha objetal do tempo pubertário ao
mundo exterior dos objetos que se apresentarão no socius. Temos então que,
Esses objetos estrangeiros serão ainda e sempre,
escolhidos segundo o modelo (imagem) dos objetos infantis,
mas com o tempo eles irão atrair para eles a afeição que era
destinada aos objetos anteriores. O homem deixará pai e
mãe Ŕ como prescreve a Bíblia Ŕ e acompanhará sua
esposa: afeto e sensualidade estarão agora reunidos.
(Freud, 1912a/1969, p. 57 trad. nossa)6
Vemos que a teoria freudiana da sexualidade infantil, elaborada em
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”(1905), apontará para uma linha de
desenvolvimento sexual em três etapas: autoerótica, narcísica e objetal. Estas
etapas dariam conta de uma sexualidade infantil iniciada numa indistinção do
5
Do original consultado : Dès l‟avant le temps de la puberté, sous l‟influence de l‟éducation, des
refoulements extrêmement énergiques de certaines pulsions ont été imposés et des puissances
animiques comme la pudeur, le dégoût, la morale ont été instaurées, puissances qui, tels les
gardiens, entretiennent ces refoulements. FREUD, S. (1909) De la psychanalyse In : Oeuvres
complètes : psychanalyse. Volume X. 1909-1910. [Paris] : Presses Universitaire de France, 1993.
p. 44.
6
Consultado da edição francesa : « Ces objets étrangers seront encore et toujours choisis d‟après
le modèle (l‟image) des objets infantiles, mais avec le temps ils attireront à eux la tendresse qui
était attachée aux objets antérieurs. L‟homme quittera père et mère Ŕ comme le prescrit la Bible Ŕ
et suivra sa femme : tendresse et sensualité sont alors réunies. » (FREUD, 1912a/1969, p. 57)
Freud, S. (1912a) Sur le plus général des rabaissements de la vie amoureuse. In : La vie sexuelle.
[Paris] : Presses Universitaire de France, (1969). p.57.
corpo-próprio, organizado como uma série de zonas érogenas parciais (orgãos
genitais, boca, ânus, orifício urinário), e numa fragmentação dos objetos de
satisfação. Posteriormente, estaria ancorada numa fase narcísica, imaginária,
onde o sujeito renuncia ao investimento libidinal dirigido aos objetos de satisfaçao
e se contenta com seus substitutos imaginários encenados na fantasia. Para
finalmente se propor a um escolha de objeto palpada em objetos externos reais,
mediados pela diferenciação simbólica entre eu e outro, operada pela castração.
E a partir daí, uma série de objetos aparecerão como forma de suprir uma falta de
objeto já instalada; objetos que irão assegurar uma satisfação sempre parcial e
precária. Ouvry (2003) , resume num pequeno parágrafo a menção feita por Freud
em Trois Essais sur la théorie de la sexualité (1905), ao período da puberdade.
(...) a escolha do objeto a partir da puberdade é retomada a
partir dos modelos esboçados durante a infância (na fase
fálica, importante precursora da organização sexual
definitiva) e orientada, graças a barreira imposta pelo
interdito do incesto que surgiu nesse meio tempo, em
direção aos objetos do mundo exterior. O trabalho
psicológico, próprio ao adolescente é o de um afrouxamento
dos laços familiares; trabalho importante e doloroso, como
apontou Freud. Ele passa por uma etapa intermediária que
corresponde a escolha de objeto, sob a forma de
representação; a vida sexual do adolescente se resumirá ao
fantasma. (OUVRY, 2003. p.84-85. trad. nossa)7
Se para a essa escolha do objeto sexual da maturidade, é interditado o
recurso mais cômodo de buscar satisfação junto a pessoa que lhe dedicou tantos
cuidados em outros tempos da infância, restará ao jovem, num primeiro tempo, o
7
Do original consultado : « (…) le choix d‟objet après la puberté est repris à partir des ébauches
esquissées pendant l‟enfance (lors de la phase phallique, important précurseur de l‟organisation
sexuelle définitive) et orienté, du fait de la barrière de l‟interdit de l‟inceste qui s‟est dressée entre
temps, vers des objets adéquats étrangers. Le travail psychologique propre à l‟adolescent est donc
celui du relâchement des liens familiaux, travail important et douloureux précise Freud. Il passe par
une étape intermédiaire qui correspond aux choix d‟objet sous forme de représentation ; la vie
sexuelle de l‟adolescent se résume alors à des fantasmes. ». OUVRY, O. « L‟adolescence dans
les minutes de la Société Psychanalytique de Vienne », In : L‟adolescence dans l‟histoire de la
psychanalyse. (org.) François Marty. [Paris] : In Press éditions, 2003. p. 84-85.
recurso da fantasia, ou seja, representações destinadas a nunca se realizarem
(Freud, 1905), uma vez que encenam, no campo imaginário, a tendência
incestuosa dessas moções pulsionais sexuais. No desenvolvimento neurótico
normal, estas tendências libidinais serão desexualizadas e sublimadas, ou
inibidas quanto a sua finalidade de satisfação. A desparição do complexo de
Édipo poderá ser mais ou menos ideal. No caso de uma total destruição do
complexo, vemos a transformação do conteúdo manifesto das pulsões sexuais
ceder à formação de uma fantasia inconsciente. Mas, « se o ego, na realidade,
não conseguiu muito mais do que uma repressão do complexo, este persiste em
estado inconsciente no id e manifestará mais tarde seu efeito patogênico.”
(FREUD, 1924b, p. 197) ”8
Ou seja, temos aí um arranjo sintomático.
Freud, (1908c), no texto « Caractère et érotisme anal”, ao fazer
referência ao seu trabalho Trois Essais sur la théorie sexuelle (1905), nos dirá
que vários serão os destinos dessas pulsões parciais rumo ao objetivo da
realização sexual, agora possível com a chegada da puberdade. Em suas
palavras,
De modo geral, só uma parcela dela é utilizada na vida
sexual ; outra parte é defletida dos fins sexuais e dirigida
para outros Ŕ processo que denominamos „sublimação‟.
Durante o período de vida que vai do final do quinto ano às
primeiras manifestações da puberdade (por volta dos 11
ano) e que pode ser chamado de „período de latência
sexual‟, criam-se na mente formações reativas, ou contra
forças, como a vergonha, a repugnância e a moralidade. Na
verdade surgem às expensas das excitações provenientes
das zonas erógenas e erguem-se como diques para opor-se
as atividades posteriores dos instintos sexuais.” (FREUD,
1908b, p. 160)9
.
8
Tradução retirada: FREUD, S. (1924b) A dissolução do complexo de Édipo. In Edição Standard
das Obras Completas, vol.XIX. [Rio de Janeiro]: Imago, 2006.p.197. Consultado originalmente:
“quand le moi n‟est vraiment parvenue à beaucoup plus qu‟un refoulement du complexe, ce dernier
subsiste, inconscient, dans le ça, et plus tard il manifestera son action pathogène.” (Freud,
1924.p.31) In: FREUD, S. (1924c) La disparitions du complexe. In : d‟Œdipe Oeuvres complètes :
psychanalyse. Volume XVII. 1923-1925. [Paris] : Presses Universitaire de France, 1992, p. 31.
9
Tradução retirada: FREUD, S. (1908b) Caráter e erotismo anal. In: Edição Standard das Obras
Completas, vol IX. [Rio de Janeiro]: Imago, 2006. Consultado originalmente: “Généralement
parlant, seule une partie d‟entre elles profite à la vie sexuelle; une autre partie est déviée des buts
No texto de 1912, Des types d‟entrée dans la maladie névrotique,
Freud irá se referir ao tempo da puberdade, como o período onde o sujeito
estaria, particularmente, sensível ao adoecimento neurótico, graças ao aumento
significativo de libido sexual que vêm à tona, e que antes havia sido represada
pelo período de latência infantil. No desenvolvimento da neurose, esse quantum
de libido liberada, não satisfeita e não sublimada, poderá buscar a via da
regressão infantil. Esses dois tempos da vida sexual, e mais o tempo de pausa da
latência, pode estar relacionado, nos diz Freud, ao adoecimento a que encontra-
se predisposto o ser humano, já que, os animais, ao contrário, não encontram
essa interrupção no seu desenvolvimento sexual (FREUD 1923-1925/1992).
De um modo resumido, podemos afirmar até aqui, com Freud (1923-
1925/1992), que a sexualidade do ser humano se desenvolve na seguinte
disposição: temos um aumento libidinal entre o quarto e quinto ano de vida, essas
tendências sexuais que serão incestuosas, sucumbem ao recalcamento e se
apaziguam num período de latência que irá durar até a puberdade. No tempo da
puberdade, elas viriam novamente à tona, graças a maturação do corpo para a
sexualidade, com força exemplar e deverão ser novamente veladas, para serem
desviadas graças à possibilidade de satisfação com a escolha de um objeto
externo não-incestuoso da idade adulta. Ou seja, podemos dizer que para o
desenvolvimento da sexualidade humana, faz-se necessário um recalcamento
das pulsões sexuais infantis incestuosas, e um segundo velamento posterior, na
adolescência, dessas mesmas moções pulsionais que serão trazidas novamente
à tona nessa fase do desenvolvimento, em que a maturação do corpo reativa uma
grande descarga de energia sexual, que não pode mais ser contida pelo
recalcamento.
O sujeito é convocado na adolescência a re-significar todas essas
moções pulsionais que estavam adormecidas até o período de latência. Desse
sexuels et dirigée vers d‟autres buts, processus qui mérite le nom de “sublimation”. à l‟époque de
la vie qui peut être qualifiée de « période de latence sexuelle », depuis la fin de la cinquième année
jusqu‟aux premières manifestations de la puberté (autour de la onzième année), sont crées dans la
vie d‟âme Ŕ mêmes au prix de ces excitations livrées par des zones érogènes Ŕ des formations
réactionnelles, des contre-puissances, comme la pudeur, le dégoût et la morale, qui s‟opposent,
tout comme digues, à la mise en activité ultérieure des pulsions sexuelles. » In : FREUD, S.
(1908c) Caractère et érotisme anal. In : Oeuvres complètes : psychanalyse. Volume VIII. 1906-
1908. [Paris] : Presses Universitaire de France, 2007, p. 191.
trabalho de atribuir um novo sentido ao sexual antes adormecido, algo permanece
e resiste a significação, “um resto carente de sentido Ŕ o traumático Ŕ a partir do
qual o psiquismo se organiza. Esse resto diz respeito tanto ao sexual diretamente
considerado, quanto às questões narcísicas que entram em cena em função dos
conflitos de autoridade e poder.” (MATHEUS, 2008, p.622). Será este novo
velamento do real da castração que irá permitir ao adolescente ir de encontro ao
Outro sexo, quando consegue suportar o trauma da castração pela via da
construção de uma ficção que dê conta do sexual, de uma fantasia, ou nas
palavras de Costa e Poli (2010), de um mistério.
A sexualidade não tem um desdobramento que obedeça a
um desenvolvimento, trazendo sempre junto um real que
excede as condições de representação. Nesse sentido, o
que pertencia ao campo da curiosidade infantil, no qual era
suportado o sexual, perde a âncora das relações primárias
nesse momento de passagem. Torna-se necessário, então,
constituir algo que restabeleça essa função. Não sem antes
passar pelas reações de pudor, que revelam algo de uma
privação. É ali que entra em causa a função da fantasia. A
relação ao “mistério” suporta a tessitura de um véu,
necessária nos laços eróticos. Como se sabe, o sonho tem
também essa função: pelo sonho torna-se possível uma
saída de experiências que atualizam um trauma originário. A
experiência corporal na puberdade também se situa como
uma atualização deste trauma. (COSTA & POLI, 2010, p.4)10
Para que todo esse processo seja levado à cabo, outra operação
psíquica bem dolorosa deve entrar em cena, a saber, “o afastamento da
autoridade parental, graças a isso que se poderá criar a oposição importante para
o progresso cultural, entre a nova e a antiga geração”.11
». (FREUD, 1905/2006,
10
COSTA, A. & POLI, M.C. “Sexuação na Adolescência: um ato performativo”. In: Psicologia
Política. VOL. 10. Nº 19. PP. 141-150. JAN. Ŕ JUN. 2010. p. 4
11
Do original consultado : « (…) le détachement d‟avec l‟autorité des parents, grâce auquel
seulement se crée l‟opposition, si important pour le progrès culturel, entre la nouvelle et l‟ancien
génération.» In : Freud, S. (1905) Trois Essais sur la théorie sexuelle. In : Œuvres Complètes :
psychanalyse. Volume VI. 1901-1905. [Paris] : Presses Universitaire de France, 2006. p. 165.
p.165 trad. nossa). Será apenas rompendo com o amor incestuoso parental, que
o adolescente, poderá se inscrever na cena social, onde outros objetos se
apresentam para fazer suplência ao objeto de satisfação para sempre perdido. No
texto « Le roman familiale des névrosés”, (1908 - 1909), Freud chega mesmo a
afirmar que para o desenvolvimento normal do sujeito e para o progresso da
civilização, essa operação de separação e ruptura entre duas gerações, pais e
filhos, é fundamental. Em suas palavras,
Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o
que constitui um dos mais necessários, ainda que mais
dolorosos, resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal
liberação é primordial e presume-se que todos que atingiram
a normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na
verdade, todo progresso da sociedade repousa sobre a
oposição entre as gerações sucessivas. Existe, porém, uma
classe de neuróticos cuja condição é determinada
visivelmente por terem falhado nesta tarefa.12
(FREUD, 1908
-1909, p.219)
Podemos articular a questão adolescente a uma busca identificatória
que garantiria ao sujeito uma pequena ilha, onde o jovem ancora-se para se
proteger da nudez na qual se encontra ao aceder à cena social. No entanto, se no
início a identificação estava do lado do pai Ŕ o menino se identificava ao pai,
detentor da chave para o amor da mãe -, na adolescência esta mesma
identificação irá se deslocar e recair sobre objetos do mundo social. Com a
reativação das moções pulsionais adormecidas do período de latência da
12
Tradução extraída In : FREUD, S. (1908/1909) Romances familiares. In Edição Standard das
Obras Completas, vol.IX, [Rio de Janeiro]: Imago 2006 p. 219. Consultado originalmente : « Que
l‟individu au cours de sa croissance se détache de l‟autorité de ses parents, c‟est une des
opérations les plus nécessaires mais aussi le plus douloureuses du développement. Il est tout à
fait nécessaire que ce détachement s‟effectue, et l‟on peut supposer que chaque être humain
devenu normal l‟a, dans une certaine mesure, accompli. En vérité, le progrès de la société repose
d‟une façon générale sur cette relation d‟opposition entre les deux générations. D‟un autre côté, il
est une classe de névrosés dont on reconnaît que l‟état est conditionné par le fait qu‟ils ont échoué
dans cette tâche.Freud, S. (1908/1909) « Le roman familiale des névrosés”, In : Névrose,
psychose et perversion. [Paris] : Presses Universitaire de France.1973 p. 254.
sexualidade infantil, que acontece na adolescência, serão também reativados os
interditos que impedem a realização da satisfação sexual que reivindica o sujeito.
O sujeito adolescente acorda inscrito num cenário de frustração, aonde
anteriormente encontrava-se adormecido numa promessa de satisfação.
A identificação, que como nos diz Freud, é ambivalente desde o início,
ganhará ares de agressividade dirigida ao pai, obrigando o adolescente a olhar
para fora da cena familiar. Assim, o adolescente é confrotado ao real da perda do
objeto e, deve buscar no campo do Outro, o amor anseado; algo que transporta o
adolescente em direção à cena social. Nas palavras de Lesourd (2004b),
A construção do eu adolescente, como a do eu infantil, é
indissociável da questão da relação aos objetos. Como a
primeira identidade se constrói a partir dos objetos infantis
du „círculo familiar‟, o Outro infantil (objetos de amor paterno,
materno ou fraterno, ou o objeto de satisfação proposto pela
mãe), o adolescente se apoiará nesses objetos que irá
procurar no Outro social para afirmar seu eu juvenil. Esses
objetos de desejo não serão mais aqueles do amor primário
ou edipiano, mais os objetos metaforizados destes,
propostos pela realidade social. As fontes de satisfação do
desejo se inscrevem no campo do Outro social e do Outro
sexo 13
» (LESOURD, 2004b, p.26. trad. nossa)
Podemos dizer até aqui que, toda problemática da passagem
adolescente à cena social gira em torno da superação do impossível da satisfação
incestuosa, do velamento deste impossível via fantasia, do deslocamento da
identificação ao pai para uma identificação aos pares e do encontro com o Outro
13
Do original consultado : « La construction du moi adolescente, comme celle du moi infantile, est
indissociable de la question du rapport du sujet aux objets. Comme la première identité s‟est
construite au travers des premiers objets infantiles du « cercle de famille », l‟Autre infantile (objets
d‟amours paternel, maternel ou fraternel, ou objet de satisfaction proposé par la mère),
l‟adolescent va s‟appuyer sur des objets qu‟il cherche dans l‟Autre social pour affirmer son moi
juvénile. Ces objets de désir ne sont plus alors ceux des amours primaire ou œdipien, mais des
objets métaphoriques de ceux-ci proposés par la réalité sociale. Les sources de satisfaction du
désir s‟inscrivent au champ de l‟Autre social et de l‟Autre sexe. » In :LESOURD, S. (2004b)
Reconstruction narcissique du moi adolescent. In : Figures de la psychanalyse. [Paris] : Erès,
2004/1, no. 9. p. 25-34. p. 26. http://www.cairn.info/revue-figures-de-la-psy-2004-1-page-25.htm.
sexo. Mas para entendermos do que se trata esse encontro com o Outro sexo,
devemos entender a leitura de Freud que faz Lacan sobre a sexualidade infantil,
já que será a partir desse encontro que o sujeito acede à dimensão simbólica da
castração.
