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UMA ANÁLISE DISCURSIVA DA “LEI MARIA DA PENHA”
GOMES, Acir de Matos (Mestrando)
LOUZADA, Maria Silvia Olivi (Orientadora)
Universidade de Franca (Unifran)
Resumo: Na perspectiva da Análise do Discurso (AD), investiga-se o percurso
discursivo-legislativo sobre a mulher brasileira e o contexto ideológico de surgimento
da “Lei Maria da Penha” (2006), que se destina a coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher: quebra-se nela a memória discursiva de família tradicional, ao adotar
um posicionamento em favor da mulher vitimizada pelo homem, seu agressor.
Palavras-chave: mulher; ideologia; discurso jurídico.
INTRODUÇÃO
A lei é um ato político que representa a vontade do povo. No dia 7 de agosto de
2006, foi editada a lei federal n.º 11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha”, que
entrou em vigor a partir do dia 22 de setembro de 2006. Essa lei cria mecanismos para
coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dispõe sobre a
criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabelece
medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e
familiar. A lei é composta por 46 artigos contendo normas mistas, ou seja, normas de
direito material, de direito processual penal e de outras naturezas.
Entendendo que todos (homem e mulher) são iguais de acordo com a Lei
Máxima do nosso país (artigo 5.º da Constituição Federal do Brasil de 1988),
pretendemos averiguar a trajetória discursivo-legislativa sobre a mulher brasileira, de
modo a verificar o contexto ideológico do surgimento dessa lei e os efeitos de sentido
produzidos. Não pretendemos analisar aqui a constitucionalidade da Lei, mas o discurso
produzido por sua edição, seus efeitos de sentido. A escolha do corpus – “Lei Maria da
Penha” – justifica-se por considerarmos relevante a verificação do modo como se
concebe institucional, legal e discursivamente a mulher contemporânea em nossa
sociedade: ao que parece, um ser frágil, que necessita de proteção em razão de um
posicionamento machista ainda vigente na atualidade.
A “Lei Maria da Penha” é um texto da esfera jurídico-legislativa. O texto é um
espaço significante, lugar de jogos de sentidos, de ideologias, de discursividades, de
formações ideológicas, que se materializam em formações discursivas consideradas as
condições de produção. Sabemos, ainda, que os mecanismos de funcionamento do
discurso têm por base as formações imaginárias, que designam o lugar de A e B (os
protagonistas do discurso) e os lugares que se atribuem cada um a si e ao outro; nessa
perspectiva, buscamos compreender: qual o contexto histórico e ideológico de
elaboração dessa lei/discurso? A lei busca disciplinar a relação entre homens e
mulheres, portanto refere-se às relações de gênero.
A opção pelo referencial teórico da Análise do Discurso (AD) justifica-se pelo
fato de ela investigar o campo dos enunciados a fim de entender os acontecimentos
discursivos que possibilitaram o estabelecimento e a cristalização de certos sentidos em
nossa cultura. Esse campo teórico trabalha a relação entre sujeito e língua, considerando
ainda o inconsciente, a história e a ideologia. Os sentidos não são considerados como
evidentes e, desta forma, abre-se espaço à interpretação do que não é dito. Os sentidos
não se esgotam, tanto que um mesmo enunciado pode, em diferentes condições de
produção, produzir efeitos discursivos diversos. Conforme o conceito de interdiscurso,
os discursos sempre estão relacionados a discursos anteriores e afetam discursos
futuros. Entendemos que é o interdiscurso que permite aos sujeitos retomarem temas,
sentidos já produzidos, e os utilizarem em outras situações e contextos.
Acreditamos que o presente trabalho poderá produzir frutos, tanto acadêmicos
como para a sociedade, uma vez que a Análise do Discurso é uma disciplina de
entremeio, que se localiza entre três campos do saber: o marxismo, a psicanálise e a
linguística. Sabe-se, no entanto, que o Direito não dá importância a esses campos para
realizar a interpretação da lei. Entendemos que o pioneirismo desse artigo está
fundamentado na análise discursiva da lei, na busca pelo efeito do sentido produzido
pelo discurso, o que, de certa forma, se diferencia de outros artigos científicos
envolvendo a “Lei Maria da Penha”.
Estabelecemos como objetivo geral dessa pesquisa averiguar o percurso
discurso-legislativo sobre a mulher brasileira e identificar o contexto ideológico de
surgimento da “Lei Maria da Penha”, que tem como finalidade coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher. Como objetivo específico, pretendemos verificar
qual a imagem, a constituição institucional, legal e discursiva da mulher na sociedade
contemporânea, uma vez que a lei foi publicada e entrou em vigência no ano de 2006. A
pesquisa é bibliográfica e a análise dos dados qualitativa e comparativa.
1. A ANÁLISE DO DISCURSO – PRINCIPAIS FUNDAMENTOS TÉORICOS
A escola francesa de Análise do Discurso, conhecida como AD, tem como
fundamento uma tradição intelectual europeia acostumada a refletir sobre texto e a
história. Nos anos 1960, em razão do estruturalismo, tornou-se possível uma reflexão
sobre a “escritura”, uma articulação entre a linguística, o marxismo e a psicanálise, por
isso, a Análise do Discurso nasceu tendo como base a interdisciplinaridade, ou seja, os
linguistas, os historiadores e alguns psicólogos.
