O documento discute a subjetividade a partir de perspectivas psicanalíticas e jurídicas. Argumenta que a subjetividade deve ser entendida como resultado dos discursos inconscientes e que a lei atua como significante na constituição do sujeito e da cultura. Também defende que a abordagem psicanalítica pode levar a uma reformulação dos sujeitos científico e jurídico.
11 03-2014-o sujeito da ciência a partir da posição subjetiva discursiva psicanalítica
1. O SUJEITO DA CIÊNCIA A PARTIR DA
POSIÇÃO SUBJETIVA DISCURSIVA PSICANALÍTICA1
Silvane Maria Marchesini2
Embasados na proposta metodológica da Transdisciplinaridade sustentada
por Basarab Nicolescu3
, e na Teoria dos Discursos de Jacques Lacan4
, desenvolvemos
uma pesquisa sobre a subjetividade, articulando os campos de estudo da Psicanálise e
do Direito.
Ainda que considerando a distância dos diferentes campos discursivos, o
psicanalítico e o jurídico, a predominância de distintas lógicas (princípio da
indeterminação x princípio da razão suficiente) instituídas em cada campo, as
diferentes finalidades práticas (inserção no âmbito singular individual e no âmbito
social), partimos da operacionalização assimétrica de alguns conceitos-chave a
respeito da subjetividade psicanalítica e da subjetividade jurídica, especialmente com
relação à identificação do sujeito, visando buscar novos elementos à fundamentação
de uma teoria do sujeito de direito e, consequentemente, do sujeito da ciência, visto
que a ciência jurídica desde seu lugar de poder instituído organiza as práticas e os
conhecimentos de todas as demais disciplinas científicas.
A partir de legados jusfilosóficos críticos à lógica da totalidade e à ética
universal, análogas da razão moderna, cujos defensores com distintos argumentos vêm
contribuindo para uma compreensão da razão fundada no princípio da exterioridade
do outro como altero em relação ao ser, buscamos fundamentação e incorporação da
lógica e da ética relativa psicanalítica sustentada na singularidade do desejo
inconsciente, para estabelecer eventual filiação da organização científica e jurídica em
relação à organização edipiana, num processo discursivo juspsicanalítico5
.
1
Palestra proferida no Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e VIII Congresso
Brasileiro de Psicopatologia Fundamental – Belém do Pará – Brasil, em 07 de setembro de 2006.
Publicada no site: <http://www.psicopatologiafundamental.org/app/index.php> e <http://www.fun
damentalpsychopathology.org/anais2006/4.3.3.2.htm>.
2
Advogada, diplomada pela Universidade Federal do Paraná – Brasil. Psicóloga, Mestre em Psicanálise
pela Universidade Tuiuti do Paraná. Psicanalista Clínica. Desde 2012, Doutora em Psicologia, pela
Université Nice Sophia Antipolis.
E-mail: smmarchesini@gmail.com.
3
NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lúcia Pereira de Souza. São
Paulo: Triom, 1999.
4
LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary
Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
5
MARCHESINI, Silvane Maria. O sujeito de direito na transferência – Uma perspectiva
transdisciplinar por meio da Teoria Lacaniana dos Discursos. Curitiba: Juruá, 2010.
2. Ou seja, sustentada no inconsciente que constitui a parte (enunciação) de um
discurso concreto (enunciado), do qual o sujeito não dispõe, ele exite no non-sens. E,
graças ao método e a interpretação do psicanalista, esta parte inconsciente do discurso
se transforma, sob os efeitos da transferência, em saber e dá acesso ao sujeito falante à
sua posição subjetiva discursiva.
No campo das ciências humanas do Direito e da Psicologia, o qual aqui nos
interessa mais de perto, o paradigma é o inter-subjetivo consciente no qual o discurso
é a instância última de racionalidade. No campo da Psicanálise, cuja preocupação é a
preservação da subjetividade, o paradigma é o Transindividual, ou seja, o sujeito
manifesta-se denotando um saber Real sobre si e sobre as coisas do mundo, no nível
discursivo intra-subjetivo inconsciente.