1.3.A questão adolescente e o encontro traumático com o
Outro sexo
Se na teoria freudiana, a questão da linguagem aparecia apenas de
maneira discreta Ŕ mesmo que insistente, na figura dos lapsus, dos chistes -, na
obra de Lacan, ela ganhará a cena principal quando o psicanalista irá firmar que o
inconsciente é ele mesmo estruturado como uma linguagem. Freud, em Trois
essais sur la theorie sexuelle (1905), aborda o interesse inicial das crianças pelo
enigma da diferença dos sexos, quando o menininho se surpreende com o fato de
que a menina não possui o pênis. Trata-se de uma constatação anatômica: ter ou
não ter pênis; o que levará Freud (1923) a afirmar que haveria um primado do
falo: “para os dois sexos, apenas um orgão genital, somente o orgão masculino
desempenha um papel. Logo, não é que exista um primado genital, mas sim um
primado do falo.” (FREUD, 1923/1969, p.114, trad. nossa)14
.
O menininho, quando confrontado com a ausência do pênis, nega que
exista uma falta, ou melhor, irá explicar a falta como o resultado de um castigo: a
menina tinha o pênis, mas ele lhe foi tirado. E será sua mãe a última das
mulheres a ser castrada: “(...) longe de generalizar, a criança acredita que apenas
as pessoas femininas indignas tiveram de pagar o castigo de perda do orgão
genital; pessoas que, como ele, são culpadas dessas moções interditadas. Mas,
as mulheres respeitadas, como sua mãe, guardaram o pênis por mais tempo.
(FREUD, 1923/1969, p.116, trad. nossa).15
» O que levará Ouvry (2006) a afirmar
14
Consultado originalmente : “(...) pour les deux sexes, un seul organe génital, l‟organe mâle, joue
un rôle. Il n‟existe donc pas un primat génital, mais un primat du phallus. » In : FREUD, S. (1923)
L‟organisation génitale infantile. In : La vie sexuelle. [Paris] : PUF, 1969.p. 114.
15
Consultado originalmente : “(...) loin de généraliser, l‟enfant croit que seules des personnes
que não há, na infância, acesso possível a consistência do Outro sexo.
Esse encontro, para se cumprir deverá contar com a mediação de um
Outro, que cuidará de inscrever esse encontro no simbólico, na cultura. Será pela
via da linguagem que o acesso ao Outro sexo poderá ser encenado. Isto porque,
no humano, diferente dos animais onde o encontro sexual é da ordem do
realizável - o instinto constitui este saber, no real, que guia os animais pelos
caminhos do sexo de modo uniforme -, não haveria nunca qualquer garantia de
acesso ao Outro sexo. E se, na infância, não se pode conceber o Outro sexo, na
adolescência, ao contrário, se é confrontado a ele, graças ao curto-circuito
pulsional trazido pelo real do corpo. Nas palavras de Matheus,
Entende-se que a puberdade pode por vezes funcionar
como elemento disparador do segundo momento da
sexualidade, mas não como condição necessária. É,
sobretudo, a partir do olhar do outro, ou da imagem
especular que este anuncia, que surge, para o sujeito, um
corpo estranho, um componente novo em seu psiquismo que
não encontra registro entre os recursos simbólicos
disponíveis. Esse olhar e essa imagem não estão presos à
concretude da realidade, uma vez que esta é sustentada
pelo campo simbólico que a fundamenta e acompanha. Da
realidade, busca-se ao menos um grão que sirva de suporte
para o real a ser, disparado pela estranheza do olhar do
outro. São as imagens de um corpo transformado,
produzidas em meio a este ou a tantos outros, que instigam
o retorno do recalcado, inaugurando o segundo momento da
sexualidade. É por esse motivo que o momento adolescente
independe imediatamente da puberdade, pois está atrelado
aos sentidos que aquele corpo conquista nos laços nos
quais se inscreve.” (MATHEUS, 2008 p. 622)
Tal é o caso que vemos com uma certa recorrência em nossos dias, de
adolescentes que brincam de expor o corpo do outro e mesmo o corpo próprio
féminines indignes ont payé amende de l‟organe génital, des personnes qui vraisemblablement se
sont rendues coupables comme lui-même de motions défendues. Mais des femmes respectées,
comme sa mère, gardent encore longtemps le pénis. In :FREUD, S. (1923) L‟organisation génitale
infantile. In : La vie sexuelle. [Paris] : PUF, 1969.p. 114.
com gravações destinadas, ou não, a serem exibidas e publicizadas na internet.
Em nosso trabalho, presenciamos, o seguinte episódio: adolescentes entre 14/15
anos que, de posse de um telefone celular equipado de uma pequena câmera,
instigam duas crianças de 8 anos a encenarem um ato sexual. Esses
adolescentes lhes instigam, ou melhor dirigem uma encenação de um ato,
orientando as duas crianças em relação aos movimentos a serem realizados pelo
corpo de ambos. Tudo isso é filmado e descoberto rapidamente pelos adultos da
escola; descoberto tão facilmente que nos leva a crer no endereçamento deste
pequeno vídeo.
Lacan (1956/1998) em O seminário sobre a “carta roubada”, nos
aponta sobre a importância da transferência da responsabilidade daquele que
escreve a carta, em nosso caso, aqueles que participam e são autores do vídeo,
para a responsabilidade daqueles que detém o vídeo, seu destinatário final. O
vídeo em questão não foi tornado público via internet, mas foi passado de mão
em mão (de telefone a telefone) até chegar nas mãos da direção da escola.
Entendemos que essa encenação do ato sexual, para aqueles que a
orquestraram, constitui uma forma de abordar o excesso do real do corpo que
invade o sujeito adolescente, difícil de ser simbolizada por eles mesmos, e por
isso, endereçada a um Outro que por ele deve responder e, assim ajudá-lo a
simbolizar esse excesso de real. Rassial (2010), em seu livro Le passage
adolescent, nos dirá que a adolescência é o tempo subjetivo em que a imagem do
corpo-próprio, construída na infância, é desestabilizada, « (...) ou seja, não mais
apoiado no olhar e na voz materna e no falo paterno, mas já inserido na relação
ao Outro sexo (...)” 16
(RASSIAL, 2010, p. 73, trad. nossa).
Mas também, esse episódio, nos força a seguinte interrogação: Por
que os escolhidos como atores principais dessa encenação sexual foram duas
crianças e não os próprios adolescentes, seus mestres - de - cerimônia? Pois, se
na adolescência o possível do encontro sexual é atualizado sob a forma da
promessa irrealizável, é somente, na infância que este encontro é da ordem do
16
Consultado originalmente: “ (...) c‟est-à-dire non plus soutenue par le regard et la voix de la mère
et le phallus paternel mais engagé dans la relation à l‟autre sexe (...) » RASSIAL, J.-J. (1996) Le
passage adolescent.[Toulouse]: Erès, 2010. p. 73.
possível, do encontro com o objeto de satisfação antes de ser perdido para todo
sempre. Por isso, não é mera força do acaso que os atores da cena tenham sido
as crianças, pois apenas elas podem podem ter a experiência da completude
imaginária.
Vejamos como a questão adolescente se atualiza com a
desestabilização da imagem do corpo próprio garantida pelo olhar da mãe e
também pelo confronto com a dimensão do Outro sexo, simbolizado por meio da
lei. A questão da imagem do corpo próprio foi trabalhada por Lacan no início de
sua obra, no texto O estádio do espelho como formador da função do eu
(1949/1998), e em Les complexes familiaux dans la formation de l‟individu
(1938/2001). O estádio do espelho seria o momento inaugural, onde a partir da
idade de seis meses, o bebê humano se surpreende com o ordenamento
perceptivo da imagem de si, a partir da imagem de um Outro que se mostra ao
seu lado diante do espelho. Este seria o início de uma fase narcísica e o
ultrapassamento da fase auto-erótica do corpo fragmentado. Em Lacan, será pela
função do olhar que a criança sairá, progressivamente, da confusão de um corpo
despedaçado, graças a ilusão de um ideal da imagem de um Outro. Nas palavras
do psicanalista, “(…) a unidade que ela introduz nas tendências, irá contribuir,
portanto, para a formação do eu. Mas, antes que se possa afirmar sua identidade,
o sujeito se confundirá com essa imagem que o forma, mas que também o aliena
primordialmente.” 17
(LACAN, 1938/2001, p. 43, trad. nossa).
Ainda, em Les complexes familiaux, Lacan colocará o acento na
importância traumática do complexo de intrusão e do sentimento do ciúme para o
reconhecimento de um outro como objeto e para a constituição do moi nessa
etapa da tenra infância.
Assim, o sujeito preso por identificação ao ciúme, chega a
uma nova alternativa : ou bem ele reencontra o objeto
materno e irá se agarrar a recusa do real e a destruição do
17
Do original consultado :: “(...) l‟unité qu‟elle introduit dans les tendances contribuera pourtant à la
formation du moi. Mais, avant que le moi affirme son identité, il se confond avec cette image qui le
forme, mais l‟aliène primordialement. » LACAN, J. (1938) Les complexes familiaux. In : Autres
Ecrits. [Paris]: Éditions du Seuil, 2001. P. 43.
outro ; ou bem, conduzido a qualquer outro objeto, ele irá
recebê-lo segundo o modo característico do conhecimento
humano, como objeto comunicante, na medida em que toda
concorrência indica rivalidade, mas também, acordo. Mas,
ao memso tempo, ele reconhece o outro com o qual ele
entra na luta ou faz um contrato, resumindo, ele encontra, ao
mesmo tempo, o outro e o objeto socializado.18
(LACAN,
1938/2001, p. 43 trad. nossa).
Assim, no início de sua obra, Lacan irá afirmar que o processo de
socialização do sujeito se faz, como em Freud, via identificação; o ciúme entre
irmãos do complexo de intrusão não seria a prova de uma rivalidade vital, mas
sim, de uma identificação mental (Lacan, 1938/2001). Esta idéia de uma
rivalidade vital, será retomada por Lacan, como a chave-mestra em sua
argumentação sobre os dois tempos da subjetivação: alienação e separação.
Como iremos desenvolver mais adiante, no capítulo III desta tese, o conceito de
alienação será fundamental para entendermos as etapas do desenvolvimento do
[eu/moi] e sua relação com o registro imaginário da alteridade (eu e tu), bem
como a emergência do sujeito [je] como efeito do significante, entrada no campo
do simbólico, do Outro na obra de Lacan.
O conceito de alienação na obra de Lacan, será analisado por Poli
(2003), que irá apontar três tempos do desenvolvimento desta noção na obra do
psicanalista: o primeiro deles estaria presente no texto do Estádio do Espelho
(1949/1998) e seria da ordem de uma alienação primordial. Lacan irá situar, no
início de sua obra, o [eu] - moi, produto das identificações -, numa relação de
submissão à imagem especular garantida por um Outro, representado,
inicialmente, pela imago materna. Neste tempo, o operador da alienação é a
imago materna da qual a criança deverá se separar, deixando de ser o objeto do
18
Do original consultado : « Ainsi le sujet, engagé dans la jalousie par identification, débouche sur
une alternative nouvelle où se joue le sort de la réalité: ou bien il retrouve l‟objet maternel et va
s‟accrocher au refus du réel et à la destruction de l‟autre; ou bien, conduit à quelque autre objet, il
le reçoit sous la forme caractéristique de la connaissance humaine, comme objet communicable,
puisque concurrence indique à la fois rivalité et accord ; mais en même temps il reconnait l‟autre
avec lequel s‟engage la lutte ou le contrat, bref il trouve à la fois l‟autrui et l‟objet socialisé.
In :LACAN, J. (1938) Les complexes familiaux. In : Autres Ecrits. [Paris]: Éditions du Seuil, 2001.
P. 43.
gozo da mãe, para aceder a dimensão do sujeito do inconsciente, se alienando ao
significante.
A partir daí, o operador da alienação passa a ser o significante Nome-
do-Pai que irá introduzir no conflito do tempo edipiano, uma promessa: uma
promessa de satisfação adiada, que fará que o véu encobridor do sexual, repouse
sobre a criança nos tempos da latência. Ou seja, pelo conflito funcional do Édipo,
a “repressão aparece como um ideal de promessa” (Lacan, 1938/2001, p. 57).
Nas palavras de Lacadée,
Após haver dado, nesses termos, a definição do sujeito e do
significante, como “o significante é aquilo que representa o
sujeito para um outro significante‟, Jacques Lacan tratou das
condições dessa representação, chamada operação lógica
de causação do sujeito, que supõe um tempo da alienação e
um tempo de separação; tempos que permitem a inscrição
do sujeito na linguagem. Assim, esta operação produz, de
um lado, o sujeito do incosnciente, ou seja, o sujeito inscrito
no significante e, de outro lado, relaciona esse sujeito a um
elemento não significante que Lacan chamou de objeto. O
agente desta operação de separação é o encontro com o
desejo do Outro precebido nos intervalos de seu discurso,
que irá ligar o sujeito ao objeto enigmático deste desejo.”19
(LACADÉE, 2003, p.97 trad. nossa)
A criança de desloca da posição de ser o objeto do gozo da mãe, e,
como forma de se defender da ausência desse Outro primordial do qual se faz
objeto, elege um objeto do mundo externo, com o qual irá gozar, como forma de
19
Do original consultado : Après avoir donnée la définition du sujet et du signifiant en ces termes
« le signifiant est ce qui représente le sujet pour un autre signifiant », Jacques Lacan a abordé les
conditions de cette représentation, appelée opération logique de causation du sujet, qui suppose
un temps de aliénation et un temps de séparation, temps permettant l‟insertion du sujet dans le
langage. Ainsi, cette opération produit, d‟une part, le sujet de l‟inconscient, c‟est-à-dire le sujet
inscrit dans le signifiant et, d‟autre part, corrèle ce sujet à un élément non signifiant que Lacan a
appelé l‟objet. L‟agent de cette opération de séparation est la rencontre du désir de l‟Autre
entraperçu dans les intervalles de son discours, qui réfère le sujet à l‟objet énigmatique de ce
désir. » In : LACADÉE, P. (2003) Le malentendue de l‟enfant. Des enseignements
psychanalytiques de la clinique avec les enfants. [Lausanne] : Psyché, Éditions Payot, 2003. p. 97.
dar conta da falta desse primeiro Outro. Nas palavras do psicanalista, “Este objeto
irá lhe permitir tratar a falta do Outro pela entrada do objeto olhar, e de recobrir o
vazio da castração que implica a partida de sua mãe, o que colocará em
evidência a castração do Outro, expondo sua falta.” »20
(LACADÉE, 2003, p.91
trad. nossa). Temos aqui, o momento da inscrição no campo do simbólico, onde o
sujeito deve abrir mão do gozo e ficar com a promessa de um dia poder também
gozar. Nesta operação algo se perde, o objeto a, causa do desejo, responsável
pela circulação do sujeito na cadeia significante. O sujeito se constitui por relação
a uma falta e, supõe no Outro, o detentor de uma verdade que lhe permita aceder
a este momento primeiro, anterior, onde carne e corpo libidinal não estavam ainda
cindidos. Nas palavras de Lesourd (2005),
Neste confronto inevitável, o adolescente irá encontrar uma
das figuras da falta no Outro, que até agora ele havia
conseguido evitar, ou até mesmo, ignorar. Diante da
descoberta de que a promessa edipiana Ŕ “mais tarde quando
serei grande, eu poderei ...” Ŕ é um engano, é toda a
organização significante que é desestabilizada. Não haverá
mais resposta possível aos enigmas da vida e do sentido,
nada mais de significação última que organizaria os
significantes lhes atribuindo um certo ordenamento.21
(LESOURD, 2005, p. 56 trad. nossa)
É, então, essa conta do gozo perdido e prometido que vêm o
adolescente cobrar. Mas, qual é sua surpresa? De que não há, no campo do
Outro, esse significante que dê provas de sua verdade enquanto sujeito, e que
20
Do original consultado: “Cet objet lui permet de traiter le manque de l‟Autre par la mise en jeu de
l‟objet regard et de voiler le vide de la castration qu‟implique le départ de sa mère, départ qui a
révelé la castration de l‟Autre, en dévoilant son manque. Ibidem, p. 91.
21
Do original consultado: « Dans cette confrontation inévitable, l‟adolescent va rencontrer une des
figures du manque dans l‟Autre, que jusqu‟alors il avait pu éviter, voire l‟ignorer. Face à la
découverte que la promesse œdipienne Ŕ “plus tard, quand je serai grand, je pourrai ...” Ŕ est un
leurre, c‟est toute l‟organisation signifiante qui est bouleversée. Plus de réponse possible aux
énigmes de la vie er du sens, pas de signification dernière qui organiserait l‟ensemble des
signifiants en les ordonnant. » In : LESOURD, S. (2005) La construction adolescente. Collection
Hypothèses. [Strasbourg] : Éditions Arcanes. 2005. p. 56.
esse Outro não detém a chave para o seu encontro singular com o sexual. Assim,
o sujeito adolescente, tendo se submetido à castração, estará fadado ao
desencontro do sexual: « (...) a lei da castração (…) leva o ato sexual a um eterno
ato falho, onde não cessam de se verificar a ausência da relação sexual, derrota
em reunir sujeito e Outro como corpo.”.”22
(OUVRY, 2001, p.64 trad. nossa).