Trata-se de uma teoria marcada por revisões, mudanças e deslocamentos de seus
conceitos essenciais, caminho esse que permitiu a revisão realizada pelo próprio
Pêcheux (1990), denominadas por AD1, AD2 e AD3, sob as influências principalmente
dos estudos desenvolvidos por Saussure, Bakhtin, Althusser, Foucault, J.Authier-Revuz
e Lacan.
Por estar a Análise do Discurso inserida em um campo de estudos que abrange o
linguístico e o social, e por ser “discurso” uma palavra polissêmica, foi necessário
redefinir o seu campo de atuação para alcançar sua especificidade. Para Orlandi (1986,
p. 110), “A AD pressupõe a linguística e é pressupondo a linguística que ganha
especificidade em relação às metodologias de tratamento de linguagem nas ciências
humanas”. Essa especificidade, portanto, deve ser analisada considerando outras
condições, como: o quadro das instituições em que o discurso é produzido, já que
delimitam a enunciação; os embates históricos, sociais que se cristalizam no discurso; o
espaço que cada discurso configura para si mesmo no interior de um interdiscurso.
Assim, a linguagem passa a ser estudada também como formação ideológica
dotada de competência linguística. Para Brandão (2002, p. 18), portanto, dois conceitos
tornaram-se nucleares na AD: o de “formação ideológica” e o de “formação discursiva”,
recebendo as influências respectivamente de Althusser (1974) e das ideias de Foucault
(2000).
Para Orlandi (2007, p. 19-20), a língua tem sua ordem própria, mas só é
relativamente autônoma, uma vez que reintroduz a noção de sujeito e de situação na
análise da linguagem; o real da história é afetado pelo simbólico, que exige dos fatos o
sentido e um sujeito afetado pelo inconsciente e pela ideologia. O sujeito é
descentralizado, já que está afetado pelo real da língua e pela história sem controlar o
modo de afetação.
No Brasil, de acordo com Gregolin (2006, p. 23-25), a AD encontrou solo
propício com o início da abertura política nos anos 1980. Nessa época, a teoria já havia
passado pelos três principais momentos de refacções e se encontrava em crise teórica e
política na França, circunstâncias essas que produziram consequências teóricas e
metodológicas.
São princípios sólidos da AD, conforme Mazière (2007, p. 10):
1) a língua é considerada como objeto construído pelo linguista,
e as línguas particulares como situadas em relação ao espaço-
tempo;
2) a dupla relação com heranças descritivas das línguas
considera a gramática, as sintaxes e os vocabulários de línguas
particulares contra uma sintaxe lógica universal;
3) o corpus a ser analisado é considerado como enunciado,
heterogêneo, dentro do saber linguístico, histórico, político e
filosófico;
4) nas interpretações não se desprezam os dados da língua, da
história e dos sujeitos falantes. O sujeito enunciador não é um
ser individual e detentor do enunciado, ele não controla
totalmente a sua fala.
Da articulação dos processos ideológicos com os fenômenos linguísticos surge o
discurso. A linguagem, enquanto discurso, é interação, um modo de produção social, ela
não é neutra, inocente , nem natural, por isso é o lugar privilegiado de manifestação da
ideologia. É um lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada
fora da sociedade, uma vez que os processos que a constituem são histórico-sociais
(BRANDÃO, 2002, p. 12).
Para Orlandi (2007, p. 45), o ressignificar a noção de ideologia a partir da
linguagem é um dos pontos fortes da Análise do Discurso, ou seja, a ideologia produz
evidências e coloca o homem na relação imaginária com suas condições materiais de
existência: é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. As formações
discursivas dão sentidos às palavras e estes são efeitos da determinação do
interdiscurso. Não se considera a ideologia como ocultação, mas como relação
necessária entre o mundo e a linguagem, sentido de refração, do efeito do imaginário de
um sobre o outro. O sujeito, afetado pela língua e pela história, produz o sentido. Não
existe discurso sem sujeito e não existe sujeito sem ideologia. Não há realidade sem
ideologia. A ideologia torna possível a relação entre palavra/coisa e é através dela que o
sujeito se constitui e o mundo significa. A ideologia está materialmente presente no
discurso e o discurso materialmente na língua. A integração da língua, da história e da
ideologia faz com que a linguagem, os sentidos e os sujeitos se materializem e se
constituam.
Orlandi (2007, p. 70) também explica que o texto é heterogêneo quanto à
natureza dos diferentes materiais simbólicos e das linguagens, quanto à posição do
sujeito, e as diferenças também podem ser consideradas em razão das formações
discursivas que o atravessam e nele se organizam em razão de uma formação
dominante. O texto é considerado como unidade de acesso ao discurso, não como ponto
absoluto de partida ou chegada. Feita a análise do texto, ele desaparece para dar lugar ao
discurso, ao processo discursivo, à compreensão dos sentidos e à constituição dos
sujeitos.
Em todo discurso há um já-dito fundamental para se compreender seu
funcionamento, a relação com o sujeito e com a ideologia. O interdiscurso disponibiliza
dizeres, determinando pelo já-dito aquilo que constitui uma formação discursiva em
relação à outra. Dizer que a palavra significa em relação a outras é afirmar essa
articulação de formações discursivas dominadas pelo interdiscurso em sua objetividade
material contraditória (ORLANDI, 2007, p. 43-44). O dito e o não-dito, na Análise do
Discurso são abrangidos pela noção de interdiscurso, de ideologia, de formação
discursiva.
