O documento discute a relação entre mito, comunidade e sociedade. Afirma que um mito fundador cria uma comunidade orgânica unida por valores e normas comuns, enquanto uma sociedade sem mito é dividida por ideologias conflitantes. Também contrasta sociedades ocidentais modernas, que perderam seus mitos originais, com sociedades comunistas que tentaram substituir o mito por ideologia, falhando em unir os indivíduos.
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O FOGO DA VONTADE
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Mito e Comunidade (parte 2 de 2)
2009 Junho 12
by Rodrigo
Esta ligação íntima entre Mito fundador, sociedade, sistema de valores, norma social, permite-nos falar da sociedade como de um organismo,
de falar de sociedade orgânica. De resto, o termo sociedade é impróprio, como o demonstra o facto de sermos obrigados a adjectivá-lo. Falarei
então, doravante, de comunidade, para significar sociedade orgânica, e ademais, oporei comunidade a sociedade, a toda a linha, um pouco da
maneira como opomos um conceito-limite a outro. Esta oposição entre comunidade e sociedade não é nova, foi estabelecida por sociólogos
alemães e notoriamente por Ferdinand Tönnies. A intuição destes sociólogos era justa, mas sempre conduziu a conclusões erradas ou a teorias
assaz confusas, porque a definição de comunidade em relação a sociedade nunca foi dada senão de maneira implícita.
Um Mito é sempre nostalgia das origens, como afirma Mircea Eliade, mas também é sempre visão cosmológica do futuro, anuncia um fim do
mundo, que também pode ser por vezes começo de uma repetição do mundo e, num caso que conhecemos bem, regeneração do mundo.
O Mito, também o dizemos, não tem tempo. Não o tem porque ele é o tempo, o tempo da história. Assim, a comunidade que ele organiza é um
organismo histórico que ocupa a todo o momento as três dimensões do tempo histórico. Uma comunidade é um organismo vivente, que está à
vez no passado, no presente e no futuro. Uma comunidade tem uma consciência comunitária, que é, ao mesmo tempo, memória, acção e
projecto. Uma tal comunidade, chamamo-la povo. Quando um povo já não tem a memória das suas origens e, como diz Richard Wagner,
quando deixa de ser movida por uma paixão e um sofrimento comum, deixa de ser povo: torna-se massa. E a comunidade torna-se sociedade.
Afirmei que comunidade e sociedade são conceitos-limite. Há sempre um pouco de massa nos melhores povos e há sempre uma réstia de povo
na massa mais vil e mais rebaixada. Não há dúvida, e de resto enchem-nos com isso os ouvidos, de que vivemos na época das massas, de que
vivemos em sociedades massificadas. O indivíduo, não importa qual, é divinizado em nome da igualdade. Todo o individuo social tem o
mesmo valor, a personalidade nunca é tomada em consideração – e com causa, pois já não há sistema referencial de valor social. Numa
comunidade, pelo contrário, o valor humano, que é sempre personalidade social, é medido pelo seu grau de adequação aos exemplos ideais
propostos pelo Mito, e que cada membro da comunidade traz em si como uma espécie de superego. Quando o mito se esteriliza, quando esses
arquétipos ideais não são mais sentidos como tal, deixa de haver laço comunitário, de modo que, no limite, todo o indivíduo é considerado
como ideal em si, pelo simples facto de ser um indivíduo. O que resta para manter unido aquilo que se tornou uma sociedade, é o laço sempre
precário e contingente criado pela aliança dos interesses egoístas de grupos de indivíduos, de classes, de partidos, de capelas, de seitas. A
verdadeira dimensão humana, que é dimensão histórica, está perdida; a sociedade de massa já não se preocupa, verdadeiramente, nem com o
passado nem com o futuro, apenas vive no presente e para o presente. Assim, ela já não faz política, apenas faz economia, e economia da pior
espécie, condicionando todos os reflexos sociais. Sintomaticamente, a preocupação do futuro, os horizontes do século XXI, não são invocados
senão para justificar e avalizar o insucesso económico do presente. Perceberam bem, estamos em vias de falar das nossas sociedades
ocidentais. Estas sociedades, no seio das quais nascemos e vivemos, saíram da grande ecúmena cristã, que havia sido formada e conformada
pelo Mito judaico-cristão. Este Mito morreu há muito tempo, com o seu Deus. Mesmo a religião, tal como é veiculada pelo que resta das
Igrejas, é ideologizada, tornou-se ideologia que se opõe a outras ideologias brotadas da mesma fonte mítica, entretanto exaurida. Ali, onde o
Mito havia organizado, harmonizado, unido, e assim dado um significado e um conteúdo espiritual, isto é, humano, à vida dos homens, as
ideologias opõem, desunem, desagregam. A ideologia rejeita o Mito como sendo irracional e pretende, ela, ser racional, ser racionalmente
fundada. No fundo, de maneira implícita ou explícita, toda a ideologia pretende ser ciência e ciência do homem também. E lançada sobre a sua
busca de racionalismo, toda a ideologia acaba por se transformar em anti-ideologia. Com efeito, uma vez que uma ideologia é sempre
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acompanhada por uma ideologia contrária, esta constatação leva à procura de uma síntese, numa espécie de neutralidade ideológica aparente,
sustentada pela convicção absurda de que em último caso tudo, mesmo o homem, é quantificável, que tudo pode ser calculado, que a vida de
uma sociedade reduz-se a um problema de gestão administrativa.