Essa teorização é possível, graças ao terceiro tempo do conceito de
alienação na obra de Lacan, cujo operador é o significante. O terceiro tempo do
conceito de alienação apareceria no Seminário XI Ŕ Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise (1964/1998), onde Lacan se afasta da fonte de
inspiração hegeliana ao elaborar sua teoria do objeto a, que daria provas que o
campo do Outro é também faltoso. Nas palavras de Poli (2003), não haveria um
significante pleno que garanta a significação do sujeito, ele falta ao também ao
campo do Outro. O sujeito se desloca, na adolescência, de uma promessa de
gozo fálico (masculino), para cair no impossível da satisfação sexual, do Outro
sexo, representado como falta, como feminino. Neste momento, em que a imago
parental é colocada em xeque, o adolescente corre em busca de um Outro
discurso que possa orientá-lo em sua busca pelo encontro com o objeto de amor,
no social, que fará suplência a sua falta. Nas palavras de Poli (2003),
A mãe, como Outro do infantil, é o agenciador do discurso
para a criança, o endereço da demanda e, portanto, o lugar
da alienação primária. Na adolescência, ele é substituído
pelo Outro sexo Ŕ o feminino, tanto para meninos quanto
para meninas; o que implica na constatação da sexualidade
materna, à qual se deve, muitas vezes, os momentos de
angústia do púbere. Em termos de organização discursiva,
tal modificação no Outro, produz efeitos de “perda de
bússola” (POLI, 2003, p. 149).
22
Do original consultado : “(...) la loi de la castration (...) ramene l‟acte sexuel à un éternel acte
manqué où ne cessent de se verifier l‟absence de rapport sexuel, l‟échec de reunir sujet et l‟Autre
comme corps. » In : OUVRY, O. (2001) Le Féminin comme nouveauté pubertaire. In: Le feminin:
un concept adolescent ? Sous la dir. de Serge Lesourd. [Ramonville-Saint-Agne] : Erès , 2001. p.
64.
É por isso que nesta passagem, onde o adolescente irá se confrontar
com a ferida aberta Ŕ traumática Ŕ deixada pelo real da castração, a partir do qual
o sujeito irá inscrever seu gozo na Lei da linguagem, da civilização, será
fundamental encontrar um lugar de pertencimento no discurso social. O mesmo
trabalho de inscrição deverá ter sido feito na cena familiar infantil, aonde pai e
mãe, investiram simbolicamente a criança com seu desejo parental, não anônimo.
“Da mãe : enquanto que seus cuidados carregam a marca de um interesse
particular, pela via de suas próprias faltas. Do pai: enquanto que seu nome é o
vetor da incarnação da Lei no desejo.”»23
(LACAN, 1961/2001, p.373 trad. nossa)
Rosa (2002; 2006), irá aprofundar essas questões do lugar de incrição
da criança e do adolescente na família e no socius. No artigo O lugar da criança e
a família na contemporaneidade (2006), irá discutir as reconfigurações que o
discurso da parentalidade vêm enfrentando na sociedade atual, regida pelos
mandos e desmandos do discurso da ciência que abole a dimensão da falta do
seio da construção do sujeito, considerando os indivíduos apenas como corpos
biológicos. Nos diz que enfrentamos uma crise na concepção de família, o que
nos convoca a reconsiderar seus princípios fundadores. Prossegue em sua
argumentação ao desnaturalizar a função materna e paterna, ligando-as ao
imaginário social que as produz.
Exercer as funções maternas e paternas supõe mais do que
certa estrutura subjetiva. O sujeito da linguagem constituído
pelo discurso do Outro é impregnado pela produção
imaginária do grupo social, na medida em que contém
fantasmas desses grupos. É desse fantasma que advém a
inscrição de um lugar discursivo para o exercício das
funções parentais; estas supõem uma inscrição que
transcende o desejo ou a vontade de cada um, pois cada
sociedade fabrica pai para filho, designação que não é
23
Do original : “De la mère: en tant que ses soins portent la marque d‟un intérêt particularisé, le fût-
il par la voie de ses propres manques. Du père : en tant que son nom est le vecteur d‟incarnation
de la Loi dans le désir. » IN : LACAN, J. (1969) Note sur l‟enfant. In : Autres Ecrits. [Paris]: Éditions
du Seuil, 2001. P. 373.
arbitrária. Ter pai significa que o sujeito não se auto-funda.
(ROSA, 2006, p. 121)
No contexto da contemporaneidade, onde as coordenadas sociais são
anômicas, a família enquanto função territorializante, garantidora de um lugar
subjetivo para criança, pode ela mesma, ser produtora de desamparo e geradora
de angústia. Se a cena social está presente na base da cena familiar, como nos
diz Rosa (2002), podemos inferir que a busca do adolescente por um Outro
discurso de pertencimento que não o parental, é também um ir de encontro a uma
nova solidão. Este contexto, onde o Outro social se mostra anômico e incapaz de
responder pela entrada do sujeito adolescente na cena social, favorece uma saída
pela fixação melancólica narcísica, que se instala no momento em que o sujeito
deve superar as identificações aos ideias parentais.
1.4.A questão adolescente no contemporâneo: o desamparo
diante do Outro social anômico
Como nos aponta Freud (1915-1917/1996), em Luto e Melancolia, dois
destinos se anunciam para o ego quando confrontado ao imperativo do abandono
dos primeiros objetos de amor, vítima do interdito do incesto. Ou bem o sujeito
adolescente segue o caminho „normal‟ do abandono do objeto, acatando ao
doloroso sofrimento implicado no processo de luto que comporta essa perda, se
contentando com os outros objetos que irão se apresentar no mundo social. Ou
pode ainda, recusar essa substituição, na medida em que ela é apenas um
artifício mal-ajambrado, caindo numa cilada melancólica. Podemos então
relacionar a entrada adolescente na cena social a uma passagem entre luto e
melancolia que irá orientar o ego em direção a um lugar de pertencimento ao
desejo do Outro.
O luto é de modo geral, uma reação à perda real de um ente querido,
mas também do ideal representado por esse alguém. O luto, nos diz Freud, seria
um processo não-patológico, doloroso, que sofre o ego diante da perda de um
ente querido, ou de alguma abstração ideal que se colocou no lugar deste ente.
Já a melancolia difere, em aspectos ideais do desenvolvimento, de uma situação
de luto, pois se inscreve numa situação de perda de um objeto ideal, e não real;
“O objeto de amor talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido
enquanto objeto de amor (...)”(FREUD, 1915-1917/1996, p. 251)
O adolescente deverá se separar do ideal parental, perdê-lo, para ir em
busca de um lugar no campo social, que lhe dará a possibilidade de compensar
essa falta, via substituição por um outro objeto que venha fazer suplência a essa
perda. Este processo pode se dar como passagem ou como fixação; como luto ou
como melancolia. No caso de ser apenas uma passagem, trata-se do
desenvolvimento ideal do ego, rumo à escolha objetal: àquela apontada por Freud
(1921) em Psicologia de Grupo e a Análise do ego, e O ego e o id (1923), em que
a identificação com os objetos parentais precede à escolha de objeto. No caso da
fixação melancólica a catexia objetal retrocede a uma identificação, e será o
próprio ego a ser investido como objeto de amor, assumindo a forma patológica
de uma regressão ao narcisismo primário. No primeiro teríamos um tempo de luto,
onde a perda do objeto passou pelas exigências do teste de realidade que
constatou que objeto não existe mais (Freud, 1915-1917). O ego protestaria um
pouco, mas se resignaria diante da realidade, fazendo progressivamente, o
desligamento da libido em direção a outros objetos substitutivos. No processo
melancólico, temos uma fixação que impede o reconhecimento da perda, pela via
da regressão que irá identificar o próprio ego ao objeto de que não pôde abrir
mão. Como nos diz Freud, existiria,
(...) num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação
da libido a uma pessoa particular, então, devido a uma real
desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa
amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi
o normal Ŕ uma retirada da libido desse objeto e o
deslocamento da mesma para um novo -, mas algo
diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser
necessárias. (...) a libido livre não foi deslocada para outro
objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi
empregada de maneira não especificada, mas serviu para
estabelecer uma identificação do ego com o objeto
abandonado. Assim, a sombra do objeto caiu sobre o ego, e
este pôde, daí por diante, ser julgado por uma agente
especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado.”
(Freud, 1915-1917/1996, p. 254-255)
Mas o que faz o processo adolescente estar tão próximo da solução
melancólica é que, ao contrário do luto, que mantém uma relação entre o objeto
perdido e às vicissitudes da realidade, no caso da melancolia, a relação com o
objeto é carregada da ambivalência primária dos sentimentos, suporte também de
toda relação com o objeto de amor parental do qual o adolescente deve buscar de
separar. “Na melancolia, em consequência, travam-se inúmeras lutas isoladas em
torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se digladiam.” (Freud, 1915-1917/1996,
p. 261). A porta de saída de uma fixação melancólica é também apontada por
Freud: se é a ambivalência dos sentimentos e o amor que ela implica que irá
tornar o desapego ao objeto tão difícil, é ela também em sua corrente contrária,
que progressivamente, irá dissolvê-lo, matando-o a cada dia, pouco a pouco.
Se, como dissemos, é a força da ambivalência dos sentimentos ao pai
que irá fazer o adolescente mergulhar num tempo melancólico, será esta mesma
força que o fará sair da cilada da fixação ao objeto de amor parental. O pai que é
amado, e que por isso, dificulta que o adolescente se movimente rumo aos
objetos do mundo exterior, é também, o pai odiado, aquele que como nos diz
Freud (1913), em Totem e Tabu e o mito da horda primitiva, é o detentor de todas
as mulheres do clã, e impede com sua autoridade, que os filhos realizem o
encontro amoroso incestuoso. Por isso, é também esse mesmo pai, odiado, que
impulsiona o adolescente a sair da fantasia do incesto, familiar, e o impele a cena
social, onde “novos” objetos irão circular e serão escolhidos, fazendo suplência a
satisfação primordial.
Em nossos dias, algo interessante acontece com essa figura do pai
que, por ser também odiado, autorizava a saída adolescente rumo à escolha do
objeto no social. Ele, esse pai, não suporta sustentar a ambivalência dos
sentimentos do qual deve ser alvo, quer seja, pois está cada vez mais ausente na
vida real Ŕ está preso, desapareceu, tem outra família -, quer seja, porque se
operou nos últimos tempos, uma revolução em termos de parentalidade e seu
papel na educação das crianças. Para fins desse tópico, traremos o debate
acerca da passagem adolescente no cenário familiar do contemporâneo.
Assim, nos caberia fazer a seguinte pergunta, o que aconteceria, como
é o caso nos dias de hoje, se os liames simbólicos entrassem em ebulição e a
ordem familiar de outrora, dos tempos de Freud, entrasse em desordem?
Veremos a seguir, de que forma esse laço familiar entra em desorde.
(ROUDINESCO, 2002) e quais são as consequências para a passagem
adolescente à cena social, via desapego ao objeto de amor parental. Ou seja,
como o adolescente consegue aceder a dimensão de encontro com objeto sexual,
num contemporâneo marcado por um Outro social anômico, incapaz de
responder ao sujeito com as balizas simbólicas que garantam sua existência
num campo de sentido. Diremos que responder, significa também, suportar-
se enquanto Outro faltoso, permitindo que o sujeito se confronte com o mal-
estar inevitável de sua condição. Diremos que responder é suportar a
angústia de sua própria incompletude. E isso é extamente o que a cena
social contemporânea tenta evitar ao se organizar sob a égide do discurso
do capitalismo, que tenta apagar do sujeito a dimensão do mal-estar,
preenchendo o furo de incompletude com os objetos de consumo, nas
palavras de Lacan, gadgets. Veremos mais adiante os contornos desse Outro
anômico e sua incidência na organização da família contemporânea, o que não
será sem consenquências para os modos de inscrição do adolescente a cena
social.
Roudinesco (2002), em seu livro La famille en désordre, nos mostra
como a instituição familiar sofreu, a partir do século XIX na Europa, enormes
transformações. Primeiramente, a criança passa a ser um ser desejado e
projetado pelo casal unido em matrimônio por amor. Nos diz a autora, “ (...) a
criança passou a ser olhada, no seio da família burguesa, como um lugar da
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  • 1. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP VIVIANI SOUSA DO CARMO ANONIMATO DE VIDA E DE MORTE: CONTEMPORANEIDADE E LAÇO SOCIAL NA ADOLESCÊNCIA SÃO PAULO 2011
  • 2. VIVIANI SOUSA DO CARMO ANONIMATO DE VIDA E DE MORTE: CONTEMPORANEIDADE E LAÇO SOCIAL NA ADOLESCÊNCIA Tese apresentada ao Programa de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP para Obtenção do título de Doutor Em Psicologia Social Orientador (a): Miriam Debieux Rosa São Paulo 2011
  • 3. ERRATA 1 : Onde se lê : RÉSUMÉ en français Leia-se : CARMO, V. S. L’anonymat de vie et de mort : le lien social à l’adolescence. 2011. pp. 217 Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em Psicologia Social – Pontifiícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, em co-tutela com o Programa de Sciences de l’Education da Universidade de Paris 8 – Vincennes, Seine Saint-Denis, França. 2011. RÉSUMÉ : L’anonymat de vie et de mort: le lien social à l’adolescence Le sujet de cette thèse porte sur les vicissitudes de l’inscription dans le lien social par les adolescents qui vivent dans les grands centres urbains marqués par le contexte de l’anomie et de la violence urbaine. Nous sommes intéressés par leurs stratégies de subjectivation : comment faire lien dans un contexte, où la vie s’inscrit et s’efface dans une mort presque certaine et anonyme ? Comment ils font lien alors que leur vie et leur mort n’ont plus de valeur sociale? Pour cette recherche, nous nous sommes adressés aux adolescents dans leurs milieux scolaires, à partir de la création de groupes de conversations à thématiques libres. Ces groupes cliniques de conversations que nous avons coordonné, ont eu une orientation psychanalytique et ils nous ont permis la construction de quelques vignettes cliniques qui sont éparpillées dans le corps de la thèse. Nous avons choisi une disposition en quatre chapitres, dont le premier porte sur la construction adolescente dans le lien social, mais surtout, sur les difficultés de se faire lien dans un contexte d’un Autre social anomique. Le deuxième chapitre, traite du travail clinique réalisé avec des adolescents en milieu scolaire. Ce travail c’est concrétisé par la création de groupes de conversations avec une orientation psychanalytique. Le troisième chapitre s’ancre sur une forte discussion théorique sur le lien social dans l’œuvre de Freud et Lacan. Avec Freud on pourra affirmer que, avec l’arrivée du concept de surmoi, le lien social se ferra par la voie du sentiment de culpabilité. Avec Lacan, nous allons parcourir le chemin du dépassement d’une théorie de l’intersubjectivité vers la construction discursive du lien social. On pourrait dire que, si avec Freud, le lien social se maintien grâce au sentiment de culpabilité, avec Lacan, se sera l’obéissance le premier fondement du lien, structuré à partir du discours du maître. Finalement, le quatrième chapitre revient sur le court-circuit dans le lien social et la violence urbaine comme conséquence d’une déréglementation anomique du socius. Après l’époque de la discipline, on passerait sous l’influence du discours du capitalisme, ce qui nous conduira à passer du triomphe de la culpabilité au royaume de la jouissance. Ce contexte peut être dévastateur pour le sujet adolescent, qui trouvera des difficultés pour se subjectiver dans un monde où l’Autre est anomique. Dans un contexte, où la vie s’inscrit et s’efface dans une mort presque certaine et anonyme, la violence urbaine apparaît dans le discours adolescent moins comme une donnée de la réalité de ses jeunes, mais comme le seul moyen qu’ils trouvent pour se construire face à l’autre, non pas en acte, mais en parole, un sujet que se raconte par la voie d’une fiction violente, une histoire violente, où le sujet s’exile et disparaît. Mots-clés : adolescence ; lien social ; anomie ; violence ; psychanalyse ERRATA 2 : Onde se lê, p.17 : « As sociedades de controle, organizadas sob a égide do discurso do capitalista, será a de um Outro social anômico, não limitador do gozo pleno. »
  • 4. Leia-se: « As sociedades de controle, organizadas sob a égide do discurso do capitalista, será a de um Outro social anômico, não limitador do gozo pleno. Com este conceito de um Outro social que seria anômico, não pretendemos afirmar que o Outro do contemporâneo seria vazio de suas marcas significantes, não podendo disponibilizá-las aos sujeitos. Mas, diremos que o conjunto de significantes que este Outro coloca a disposição do sujeito adolescente dos grandes bolsões pauperizados, guetos e favelas, são portadores de desqualificação e geradores de dificuldades de inscrição adolescente no laço social. Esses jovens são confrontados a um futuro incerto; relatórios1 apontam que, pelo menos, 81 mil adolescentes foram assassinados no Brasil nos últimos dez anos. Tratam-se de vidas desqualificadas, jovens de futuro incerto, cercados pelo espectro de uma morte prematura e anônima. Sua vida e sua morte não possuem qualquer valor social positivo, são anônimas. Diremos que este efeito de enganchamento significante pelo pior é mais evidente nesses bolsões em que a lei é desregrada, anômica, e que Agamben (2002) pôde nomear como zonas de exceção. Ou seja, a noção de anonimato e de anomia não se confundem na tese. No último capítulo desta tese, abordaremos o conceito de anomia e sua origem na obra de Durkheim, bem como a posterior torção no conceito que é dada por Agamben. A partir daí, tomaremos estas noções, anomia e exceção, como centrais para caracterizarmos as sociedades do capitalismo avançado contemporâneo, das quais extrairemos todas nossas análises posteriores.”                                                            1 Unicef. (25 de fevereiro de 2011). UNICEF: investimento na adolescência para romper os ciclos da pobreza e da iniquidade, acesso em 25 de fevereiro de 2011 
  • 5. Nome: CARMO, V. S. Anonimato de vida e de morte: contemporaneidade e laço social na adolescência Tese apresentada ao Programa de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP para Obtenção do título de Doutor Em Psicologia Social Aprovado em: BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________ Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________ Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________ Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________ Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________ Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________ Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________ Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________ Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________ Julgamento: ___________ Assinatura:_____________________ Prof. Dr. _______________ Instituição:_____________________ Julgamento: ___________ Assinatura:___________________
  • 6. Aos grandes olhos curiosos de Lola Huerta À José Huerta, que me ensinou que o amor e a resistência são vermelhos
  • 7. AGRADECIMENTOS À Miriam Debieux Rosa, minha orientadora, por ter sido um tão belo encontro. Pela amizade, pelas idéias sempre pertinentes e tão bem pensadas. Por ter me feito acreditar, novamente, que todo pensamento só pode ter sentido pra vida, quando é pensado coletivamente. Pelo cuidado. Pelo respeito. Por nunca ter colocado em dúvida. Por ter mantido as portas sempre abertas. À Maria Cristina Vicentin, parceira tão presente na articulação deste caminho intelectual. Pela força política de sua intervenção. À Ilana Mountian, um forte e belo encontro pelas ruas de Paris. Por ter acreditado, mais do que ninguém, na pertinência deste trabalho. Por me ter feito seguir em frente neste caminho. Pelas discussões, pelas idéias, pelos projetos. Pela grande amizade. À Laurence Gavarini, minha co-orientadora, por ter aceito e apoiado este projeto do outro lado do Atlântico. Por sua paixão pelo trabalho de campo. À Serge Lesourd, por ter aceito compor esta banca. Pela conversa que me deu tantas idéias. À Ana Paula Musatti Braga, pelo amor pela escola, por sua paixão pelos alunos. Por ter tornado possível este encontro com a escola. Pela parceria de trabalho, sempre prazeirosa, afetiva e gratificante. Pelo trabalho que fizemos juntas; pelos trabalhos que ainda faremos. À Ana Elisa Siqueira. À Sandra Alencar, companheira das angústias; companheira de idéias. Por ter me ajudado a transformar São Paulo, numa casa. À Raquel Marinho, pela força e pela lição de não ter cedido em seu desejo. Pela coerência, pelo cuidado com as coisas e com as pessoas. Pelos bolos com café. Por ter me trazido de volta à boca o sotaque mineiro das minhas raízes.