Portanto, para justificar eticamente o sujeito de direito e da ciência, por meio
da Teoria Lacaniana dos Discursos, é preciso considerar metodologicamente o
fenômeno humano da transferência como experiência dialética na qual ocorre uma
substituição daquilo que resiste ao discurso consciente, ou seja, uma espécie de
projeção de conteúdos subjetivos latentes que uma pessoa manifesta
inconscientemente a outra pessoa, em face de lugar e função desempenhada nas
relações da vida. Uma espécie de dialética referida ao momento de passagem de
poderes do sujeito ao Outro, lugar da fala, virtualmente, lugar da verdade subjetiva.
Neste fenômeno transferencial atualizam-se impressões parentais infantis do
passado, alusivas a concepções de autoridade, proteção, seguridade etc., que atuam na
subjetividade, produzindo efeitos observáveis nas relações socioculturais e jurídicas.
Nesta tese de que a subjetividade deve ser apreciada numa perspectiva
discursiva integradora entre as funções do consciente e do inconsciente, sustentada,
mais especificamente, no Seminário XVII: O avesso da psicanálise6
, concluímos que é
possível tomar o giro topológico das quatro estruturas discursivas lacanianas
(discurso do mestre, discurso universitário, discurso histérico e discurso do analista)
para desenvolver uma alteração de três quartos de giro – anunciado por Lacan7
– nas
distintas posições do sujeito barrado nos discursos em relação à verdade, com a
finalidade de contribuir para o desenvolvimento na ciência e no Direito, a partir dessa
aproximação, de uma teoria da personalidade, numa nova prospectiva ética.
6
LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary
Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
3. Dessa modificação produzida por três quartos de giro nos discursos,
aproximando-se o Discurso do Mestre, no qual se situa o Discurso Científico e o
Jurídico, do Discurso Psicanalítico, surge um outro estilo de Significante Mestre S1,
que determina, por conseguinte, a alteração da Lei como significante inconsciente na
cultura e no sujeito.
A perspectiva psicanalítica considera um ponto de negatividade simbólico
irredutível, como necessário à estruturação subjetiva e cultural. Esta perda inicial do
gozo absoluto, sob os efeitos do recalcamento originário do significante S1, e
paradoxalmente, da castração, refere-se ao processo institutivo da palavra no humano.
A vertente lacaniana estuda este ordenamento denominando-o de Lei do
Nome do Pai, metáfora estruturante constitutiva subjetiva que em seu poder interdita
o incesto e introduz através das leis da linguagem, uma série de normas reguladoras
das relações familiares e culturais.
A abordagem da subjetividade a partir de referenciais teóricos psicanalíticos e
de subsídios pragmáticos clínicos conduz-nos, então, a pensar a possibilidade de uma
nova ética, a partir da consideração pela ética científica e jurídica universal, de outra
dimensão na qual se situa a ética relativa psicanalítica, como fator genuíno na
compreensão dos temas da legalidade e da obediência e transgressão no âmbito da
justiça, e da culpabilidade como fator gerador de distúrbios psicopatológicos.
No ponto de conectabilidade entre ambos os campos discursivos, o
psicanalítico e o científico e jurídico, trata-se de Estatuto de nomeação subjetiva, ou
seja, da inserção do ser humano no mundo, como indivíduo social e como sujeito de
direitos. Ambos os campos atuam, ainda que distintamente, na lei como significante,
ou seja, na fundação constitutiva do sujeito (sistema normativo interno).
Considerado, então, o paradoxal processo “pré-edipiano e edipiano”
inconsciente de subjetivação, que ocorre de modo singular em relação às questões
superegoicas alusivas à autonomia e heteronomia dos modelos ideais e de interdições
familiares e culturais, do qual decorre que o “significante fálico” para cada sujeito
tem uma significação, mais profunda que os significados conscientes, concluímos que
a abordagem psicanalítica da subjetividade conduz a uma refundação do sujeito
científico e jurídico.