Pêcheux (1990, p. 54) explica que
é porque há o outro nas sociedades e na história que pode haver
ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma
relação abrindo a possibilidade de interpretar. E é porque há essa
ligação que as filiações históricas podem-se organizar em
memoriais e as relações sociais em rede de significantes.
2. MULHER VITIMIZADA VERSUS HOMEM AGRESSOR
O discurso jurídico, dotado de poder, para produzir o efeito de autoridade e
exigir o cumprimento, precisa fazer com que haja uma crença, ainda que de forma
imaginária, em uma instituição jurídica que dá proteção aos indivíduos, com normas
estabelecidas, cuja inobservância produzirá sanção. A ordem jurídica é dotada de
eficácia em sua função de ordenação social, pois, segundo Barros (2000) , estrutura-se
enquanto linguagem, e é na estrutura da linguagem que a transmissão é possível.
Sabe-se que o Estado é uma ficção, não possui um corpo físico, é uma ideia
dotada de autoridade. O Estado se corporifica nas normas e leis que são dotadas de
ideologia. Para Temer (1998, p. 15) o Estado “consiste na incidência de determinada
ordenação jurídica, ou seja, determinado conjunto de preceitos sobre determinadas
pessoas que estão em certo território”. O direito e a linguagem são fenômenos da vida,
já que sem eles não há sociedade. Não existe sociedade sem direito da mesma forma que
não há sociedade sem linguagem.
O direito possui uma função ordenadora, pois coordena os interesses existentes
na sociedade, bem como os resolve. O direito, do ponto de vista sociológico, exerce a
função de controle social, ou seja, é o conjunto de instrumentos de que a sociedade
dispõe na sua tendência à imposição dos modelos culturais, dos ideais coletivos e dos
valores que persegue, para a superação das antinomias, das tensões e dos conflitos que
lhe são próprios (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 1999, p. 19).
A “Lei Maria da Penha” encontra-se entre as normas de Direito Material, que
disciplina as relações jurídicas referentes a bens e utilidade da vida, e Direito
Processual, complexo de normas e princípios que regem o exercício do direito com a
conjugação da jurisdição pelo Estado-Juiz, da ação/demandante e da defesa/demandado.
Analisando a “Lei Maria da Penha” sob o suporte teórico da Análise do
Discurso, notamos o emprego da preposição “contra”, associada à “violência suportada
pela mulher”. Em nenhum momento essa preposição – “contra” – ou o substantivo
“violência” estão vinculados ao substantivo “homem”, mas sempre ao substantivo
“mulher”. Logo nos primeiros artigos da Lei encontramos essas marcas textuais que são
extremamente significativas para analisar o discurso proferido.
A preposição “contra”, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss (2003), possui
os seguintes significados:
O Brasil adotou a forma Republicana de governo, o sistema Presidencialista de governo e forma
federativa de Estado. A federação surgiu com a primeira Constituição Republicana de 1891 com o artigo
1.º “A nação Brasileira [...] constitui-se por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias em
Estados Unidos do Brasil” (LENZA, 2005, p. 173-176).
1 – em oposição direta a; em combate a; 2 – em movimento
contrário a, hostil e impetuosamente; 3 – em direção ou sentido
oposto a, de encontro a (ponto de apoio ou de resistência); 5 –
como defesa ou proteção a ; 6 – para alívio ou extinção de; 7–
de face para; de frente para; 8 – tendo como adversário; 9 – em
discordância, em desacordo com; em contraposição a.
Nota-se que no próprio conceito de preposição a “subordinação” está presente.
Não estamos afirmando que o Poder Legislativo e o Executivo ao elaborarem e
sancionarem a “Lei Maria da Penha” escolheram conscientemente a preposição
“contra”, mas podemos afirmar que a referida preposição dá coesão ao texto legal,
notadamente por ser uma Lei que visa garantir a “igualdade” entre os seres humanos,
homem e mulher. Logo, se existe uma garantia de que todos “são iguais” é porque há
pessoas desiguais ou “não iguais”. A preposição “contra” ligando a mulher à violência
produz um efeito de sentido de veracidade, de que a mulher está subordinada ao
homem.
Essa subordinação da mulher também se faz presente na expressão “toda
mulher” contida no art. 2.º, visto que o pronome “toda” traz em si uma divisão, entre o
homem e a mulher e entre as próprias mulheres. Para que não haja “desigualdade” no
texto foram inseridos outros substantivos, como: classe, raça, etnia, orientação sexual,
nível educacional, idade, religião. O pronome “toda” produz um sentido de que as
mulheres, sem exceção, podem ser vítimas de violência doméstica/familiar. O pronome
poderia não ter sido incluído (não dito) e, nessa hipótese, permitiria o fenômeno do
subentendido que dependeria do contexto. No entanto, o Legislador preferiu adotar
explicitamente tal pronome.
Da mesma forma, a lei poderia omitir a palavra “mulher” e punir a violência
doméstica e familiar, porque está subentendido que é ela quem sofre esse tipo de
violência. A supressão da “mulher” no texto legal produziria um sentido em direção à
outra memória discursiva, podendo inclusive evitar as inúmeras contradições existentes
na lei e não ressaltar a diferença entre homem e mulher, tal como foi feito com o Código
Civil, no qual o substantivo “homem” foi substituído por “pessoa”.