  • 8. À Isabela Cardoza, por ter me confirmado aquilo que eu já sabia: que é possível fazer um bom trabalho e ainda assim, guardar todos os dias um belo sorriso. Pelo senso de humor. À Ilaria Pirone, por ter me apresentado aos meninos de Seine-Saint- Denis. Pela boa companhia em terra estrangeira. À Aurelie Morin e Leticia Castro À Ernane Catroli, por entender o que é um projeto de vida. Por acreditar no valor das coisas. Pelo apoio e pela exigência. Pela lição de amor. À Maria do Carmo, pelo apoio, pelo amor e pelo orgulho que sempre soube que sentia. À Sueli Andrade, a mais querida amiga. Minha procuradora, onde sempre me acho. Minha cumadre na vida. Meu porto-seguro em qualquer lugar. À quem eu confiei meu tesouro de vida. À José Huerta, companheiro amado e dedicado. Por estar presente e também ausente, fazendo filmes pelo mundo afora. Pelo senso de justiça. Pelo senso de humor. Pelos combates contra uma sociedade de cínicos. Pelo combate. Pelo amor. E por Lola. Ao CNPq pelo financiamento desta tese de doturado. À CAPES pelo financiamento de estágio de doutoramento no exterior.
  • 9. RESUMO CARMO, V. S. Anonimato de vida e de morte: contemporaneidade e laço social na adolescência. 2011. pp. 217 Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em Psicologia Social – Pontifiícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. São Paulo, 2011. Esta tese busca investigar as vicissitudes da inscrição no laço social dos adolescentes dos grandes centros urbanos, quando estes encontram-se imersos num cenário de anomia social e de violência. Interessar-nos-á investigar as estratégias de subjetivação adolescente, num contexto onde sua vida se inscreve e se apaga numa morte provável e anônima. Assim, como poderá se fazer a inscrição do adolescente no laço social quando nem sua vida, nem tampouco sua morte, possuem qualquer valor social positivo? Para realizar esta pesquisa, nos baseamos em nosso trabalho clínico com o sujeitos adolescente em meio escolar. Realizamos, numa escola estadual de São Paulo, um trabalho de grupos de conversação, cuja inspiração teórica e clínica buscamos na psicanálise. Traremos, nesta tese, dois casos clínicos construídos a partir deste trabalho de conversação.Esta tese é disposta em quatro capítulos. O primeiro deles irá tratar da construção do sujeito adolescente e sua inscrição no laço social. Mas, sobretudo, das dificuldades do laço social num contexto, que diremos, de um Outro social anômico. O terceiro capítulo desta tese, trará uma forte digressão teórica sobre o laço social nas obras de Freud e Lacan. Em Freud, afirmamos que a partir do conceito de supereu, a manutenção dos homens no laço social irá se dar pela via do sentimento de culpa. Em Lacan, a partir do ultrapassamento do conceito de intersubjetividade, o psicanalista irá traçar uma teoria do laço social, a parti de sua montagem discursiva. Podemos afirmar que, se em Freud o laço social entre os homens se manteria graças ao sentimento de culpa, em Lacan, será a obediência, o primeiro fundamento do laço social, estruturado a partir do discurso do Mestre.Finalmente, no quarto capítulo desta tese, afirmaremos que algo da ordem de um curto-circuito nos laços sociais e da emergência do fenômeno de uma violência generalizada, como consequencia de uma desregulamentação anômica do socius. Entramos numa época regida pelo discurso do capitalista, o que irá impor uma passagem entre um laço estruturado pelo triunfo da culpa e o outro (des)orientado pelo reinado do gozo. Diremos que este cenário poderá ser devastador para o sujeito adolescente, que encontrará algumas dificuldades em seu processo de subjetivação.Em um contetxo, onde a vida se inscreve e se apaga numa morte quase sempre anônima, a violência aparece no discurso adolescente não apenas como um dado da realidade diária, mas como um dos modos que o jovem encontrará para se construir face aos outros. A violência será não apenas ato, mas forma de palavra, para um sujeito que só poderá se contar pela via de uma ficção desqualificada, uma história violenta, onde o sujeito se exila e desaparece. Palavras-chave: adolescência; laço social; anomia; violência; psicanálise
  • 10. RESUMÉ CARMO, V. S. Anonimato de vida e de morte: contemporaneidade e laço social na adolescência. 2011. pp. 217 Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em Psicologia Social – Pontifiícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. São Paulo, 2011. Le sujet de cette thèse porte sur les vicissitudes de l’inscription dans le lien social par les adolescentes qui vivent dans les grands centres urbaines pauvres marquées par le contexte de la violence urbaine. Nous sommes intéresses par leurs stratégies de subjectivation : comment faire lien dans un contexte, où la vie s’inscrit et s’efface dans un mort presque certaine et anonyme ? Comment ils font lien alors que leur vie et leur mort n’a plus de valeur sociale ?Pour cette recherche nous nous sommes adressés aux adolescentes dans leurs milieux scolaires, à partir de la création de groupes de conversations de thématique libre. Ces groupes cliniques de conversations que nous avons coordonnées, ont eu une orientation psychanalytique et ils nous ont permis la construction de quelques vignettes cliniques qui sont éparpillés dans le corps de la thèse.Nous avons choisi une disposition en quatre chapitres, dont le premier portera sur la construction adolescente dans le lien social, mais surtout, sur les difficultés de se faire lien dans un contexte d’un Autre social anomiqueLe troisième chapitre s’ancre sur une forte discussion théorique sur le lien social dans l’œuvre de Freud et Lacan. En Freud on pourra affirmer que, avec l’arrivé du concept de surmoi, le lien social se ferra par la voie du sentiment de culpabilité. En Lacan, on ira parcourir le chemin du dépassement d’une théorie de l’intersubjectivité vers la construction discursive du lien social. On pourrait dire que, si en Freud, le lien social se maintien grâce au sentiment de culpabilité, en Lacan, sera l’obéissance le premier fondement du lien, structuré a partir du discours du maître.Finalement, le quatrième chapitre revient sur le court-circuit dans le lien social et la violence urbaine comme conséquence d’une déréglementation anomique du socius. Après l’époque de la discipline, on rentrera sur l’égide du discours du capitalisme, ce que nos fera passer du triomphe de la culpabilité au royaume de la jouissance. Ce contexte peut être dévastateur pour le sujet adolescente, qui trouvera des difficultés pour se subjectiver dans un monde où l’Autre est anomique. Dans un contexte, où la vie s’inscrit et s’efface dans un mort presque certaine et anonyme, la violence urbaine apparaît dans le discours adolescent n’ont pas comme un donnée de la réalité de ses jeunes, mais comme le seul moyen qu’ils trouvent pour se construire face à l’autre, non pas en acte, mais en parole, un sujet que se raconte par la voie d’une fiction violente, une histoire violente, où le sujet s’exile et disparaître. Mots-clés : adolescence ; lien social ; anomie ; violence ; psychanalyse
  • 11. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 CAPÍTULO I O adolescente no contemporâneo: as aventuras do enlaçamento diante de um Outro social anômico 1.1. Adolescência e Laço Social: uma introdução 18 1.2. A questão adolescente e o encontro com a perda do objeto 21 1.3. A questão adolescente e o encontro traumático com o Outro sexo 32 1.4. A questão adolescente no contemporâneo: o desamparo diante de um Outro social anômico 41 CAPÍTULO II - A psicanálise e os grupos : uma conversação com os adolescentes 2.1. A ética e a política da psicanálise: os quatro impossíveis 57 2.2. A Conversação e a pesquisa em psicanálise 67 2.3. Uma conversação: entre a escola, a demanda e os sujeitos adolescentes 73 2.4. A psicanálise e os grupos 81 2.5.Os casos clínicos. As melindrosas 93 2.6. Os casos clínicos. Os temerários 108 CAPÍTULO III – O eu e o outro: o problema do laço social em psicanálise 3.1. Freud: Laço Social via sentimento de culpa 122 3.1.1.O Narcisismo: da semelhança radical a um outro parcial e descontínuo 123 3.1.2. O surmoi: o nascimento do sentimento de culpa e o laço social 128 3.2. Lacan: Laço Social via obediência 137 3.2.1. Da intersubjetividade ao laço social 146 3.2.2. O discurso do Mestre: “travailler plus pour gagner plus” 150 3.2.3. A Histérica, o Universitário e o Analista 158 CAPÍTULO IV – Curto-circuito no laço social: a violenta rede simbólica do contemporâneo 4.1.Da disciplina ao capitalista : do triunfo da culpa ao reinado do gozo 168 4.2.A anomia: rumo a uma dessubjetivação do socius 180 4.3. O menino-mulsuman e a violência como ficção de uma vida desqualificada 190 CONCLUSÃO 198 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 209
  • 12. INTRODUÇÃO Esta tese busca investigar as vicissitudes da inscrição no laço social dos adolescentes dos grandes centros urbanos, nos casos em que estes, encontram-se imersos num cenário de anomia social e de violência. Interessar- nos-á investigar as estratégias de subjetivação adolescente, num contexto onde sua vida se inscreve e se apaga numa morte provável e anônima. Assim, como poderá se fazer a inscrição do adolescente no laço social quando nem sua vida, nem tampouco sua morte, possuem qualquer valor social positivo? Essa tese surgiu do trabalho clínico com adolescentes, em consultório privado e em grupos de conversa realizados em ambiente escolar. Sempre me entusiasmei com a relação verídica com que os adolescentes se posicionavam diante de seu desejo e com sua resposta colérica face às artimanhas do poder, parental ou de Estado, que tentavam lhe subjugar. Mas, se a adolescência pode ser considerada como um tempo de contestação, muitas outras imagens foram se somando para a construção do imaginário social contemporâneo que alia, não poucas vezes, esse tempo do sujeito à violência, à delinquência e a agressividade. Esse efeito de colagem entre adolescência, delinquência e comportamento violento, é alimentado por fatos fortemente midiatizados: adolescentes de classe média agridem e matam trabalhadores na rua, adolescentes trabalhadores no mercado do tráfico e seus „acertos de conta‟ violentos e mortais, adolescentes que, na escola, perseguem e atormentam meninos mais frágeis, adolescentes que agridem verbalmente ou fisicamente os pais, avós ou professores. Enfim, o leque é vasto, e o cotidiano dos jornais está repleto desss episódios que tentam dar provas de que a associação adolescência-agressividade não é sem razão de ser. No decorrer do tempo, essa inaptidão da estrutura adolescente à submissão, fez com que caísse nas malhas das políticas de controle social. Ou melhor, talvez o próprio conceito de adolescência tenha sido cunhado, a partir do
  • 13. momento em que as sociedades sentiram necessidade de se proteger dos arroubos da juventude. De toda forma, o ato positivo de contestação adolescente, imprescindível para o desenvolvimento das civilizações, foi capturado pelo discurso médico e jurídico, transformado em patologia, crime e desvio a ser normatizado. Daí, estarmos a um passo para a associação que faz equivaler adolescência e comportamento violento. Sobretudo, quando se trata do sujeito adolescente pauperizado dos guetos e favelas dos grandes centros urbanos mundiais. O imaginário social evidencia, segundo Castoriadis (1998), o lugar concreto que ocupa o sujeito na sociedade. Veremos nessa tese, como esse lugar é uma posição discursiva, que evidencia a dimensão do laço social que liga o sujeito a seu gozo, aos outros e ao Outro. A adolescência não é apenas um tempo estrutural da subjetivação ou uma operação psíquica desenraízada das malhas discursivas que enlaçam o sujeito. É também um tempo, onde a dimensão da angústia, do trauma e do mal-estar, serão vivenciados pelo sujeito à flor da pele. É por isso que esta tese, será construída a partir da teoria dircursiva de Jacques Lacan, que levará em conta a dimensão da perda de gozo necessária a toda inscrição no laço social. Sua formalização em quatro discursos, + 1, irá nos possibilitar situar as posições que ocupará o sujeito diante dos outros, do Outro e de seu gozo. Veremos como os quatro discursos lacanianos: mestre, histérica, analista e universitário, e mais o discurso do capitalista, o + Um desse esquema, nos permitirá construir todas as análises dessa tese. De volta à adolescência, veremos que sua inscrição no laço social é um modo de passagem rumo a um lugar de pertencimento a cena social. No entanto, muitas vezes, o lugar que é destinado ao jovem sujeito num determinado contexto social, pode produzir apenas abandono e deriva subjetiva. Rosa e Vicentin (2010) apontam que, muitas vezes, no caso de famílias marginalizadas e pauperizadas, o discurso familiar é desautorizado pelo discurso social, que patologiza e criminaliza atos e práticas de existência. O sujeito adolescente adere a esse lugar que lhe é atribuído pelo campo social, que lhe priva de um nome e lhe atribui apenas um número: um entre outros, a entrar e a sair da instituição correcional, prisional, escolar. Diremos que esse Outro do social incapaz de
  • 14. nomear e atribuir um lugar de pertencimente ao sujeito, será um Outro social anômico. Este, abrirá mão da nomeação para atribuir ao sujeito um número; um entre tantos outros: uma estatísca da vida, um sujeito desprovido de história. A travessia adolescente rumo à cena social irá evidenciar os impasses da subjetivação nos tempos atuais. A ausência de garantias do contemporâneo irá se atualizar na adolescência. Uma das discussões que instigaram a elaboração desta tese, foi a de que haveria uma pane no tempo de subjetivação da adolescência, o que seria evidenciado pela relação dos jovens para com seus semelhantes, autoridade parental ou com seus pares. Afirmar tal pane, seria também conceber que o processo de subjetivação adolescente deveria ser „consertado‟. Nesta tese, iremos trazer elementos que nos permitiram afirmar que não há nada a ser consertado na estrutura adolescente, pois a peça que falta ao „sistema‟ é perdida desde sempre. Iremos, no decorrer desta tese, fornecer elementos que permitem nos posicionar contrariamente a essa hipótese de que o sujeito entraria em pane estrutural. Nosso guia neste trabalho, foi o seguinte problema: quais as vicissitudes da inscrição no laço social na passagem adolescente, sobretudo quando esta se encontra inscrita num contexto incerto, onde os sonhos de projeção num futuro coletivo, rapidamente podem ser atravessados e impedidos pela violência da realidade? Em um contexto onde a vida desses jovens se inscreve e se apaga numa morte muitas vezes provável e anônima, quais as possibilidades de inscrição no laço social, quando sua vida ou sua morte não têm qualquer valor social positivo? Para a elaboração desta tese, definimos um recorte de nosso tema em quatro partes. Na primeira delas, nos debruçamos sobre as teorias psicanalíticas de Freud e Lacan, acerca deste tempo psíquico que separa a infância da idade adulta. Como veremos, Freud não irá tratar diretamente do tema da adolescência, preferindo o termo puberdade. Veremos como o termo da puberdade pôde servir ao psicanalista, que no início de sua obra estava mais preocupado com a formalização de um tempo biológico do desenvolvimento da sexualidade. A partir dos novos elementos trazidos pelo texto de 1914 Sobre o Narcisismo, Freud
  • 15. abrirá os limites de sua teoria, ao incluir a dimensão de uma busca por um objeto no exterior do aparelho psíquico, que poderia substituir o primeiro objeto de amor, sempre incestuoso e para sempre perdido. Se no texto de 1905, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Freud estará ainda preso ao desenvolvimento autoerótico da sexualidade infantil. A partir das considerações de uma fase narcísica de escolha de objeto, que precederia a escolha de objeto sexual da idade adulta, presente no mundo exterior, o psicanalista irá se dirigir rumo a uma teoria da subjetividade, onde o sujeito se apresenta em função de uma busca objetal. Será com a chegada adolescência que o real do corpo reativará os interditos do incesto, antes adormecidos pelo período de latência, e irá trazer à tona a frustração de uma satisfação pulsional impossível a ser alcançada. Será esta mesma decepção que forçará o jovem sujeito, a um olhar mais adiante, em direção ao exterior do círculo familiar, para buscar no social, o objeto de amor que fará suplência a satisfação perdida. Mas para que esta operação seja bem sucedida, caberá ao jovem se separar dos ideais parentais e seus significantes que o marcaram em sua infância. A promessa familiar não poderá mais ser o único esteio para o sujeito adolescente. Ele irá se dirigir à cena social, buscando novos saberes com os quais poderá se identificar e se construir como sujeito singular. Mas o imaginário social é avesso às criações, e já possui um lugar determinado para o sujeito: de acolhida ou de abandono. No entanto, o sujeito adolescente é aquele que não consente facilmente. Este saber formatado pelo social, ele tampouco o aceita. É por isso que diremos, que o sujeito adolescente entrará no laço social, fazendo greve! Recusando-se a aceitar as coisas como elas são! O adolescente é aquele que não se contenta em ser contado pelo Outro. É na adolescência que se dará a passagem da cena familiar para a cena social (ROSA, 2002), graças a experiência de um luto subjetivo que implica que o jovem abra mão de sua fantasia de completude/fantasia de gozo pleno, aspecto esse, muitas vezes inviabilizado pelo cenário contemporâneo. Esta passagem, como veremos, implicará a superação da autoridade do pai-