7
LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary
Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 168.
4. Portanto, a função normativante científica e jurídica deve ser entendida como
Lei significante, pois, atua como um dos principais fatores determinantes externos da
constituição psíquica do sujeito e da cultura.
Devido a tal complexidade, a Lei em todas as suas nuances, paternal,
patriarcal, estatal ou científica, é de ser pensada como um processo criativo de
realidade social e singularidades subjetivas.
A partir desta visão científica transdisciplinar, os efeitos dos discursos
sociais sobre a construção do sujeito e sobre a evolução da psicopatologia, temas que
interessam tanto ao campo jurídico como ao campo psicológico e medical, atualmente,
vêm sendo estudados em núcleos acadêmicos europeus, problematizando-se,
especificamente, a constituição da subjetividade infantil e adolescente, e as mutações
subjetivas durante toda a vida, em suas implicações biopsicossociais e espirituais.
Assim, uma equipe de pesquisa orientada pelo psicanalista Serge Lesourd,
atualmente na Université Nice Sophia Antipolis, articula Psicologia, Psicopatologia e
clínica com Psicanálise, ciência da construção do sujeito na sua especificidade.
A síntese dos argumentos teóricos que sustentam os eixos da pesquisa
acadêmica em nível de doutorado, orientadas por Lesourd, sobre “as influências
recíprocas das organizações sociais e a psicopatologia individual ou coletiva” bem
esclareceu com relação à “construção da subjetividade como efeito do discurso”, a
importância do lugar e da função da família constituída sobre diferentes modalidades
do desejo:
Desde sua origem a psicanálise, ciência da construção do sujeito na sua
especificidade, colocou as questões da origem dos disfuncionamentos do ser
humano na sua relação com a sua história familiar (Freud, 1905; Lacan, 1946),
com sua cultura (Freud, 1914; Lacan, 1969; Legendre, 1985), e com o que o
especifica enquanto ser humano: a linguagem (Freud, 1908; Lacan, 1943).
Portanto, o estudo da subjetividade não pode ser concebido independentemente
do lugar que o sujeito ocupa na sua família, instituição cujo operador é a
filiação e onde ocorrem as primeiras construções da personalidade (Cf. Eixo 1).
A família não é um grupo como os outros e nela “os lugares não são
cambiáveis” (Thery, 1996), apesar do que insinuam as novas formas de
organização dos laços familiares nas leis sociais. As modificações recentes das
formas de organização da vida familiar e dos laços de aliança e de filiação
influenciam sobre a construção subjetiva das crianças e sobre a maneira como
as quais representam os laços afetivos e sociais no mundo que elas descobrem,
pois, o papel dos adultos no acolhimento da criança, ser em devir, é de lhe
“ensinar o mundo, aquele que começou antes do seu nascimento e que
continuará depois de sua morte...” (Arendt, 1956; Lacan, 1938). Os processos de
nominações, escolha do pré-nome e do nome, mas, também, lugar no parentesco,
lugar filiativo e lugar sexuado, estão, também, no coração dos processos
5. identitários e da construção da subjetividade inicialmente durante a primeira
infância, depois, durante os remanejamentos subjetivos ao longo de toda a vida
(Cf. Eixo 2).
A construção da subjetividade impõe-se pelo fato da prematuridade do ser
humano, e conduz a uma série de arranjos sucessivos tanto dos modos de
organização do pensamento, quanto dos afetos que fazem desse tempo em família
a base da organização futura dos laços de um indivíduo com outros e consigo
mesmo (Cf. Eixo 3). Os processos de adolescência são, assim, a compreender
(Racial, 2000; Gutton, 1996; Lesourd, 2001) como reconstruções e integrações
dos processos infantis para o acesso do sujeito a um lugar e a uma função
social, ambos considerados como lugar de expressão do sujeito.