Sendo a mulher concebida como um ser frágil, parece não ser propriamente
reconhecida como “pessoa humana”, tanto que a lei precisa garantir que ela goze dos
direitos fundamentais, a saber: à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à
cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à
liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (art. 3.º). Os
verbos “assegurar” e “resguardar” presentes nesse artigo demonstram que a “mulher”
não goza de proteção do poder estatal, que ela realmente é um ser excluído da sociedade
no que se refere aos direitos inerentes à sua condição “de pessoa humana”. A mulher é
negligenciada, discriminada, explorada, violentada e oprimida, adjetivos que também
reforçam a sua “inferioridade”.
Se há uma pessoa “inferior” (mulher), certamente há uma pessoa que é
“superior” (homem) e que comete as ações que a inferiorizam. Ademais, se a Lei
precisa “assegurar” é porque há um descrédito quanto à garantia e à possibilidade de
exercício dos direitos da e pela mulher.
O texto e discurso da “Lei Maria da Penha” também é marcado pela contradição.
Trata de violência doméstica na qual inclui o homem e mulher. Essa contradição está
marcada na fixação das Medidas Protetivas de Urgência que obrigam o Agressor (art.
22) e Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida. Ao agressor, as sanções; à
mulher, as proteções.
O reconhecimento de todo tipo de união – hetero ou homossexual – quebra a
memória discursiva de que a “família” é constituída pela união de sexos opostos
(homem e mulher), pelo casamento civil com a necessidade de coabitação. Para a lei,
basta a convivência das pessoas na unidade doméstica ou que tenha uma relação de
afeto. A união entre mulheres (lésbicas) como forma de constituição de entidade
familiar é perfeitamente possível. Não poderá, porém, a lei, ser aplicada em entidade
familiar constituída por homens (gays), já que para a Lei somente a mulher é
ofendida/vítima e o homem é sempre agressor.
Assim, essa lei adere a um posicionamento em favor da mulher frágil e
vitimizada, o que já pressupõe um homem agressor (art. 5.º, III). Ao estabelecer as
várias formas de violência (art. 7.º) e ações articuladas (art. 8.º), reforça a imagem que o
Poder Estatal possui da mulher, além de romper com uma prática até então “aceitável”
na sociedade. Se há uma pessoa “violentada” é porque existe outra que a violentou.
O “direito” de violentar passa a ser entendido como problema que necessita de
tratamento de reeducação e recuperação por parte do agressor: “Art. 45. Parágrafo único
– Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o
comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação”.
A “Lei Maria da Penha” cria a figura dos “direitos humanos das mulheres” como
contraponto aos “direitos humanos” existentes que de certa forma foram utilizados
apenas em favor dos homens. Sabemos que toda e qualquer violência praticada contra
todo e qualquer ser humano é uma violação aos direitos humanos. A existência da “Lei
Maria da Penha”, em verdade, remonta, reflete discursos anteriores que visam obter a
igualdade jurídica entre homem e mulher, discursos feministas que recusam a
supremacia do homem em face da mulher.
O interdiscurso é o lugar no qual o sujeito produz um discurso dominado por
uma determinada formação discursiva e, se os objetos e articulações que o sujeito
enunciador se apropria lhe dão coerência, na “Lei Maria da Penha” há uma nítida
intenção de resguardar e proteger a mulher vitimizada contra o homem agressor. Os
poderes instituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), cedendo às ideologias
feministas, elaboraram e mantêm em vigência uma lei atravessada por uma formação
discursiva até então contrária à formação dominante, de que o homem era superior à
mulher.
A diferença sexual está ligada à igualdade dos direitos entre os sexos, igualdade
essa que teve início com a Revolução Francesa. Antes disso, não se questionava a
diferença entre os sexos porque se entendia que a diferença era decorrência da natureza
(biologia), aspecto anatômico e fisiológico e era em decorrência dessa diferença natural
que se dava a inserção na sociedade. Até o final do século XVIII, reinava a concepção
do modelo hierárquico do sexo único. O discurso da igualdade rompeu com a ideologia
até então cristalizada na sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos que a “Lei Maria da Penha” é dotada de uma ideologia feminista
contrária à ideologia machista/patriarcal existente em nossa sociedade, na qual à mulher
é destinado um lugar secundário que a mulher já não mais admite como sendo o seu
verdadeiro lugar. A ideologia machista durante anos serviu e ainda serve como meio de
manutenção de poder e do status garantido ao homem.
O Estatuto da Mulher Casada e a “Lei Maria da Penha” são decorrentes de
punições que o Brasil sofreu internacionalmente. Verificamos que a mulher
institucional, legal e discursivamente, em nossa sociedade contemporânea é considerada
como ser frágil, que necessita de proteção em razão de um posicionamento machista,
ainda vigente na atualidade; contudo, há mulheres que realizam grandes feitos e que já
ocupam lugares até então destinados ao homem, estabelecendo uma nova cristalização
desses sentidos em nossa cultura. A segunda lei evidencia uma ruptura com a memória
discursiva referente à família, que passa a ser reconhecida também por outras formas de
constituição que não seja a pautada no casamento e na união dos sexos opostos e na
coabitação. Percebemos que houve alterações nas condições de produção do discurso
em decorrência das alterações nas relações sociais entre os homens e mulheres, as quais
tornam possível a existência deste discurso.
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Tradução de Joaquim Jose
de Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença, 1974.
BARROS, Fernanda Otoni. Do direito ao pai: sobre a paternidade no ordenamento Jurídico.
Revista Brasileira de Direito de Família. Ano II – nº6 – Jul-Ago-Set 2000.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. 8. ed. Campinas, São
Paulo: Unicamp, 2002.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 6. ed.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2000.