  • 16. imaginário, não-castrado, acima das leis da civilização, por aquela do pai- simbólico, castrado, um sujeito do social, e por isso capaz de acompanhar seus filhos pelas leis da cultura, ajudando-os a suportarem a perda do gozo renunciado . Esse é um dos aspectos que entram em pane na contemporaneidade, pois o pai-imaginário é mantido como presença. Não que ele seja, em nossos dias, ainda representado pela figura do pai da autoridade. Ele é substituído em sua potência de completude pela promessa do mercado que tentará garantir ao sujeito o direito ao gozo irrestrito, via objetos de consumo descartáveis. Veremos no segundo capítulo dessa tese, como esses aspectos do contemporâneo colocarão em perigo o processo de subjetivação singular da passagem adolescente. Nessa segunda parte, iremos nos debruçar sobre o trabalho clínico com os adolescentes, pois foi ele, um dos pontos de partida para nosso questionamento acerca das vicissitudes da inscrição no laço social do sujeito adolescente, no contexto de um Outro social anômico. Realizamos, durante aproximadamente oito meses, numa escola estadual de São Paulo, Brasil, um trabalho de grupos com adolescentes entre 12 e 16 anos de idade. Esses grupos foram constituídos como grupos de conversação, cuja inspiração teórica e clínica buscamos na psicanálise e no trabalho do CIEN (Centre interdisciplinar de l‟enfant). O que pretendemos com esses grupos de conversação foi criação de um espaço onde os adolescentes pudessem encontrar, pela via da palavra, um Outro receptivo, à escuta, e que não fosse portador dos significantes que identificam e aprisionam, no imaginário social, esses jovens. Assim, nosso compromisso ético foi o de tentar descolar o grupo e os sujeitos adolescentes da aderência aos significantes-mestre que os identificam no social; significantes que puderam aparecer no decorrer do trabalho. Para isso, mantivemos todo o cuidado em lhes oferecer garantias de que outras possibilidades de existência poderiam ser pensadas. Tentamos, através dos grupos de conversação, garantir para a palavra adolescente, um esteio, para que ela não fosse apenas um instrumento de puro gozo. Como diremos na tese, a palavra utilizada como puro gozo é apenas destituição de território. Os grupos de conversação foram nossa tentativa de construção, com os adolescentes - sujeitos de palavra -, de um laço ficcional
  • 17. que os ligasse numa história coletiva e singular. Com os adolescentes, em grupo, pudemos perceber as estratégias de captura e de resistência que puderam construir frente ao insuportável do encontro com esse Outro que diremos anômico. Que modos de inscrição no laço social estes adolescentes atualizaram ou construíram? Traremos, ainda neste capítulo, nossa construção clínica sobre dois desses grupos. Neles, nos confrontamos com as histórias de Clara e Roberto. Obviamente, estes, são nomes fictícios que escolhemos para podermos construir suas histórias, seus caminhos e descaminhos em suas tentativas de subjetivação num contexto muito pouco receptivo a qualquer existência como singularidade. Diremos que Clara, cairá na cilada armada pelos laços do contemporâneo, e irá deslizar entre consentir em seu desejo e resistir em afirmá-lo. Roberto irá assentir, temporariamente, à segregação do laço social, ocupará uma posição de resto do social, o que irá apartá-lo de sua dimensão de sujeito. Mas, para entendermos como o sujeito se inscreve no laço social e entra na cultura, nos foi necessária a construção de um extenso caminho teórico pelas obras de Freud e Lacan. Será este o objetivo do terceiro capítulo desta tese. Se em Freud, a manutenção dos homens no laço social só será possível graças a ação do sentimento de culpa. Em Lacan, o sujeito estará preso nas garras da linguagem, na qual se aliena e se transforma em um ser-da-civilização. Lacan poderá formalizar uma teoria do laço social graças ao conceito de alienação, que o levará a sua montagem discursiva de quatro patas. A teoria dos discursos colocará em cena quatro pontos, posições que podem ocupar o sujeito em relação aos outros, ao Outro e ao seu gozo. O sujeito entra no laço social pelo discurso do Mestre, que é também o discurso próprio ao inconsciente. E sua porta de entrada é pela via da obediência. A teoria dos discursos de Lacan, nos levará ao discurso do capitalismo, esse +1 dos modos de enlaçamento do social. Diremos, na parte final desta tese, que as sociedades contemporâneas se organizariam segundo a égide desse discurso, e que isso traria consequências importantes para os modos de subjetivação e singularização do sujeito. O discurso do capitalista é aquele que
  • 18. pretende abolir a barra que separa o sujeito de seu gozo e que o transforma num ser da civilização. É um discurso que enlaça desconsiderando a dimensão da Lei - o sujeito só é sujeito desejante, quando castrado. Graças a isso, afirma-se num processo de subjetivação móvel, regido pelo objeto causa do desejo que o guia em sua busca por satisfação, sentido e pertencimento. O sujeito resta paralizado no laço do capitalismo, pois adquire um estatudo de consumidor. Ou será que desaparece ao ser, ele mesmo, consumido pelo objeto do consumo? Algumas perguntas foram nossos guias neste último capítulo: já que o sujeito perde seu estatuto móvel de desejante e se relaciona com objetos destinados a tamponar sua falta a ser estrutural, como poderá fazer laço com os outros e com o Outro, se não há nada que lhe falte que lhe faça caminhar? Quando a lei social é deixada de lado em prol do imperativo do capitalista que promete direito ao gozo a todos, de que forma os adolescentes expostos a esta anomia reagem, resistem e fazem laço? Nosso objetivo neste último capítulo da tese, será o de traçar as bordas inteligíveis desse sombrio contexto social. Para tanto, começaremos lançando mão das análises de Foucault (1987, 1999) sobre as sociedades disciplinares e suas estratégias de exercício de poder sobre os corpos e seu controle sobre as populações. Buscaremos nas sociedades disciplinares os primeiros sinais de uma sociedade de controle contemporânea, anômica, que terá como paradigma de sua organização, a elevação à regra dos estados de exceção. Para estas reflexões, iremos nos basear nas análises feitas por Giorgio Agambem (2002). Pensaremos, num segundo momento, as sociedades disciplinares de Foucault e as sociedades de controle contemporâneas, a partir do esquema discursico lacaniano, pois este nos permitirá enlaçar o sujeito às artimanhas do poder ao qual se sujeita, resiste, adoece. Desta forma, lançaremos mão da psicanálise para evidenciar as astúcias do exercício do poder do capitalismo contemporâneo, associando-o a um de seus efeitos imediatos, um curto-circuito do laço social, o que irá contribuir para a emergência de uma nova especificidade do fenômeno da violência na atualidade. Violência sem culpa, o que se convencionou chamar, a banalização
  • 19. da violência. Iremos afirmar, neste capítulo, que com o discurso do Capitalista, saímos definitivamente de uma lógica social fundada na culpa deixada pela castração, para entrarmos na era onde o gozo triunfa. Essa hegemonia do gozo sobre a culpa aparece sob a forma do desregramento da lei. As sociedades de controle, organizadas sob a égide do discurso do capitalista, será a era de um Outro social anômico, não limitador do gozo pleno. O discurso do capitalismo tentaria garantir a consistência da fantasia de completude, onde sujeito e gozo poderiam, finalmente, se encontrar num mesmo destino. No entanto, algo ou alguém viria para poluir esta cena de perfeita satisfação. O sistema capitalista contemporâneo, se sustenta na produção de excessos e excedentes que constituem o grande impasse de nosso tempo. Destes excedentes, ou seja, pessoas produzidas como mercadorias, a civilização quer se desvencilhar e eliminar, mas ao mesmo tempo, sua manutenção é, ela mesma, inerente e fundamental a estruturação das sociedades contemporâneas. De toda forma, sua vida e sua morte não portará qualquer valor social. Assim, num mundo, onde o sujeito se cala e apenas consome, justifica- se a nossa pergunta: como e quais são os modos de inscrição no laço social dos adolescentes dos grandes centros urbanos, que são pobres demais para a dívida capitalista (1992), mas também numerosos demais para o encarceramento? Como fazer laço, quando suas vidas se encontram imersas num cenário de anomia social, de violência, sem garantias de inserção num projeto pessoal e coletivo? Quais são as vicissitudes e as estratégias de subjetivação adolescente, num contexto onde sua vida se inscreve e se apaga numa morte provável e anônima?
  • 20. CAPÍTULO I - O adolescente no contemporâneo: as aventuras do enlaçamento diante de um Outro social anômico 1.1.Adolescência e Laço Social: uma introdução 1.2. A questão adolescente e o encontro com a perda do objeto 1.3. A questão adolescente e o encontro traumático com o Outro sexo 1.4. A questão adolescente no contemporâneo: o desamparo diante de um Outro social anômico 1.1.Adolescência e Laço social: uma introdução Rousseau (1964), no livro IV de Emile, irá afirmar que o que está em jogo na adolescência é um segundo nascimento; não um nascimento para a espécie Ŕ que seria o primeiro deles -, mas um nascimento para a questão da sexualidade. É por isso que ao problematizarmos a noção de adolescência, devemos diferenciar dois campos distintos que tomarão, num deles, a adolescência como um fenômeno social, e num outro, como um tempo do sujeito, que marca o nascimento para o Outro sexo, que chamaremos com Matheus (2008), a questão adolescente. Se o termo adolescência, do latin (adulescentia), já era utilizado nos tempos do Império Romano, como nos lembra Matheus (2008), será somente na Idade Moderna que irá se consolidar como objeto de estudo, na medida em que será nesse momento que a tradição racionalista irá forjar a idéia de um indivíduo da qual será derivada. Nas palavras de Matheus, Desponta como corolário da noção de indivíduo, a crise da adolescência, que acaba funcionando como condição para
  • 21. sua efetivação: circunscreve a um momento específico da vida, com um fim previamente estabelecido, turbulências inevitáveis que cada sujeito é convocado a experimentar, a fim de conquistar a condição de indivíduo, seguindo as diretrizes do ideário da modernidade. A crise é, então, fruto do exercício da interioridade de cada um, em função das tensões e conflitos que a configuram como tal (...) Essa experiência subjetiva, ao ser circunscrita à interioridade de cada indivíduo, resulta, aliás, no velamento do jogo de forças sociais do qual é resultante, servindo de apoio às estruturas sociais vigentes. (MATHEUS, 2008.p.618). Vemos então, como o interesse pelo fenômeno da adolescência como um fato social, que inscreveria um tempo subjetivo no interior de um contexto específico, serve exatamente para desresponsabilizar o campo social de seus efeitos na construção das subjetividades. Ao naturalizar o tempo da adolescência numa etapa do desenvolvimento biológico, acentua-se a tese de uma cisão entre social e individual; ao privilegiar os aspectos estruturais da individuação, mascara- se as incidências do social para a construção das subjetividades. A psicanálise freudiana, principalmente a partir das obras de 1914 e do texto Sobre o Narcisismo, irá se posicionar contrariamente a esta cisão, ao apontar para a dimensão do mal-estar inerente a toda inscrição do sujeito na civilização. Lacan segue as pistas deixadas por Freud, leva em consideração essa dimensão do mal-estar para cunhar seu conceito de objeto a, o quinhão de gozo a que todos devem consentir em perder para a entrada no mundo da cultura. Se tratamos, aqui, de modo displicente toda essa teorização a respeito da dimensão do mal-estar e do objeto a, é porque dela, iremos nos ocupar do decorrer de toda essa tese. Para fins deste capítulo, buscaremos entrecruzar três temas, a passagem adolescente, sua inscrição no laço social e os percalços desta inscrição quando o Outro social se mostra anômico. A partir da teorização sobre o objeto a, Lacan irá construir seu esquema discursivo de quatro patas, o laço social, que é uma forma de aparelhar as relações entre o sujeito e seu gozo, para além da fala, incluindo também a dimensão do objeto na estrutura significante.
  • 22. Vale ainda ressaltar, que será pela formalização dos discursos em quatro posições que o sujeito poderá vir a ocupar, que iremos captar suas relações com os outros e com o Outro: a posição que ocupa no laço social. A inscrição no laço social está fortemente ligada à estrutura da adolescência, onde há a descoberta do logro da promessa edipiana de satisfação plena pelo objeto, instaurada pela castração. Esta promessa sustenta o narcisismo primário da criança, anterior a clivagem estabelecida pela entrada do infans na linguagem, acesso fundamental que marcaria a ruptura e a diferenciação entre gozo da carne e corpo destinado ao prazer. De acordo com Lesourd, “(...) o gozo primeiro do corpo nesse tempo deve ser entendido como excitação-satisfação em uma psique em que a carne e o objeto, o sujeito e o Outro ainda não são distinguidos um do outro, e em que a carne é tanto excitação quanto satisfação (...)”. (LESOURD, 2004.p.46) Na adolescência, o corpo pubertário reativa essa experiência anterior infantil - que havia ficado adomecida no período de latência -, em que a carne é tanto excitação como satisfação, e lança o sujeito adolescente no vazio, que é experimentado como ausência de pertencimento trazida pelo esfacelamento do véu fálico e do encontro do significante da falta no Outro parental, o que fará com que o adolescente dirija seu olhar para o exterior, numa tentativa de re-encontrar, ou melhor, re-criar, o esteio significante que lhe garanta uma existência como pertencimento do social. Afirmaremos, aqui e no decorrer dessa tese, que o adolescente enlaça, via de regra, pelo modus operandi do discurso da histérica. Essa tese é de Serge Lesourd que iremos partilhar. Mas, o que isso quer dizer? Em poucas palavras, que ele não se deixa escravizar pelo Mestre; que ele não cede em seu saber; que não aceita o saber que lhe querem imputar à sua revelia! O adolescente, entra no laço social fazendo greve1 ! Temos, no discurso da histérica, o $ (sujeito) no lugar do desejo, se dirigindo ao Outro, fazendo um apelo, que o interroga, colocando em xeque os significantes-mestre que lhes foram atribuídos. 1 A expressão “fazendo greve” foi utilizada por Lacan, no O Seminario, livro 17, a propósito do laço discursivo da histérica.
  • 23. Vemos, cotidianamente, o adolescente numa posição que interroga o adulto, disqualificando o saber que ele detém sobre seu desejo, o que no momento anterior da infância, era o que garantia sua existência num universo de sentido: familiar, parental. Diremos que a passagem adolescente interroga e desqualifica o discurso imaginário do adulto, seu antigo mestre. O discurso da histérica, traz o sujeito ( $ ) no lugar do agente, exatamente este sujeito barrado, da dúvida, que interroga com seu sintoma, os signficantes que marcam sua história. “Diga-me quem eu sou?”, é a pergunta que dirige ao lugar do Outro, ocupado pelo Mestre. Ela, a histérica e o sujeito adolescente, não se contentam em serem contados pelo Outro; interrogam-no, de modo que os significantes mestres que marcaram sua história sejam equivocados. Nas palavras de Lesourd (2002), É por essa contestação dos significantes parentais, que organizam as relações sociais, que se funda a ideologia de uma geração e sua forma de gerir suas relações com o mundo. É então, a partir desse duplo aspecto, de identificação aos siginificantes sociais e de contestação destes mesmos significantes, que o adolescente constitui sua relação ao mundo e se posiciona subjetivamente por relação aos significantes do Outro em sua versão social.2 (LESOURD, 2002. p. 261 ; trad. nossa) 1.2.A questão adolescente o encontro com a perda traumática do objeto 2 Do texto original : « C‟est par cette contestation des signifiants parentaux, qui organisent les rapports sociaux, que se bâtit l‟idéologie d‟une génération et sa façon de gérer ses rapports au monde. C‟est donc dans une démarche double, d‟identification aux signifiants sociaux et de contestation de ces mêmes signifiants sociaux, que l‟adolescent constitue son rapport au monde et se positionne subjectivement dans les signifiants de l‟Autre dans sa version sociale. » In : LESOURD, S. Adolescences... rencontre du féminin : essai psychanalytique sur la différence des sexes. [Ramontville Saint-Agne] : Erès, 2002. p. 161.