Assim, o lugar do ambiente familiar na construção do sujeito não pode ser
extraído do lugar que uma dada sociedade concede às funções parentais e
familiares baseadas nas leis de aliança e de troca entre os sexos (Arent, 1972;
Lévi-Strauss, 1997). A psicanálise encontra aí os trabalhos dos antropólogos e
dos sociólogos da família. Não existe família fora de um laço social que
determine os possíveis e os impossíveis das relações entre os seres humanos. As
modificações dos discursos organizadores do laço social influem, então, sobre o
lugar que pode tomar o indivíduo na sua relação com os outros e sobre a
expressão do mal-estar individual e coletivo na civilização (Cf. Eixo 4).8
[sem
grifo no original]
Tais argumentos revelam a família e a filiação como emanações do trabalho
fundamental abstrato sobre a construção do sujeito em suas relações tanto na sua
própria família quanto no seu ambiente social. A psicanálise é a referência teórico-
prática desta linha de pesquisa, cujo objetivo é o de aprofundar o estudo das relações
entre os discursos sociais e as produções psicopatológicas do indivíduo9
no seu
contexto familiar e social. Portanto, é importante observar as forças normativas
sociais, assim como, os processos psíquicos fundamentais em obra na construção dos
laços familiares e de filiações, emanando das funções parentais. Tais forças
normativas familiais e sociais constituem as condições da construção do sujeito-
criança, e elas sofrem remanejamentos ligados a suas próprias transformações.
A psicanálise demonstrou que a psicopatologia é um modo de inscrição
subjetiva nas leis da linguagem. As doenças da alma decorrem em grande parte dos
modos como uma sociedade aceita ou recusa as formas singulares de expressão dos
sujeitos. Observa-se que os modos de expressão psicopatológicos vêm se
transformando, assim como, as normas sociais, científicas e jurídicas a este respeito.
Os códigos de classificação psiquiátrica por sua vez, anotam a transformação do
conceito de normalidade social e da determinação da subjetividade. Compete-nos,
8
LESOURD, S. “L’Equipe de Recherche: Psychanalyse, Psychopathologie et Psychologie clinique.” Atualmente
na Université Nice Sophia Antipolis-FR.
6. então, buscar entender, em que tais modificações discursivas, influem no processo de
construção da personalidade na infância e na subjetividade no decurso da vida, pois,
os discursos sociais e científicos induzem modificações da psicopatologia tanto no
plano clínico, como no plano epistemológico.
Para explicar esta inédita mutação no “discurso como forma de laço social”,
Jean Pierre Lebrun10
, destacado psicanalista belga, aponta mudanças seculares no
funcionamento coletivo que operam na interseção subjetiva e social e que, são de
importância na construção da subjetividade.
Descreve esta construção em cinco níveis: o nível que Lacan chamou de
humus humain, o nível do social humano, o nível da sociedade concreta, o nível da
família e o nível da realidade psíquica do sujeito.
Explica que a entrada no campo da palavra exige do sujeito uma perda de
gozo do ideal de completude e onipotência, perda esta que produz uma marca de
negação a qual serve de fundamento tanto à Lei como ao desejo.
O limite subsumido na negatividade que fundamenta à Lei surge no social
humano sempre representado pelo interdito do incesto, distinguindo o mundo natural e
o da cultura com estabelecimento de lugares para os cidadãos dentro do social.
Cada sociedade concreta organiza suas normas e leis que são desenvolvidas e
transmitidas a partir do interdito fundador. Tais regras têm por função sustentar o
consentimento subjetivo dessa perda de gozo.
A família, por meio da relação com os primeiros outros – geralmente, os pais
– é o meio ambiente no qual o sujeito reencontra esse limite de gozo, organizando-se e
constituindo-se.
Neste mesmo movimento, a criança precisa consentir em renunciar a todo-
gozo – ou seja, renunciar a toda potência infantil assumindo a castração simbólica –
para poder aceder ao desejo.