GREGOLIN, Maria do Rosário. Estudos do texto e do discurso: mapeando conceitos e
métodos. Pedro Navarro (Org.). São Carlos: ClaraLuz, 2006.
HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2003.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Método, 2005.
MAZIÈRE, Francine. A análise do discurso: história e práticas. Tradução de Marcos
Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas:
Pontes, 2007.
______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, Rio de
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PÊCHEUX, Michel. Discurso. Estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni Pulcinelli
Orlandi. Campinas: Pontes, 1990.
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

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Análise discursiva da lei maria da penha

  • 1. UMA ANÁLISE DISCURSIVA DA “LEI MARIA DA PENHA” GOMES, Acir de Matos (Mestrando) LOUZADA, Maria Silvia Olivi (Orientadora) Universidade de Franca (Unifran) Resumo: Na perspectiva da Análise do Discurso (AD), investiga-se o percurso discursivo-legislativo sobre a mulher brasileira e o contexto ideológico de surgimento da “Lei Maria da Penha” (2006), que se destina a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher: quebra-se nela a memória discursiva de família tradicional, ao adotar um posicionamento em favor da mulher vitimizada pelo homem, seu agressor. Palavras-chave: mulher; ideologia; discurso jurídico. INTRODUÇÃO A lei é um ato político que representa a vontade do povo. No dia 7 de agosto de 2006, foi editada a lei federal n.º 11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha”, que entrou em vigor a partir do dia 22 de setembro de 2006. Essa lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A lei é composta por 46 artigos contendo normas mistas, ou seja, normas de direito material, de direito processual penal e de outras naturezas. Entendendo que todos (homem e mulher) são iguais de acordo com a Lei Máxima do nosso país (artigo 5.º da Constituição Federal do Brasil de 1988), pretendemos averiguar a trajetória discursivo-legislativa sobre a mulher brasileira, de modo a verificar o contexto ideológico do surgimento dessa lei e os efeitos de sentido produzidos. Não pretendemos analisar aqui a constitucionalidade da Lei, mas o discurso produzido por sua edição, seus efeitos de sentido. A escolha do corpus – “Lei Maria da Penha” – justifica-se por considerarmos relevante a verificação do modo como se concebe institucional, legal e discursivamente a mulher contemporânea em nossa sociedade: ao que parece, um ser frágil, que necessita de proteção em razão de um posicionamento machista ainda vigente na atualidade.
  • 2. A “Lei Maria da Penha” é um texto da esfera jurídico-legislativa. O texto é um espaço significante, lugar de jogos de sentidos, de ideologias, de discursividades, de formações ideológicas, que se materializam em formações discursivas consideradas as condições de produção. Sabemos, ainda, que os mecanismos de funcionamento do discurso têm por base as formações imaginárias, que designam o lugar de A e B (os protagonistas do discurso) e os lugares que se atribuem cada um a si e ao outro; nessa perspectiva, buscamos compreender: qual o contexto histórico e ideológico de elaboração dessa lei/discurso? A lei busca disciplinar a relação entre homens e mulheres, portanto refere-se às relações de gênero. A opção pelo referencial teórico da Análise do Discurso (AD) justifica-se pelo fato de ela investigar o campo dos enunciados a fim de entender os acontecimentos discursivos que possibilitaram o estabelecimento e a cristalização de certos sentidos em nossa cultura. Esse campo teórico trabalha a relação entre sujeito e língua, considerando ainda o inconsciente, a história e a ideologia. Os sentidos não são considerados como evidentes e, desta forma, abre-se espaço à interpretação do que não é dito. Os sentidos não se esgotam, tanto que um mesmo enunciado pode, em diferentes condições de produção, produzir efeitos discursivos diversos. Conforme o conceito de interdiscurso, os discursos sempre estão relacionados a discursos anteriores e afetam discursos futuros. Entendemos que é o interdiscurso que permite aos sujeitos retomarem temas, sentidos já produzidos, e os utilizarem em outras situações e contextos. Acreditamos que o presente trabalho poderá produzir frutos, tanto acadêmicos como para a sociedade, uma vez que a Análise do Discurso é uma disciplina de entremeio, que se localiza entre três campos do saber: o marxismo, a psicanálise e a linguística. Sabe-se, no entanto, que o Direito não dá importância a esses campos para realizar a interpretação da lei. Entendemos que o pioneirismo desse artigo está fundamentado na análise discursiva da lei, na busca pelo efeito do sentido produzido pelo discurso, o que, de certa forma, se diferencia de outros artigos científicos envolvendo a “Lei Maria da Penha”. Estabelecemos como objetivo geral dessa pesquisa averiguar o percurso discurso-legislativo sobre a mulher brasileira e identificar o contexto ideológico de surgimento da “Lei Maria da Penha”, que tem como finalidade coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Como objetivo específico, pretendemos verificar