  • 24. Se Freud fez raro o uso do termo adolescência em sua obra, no entanto, inúmeras são as referências na obra do criador da psicanálise, ao termo puberdade. Como nos lembra Ouvry (2004), o termo adolescência não fazia ainda parte do imaginário social da época de Freud. Talvez por isso ele tenha se referido ao termo, apenas de forma esparsa e imprecisa no curso de sua obra, optando pelo uso corrente de puberdade. No entanto, mesmo o termo puberdade irá sofrer na obra de Freud, algumas transformações de sentido, ao passar do campo do desenvolvimento biológico e adquirir a dimensão de um tempo de passagem à cena social, onde o encontro com o Outro sexo se atualiza e inscreve o mal-estar dos laços sociais no coração do sujeito adolescente. Veremos como isso se dá no curso da obra do criador da psicanálise. Para Matheus (2008), Se no texto sobre a puberdade Freud havia apontado a síntese das pulsões parciais, posteriormente irá sublinhar o caráter incompleto desse processo e o mal-estar dele resultante. Há que se considerar que a própria puberdade está sujeita à intervenção do universo simbólico na qual se inscreve, ainda que não esteja a ele subordinado, podendo ser antecipada ou postergada conforme o contexto no qual cada indivíduo se insere e a história de vida que o singulariza” (MATHEUS, 2008. p.621) Em uma de suas cartas a Fliess, que data de 20-05-1896 (1956), Freud irá distinguir, se utilizando de num quadro demonstrativo, quatro períodos da vida. Um deles será claramente nomeado como pré-pubertário (até 14 anos), e será seguido por um outro período que ele denomina apenas como B (13 à 17 anos), onde nos diz ser um momento de transição relacionado ao recalcamento. Freud irá conceber, inicialmente, a puberdade como um processo posterior ao período de latência infantil, através de toda uma série de signos corporais visíveis e invisíveis. Soma-se a isso, a afirmação de que será na puberdade que encontraremos uma cisão entre dois modos de prazer, o primeiro deles, preliminar, do mesmo tipo que aquele produzido pela pulsão sexual infantil, destinado a não-realização; e um outro, distinto, que Freud irá chamar, prazer de
  • 25. satisfação, próprio a atividade sexual realizada. Mas será no texto de 1905, Trois essais sur la théorie sexuelle que ele irá dedicar um ensaio inteiro às reconfigurações da puberdade. Neste texto, Freud irá desenvolver a distinção entre a vida sexual infantil e sua passagem à configuração normal definitiva, própria da fase adulta. De acordo com o psicanalista, haveria já na infância, uma forma precária de escolha de objeto, mas nesse tempo do desenvolvimento, as pulsões sexuais não seguiriam nenhum tipo de unificação, seriam sempre parciais, e sem objetivo definido. Já na puberdade, essas pulsões passariam a se organizar sob o primado das zonas genitais, com seu claro objetivo reprodutivo. Freud, no texto intitulado, De la psychanalyse (1909), dará continuação as teses do texto Trois Essais sur la théorie sexuelle (1905), afirmando que a vida sexual infantil é rica, mas dispersa, pois cada pulsão parcial buscará garantir sua própria experiência de prazer, e será somente na puberdade que a direção sexual do sujeito encontrará sua forma definitiva que restará na fase adulta. Freud nos diz no texto Trois Essais sur la théorie sexuelle, Com a chegada da puberdade introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual infantil a sua configuração normal definitiva. Até esse momento, a pulsão sexual era predominantemente auto-erótica; agora, encontra o objeto sexual. Até ali, ela atuava partindo de pulsões e zonas erógenas distintas que, independendo umas das outras buscavam um ecrto tipo d eprazer como alvo sexual exclusivo. Agora, porém, surge um novo alvo sexual para cuja consecução todas as pulsões sexuais se conjugam, enquanto as zonas erógenas subordinam-se ao primado da zona genital.” 3 (FREUD, 1905/2006. p.196) 3 Tradução extraída de: FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade. In Edição Standard das Obras Completas, vol.VII. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 196. Do texto consultado : « Avec l‟arrivée de la puberté interviennent les transformations qui doivent faire passer la vie sexuelle à sa configuration normale définitive. La pulsion sexuelle était jusqu‟ici principalement auto-érotique, elle trouve maintenant l‟objet sexuel. Elle s‟exerçait jusqu‟ici à partir de pulsions et de zones érogènes isolées qui, indépendamment les unes des autres, cherchaient comme but sexuel unique un certain plaisir. Maintenant un nouveau but sexuel est donné et toutes les pulsions partielles agissent conjointement pour l‟atteindre, tandis que les zones érogènes se subordonnent au primat de la zone génitale. » (FREUD, 1905/2006. p. 145) Freud, S. (1905) Trois Essais sur la théorie sexuelle. In : Œuvres Complètes : psychanalyse. Volume VI. 1901-1905.
  • 26. Podemos dizer que o ponto forte do desenvolvimento da teoria freudiana, no que concerne ao tempo pubertário, diz respeito as vicissitudes do objeto sexual. Freud, anuncia nesse terceiro ensaio (1905/2006), o desenvolvimento da teoria do objeto sexual caracterizado como para sempre perdido; “o encontro com o objeto é, propriamente falando, um reencontro”4 ” (FREUD, 1905/2006, p. 16. trad. nossa). Inicialmente, como nos diz Freud, a primeira satisfação sexual, de amor, se daria entre o bebê e sua mãe, que lhe oferece o seio e atende sua demanda de alimento que lhe assegura a vida. Seria este, o momento magistral em que pulsão sexual e pulsão do ego serão indistintas, e que será regido pela corrente que Freud irá nomear como, corrente afetiva (courant tendre) (Freud, 1912a/1969), originária na tenra infância, dirigida àqueles que dedicaram os primeiros cuidados à criança, e correspondente a escolha primária do objeto infantil. Esse momento onde nada falta, irá durar pouco tempo, pois logo o bebê percebe que o seio não é parte constituinte de seu próprio corpo, e que não vêm à boca a todo momento desejado. Algo irrompe nessa relação dual entre mãe-bebê, entre pulsão sexual e pulsão do ego, algo então, da ordem de uma falta se instala, e a criança descobre que pode achar satisfação em uma parte de seu próprio corpo, sugando o polegar, por exemplo, próprio da etapa autoerótica. Mas esta etapa, irá se constituir ainda como o modelo segundo o qual o sujeito irá buscar se reencontrar com esse primeiro objeto sexual para sempre perdido. Na infância, graças a castração, o encontro com objeto será interditado. Têm início, graças ao recalcamento, o período de latência, próprio ao desenvolvimento sexual infantil. O tempo de latência é, como nos diz Freud (1923-25/1992), o momento da disparição do complexo de Édipo, da criação e da consolidação do supereu e da edificação dos diques morais do ego, que irão cuidar da contenção do amor incestuoso. Nas palavras de Freud, no texto « De la psychanalyse » (1909), [Paris] : Presses Universitaire de France, 2006. p. 145. 4 Do original : “la trouvaille de l‟objet est, à proprement parler, une retrouvaille » FREUD, S. (1905) Trois Essais sur la théorie sexuelle. In : Œuvres Complètes : psychanalyse. Volume VI. 1901-1905. [Paris] : Presses Universitaire de France, 2006. p. 16
  • 27. Mesmo antes do tempo da puberdade, sob a influência da educação, o recalcamento extremamente enérgico de certas pulsões foram impostos e algumas forças anímicas como o pudor, o asco, a moral foram instaurados, forças que, como guardiães, mantém esses recalcamentos. (FREUD, 1909/1993. p. 44 trad. nossa)5 Com a chegada da puberdade, vemos se levantar uma outra corrente, corrente sensual, que não cessará de percorrer todos os caminhos que levam ao objeto escolhido na primeira fase da infância. Com o impossível do incesto, trazido à tona pela passagem pelo complexo de Édipo, restará à tendência sensual investir outras vias, que levarão a escolha objetal do tempo pubertário ao mundo exterior dos objetos que se apresentarão no socius. Temos então que, Esses objetos estrangeiros serão ainda e sempre, escolhidos segundo o modelo (imagem) dos objetos infantis, mas com o tempo eles irão atrair para eles a afeição que era destinada aos objetos anteriores. O homem deixará pai e mãe Ŕ como prescreve a Bíblia Ŕ e acompanhará sua esposa: afeto e sensualidade estarão agora reunidos. (Freud, 1912a/1969, p. 57 trad. nossa)6 Vemos que a teoria freudiana da sexualidade infantil, elaborada em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”(1905), apontará para uma linha de desenvolvimento sexual em três etapas: autoerótica, narcísica e objetal. Estas etapas dariam conta de uma sexualidade infantil iniciada numa indistinção do 5 Do original consultado : Dès l‟avant le temps de la puberté, sous l‟influence de l‟éducation, des refoulements extrêmement énergiques de certaines pulsions ont été imposés et des puissances animiques comme la pudeur, le dégoût, la morale ont été instaurées, puissances qui, tels les gardiens, entretiennent ces refoulements. FREUD, S. (1909) De la psychanalyse In : Oeuvres complètes : psychanalyse. Volume X. 1909-1910. [Paris] : Presses Universitaire de France, 1993. p. 44. 6 Consultado da edição francesa : « Ces objets étrangers seront encore et toujours choisis d‟après le modèle (l‟image) des objets infantiles, mais avec le temps ils attireront à eux la tendresse qui était attachée aux objets antérieurs. L‟homme quittera père et mère Ŕ comme le prescrit la Bible Ŕ et suivra sa femme : tendresse et sensualité sont alors réunies. » (FREUD, 1912a/1969, p. 57) Freud, S. (1912a) Sur le plus général des rabaissements de la vie amoureuse. In : La vie sexuelle. [Paris] : Presses Universitaire de France, (1969). p.57.
  • 28. corpo-próprio, organizado como uma série de zonas érogenas parciais (orgãos genitais, boca, ânus, orifício urinário), e numa fragmentação dos objetos de satisfação. Posteriormente, estaria ancorada numa fase narcísica, imaginária, onde o sujeito renuncia ao investimento libidinal dirigido aos objetos de satisfaçao e se contenta com seus substitutos imaginários encenados na fantasia. Para finalmente se propor a um escolha de objeto palpada em objetos externos reais, mediados pela diferenciação simbólica entre eu e outro, operada pela castração. E a partir daí, uma série de objetos aparecerão como forma de suprir uma falta de objeto já instalada; objetos que irão assegurar uma satisfação sempre parcial e precária. Ouvry (2003) , resume num pequeno parágrafo a menção feita por Freud em Trois Essais sur la théorie de la sexualité (1905), ao período da puberdade. (...) a escolha do objeto a partir da puberdade é retomada a partir dos modelos esboçados durante a infância (na fase fálica, importante precursora da organização sexual definitiva) e orientada, graças a barreira imposta pelo interdito do incesto que surgiu nesse meio tempo, em direção aos objetos do mundo exterior. O trabalho psicológico, próprio ao adolescente é o de um afrouxamento dos laços familiares; trabalho importante e doloroso, como apontou Freud. Ele passa por uma etapa intermediária que corresponde a escolha de objeto, sob a forma de representação; a vida sexual do adolescente se resumirá ao fantasma. (OUVRY, 2003. p.84-85. trad. nossa)7 Se para a essa escolha do objeto sexual da maturidade, é interditado o recurso mais cômodo de buscar satisfação junto a pessoa que lhe dedicou tantos cuidados em outros tempos da infância, restará ao jovem, num primeiro tempo, o 7 Do original consultado : « (…) le choix d‟objet après la puberté est repris à partir des ébauches esquissées pendant l‟enfance (lors de la phase phallique, important précurseur de l‟organisation sexuelle définitive) et orienté, du fait de la barrière de l‟interdit de l‟inceste qui s‟est dressée entre temps, vers des objets adéquats étrangers. Le travail psychologique propre à l‟adolescent est donc celui du relâchement des liens familiaux, travail important et douloureux précise Freud. Il passe par une étape intermédiaire qui correspond aux choix d‟objet sous forme de représentation ; la vie sexuelle de l‟adolescent se résume alors à des fantasmes. ». OUVRY, O. « L‟adolescence dans les minutes de la Société Psychanalytique de Vienne », In : L‟adolescence dans l‟histoire de la psychanalyse. (org.) François Marty. [Paris] : In Press éditions, 2003. p. 84-85.
  • 29. recurso da fantasia, ou seja, representações destinadas a nunca se realizarem (Freud, 1905), uma vez que encenam, no campo imaginário, a tendência incestuosa dessas moções pulsionais sexuais. No desenvolvimento neurótico normal, estas tendências libidinais serão desexualizadas e sublimadas, ou inibidas quanto a sua finalidade de satisfação. A desparição do complexo de Édipo poderá ser mais ou menos ideal. No caso de uma total destruição do complexo, vemos a transformação do conteúdo manifesto das pulsões sexuais ceder à formação de uma fantasia inconsciente. Mas, « se o ego, na realidade, não conseguiu muito mais do que uma repressão do complexo, este persiste em estado inconsciente no id e manifestará mais tarde seu efeito patogênico.” (FREUD, 1924b, p. 197) ”8 Ou seja, temos aí um arranjo sintomático. Freud, (1908c), no texto « Caractère et érotisme anal”, ao fazer referência ao seu trabalho Trois Essais sur la théorie sexuelle (1905), nos dirá que vários serão os destinos dessas pulsões parciais rumo ao objetivo da realização sexual, agora possível com a chegada da puberdade. Em suas palavras, De modo geral, só uma parcela dela é utilizada na vida sexual ; outra parte é defletida dos fins sexuais e dirigida para outros Ŕ processo que denominamos „sublimação‟. Durante o período de vida que vai do final do quinto ano às primeiras manifestações da puberdade (por volta dos 11 ano) e que pode ser chamado de „período de latência sexual‟, criam-se na mente formações reativas, ou contra forças, como a vergonha, a repugnância e a moralidade. Na verdade surgem às expensas das excitações provenientes das zonas erógenas e erguem-se como diques para opor-se as atividades posteriores dos instintos sexuais.” (FREUD, 1908b, p. 160)9 . 8 Tradução retirada: FREUD, S. (1924b) A dissolução do complexo de Édipo. In Edição Standard das Obras Completas, vol.XIX. [Rio de Janeiro]: Imago, 2006.p.197. Consultado originalmente: “quand le moi n‟est vraiment parvenue à beaucoup plus qu‟un refoulement du complexe, ce dernier subsiste, inconscient, dans le ça, et plus tard il manifestera son action pathogène.” (Freud, 1924.p.31) In: FREUD, S. (1924c) La disparitions du complexe. In : d‟Œdipe Oeuvres complètes : psychanalyse. Volume XVII. 1923-1925. [Paris] : Presses Universitaire de France, 1992, p. 31. 9 Tradução retirada: FREUD, S. (1908b) Caráter e erotismo anal. In: Edição Standard das Obras Completas, vol IX. [Rio de Janeiro]: Imago, 2006. Consultado originalmente: “Généralement parlant, seule une partie d‟entre elles profite à la vie sexuelle; une autre partie est déviée des buts
  • 30. No texto de 1912, Des types d‟entrée dans la maladie névrotique, Freud irá se referir ao tempo da puberdade, como o período onde o sujeito estaria, particularmente, sensível ao adoecimento neurótico, graças ao aumento significativo de libido sexual que vêm à tona, e que antes havia sido represada pelo período de latência infantil. No desenvolvimento da neurose, esse quantum de libido liberada, não satisfeita e não sublimada, poderá buscar a via da regressão infantil. Esses dois tempos da vida sexual, e mais o tempo de pausa da latência, pode estar relacionado, nos diz Freud, ao adoecimento a que encontra- se predisposto o ser humano, já que, os animais, ao contrário, não encontram essa interrupção no seu desenvolvimento sexual (FREUD 1923-1925/1992). De um modo resumido, podemos afirmar até aqui, com Freud (1923- 1925/1992), que a sexualidade do ser humano se desenvolve na seguinte disposição: temos um aumento libidinal entre o quarto e quinto ano de vida, essas tendências sexuais que serão incestuosas, sucumbem ao recalcamento e se apaziguam num período de latência que irá durar até a puberdade. No tempo da puberdade, elas viriam novamente à tona, graças a maturação do corpo para a sexualidade, com força exemplar e deverão ser novamente veladas, para serem desviadas graças à possibilidade de satisfação com a escolha de um objeto externo não-incestuoso da idade adulta. Ou seja, podemos dizer que para o desenvolvimento da sexualidade humana, faz-se necessário um recalcamento das pulsões sexuais infantis incestuosas, e um segundo velamento posterior, na adolescência, dessas mesmas moções pulsionais que serão trazidas novamente à tona nessa fase do desenvolvimento, em que a maturação do corpo reativa uma grande descarga de energia sexual, que não pode mais ser contida pelo recalcamento. O sujeito é convocado na adolescência a re-significar todas essas moções pulsionais que estavam adormecidas até o período de latência. Desse sexuels et dirigée vers d‟autres buts, processus qui mérite le nom de “sublimation”. à l‟époque de la vie qui peut être qualifiée de « période de latence sexuelle », depuis la fin de la cinquième année jusqu‟aux premières manifestations de la puberté (autour de la onzième année), sont crées dans la vie d‟âme Ŕ mêmes au prix de ces excitations livrées par des zones érogènes Ŕ des formations réactionnelles, des contre-puissances, comme la pudeur, le dégoût et la morale, qui s‟opposent, tout comme digues, à la mise en activité ultérieure des pulsions sexuelles. » In : FREUD, S. (1908c) Caractère et érotisme anal. In : Oeuvres complètes : psychanalyse. Volume VIII. 1906- 1908. [Paris] : Presses Universitaire de France, 2007, p. 191.