As sociedades ocidentais, por exemplo, têm a ilusão de reencontrar a harmonia perdida, a fusão íntima dos contrários, graças às virtudes da
tolerância: mas tornam-se assim esquizofrénicas e tornam esquizofrénicos os indivíduos mais sensíveis ao clima social. O indivíduo ocidental
acaba sempre por ter uma má consciência, sobretudo ao nível do poder, porque é atormentado por duas exigências opostas, que não saberia
satisfazer conjuntamente, que dizemos ser, para simplificar: a exigência de liberdade individual e a exigência de justiça social. A cisão que está
no seio das sociedades está também sempre no coração dos indivíduos e isso leva por vezes a consequências cómicas, como no caso dos
liberais avançados que queriam também ser ao mesmo tempo socialistas e no dos comunistas e socialistas que queriam também ser liberais. E
note-se que se desconsideramos o Mito, rejeitado como sendo irracional, instintivamente pretendemos recuperar os seus benefícios sociais,
propondo Anti-Mitos, com um ideal correspondente que seria o do anti-herói, ideal tão bem representado ao nível da consumação quotidiana
de pseudo-valores sociais, pelo artista desleixado, cabeludo e se possível um pouco sujo.
As sociedades comunistas, também elas saídas do Mito judaico-cristão, tentaram uma outra solução. Escolheram a intolerância, em benefício
de uma só ideologia, convocada a tomar a lugar do Mito. Mas porque a ideologia não é um Mito, e portanto não pode ser operante na alma dos
indivíduos, estes nunca se conformam à norma ideológica. A consequência bem conhecida é que a sociedade comunista é uma sociedade
restritiva. Para ser exacto: há na sociedade comunista, a todos os níveis, uma obrigação de restrição, de forma que o depurador acaba sempre,
ele próprio, depurado, enquanto na sociedade liberal-democrática chegamos a uma obrigação de tolerância, da qual mesmo os delinquentes
acabam por beneficiar. Além do mais, também as sociedades comunistas, apesar de certas aparências “anti-económicas”, apenas vivem no
presente. A demonstração é-nos oferecida, de maneira periódica mas marcante, pela condenação de todo o “presente encerrado”, assumindo o
aspecto de uma celebração ritual. O presente é sempre divinizado – de Lenine a Estaline, até Mao – para ser infalivelmente condenado e
desprezado a partir do momento em que cede lugar a outro presente. Assim, tudo somado, podemos dizer que a equação social da sociedade
comunista tem como resultado o mesmo valor da equação democrático-liberal. Microscopicamente, ao nível dos indivíduos, a sociedade
liberal é mais atraente, daí os fenómenos de dissidência no seio dos regimes comunistas, as fugas, e por reacção o muro de Berlim. Mas note-
se também que ao nível macroscópico, da massa enquanto tal, a fuga produz-se sobretudo em sentido inverso e que portanto, no pós-guerra, as
sociedades socialistas multiplicaram-se.
O que fazer então? O que esperar? Permitam-me regressar uma vez mais a Nietzsche. Nietzsche foi dos primeiros a dizer-nos que a civilização
ocidental tinha entrado em agonia, uma agonia de duração imprevisível, e que iria morrer. As nações europeias estão condenadas ou a sair da
história à maneira dos Bororos, tão caros ao senhor Levy-Strauss, ou a morrerem historicamente e verem dissolvida a sua substância biológica
em nações e povos que estão para vir. No fundo, todos na Europa estão mais ou menos conscientes e é por causa disso que há, desde há algum
tempo, um discurso sobre a Europa. Mas essa Europa é concebida como um prolongamento das actuais realidades sociais, como o último meio
para salvar o que está em agonia, o que está condenado à morte, ou seja, a civilização judaico-cristã. Mas se uma Europa vir a luz do dia num
futuro mais ou menos distante, ela não terá sentido, historicamente, se não for tal como Friedrich Nietzsche a auspiciava, conduzida e
organizada por um Mito novo, fundamentalmente estranho a tudo o que existe hoje. Acreditamos que este novo Mito já existe, que já apareceu.
Disso há sinais e sinais por detrás dos sinais. Nos seus inícios um Mito é sempre extremamente frágil, a sua vida depende sempre de alguns
punhados de homens que já o falam. Num estudo sobre aquilo que chamo a música europeia, de Johann Sebastian Bach a Richard Wagner,
tentei mostrar como este Novo Mito e a nova consciência histórica que o transporta nasceram, e mostrar também por que via este Novo Mito
se dirigiu ao nosso presente. Se ele vive ainda, não pode sobreviver senão em virtude da total fidelidade ao seu jovem passado daqueles que o
transportam. É certo, ele ainda não disse tudo, talvez não tenha feito mais que balbuciar. O mito, quando vivente, está sempre em vias de se
expressar.
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