Nessas bases, Lebrun11
sustenta a tese de que há uma solidariedade de uma
perda necessária a cada nível do dispositivo de construção subjetiva, perda solidária
essa, que estabelece a linha divisória entre o gozo e a língua, transmitida como limite
necessário à especificidade do humus humain.
9
LESOURD, S. La folie ordinaire des discours modernes. Figures de la psychanalyse, 2004, vol. 2,
no
10, p. 105-110. Disponible sur : DOI : 10.3917/fp.010.0105. URL : <www.cairn.info/revue-figures-
de-la-psy-2004-2-page-105.htm>.
10
LEBRUN, J.-P. La Perversion ordinaire. Vivre ensemble sans autrui. Paris : Éditions Denoël, 2007.
11
LEBRUN, J.-P. La Perversion ordinaire. Vivre ensemble sans autrui. Paris : Éditions Denoël, 2007.
7. Afirma que, esta solidariedade diminuta de perda-de-gozo, atualmente
recolocada em causa, é que poderá nos trazer clareza dessa inédita organização
discursiva social.
Os dois primeiros níveis de construção da subjetividade, quais sejam, o do
humus humain, e o do social humano, Lebrun12
situa-os no que denomina de “núcleo
antropológico duro” no qual os elementos operadores são de ordem simbólica trans-
histórica, distinta da ordem social histórica. Delimita, ainda que de modo iterativo, o
que revela constrangimentos de estrutura, e o que revela uma mera contingência
contextual.
Aponta o sintoma de uma negatividade deslocada, pulverizada, que denota
supressão da “categoria do impossível”. Ou seja, o desaparecimento do limite que
impõe um menos-de-gozo, como consequência da deslegitimação das figuras
representativas de autoridade.
Afirma que está se construindo um outro regime simbólico da vida coletiva,
devido ao fim de um laço social discursivo sistematizado a partir de um “lugar de
exceção”. Afirma, ainda, que o desaparecimento de uma posição de exterioridade
hierárquica, está levando ao descrédito na diferença de lugares e na transcendência
como lógica aceitável. Lebrun observa que está surgindo outro tipo de laço social, este
não mais sendo sustentado pela Incompletude e Consistência, mais, ao contrário,
sustentado pela Completude e Inconsistência. Este novo regime simbólico vem se
organizando por Discursos Imaginários de uma radical organização horizontal
imanente.
Neste novo arranjo do regime simbólico, observamos, no entanto, que
renovadas tendências epistemologias transdisciplinares vêm se articulando com a
Psicanálise e se corporificando em várias áreas de estudo e práticas respectivas,
visando resgatar de modo distinto, a força legitimadora dos referenciais simbólicos
tradicionais por funcionarem como elementos estruturantes da subjetividade.
Um exemplo disso é o movimento que está se produzindo na Medicina e no
Direito, principais áreas científicas organizadoras do poder instituído nas culturas: de
um lado, trata-se da incessante busca de um ethos universalizável racional, ético ou
espiritual, que venha produzir o cimento estético capaz de recobrir o “vazio” do “locus
de exceção” e amalgamá-lo definindo assim a alteridade endo-exógena identitária no
12
LEBRUN, J.-P. La Perversion ordinaire. Vivre ensemble sans autrui. Paris : Éditions Denoël, 2007.
8. âmbito singular; mas também, a busca incessante de um ethos que venha produzir no
vazio entre a “pré-história da espécie” e do “indivíduo”, um renovado pater coletivo
menos violento, personificando o pacto dever-ser no contrato social e jurídico, sem o
risco do “assassínio de nossas próprias almas”.
Para dar uma breve noção de como o sujeito da ciência vem se
reposicionando a partir da posição subjetiva discursiva psicanalítica, delineamos aqui,
como estas áreas médica e jurídica, principais responsáveis pelo reconhecimento e
inserção do indivíduo na sociedade e na família, vêm ressistematizando seu discurso
científico com fundamentos das teorias interpretativas simbólicas psicanalíticas e
neoantropológicas:
1º) A Medicina partindo metodologicamente das “leis de causa e efeito”,
considera que a causa do psiquismo é biológica, numa visão organicista.