  • 31. trabalho de atribuir um novo sentido ao sexual antes adormecido, algo permanece e resiste a significação, “um resto carente de sentido Ŕ o traumático Ŕ a partir do qual o psiquismo se organiza. Esse resto diz respeito tanto ao sexual diretamente considerado, quanto às questões narcísicas que entram em cena em função dos conflitos de autoridade e poder.” (MATHEUS, 2008, p.622). Será este novo velamento do real da castração que irá permitir ao adolescente ir de encontro ao Outro sexo, quando consegue suportar o trauma da castração pela via da construção de uma ficção que dê conta do sexual, de uma fantasia, ou nas palavras de Costa e Poli (2010), de um mistério. A sexualidade não tem um desdobramento que obedeça a um desenvolvimento, trazendo sempre junto um real que excede as condições de representação. Nesse sentido, o que pertencia ao campo da curiosidade infantil, no qual era suportado o sexual, perde a âncora das relações primárias nesse momento de passagem. Torna-se necessário, então, constituir algo que restabeleça essa função. Não sem antes passar pelas reações de pudor, que revelam algo de uma privação. É ali que entra em causa a função da fantasia. A relação ao “mistério” suporta a tessitura de um véu, necessária nos laços eróticos. Como se sabe, o sonho tem também essa função: pelo sonho torna-se possível uma saída de experiências que atualizam um trauma originário. A experiência corporal na puberdade também se situa como uma atualização deste trauma. (COSTA & POLI, 2010, p.4)10 Para que todo esse processo seja levado à cabo, outra operação psíquica bem dolorosa deve entrar em cena, a saber, “o afastamento da autoridade parental, graças a isso que se poderá criar a oposição importante para o progresso cultural, entre a nova e a antiga geração”.11 ». (FREUD, 1905/2006, 10 COSTA, A. & POLI, M.C. “Sexuação na Adolescência: um ato performativo”. In: Psicologia Política. VOL. 10. Nº 19. PP. 141-150. JAN. Ŕ JUN. 2010. p. 4 11 Do original consultado : « (…) le détachement d‟avec l‟autorité des parents, grâce auquel seulement se crée l‟opposition, si important pour le progrès culturel, entre la nouvelle et l‟ancien génération.» In : Freud, S. (1905) Trois Essais sur la théorie sexuelle. In : Œuvres Complètes : psychanalyse. Volume VI. 1901-1905. [Paris] : Presses Universitaire de France, 2006. p. 165.
  • 32. p.165 trad. nossa). Será apenas rompendo com o amor incestuoso parental, que o adolescente, poderá se inscrever na cena social, onde outros objetos se apresentam para fazer suplência ao objeto de satisfação para sempre perdido. No texto « Le roman familiale des névrosés”, (1908 - 1909), Freud chega mesmo a afirmar que para o desenvolvimento normal do sujeito e para o progresso da civilização, essa operação de separação e ruptura entre duas gerações, pais e filhos, é fundamental. Em suas palavras, Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal liberação é primordial e presume-se que todos que atingiram a normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na verdade, todo progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas. Existe, porém, uma classe de neuróticos cuja condição é determinada visivelmente por terem falhado nesta tarefa.12 (FREUD, 1908 -1909, p.219) Podemos articular a questão adolescente a uma busca identificatória que garantiria ao sujeito uma pequena ilha, onde o jovem ancora-se para se proteger da nudez na qual se encontra ao aceder à cena social. No entanto, se no início a identificação estava do lado do pai Ŕ o menino se identificava ao pai, detentor da chave para o amor da mãe -, na adolescência esta mesma identificação irá se deslocar e recair sobre objetos do mundo social. Com a reativação das moções pulsionais adormecidas do período de latência da 12 Tradução extraída In : FREUD, S. (1908/1909) Romances familiares. In Edição Standard das Obras Completas, vol.IX, [Rio de Janeiro]: Imago 2006 p. 219. Consultado originalmente : « Que l‟individu au cours de sa croissance se détache de l‟autorité de ses parents, c‟est une des opérations les plus nécessaires mais aussi le plus douloureuses du développement. Il est tout à fait nécessaire que ce détachement s‟effectue, et l‟on peut supposer que chaque être humain devenu normal l‟a, dans une certaine mesure, accompli. En vérité, le progrès de la société repose d‟une façon générale sur cette relation d‟opposition entre les deux générations. D‟un autre côté, il est une classe de névrosés dont on reconnaît que l‟état est conditionné par le fait qu‟ils ont échoué dans cette tâche.Freud, S. (1908/1909) « Le roman familiale des névrosés”, In : Névrose, psychose et perversion. [Paris] : Presses Universitaire de France.1973 p. 254.
  • 33. sexualidade infantil, que acontece na adolescência, serão também reativados os interditos que impedem a realização da satisfação sexual que reivindica o sujeito. O sujeito adolescente acorda inscrito num cenário de frustração, aonde anteriormente encontrava-se adormecido numa promessa de satisfação. A identificação, que como nos diz Freud, é ambivalente desde o início, ganhará ares de agressividade dirigida ao pai, obrigando o adolescente a olhar para fora da cena familiar. Assim, o adolescente é confrotado ao real da perda do objeto e, deve buscar no campo do Outro, o amor anseado; algo que transporta o adolescente em direção à cena social. Nas palavras de Lesourd (2004b), A construção do eu adolescente, como a do eu infantil, é indissociável da questão da relação aos objetos. Como a primeira identidade se constrói a partir dos objetos infantis du „círculo familiar‟, o Outro infantil (objetos de amor paterno, materno ou fraterno, ou o objeto de satisfação proposto pela mãe), o adolescente se apoiará nesses objetos que irá procurar no Outro social para afirmar seu eu juvenil. Esses objetos de desejo não serão mais aqueles do amor primário ou edipiano, mais os objetos metaforizados destes, propostos pela realidade social. As fontes de satisfação do desejo se inscrevem no campo do Outro social e do Outro sexo 13 » (LESOURD, 2004b, p.26. trad. nossa) Podemos dizer até aqui que, toda problemática da passagem adolescente à cena social gira em torno da superação do impossível da satisfação incestuosa, do velamento deste impossível via fantasia, do deslocamento da identificação ao pai para uma identificação aos pares e do encontro com o Outro 13 Do original consultado : « La construction du moi adolescente, comme celle du moi infantile, est indissociable de la question du rapport du sujet aux objets. Comme la première identité s‟est construite au travers des premiers objets infantiles du « cercle de famille », l‟Autre infantile (objets d‟amours paternel, maternel ou fraternel, ou objet de satisfaction proposé par la mère), l‟adolescent va s‟appuyer sur des objets qu‟il cherche dans l‟Autre social pour affirmer son moi juvénile. Ces objets de désir ne sont plus alors ceux des amours primaire ou œdipien, mais des objets métaphoriques de ceux-ci proposés par la réalité sociale. Les sources de satisfaction du désir s‟inscrivent au champ de l‟Autre social et de l‟Autre sexe. » In :LESOURD, S. (2004b) Reconstruction narcissique du moi adolescent. In : Figures de la psychanalyse. [Paris] : Erès, 2004/1, no. 9. p. 25-34. p. 26. http://www.cairn.info/revue-figures-de-la-psy-2004-1-page-25.htm.
  • 34. sexo. Mas para entendermos do que se trata esse encontro com o Outro sexo, devemos entender a leitura de Freud que faz Lacan sobre a sexualidade infantil, já que será a partir desse encontro que o sujeito acede à dimensão simbólica da castração. 1.3.A questão adolescente e o encontro traumático com o Outro sexo Se na teoria freudiana, a questão da linguagem aparecia apenas de maneira discreta Ŕ mesmo que insistente, na figura dos lapsus, dos chistes -, na obra de Lacan, ela ganhará a cena principal quando o psicanalista irá firmar que o inconsciente é ele mesmo estruturado como uma linguagem. Freud, em Trois essais sur la theorie sexuelle (1905), aborda o interesse inicial das crianças pelo enigma da diferença dos sexos, quando o menininho se surpreende com o fato de que a menina não possui o pênis. Trata-se de uma constatação anatômica: ter ou não ter pênis; o que levará Freud (1923) a afirmar que haveria um primado do falo: “para os dois sexos, apenas um orgão genital, somente o orgão masculino desempenha um papel. Logo, não é que exista um primado genital, mas sim um primado do falo.” (FREUD, 1923/1969, p.114, trad. nossa)14 . O menininho, quando confrontado com a ausência do pênis, nega que exista uma falta, ou melhor, irá explicar a falta como o resultado de um castigo: a menina tinha o pênis, mas ele lhe foi tirado. E será sua mãe a última das mulheres a ser castrada: “(...) longe de generalizar, a criança acredita que apenas as pessoas femininas indignas tiveram de pagar o castigo de perda do orgão genital; pessoas que, como ele, são culpadas dessas moções interditadas. Mas, as mulheres respeitadas, como sua mãe, guardaram o pênis por mais tempo. (FREUD, 1923/1969, p.116, trad. nossa).15 » O que levará Ouvry (2006) a afirmar 14 Consultado originalmente : “(...) pour les deux sexes, un seul organe génital, l‟organe mâle, joue un rôle. Il n‟existe donc pas un primat génital, mais un primat du phallus. » In : FREUD, S. (1923) L‟organisation génitale infantile. In : La vie sexuelle. [Paris] : PUF, 1969.p. 114. 15 Consultado originalmente : “(...) loin de généraliser, l‟enfant croit que seules des personnes
  • 35. que não há, na infância, acesso possível a consistência do Outro sexo. Esse encontro, para se cumprir deverá contar com a mediação de um Outro, que cuidará de inscrever esse encontro no simbólico, na cultura. Será pela via da linguagem que o acesso ao Outro sexo poderá ser encenado. Isto porque, no humano, diferente dos animais onde o encontro sexual é da ordem do realizável - o instinto constitui este saber, no real, que guia os animais pelos caminhos do sexo de modo uniforme -, não haveria nunca qualquer garantia de acesso ao Outro sexo. E se, na infância, não se pode conceber o Outro sexo, na adolescência, ao contrário, se é confrontado a ele, graças ao curto-circuito pulsional trazido pelo real do corpo. Nas palavras de Matheus, Entende-se que a puberdade pode por vezes funcionar como elemento disparador do segundo momento da sexualidade, mas não como condição necessária. É, sobretudo, a partir do olhar do outro, ou da imagem especular que este anuncia, que surge, para o sujeito, um corpo estranho, um componente novo em seu psiquismo que não encontra registro entre os recursos simbólicos disponíveis. Esse olhar e essa imagem não estão presos à concretude da realidade, uma vez que esta é sustentada pelo campo simbólico que a fundamenta e acompanha. Da realidade, busca-se ao menos um grão que sirva de suporte para o real a ser, disparado pela estranheza do olhar do outro. São as imagens de um corpo transformado, produzidas em meio a este ou a tantos outros, que instigam o retorno do recalcado, inaugurando o segundo momento da sexualidade. É por esse motivo que o momento adolescente independe imediatamente da puberdade, pois está atrelado aos sentidos que aquele corpo conquista nos laços nos quais se inscreve.” (MATHEUS, 2008 p. 622) Tal é o caso que vemos com uma certa recorrência em nossos dias, de adolescentes que brincam de expor o corpo do outro e mesmo o corpo próprio féminines indignes ont payé amende de l‟organe génital, des personnes qui vraisemblablement se sont rendues coupables comme lui-même de motions défendues. Mais des femmes respectées, comme sa mère, gardent encore longtemps le pénis. In :FREUD, S. (1923) L‟organisation génitale infantile. In : La vie sexuelle. [Paris] : PUF, 1969.p. 114.
  • 36. com gravações destinadas, ou não, a serem exibidas e publicizadas na internet. Em nosso trabalho, presenciamos, o seguinte episódio: adolescentes entre 14/15 anos que, de posse de um telefone celular equipado de uma pequena câmera, instigam duas crianças de 8 anos a encenarem um ato sexual. Esses adolescentes lhes instigam, ou melhor dirigem uma encenação de um ato, orientando as duas crianças em relação aos movimentos a serem realizados pelo corpo de ambos. Tudo isso é filmado e descoberto rapidamente pelos adultos da escola; descoberto tão facilmente que nos leva a crer no endereçamento deste pequeno vídeo. Lacan (1956/1998) em O seminário sobre a “carta roubada”, nos aponta sobre a importância da transferência da responsabilidade daquele que escreve a carta, em nosso caso, aqueles que participam e são autores do vídeo, para a responsabilidade daqueles que detém o vídeo, seu destinatário final. O vídeo em questão não foi tornado público via internet, mas foi passado de mão em mão (de telefone a telefone) até chegar nas mãos da direção da escola. Entendemos que essa encenação do ato sexual, para aqueles que a orquestraram, constitui uma forma de abordar o excesso do real do corpo que invade o sujeito adolescente, difícil de ser simbolizada por eles mesmos, e por isso, endereçada a um Outro que por ele deve responder e, assim ajudá-lo a simbolizar esse excesso de real. Rassial (2010), em seu livro Le passage adolescent, nos dirá que a adolescência é o tempo subjetivo em que a imagem do corpo-próprio, construída na infância, é desestabilizada, « (...) ou seja, não mais apoiado no olhar e na voz materna e no falo paterno, mas já inserido na relação ao Outro sexo (...)” 16 (RASSIAL, 2010, p. 73, trad. nossa). Mas também, esse episódio, nos força a seguinte interrogação: Por que os escolhidos como atores principais dessa encenação sexual foram duas crianças e não os próprios adolescentes, seus mestres - de - cerimônia? Pois, se na adolescência o possível do encontro sexual é atualizado sob a forma da promessa irrealizável, é somente, na infância que este encontro é da ordem do 16 Consultado originalmente: “ (...) c‟est-à-dire non plus soutenue par le regard et la voix de la mère et le phallus paternel mais engagé dans la relation à l‟autre sexe (...) » RASSIAL, J.-J. (1996) Le passage adolescent.[Toulouse]: Erès, 2010. p. 73.
  • 37. possível, do encontro com o objeto de satisfação antes de ser perdido para todo sempre. Por isso, não é mera força do acaso que os atores da cena tenham sido as crianças, pois apenas elas podem podem ter a experiência da completude imaginária. Vejamos como a questão adolescente se atualiza com a desestabilização da imagem do corpo próprio garantida pelo olhar da mãe e também pelo confronto com a dimensão do Outro sexo, simbolizado por meio da lei. A questão da imagem do corpo próprio foi trabalhada por Lacan no início de sua obra, no texto O estádio do espelho como formador da função do eu (1949/1998), e em Les complexes familiaux dans la formation de l‟individu (1938/2001). O estádio do espelho seria o momento inaugural, onde a partir da idade de seis meses, o bebê humano se surpreende com o ordenamento perceptivo da imagem de si, a partir da imagem de um Outro que se mostra ao seu lado diante do espelho. Este seria o início de uma fase narcísica e o ultrapassamento da fase auto-erótica do corpo fragmentado. Em Lacan, será pela função do olhar que a criança sairá, progressivamente, da confusão de um corpo despedaçado, graças a ilusão de um ideal da imagem de um Outro. Nas palavras do psicanalista, “(…) a unidade que ela introduz nas tendências, irá contribuir, portanto, para a formação do eu. Mas, antes que se possa afirmar sua identidade, o sujeito se confundirá com essa imagem que o forma, mas que também o aliena primordialmente.” 17 (LACAN, 1938/2001, p. 43, trad. nossa). Ainda, em Les complexes familiaux, Lacan colocará o acento na importância traumática do complexo de intrusão e do sentimento do ciúme para o reconhecimento de um outro como objeto e para a constituição do moi nessa etapa da tenra infância. Assim, o sujeito preso por identificação ao ciúme, chega a uma nova alternativa : ou bem ele reencontra o objeto materno e irá se agarrar a recusa do real e a destruição do 17 Do original consultado :: “(...) l‟unité qu‟elle introduit dans les tendances contribuera pourtant à la formation du moi. Mais, avant que le moi affirme son identité, il se confond avec cette image qui le forme, mais l‟aliène primordialement. » LACAN, J. (1938) Les complexes familiaux. In : Autres Ecrits. [Paris]: Éditions du Seuil, 2001. P. 43.
  • 38. outro ; ou bem, conduzido a qualquer outro objeto, ele irá recebê-lo segundo o modo característico do conhecimento humano, como objeto comunicante, na medida em que toda concorrência indica rivalidade, mas também, acordo. Mas, ao memso tempo, ele reconhece o outro com o qual ele entra na luta ou faz um contrato, resumindo, ele encontra, ao mesmo tempo, o outro e o objeto socializado.18 (LACAN, 1938/2001, p. 43 trad. nossa). Assim, no início de sua obra, Lacan irá afirmar que o processo de socialização do sujeito se faz, como em Freud, via identificação; o ciúme entre irmãos do complexo de intrusão não seria a prova de uma rivalidade vital, mas sim, de uma identificação mental (Lacan, 1938/2001). Esta idéia de uma rivalidade vital, será retomada por Lacan, como a chave-mestra em sua argumentação sobre os dois tempos da subjetivação: alienação e separação. Como iremos desenvolver mais adiante, no capítulo III desta tese, o conceito de alienação será fundamental para entendermos as etapas do desenvolvimento do [eu/moi] e sua relação com o registro imaginário da alteridade (eu e tu), bem como a emergência do sujeito [je] como efeito do significante, entrada no campo do simbólico, do Outro na obra de Lacan. O conceito de alienação na obra de Lacan, será analisado por Poli (2003), que irá apontar três tempos do desenvolvimento desta noção na obra do psicanalista: o primeiro deles estaria presente no texto do Estádio do Espelho (1949/1998) e seria da ordem de uma alienação primordial. Lacan irá situar, no início de sua obra, o [eu] - moi, produto das identificações -, numa relação de submissão à imagem especular garantida por um Outro, representado, inicialmente, pela imago materna. Neste tempo, o operador da alienação é a imago materna da qual a criança deverá se separar, deixando de ser o objeto do 18 Do original consultado : « Ainsi le sujet, engagé dans la jalousie par identification, débouche sur une alternative nouvelle où se joue le sort de la réalité: ou bien il retrouve l‟objet maternel et va s‟accrocher au refus du réel et à la destruction de l‟autre; ou bien, conduit à quelque autre objet, il le reçoit sous la forme caractéristique de la connaissance humaine, comme objet communicable, puisque concurrence indique à la fois rivalité et accord ; mais en même temps il reconnait l‟autre avec lequel s‟engage la lutte ou le contrat, bref il trouve à la fois l‟autrui et l‟objet socialisé. In :LACAN, J. (1938) Les complexes familiaux. In : Autres Ecrits. [Paris]: Éditions du Seuil, 2001. P. 43.