  • 3. qual a imagem, a constituição institucional, legal e discursiva da mulher na sociedade contemporânea, uma vez que a lei foi publicada e entrou em vigência no ano de 2006. A pesquisa é bibliográfica e a análise dos dados qualitativa e comparativa. 1. A ANÁLISE DO DISCURSO – PRINCIPAIS FUNDAMENTOS TÉORICOS A escola francesa de Análise do Discurso, conhecida como AD, tem como fundamento uma tradição intelectual europeia acostumada a refletir sobre texto e a história. Nos anos 1960, em razão do estruturalismo, tornou-se possível uma reflexão sobre a “escritura”, uma articulação entre a linguística, o marxismo e a psicanálise, por isso, a Análise do Discurso nasceu tendo como base a interdisciplinaridade, ou seja, os linguistas, os historiadores e alguns psicólogos. Trata-se de uma teoria marcada por revisões, mudanças e deslocamentos de seus conceitos essenciais, caminho esse que permitiu a revisão realizada pelo próprio Pêcheux (1990), denominadas por AD1, AD2 e AD3, sob as influências principalmente dos estudos desenvolvidos por Saussure, Bakhtin, Althusser, Foucault, J.Authier-Revuz e Lacan. Por estar a Análise do Discurso inserida em um campo de estudos que abrange o linguístico e o social, e por ser “discurso” uma palavra polissêmica, foi necessário redefinir o seu campo de atuação para alcançar sua especificidade. Para Orlandi (1986, p. 110), “A AD pressupõe a linguística e é pressupondo a linguística que ganha especificidade em relação às metodologias de tratamento de linguagem nas ciências humanas”. Essa especificidade, portanto, deve ser analisada considerando outras condições, como: o quadro das instituições em que o discurso é produzido, já que delimitam a enunciação; os embates históricos, sociais que se cristalizam no discurso; o espaço que cada discurso configura para si mesmo no interior de um interdiscurso. Assim, a linguagem passa a ser estudada também como formação ideológica dotada de competência linguística. Para Brandão (2002, p. 18), portanto, dois conceitos tornaram-se nucleares na AD: o de “formação ideológica” e o de “formação discursiva”, recebendo as influências respectivamente de Althusser (1974) e das ideias de Foucault (2000). Para Orlandi (2007, p. 19-20), a língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente autônoma, uma vez que reintroduz a noção de sujeito e de situação na
  • 4. análise da linguagem; o real da história é afetado pelo simbólico, que exige dos fatos o sentido e um sujeito afetado pelo inconsciente e pela ideologia. O sujeito é descentralizado, já que está afetado pelo real da língua e pela história sem controlar o modo de afetação. No Brasil, de acordo com Gregolin (2006, p. 23-25), a AD encontrou solo propício com o início da abertura política nos anos 1980. Nessa época, a teoria já havia passado pelos três principais momentos de refacções e se encontrava em crise teórica e política na França, circunstâncias essas que produziram consequências teóricas e metodológicas. São princípios sólidos da AD, conforme Mazière (2007, p. 10): 1) a língua é considerada como objeto construído pelo linguista, e as línguas particulares como situadas em relação ao espaço- tempo; 2) a dupla relação com heranças descritivas das línguas considera a gramática, as sintaxes e os vocabulários de línguas particulares contra uma sintaxe lógica universal; 3) o corpus a ser analisado é considerado como enunciado, heterogêneo, dentro do saber linguístico, histórico, político e filosófico; 4) nas interpretações não se desprezam os dados da língua, da história e dos sujeitos falantes. O sujeito enunciador não é um ser individual e detentor do enunciado, ele não controla totalmente a sua fala. Da articulação dos processos ideológicos com os fenômenos linguísticos surge o discurso. A linguagem, enquanto discurso, é interação, um modo de produção social, ela não é neutra, inocente , nem natural, por isso é o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. É um lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, uma vez que os processos que a constituem são histórico-sociais (BRANDÃO, 2002, p. 12). Para Orlandi (2007, p. 45), o ressignificar a noção de ideologia a partir da linguagem é um dos pontos fortes da Análise do Discurso, ou seja, a ideologia produz evidências e coloca o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência: é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. As formações discursivas dão sentidos às palavras e estes são efeitos da determinação do interdiscurso. Não se considera a ideologia como ocultação, mas como relação necessária entre o mundo e a linguagem, sentido de refração, do efeito do imaginário de
  • 5. um sobre o outro. O sujeito, afetado pela língua e pela história, produz o sentido. Não existe discurso sem sujeito e não existe sujeito sem ideologia. Não há realidade sem ideologia. A ideologia torna possível a relação entre palavra/coisa e é através dela que o sujeito se constitui e o mundo significa. A ideologia está materialmente presente no discurso e o discurso materialmente na língua. A integração da língua, da história e da ideologia faz com que a linguagem, os sentidos e os sujeitos se materializem e se constituam. Orlandi (2007, p. 70) também explica que o texto é heterogêneo quanto à natureza dos diferentes materiais simbólicos e das linguagens, quanto à posição do sujeito, e as diferenças também podem ser consideradas em razão das formações discursivas que o atravessam e nele se organizam em razão de uma formação dominante. O texto é considerado como unidade de acesso ao discurso, não como ponto absoluto de partida ou chegada. Feita a análise do texto, ele desaparece para dar lugar ao discurso, ao processo discursivo, à compreensão dos sentidos e à constituição dos sujeitos. Em todo discurso há um já-dito fundamental para se compreender seu funcionamento, a relação com o sujeito e com a ideologia. O interdiscurso disponibiliza dizeres, determinando pelo já-dito aquilo que constitui uma formação discursiva em relação à outra. Dizer que a palavra significa em relação a outras é afirmar essa articulação de formações discursivas dominadas pelo interdiscurso em sua objetividade material contraditória (ORLANDI, 2007, p. 43-44). O dito e o não-dito, na Análise do Discurso são abrangidos pela noção de interdiscurso, de ideologia, de formação discursiva. Pêcheux (1990, p. 54) explica que é porque há o outro nas sociedades e na história que pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memoriais e as relações sociais em rede de significantes. 2. MULHER VITIMIZADA VERSUS HOMEM AGRESSOR O discurso jurídico, dotado de poder, para produzir o efeito de autoridade e exigir o cumprimento, precisa fazer com que haja uma crença, ainda que de forma imaginária, em uma instituição jurídica que dá proteção aos indivíduos, com normas