Das distintas áreas medicais, destacamos a Psicopatologia Geral que,
descreve de forma taxológica as doenças mentais.
Por sua vez, a Psicopatologia Fundamental, que vem surgindo
epistemologicamente, busca a compreensão do Pathos humano (dos sofrimentos da
alma), através de vários outros saberes, filosofia, psicologia, psicanálise, antropologia,
baseada no pressuposto da manifestação da subjetividade no discurso.
2º) O Direito, ao incorporar as regras sociais regulamentando as relações
jurídicas e as demais áreas científicas, funciona como instrumento simbólico em
âmbito público e privado, na construção da ficção que sustenta cada sujeito nas
condições necessárias para encontrar o seu lugar na sociedade concreta.
O reconhecimento do sujeito de direito funciona como modo de inserção do
indivíduo na organização coletiva e individual.
Por isso, um Direito distante dessa tarefa construtiva subjetiva não cumpre
com sua função organizadora e nominativa.
O discurso juspsicanalítico vem, no entanto, sendo sistematizado
epistemologicamente, na busca de mediações de saberes, para nova justificação ética
da subjetividade discursiva e das relações jurídicas.
3º) A Psicanálise preocupa-se com a preservação da subjetividade.
“Como” e “em que”, uma sociedade nos seus diferentes níveis, particular e
público, intervém na constituição do aparelho psíquico.
Estuda que leis regem o campo do pensamento, mundo da “alma”,
localizando a causa do psiquismo no “consentimento” inconsciente.
9. Ocupa-se de questões etiológicas, da referência simbólica como causa da
subjetividade, a partir, da “categoria do vazio”.
Lacan, em especial, desenvolveu uma teoria localizando a causa do
psiquismo na dimensão inconsciente da linguagem, partindo de uma visão
estruturalista, e, ultrapassando essa perspectiva, acrescentou a concepção do Discurso
como forma de laço social.
Lacan aproximou-se, assim, da ciência em geral, e do Direito, informando
nos Escritos, especificamente, nos textos “A instância da letra no inconsciente...” e “A
metáfora do sujeito”, a teoria dos efeitos do significante distintos do significado em
face das manifestações do inconsciente.
A Teoria dos Discursos13
, lacaniana demonstrou, de forma lógica, os
diferentes modos de relação do sujeito com a cadeia significante e com o Real, no
nível inconsciente.
Ao explicar como funciona a cadeia discursiva, Lacan partiu da interpretação
do inconsciente, pela exterioridade do significante mestre S1, primeira marca mnêmica
a partir da qual surge a fala e que, representa o sujeito sempre para outro significante,
o S2, saber inconsciente que vem do lugar do Outro.
Lacan afirma a partir dessa constatação que: “O inconsciente é estruturado
como uma linguagem”. Esse aforismo é indicador de que não existe sujeito que gere a
si mesmo. Que o sujeito surge gerado no campo do Outro e devido ao campo do
Outro.
Portanto, ainda que a teoria psicanalítica demonstre a “verdade parcial” do
desejo inconsciente e se fundamente na falta simbólica como estruturante do ser,
caracterizadora de uma equivocidade na linguagem, apresenta-se, a nosso ver, como
estudo indispensável à identificação do sujeito jurídico, e do sujeito considerado pelas
ciências medicais, visto que discorre sobre o caráter irredutível da subjetividade na
estrutura discursiva, e sobre as distintas posições do sujeito barrado em relação
ambígua com a verdade.
Prospectamos, então, que esta nova mediação de conhecimentos científicos,
Psicanálise/Direito/Medicina, configura um enlaçamento Real/ Simbólico/Imaginário
sobredeterminante de novas identificações.