  • 39. gozo da mãe, para aceder a dimensão do sujeito do inconsciente, se alienando ao significante. A partir daí, o operador da alienação passa a ser o significante Nome- do-Pai que irá introduzir no conflito do tempo edipiano, uma promessa: uma promessa de satisfação adiada, que fará que o véu encobridor do sexual, repouse sobre a criança nos tempos da latência. Ou seja, pelo conflito funcional do Édipo, a “repressão aparece como um ideal de promessa” (Lacan, 1938/2001, p. 57). Nas palavras de Lacadée, Após haver dado, nesses termos, a definição do sujeito e do significante, como “o significante é aquilo que representa o sujeito para um outro significante‟, Jacques Lacan tratou das condições dessa representação, chamada operação lógica de causação do sujeito, que supõe um tempo da alienação e um tempo de separação; tempos que permitem a inscrição do sujeito na linguagem. Assim, esta operação produz, de um lado, o sujeito do incosnciente, ou seja, o sujeito inscrito no significante e, de outro lado, relaciona esse sujeito a um elemento não significante que Lacan chamou de objeto. O agente desta operação de separação é o encontro com o desejo do Outro precebido nos intervalos de seu discurso, que irá ligar o sujeito ao objeto enigmático deste desejo.”19 (LACADÉE, 2003, p.97 trad. nossa) A criança de desloca da posição de ser o objeto do gozo da mãe, e, como forma de se defender da ausência desse Outro primordial do qual se faz objeto, elege um objeto do mundo externo, com o qual irá gozar, como forma de 19 Do original consultado : Après avoir donnée la définition du sujet et du signifiant en ces termes « le signifiant est ce qui représente le sujet pour un autre signifiant », Jacques Lacan a abordé les conditions de cette représentation, appelée opération logique de causation du sujet, qui suppose un temps de aliénation et un temps de séparation, temps permettant l‟insertion du sujet dans le langage. Ainsi, cette opération produit, d‟une part, le sujet de l‟inconscient, c‟est-à-dire le sujet inscrit dans le signifiant et, d‟autre part, corrèle ce sujet à un élément non signifiant que Lacan a appelé l‟objet. L‟agent de cette opération de séparation est la rencontre du désir de l‟Autre entraperçu dans les intervalles de son discours, qui réfère le sujet à l‟objet énigmatique de ce désir. » In : LACADÉE, P. (2003) Le malentendue de l‟enfant. Des enseignements psychanalytiques de la clinique avec les enfants. [Lausanne] : Psyché, Éditions Payot, 2003. p. 97.
  • 40. dar conta da falta desse primeiro Outro. Nas palavras do psicanalista, “Este objeto irá lhe permitir tratar a falta do Outro pela entrada do objeto olhar, e de recobrir o vazio da castração que implica a partida de sua mãe, o que colocará em evidência a castração do Outro, expondo sua falta.” »20 (LACADÉE, 2003, p.91 trad. nossa). Temos aqui, o momento da inscrição no campo do simbólico, onde o sujeito deve abrir mão do gozo e ficar com a promessa de um dia poder também gozar. Nesta operação algo se perde, o objeto a, causa do desejo, responsável pela circulação do sujeito na cadeia significante. O sujeito se constitui por relação a uma falta e, supõe no Outro, o detentor de uma verdade que lhe permita aceder a este momento primeiro, anterior, onde carne e corpo libidinal não estavam ainda cindidos. Nas palavras de Lesourd (2005), Neste confronto inevitável, o adolescente irá encontrar uma das figuras da falta no Outro, que até agora ele havia conseguido evitar, ou até mesmo, ignorar. Diante da descoberta de que a promessa edipiana Ŕ “mais tarde quando serei grande, eu poderei ...” Ŕ é um engano, é toda a organização significante que é desestabilizada. Não haverá mais resposta possível aos enigmas da vida e do sentido, nada mais de significação última que organizaria os significantes lhes atribuindo um certo ordenamento.21 (LESOURD, 2005, p. 56 trad. nossa) É, então, essa conta do gozo perdido e prometido que vêm o adolescente cobrar. Mas, qual é sua surpresa? De que não há, no campo do Outro, esse significante que dê provas de sua verdade enquanto sujeito, e que 20 Do original consultado: “Cet objet lui permet de traiter le manque de l‟Autre par la mise en jeu de l‟objet regard et de voiler le vide de la castration qu‟implique le départ de sa mère, départ qui a révelé la castration de l‟Autre, en dévoilant son manque. Ibidem, p. 91. 21 Do original consultado: « Dans cette confrontation inévitable, l‟adolescent va rencontrer une des figures du manque dans l‟Autre, que jusqu‟alors il avait pu éviter, voire l‟ignorer. Face à la découverte que la promesse œdipienne Ŕ “plus tard, quand je serai grand, je pourrai ...” Ŕ est un leurre, c‟est toute l‟organisation signifiante qui est bouleversée. Plus de réponse possible aux énigmes de la vie er du sens, pas de signification dernière qui organiserait l‟ensemble des signifiants en les ordonnant. » In : LESOURD, S. (2005) La construction adolescente. Collection Hypothèses. [Strasbourg] : Éditions Arcanes. 2005. p. 56.
  • 41. esse Outro não detém a chave para o seu encontro singular com o sexual. Assim, o sujeito adolescente, tendo se submetido à castração, estará fadado ao desencontro do sexual: « (...) a lei da castração (…) leva o ato sexual a um eterno ato falho, onde não cessam de se verificar a ausência da relação sexual, derrota em reunir sujeito e Outro como corpo.”.”22 (OUVRY, 2001, p.64 trad. nossa). Essa teorização é possível, graças ao terceiro tempo do conceito de alienação na obra de Lacan, cujo operador é o significante. O terceiro tempo do conceito de alienação apareceria no Seminário XI Ŕ Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1998), onde Lacan se afasta da fonte de inspiração hegeliana ao elaborar sua teoria do objeto a, que daria provas que o campo do Outro é também faltoso. Nas palavras de Poli (2003), não haveria um significante pleno que garanta a significação do sujeito, ele falta ao também ao campo do Outro. O sujeito se desloca, na adolescência, de uma promessa de gozo fálico (masculino), para cair no impossível da satisfação sexual, do Outro sexo, representado como falta, como feminino. Neste momento, em que a imago parental é colocada em xeque, o adolescente corre em busca de um Outro discurso que possa orientá-lo em sua busca pelo encontro com o objeto de amor, no social, que fará suplência a sua falta. Nas palavras de Poli (2003), A mãe, como Outro do infantil, é o agenciador do discurso para a criança, o endereço da demanda e, portanto, o lugar da alienação primária. Na adolescência, ele é substituído pelo Outro sexo Ŕ o feminino, tanto para meninos quanto para meninas; o que implica na constatação da sexualidade materna, à qual se deve, muitas vezes, os momentos de angústia do púbere. Em termos de organização discursiva, tal modificação no Outro, produz efeitos de “perda de bússola” (POLI, 2003, p. 149). 22 Do original consultado : “(...) la loi de la castration (...) ramene l‟acte sexuel à un éternel acte manqué où ne cessent de se verifier l‟absence de rapport sexuel, l‟échec de reunir sujet et l‟Autre comme corps. » In : OUVRY, O. (2001) Le Féminin comme nouveauté pubertaire. In: Le feminin: un concept adolescent ? Sous la dir. de Serge Lesourd. [Ramonville-Saint-Agne] : Erès , 2001. p. 64.
  • 42. É por isso que nesta passagem, onde o adolescente irá se confrontar com a ferida aberta Ŕ traumática Ŕ deixada pelo real da castração, a partir do qual o sujeito irá inscrever seu gozo na Lei da linguagem, da civilização, será fundamental encontrar um lugar de pertencimento no discurso social. O mesmo trabalho de inscrição deverá ter sido feito na cena familiar infantil, aonde pai e mãe, investiram simbolicamente a criança com seu desejo parental, não anônimo. “Da mãe : enquanto que seus cuidados carregam a marca de um interesse particular, pela via de suas próprias faltas. Do pai: enquanto que seu nome é o vetor da incarnação da Lei no desejo.”»23 (LACAN, 1961/2001, p.373 trad. nossa) Rosa (2002; 2006), irá aprofundar essas questões do lugar de incrição da criança e do adolescente na família e no socius. No artigo O lugar da criança e a família na contemporaneidade (2006), irá discutir as reconfigurações que o discurso da parentalidade vêm enfrentando na sociedade atual, regida pelos mandos e desmandos do discurso da ciência que abole a dimensão da falta do seio da construção do sujeito, considerando os indivíduos apenas como corpos biológicos. Nos diz que enfrentamos uma crise na concepção de família, o que nos convoca a reconsiderar seus princípios fundadores. Prossegue em sua argumentação ao desnaturalizar a função materna e paterna, ligando-as ao imaginário social que as produz. Exercer as funções maternas e paternas supõe mais do que certa estrutura subjetiva. O sujeito da linguagem constituído pelo discurso do Outro é impregnado pela produção imaginária do grupo social, na medida em que contém fantasmas desses grupos. É desse fantasma que advém a inscrição de um lugar discursivo para o exercício das funções parentais; estas supõem uma inscrição que transcende o desejo ou a vontade de cada um, pois cada sociedade fabrica pai para filho, designação que não é 23 Do original : “De la mère: en tant que ses soins portent la marque d‟un intérêt particularisé, le fût- il par la voie de ses propres manques. Du père : en tant que son nom est le vecteur d‟incarnation de la Loi dans le désir. » IN : LACAN, J. (1969) Note sur l‟enfant. In : Autres Ecrits. [Paris]: Éditions du Seuil, 2001. P. 373.
  • 43. arbitrária. Ter pai significa que o sujeito não se auto-funda. (ROSA, 2006, p. 121) No contexto da contemporaneidade, onde as coordenadas sociais são anômicas, a família enquanto função territorializante, garantidora de um lugar subjetivo para criança, pode ela mesma, ser produtora de desamparo e geradora de angústia. Se a cena social está presente na base da cena familiar, como nos diz Rosa (2002), podemos inferir que a busca do adolescente por um Outro discurso de pertencimento que não o parental, é também um ir de encontro a uma nova solidão. Este contexto, onde o Outro social se mostra anômico e incapaz de responder pela entrada do sujeito adolescente na cena social, favorece uma saída pela fixação melancólica narcísica, que se instala no momento em que o sujeito deve superar as identificações aos ideias parentais. 1.4.A questão adolescente no contemporâneo: o desamparo diante do Outro social anômico Como nos aponta Freud (1915-1917/1996), em Luto e Melancolia, dois destinos se anunciam para o ego quando confrontado ao imperativo do abandono dos primeiros objetos de amor, vítima do interdito do incesto. Ou bem o sujeito adolescente segue o caminho „normal‟ do abandono do objeto, acatando ao doloroso sofrimento implicado no processo de luto que comporta essa perda, se contentando com os outros objetos que irão se apresentar no mundo social. Ou pode ainda, recusar essa substituição, na medida em que ela é apenas um artifício mal-ajambrado, caindo numa cilada melancólica. Podemos então relacionar a entrada adolescente na cena social a uma passagem entre luto e melancolia que irá orientar o ego em direção a um lugar de pertencimento ao desejo do Outro. O luto é de modo geral, uma reação à perda real de um ente querido,
  • 44. mas também do ideal representado por esse alguém. O luto, nos diz Freud, seria um processo não-patológico, doloroso, que sofre o ego diante da perda de um ente querido, ou de alguma abstração ideal que se colocou no lugar deste ente. Já a melancolia difere, em aspectos ideais do desenvolvimento, de uma situação de luto, pois se inscreve numa situação de perda de um objeto ideal, e não real; “O objeto de amor talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor (...)”(FREUD, 1915-1917/1996, p. 251) O adolescente deverá se separar do ideal parental, perdê-lo, para ir em busca de um lugar no campo social, que lhe dará a possibilidade de compensar essa falta, via substituição por um outro objeto que venha fazer suplência a essa perda. Este processo pode se dar como passagem ou como fixação; como luto ou como melancolia. No caso de ser apenas uma passagem, trata-se do desenvolvimento ideal do ego, rumo à escolha objetal: àquela apontada por Freud (1921) em Psicologia de Grupo e a Análise do ego, e O ego e o id (1923), em que a identificação com os objetos parentais precede à escolha de objeto. No caso da fixação melancólica a catexia objetal retrocede a uma identificação, e será o próprio ego a ser investido como objeto de amor, assumindo a forma patológica de uma regressão ao narcisismo primário. No primeiro teríamos um tempo de luto, onde a perda do objeto passou pelas exigências do teste de realidade que constatou que objeto não existe mais (Freud, 1915-1917). O ego protestaria um pouco, mas se resignaria diante da realidade, fazendo progressivamente, o desligamento da libido em direção a outros objetos substitutivos. No processo melancólico, temos uma fixação que impede o reconhecimento da perda, pela via da regressão que irá identificar o próprio ego ao objeto de que não pôde abrir mão. Como nos diz Freud, existiria, (...) num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular, então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal Ŕ uma retirada da libido desse objeto e o deslocamento da mesma para um novo -, mas algo
  • 45. diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser necessárias. (...) a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim, a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por uma agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado.” (Freud, 1915-1917/1996, p. 254-255) Mas o que faz o processo adolescente estar tão próximo da solução melancólica é que, ao contrário do luto, que mantém uma relação entre o objeto perdido e às vicissitudes da realidade, no caso da melancolia, a relação com o objeto é carregada da ambivalência primária dos sentimentos, suporte também de toda relação com o objeto de amor parental do qual o adolescente deve buscar de separar. “Na melancolia, em consequência, travam-se inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se digladiam.” (Freud, 1915-1917/1996, p. 261). A porta de saída de uma fixação melancólica é também apontada por Freud: se é a ambivalência dos sentimentos e o amor que ela implica que irá tornar o desapego ao objeto tão difícil, é ela também em sua corrente contrária, que progressivamente, irá dissolvê-lo, matando-o a cada dia, pouco a pouco. Se, como dissemos, é a força da ambivalência dos sentimentos ao pai que irá fazer o adolescente mergulhar num tempo melancólico, será esta mesma força que o fará sair da cilada da fixação ao objeto de amor parental. O pai que é amado, e que por isso, dificulta que o adolescente se movimente rumo aos objetos do mundo exterior, é também, o pai odiado, aquele que como nos diz Freud (1913), em Totem e Tabu e o mito da horda primitiva, é o detentor de todas as mulheres do clã, e impede com sua autoridade, que os filhos realizem o encontro amoroso incestuoso. Por isso, é também esse mesmo pai, odiado, que impulsiona o adolescente a sair da fantasia do incesto, familiar, e o impele a cena social, onde “novos” objetos irão circular e serão escolhidos, fazendo suplência a satisfação primordial. Em nossos dias, algo interessante acontece com essa figura do pai
  • 46. que, por ser também odiado, autorizava a saída adolescente rumo à escolha do objeto no social. Ele, esse pai, não suporta sustentar a ambivalência dos sentimentos do qual deve ser alvo, quer seja, pois está cada vez mais ausente na vida real Ŕ está preso, desapareceu, tem outra família -, quer seja, porque se operou nos últimos tempos, uma revolução em termos de parentalidade e seu papel na educação das crianças. Para fins desse tópico, traremos o debate acerca da passagem adolescente no cenário familiar do contemporâneo. Assim, nos caberia fazer a seguinte pergunta, o que aconteceria, como é o caso nos dias de hoje, se os liames simbólicos entrassem em ebulição e a ordem familiar de outrora, dos tempos de Freud, entrasse em desordem? Veremos a seguir, de que forma esse laço familiar entra em desorde. (ROUDINESCO, 2002) e quais são as consequências para a passagem adolescente à cena social, via desapego ao objeto de amor parental. Ou seja, como o adolescente consegue aceder a dimensão de encontro com objeto sexual, num contemporâneo marcado por um Outro social anômico, incapaz de responder ao sujeito com as balizas simbólicas que garantam sua existência num campo de sentido. Diremos que responder, significa também, suportar- se enquanto Outro faltoso, permitindo que o sujeito se confronte com o mal- estar inevitável de sua condição. Diremos que responder é suportar a angústia de sua própria incompletude. E isso é extamente o que a cena social contemporânea tenta evitar ao se organizar sob a égide do discurso do capitalismo, que tenta apagar do sujeito a dimensão do mal-estar, preenchendo o furo de incompletude com os objetos de consumo, nas palavras de Lacan, gadgets. Veremos mais adiante os contornos desse Outro anômico e sua incidência na organização da família contemporânea, o que não será sem consenquências para os modos de inscrição do adolescente a cena social. Roudinesco (2002), em seu livro La famille en désordre, nos mostra como a instituição familiar sofreu, a partir do século XIX na Europa, enormes transformações. Primeiramente, a criança passa a ser um ser desejado e projetado pelo casal unido em matrimônio por amor. Nos diz a autora, “ (...) a criança passou a ser olhada, no seio da família burguesa, como um lugar da