  • 6. estabelecidas, cuja inobservância produzirá sanção. A ordem jurídica é dotada de eficácia em sua função de ordenação social, pois, segundo Barros (2000) , estrutura-se enquanto linguagem, e é na estrutura da linguagem que a transmissão é possível. Sabe-se que o Estado é uma ficção, não possui um corpo físico, é uma ideia dotada de autoridade. O Estado se corporifica nas normas e leis que são dotadas de ideologia. Para Temer (1998, p. 15) o Estado “consiste na incidência de determinada ordenação jurídica, ou seja, determinado conjunto de preceitos sobre determinadas pessoas que estão em certo território”. O direito e a linguagem são fenômenos da vida, já que sem eles não há sociedade. Não existe sociedade sem direito da mesma forma que não há sociedade sem linguagem. O direito possui uma função ordenadora, pois coordena os interesses existentes na sociedade, bem como os resolve. O direito, do ponto de vista sociológico, exerce a função de controle social, ou seja, é o conjunto de instrumentos de que a sociedade dispõe na sua tendência à imposição dos modelos culturais, dos ideais coletivos e dos valores que persegue, para a superação das antinomias, das tensões e dos conflitos que lhe são próprios (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 1999, p. 19). A “Lei Maria da Penha” encontra-se entre as normas de Direito Material, que disciplina as relações jurídicas referentes a bens e utilidade da vida, e Direito Processual, complexo de normas e princípios que regem o exercício do direito com a conjugação da jurisdição pelo Estado-Juiz, da ação/demandante e da defesa/demandado. Analisando a “Lei Maria da Penha” sob o suporte teórico da Análise do Discurso, notamos o emprego da preposição “contra”, associada à “violência suportada pela mulher”. Em nenhum momento essa preposição – “contra” – ou o substantivo “violência” estão vinculados ao substantivo “homem”, mas sempre ao substantivo “mulher”. Logo nos primeiros artigos da Lei encontramos essas marcas textuais que são extremamente significativas para analisar o discurso proferido. A preposição “contra”, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss (2003), possui os seguintes significados: O Brasil adotou a forma Republicana de governo, o sistema Presidencialista de governo e forma federativa de Estado. A federação surgiu com a primeira Constituição Republicana de 1891 com o artigo 1.º “A nação Brasileira [...] constitui-se por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias em Estados Unidos do Brasil” (LENZA, 2005, p. 173-176).
  • 7. 1 – em oposição direta a; em combate a; 2 – em movimento contrário a, hostil e impetuosamente; 3 – em direção ou sentido oposto a, de encontro a (ponto de apoio ou de resistência); 5 – como defesa ou proteção a ; 6 – para alívio ou extinção de; 7– de face para; de frente para; 8 – tendo como adversário; 9 – em discordância, em desacordo com; em contraposição a. Nota-se que no próprio conceito de preposição a “subordinação” está presente. Não estamos afirmando que o Poder Legislativo e o Executivo ao elaborarem e sancionarem a “Lei Maria da Penha” escolheram conscientemente a preposição “contra”, mas podemos afirmar que a referida preposição dá coesão ao texto legal, notadamente por ser uma Lei que visa garantir a “igualdade” entre os seres humanos, homem e mulher. Logo, se existe uma garantia de que todos “são iguais” é porque há pessoas desiguais ou “não iguais”. A preposição “contra” ligando a mulher à violência produz um efeito de sentido de veracidade, de que a mulher está subordinada ao homem. Essa subordinação da mulher também se faz presente na expressão “toda mulher” contida no art. 2.º, visto que o pronome “toda” traz em si uma divisão, entre o homem e a mulher e entre as próprias mulheres. Para que não haja “desigualdade” no texto foram inseridos outros substantivos, como: classe, raça, etnia, orientação sexual, nível educacional, idade, religião. O pronome “toda” produz um sentido de que as mulheres, sem exceção, podem ser vítimas de violência doméstica/familiar. O pronome poderia não ter sido incluído (não dito) e, nessa hipótese, permitiria o fenômeno do subentendido que dependeria do contexto. No entanto, o Legislador preferiu adotar explicitamente tal pronome. Da mesma forma, a lei poderia omitir a palavra “mulher” e punir a violência doméstica e familiar, porque está subentendido que é ela quem sofre esse tipo de violência. A supressão da “mulher” no texto legal produziria um sentido em direção à outra memória discursiva, podendo inclusive evitar as inúmeras contradições existentes na lei e não ressaltar a diferença entre homem e mulher, tal como foi feito com o Código Civil, no qual o substantivo “homem” foi substituído por “pessoa”. Sendo a mulher concebida como um ser frágil, parece não ser propriamente reconhecida como “pessoa humana”, tanto que a lei precisa garantir que ela goze dos direitos fundamentais, a saber: à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à