13
LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary
Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
10. Tendo Lacan definido que “o inconsciente é o social” e que “o discurso é
uma forma de laço social”, coloco para reflexão sobre as consequências na construção
da subjetividade do deslocamento dos discursos sociais e do sentido de poder,
sustentado anteriormente numa lógica vertical que vem se horizontalizando, algumas
constatações:
A transcendência, como ponto lógico necessário à organização do
pensamento, significa a aposta na possibilidade de surgimento de um novo estilo de
Significante Mestre S1.
É a partir da Teoria dos Discursos lacaniana que surge a possibilidade de um
novo estilo de discurso de mestria científica, campo discursivo no qual se situam,
especialmente, a Medicina e o Direito, após a passagem por um tempo de
transcendência pelo discurso Psicanalítico.
Para justificar essa questão, cito Lacan, que discorrendo sobre a Impotência
da verdade, afirma:
Chegamos enfim ao nível do discurso do analista. Naturalmente, ninguém
assinalou – é muito curioso que o que ele produz nada mais seja do que o
discurso do mestre, já que S1, é o que vem no lugar da produção. E, como
eu dizia da última vez, quando deixei Vincennes, talvez seja do discurso do
analista, se fizermos esses três quartos de giro, que possa surgir um outro
estilo de significante-mestre.14
[sem grifo no original]
Nesta postura de pesquisa científica, valoriza-se a estética e a ética na
produção real de boas obras de arte, assim como, outras áreas das tradições sapienciais
as quais podem vir a funcionar de modo mais efetivo, como vias de comunicação e
ponte, digamos assim, possibilitando a Medicina e ao Direito encontrarem um novo
estilo de significante científico, em decorrência da passagem pela posição discursiva
psicanalítica, processo subjetivo que gera produções mais criativas.
Em consequência da coerência alcançada pela elaboração e retificação de
referenciais, e também, devido ao estado subjetivo de sublimação produzido no
processo psicanalítico, surge como efeito inscrição do Real/Imaginário no campo
Simbólico pelo instrumento do fenômeno humano da Transferência nas experiências
dialéticas.
14
LACAN, J. O seminário: Livro XVII O avesso da psicanálise. (1969-1970). Tradução de Ary
Roitman. Consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 168.
11. Prospectamos, então, a partir do enunciado por Lacan15
– três quartos de giro
discursivo a partir do discurso do analista –, a possibilidade de surgimento de uma
nova ciência e um novo sujeito, que se sustente na passagem pela posição analítica.
Uma produção acadêmica realizada por sujeitos analíticos que busquem em seus
processos de elaboração pulsional, convergir a marca distintiva de sua subjetividade
com a causa de sua divisão (saber que está sob a barra do recalque).
Trata-se de aposta numa racionalidade produzida por sujeitos com palavra
autorizada a partir de um mínimo ético irredutível e hierarquizante, que pressupõe a
diferença de lugares e de posições discursivas, como indispensável à singularidade e
liberdade subjetiva. Ou seja, a prospecção de um novo estilo de lugar de exceção,
ocupado por quem esteja em ordem com sua Lei psíquica.
Uma construção Real/Simbólico/Imaginária que possibilite decisão,
autoridade e poder, mais legitimados, numa construção sem ultrapassagem radical da
heteronomia, na qual a subjetividade se sustente de forma a ocupar um lugar novo de
exterioridade.
Uma nova forma de hierarquia, com representantes legitimados de maneira
mais credível, numa articulação de decisão/autoridade/poder geradora de efetivo laço
social.
Uma renovada prospecção científica através do discurso psicanalítico,
levando a que as decisões, no âmbito particular ou público, sejam tomadas a partir de
um “pacto inconsciente” hierárquico e subjetivante. Instituições familiares e sociais
que se estabeleçam de modo mais sadio devido a consideração da dimensão do Real, e
do ponto de censura entre os distintos lugares subjetivos discursivos.
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15
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