  • 8. liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (art. 3.º). Os verbos “assegurar” e “resguardar” presentes nesse artigo demonstram que a “mulher” não goza de proteção do poder estatal, que ela realmente é um ser excluído da sociedade no que se refere aos direitos inerentes à sua condição “de pessoa humana”. A mulher é negligenciada, discriminada, explorada, violentada e oprimida, adjetivos que também reforçam a sua “inferioridade”. Se há uma pessoa “inferior” (mulher), certamente há uma pessoa que é “superior” (homem) e que comete as ações que a inferiorizam. Ademais, se a Lei precisa “assegurar” é porque há um descrédito quanto à garantia e à possibilidade de exercício dos direitos da e pela mulher. O texto e discurso da “Lei Maria da Penha” também é marcado pela contradição. Trata de violência doméstica na qual inclui o homem e mulher. Essa contradição está marcada na fixação das Medidas Protetivas de Urgência que obrigam o Agressor (art. 22) e Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida. Ao agressor, as sanções; à mulher, as proteções. O reconhecimento de todo tipo de união – hetero ou homossexual – quebra a memória discursiva de que a “família” é constituída pela união de sexos opostos (homem e mulher), pelo casamento civil com a necessidade de coabitação. Para a lei, basta a convivência das pessoas na unidade doméstica ou que tenha uma relação de afeto. A união entre mulheres (lésbicas) como forma de constituição de entidade familiar é perfeitamente possível. Não poderá, porém, a lei, ser aplicada em entidade familiar constituída por homens (gays), já que para a Lei somente a mulher é ofendida/vítima e o homem é sempre agressor. Assim, essa lei adere a um posicionamento em favor da mulher frágil e vitimizada, o que já pressupõe um homem agressor (art. 5.º, III). Ao estabelecer as várias formas de violência (art. 7.º) e ações articuladas (art. 8.º), reforça a imagem que o Poder Estatal possui da mulher, além de romper com uma prática até então “aceitável” na sociedade. Se há uma pessoa “violentada” é porque existe outra que a violentou. O “direito” de violentar passa a ser entendido como problema que necessita de tratamento de reeducação e recuperação por parte do agressor: “Art. 45. Parágrafo único – Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação”.
  • 9. A “Lei Maria da Penha” cria a figura dos “direitos humanos das mulheres” como contraponto aos “direitos humanos” existentes que de certa forma foram utilizados apenas em favor dos homens. Sabemos que toda e qualquer violência praticada contra todo e qualquer ser humano é uma violação aos direitos humanos. A existência da “Lei Maria da Penha”, em verdade, remonta, reflete discursos anteriores que visam obter a igualdade jurídica entre homem e mulher, discursos feministas que recusam a supremacia do homem em face da mulher. O interdiscurso é o lugar no qual o sujeito produz um discurso dominado por uma determinada formação discursiva e, se os objetos e articulações que o sujeito enunciador se apropria lhe dão coerência, na “Lei Maria da Penha” há uma nítida intenção de resguardar e proteger a mulher vitimizada contra o homem agressor. Os poderes instituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), cedendo às ideologias feministas, elaboraram e mantêm em vigência uma lei atravessada por uma formação discursiva até então contrária à formação dominante, de que o homem era superior à mulher. A diferença sexual está ligada à igualdade dos direitos entre os sexos, igualdade essa que teve início com a Revolução Francesa. Antes disso, não se questionava a diferença entre os sexos porque se entendia que a diferença era decorrência da natureza (biologia), aspecto anatômico e fisiológico e era em decorrência dessa diferença natural que se dava a inserção na sociedade. Até o final do século XVIII, reinava a concepção do modelo hierárquico do sexo único. O discurso da igualdade rompeu com a ideologia até então cristalizada na sociedade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Acreditamos que a “Lei Maria da Penha” é dotada de uma ideologia feminista contrária à ideologia machista/patriarcal existente em nossa sociedade, na qual à mulher é destinado um lugar secundário que a mulher já não mais admite como sendo o seu verdadeiro lugar. A ideologia machista durante anos serviu e ainda serve como meio de manutenção de poder e do status garantido ao homem. O Estatuto da Mulher Casada e a “Lei Maria da Penha” são decorrentes de punições que o Brasil sofreu internacionalmente. Verificamos que a mulher institucional, legal e discursivamente, em nossa sociedade contemporânea é considerada
  • 10. como ser frágil, que necessita de proteção em razão de um posicionamento machista, ainda vigente na atualidade; contudo, há mulheres que realizam grandes feitos e que já ocupam lugares até então destinados ao homem, estabelecendo uma nova cristalização desses sentidos em nossa cultura. A segunda lei evidencia uma ruptura com a memória discursiva referente à família, que passa a ser reconhecida também por outras formas de constituição que não seja a pautada no casamento e na união dos sexos opostos e na coabitação. Percebemos que houve alterações nas condições de produção do discurso em decorrência das alterações nas relações sociais entre os homens e mulheres, as quais tornam possível a existência deste discurso. REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Tradução de Joaquim Jose de Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença, 1974. BARROS, Fernanda Otoni. Do direito ao pai: sobre a paternidade no ordenamento Jurídico. Revista Brasileira de Direito de Família. Ano II – nº6 – Jul-Ago-Set 2000. BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. 8. ed. Campinas, São Paulo: Unicamp, 2002. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2000. GREGOLIN, Maria do Rosário. Estudos do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. Pedro Navarro (Org.). São Carlos: ClaraLuz, 2006. HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Método, 2005. MAZIÈRE, Francine. A análise do discurso: história e práticas. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas: Pontes, 2007. ______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1996. PÊCHEUX, Michel. Discurso. Estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 1990. TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.