1) O documento discute os conceitos de "banalidade do mal" e "esquecimento do bem", onde o mal é visto como normal e o bem é esquecido;
2) A maioria das pessoas são boas e honradas e mantêm o país funcionando através de seu trabalho silencioso, apesar da corrupção e violência;
3) Embora o mal exista, o bem acaba prevalecendo e dando esperança, graças às ações das pessoas comuns.
1. A banalidade do mal e o esquecimento
do bem
O Brasil também continua de pé graças à maioria das
pessoas, que sofre sem vender sua consciência
Acostumados todo dia a receber notícias de corruptos e canalhas sem escrúpulos,
de violências e direitos pisoteados, poderíamos cair na tentação de acreditar que
no Brasil não há pessoas boas e honradas. Elas existem, e são a imensa maioria. São
elas que mantêm o país de pé, que o fazem funcionar. Graças a elas, conseguimos
viver e até manter um fio de esperança.
Enquanto crescia, aqui e no mundo, o monstro da violência, do terrorismo e
dos novos nazismos, dois personagens históricos, dois pensadores, ambos
mulheres, ambas perseguidas por sua condição de judias, a alemã Hannah Arendt e
a húngara Agnes Heller – esta última, inclusive, sobrevivente de um campo de
concentração – se transformaram em atualidade. Arendt, após ter peregrinado
fugindo da perseguição, conhecedora privilegiada dos horrores do Holocausto e
seus verdugos, cunhou o conceito de “banalidade do mal”. Trata-se do perigo, como
ocorreu durante o nazismo, de que as pessoas comuns acabem vendo o mal como
algo normal, como algo que realizamos por dever ou por simples seguimento de
uma ideologia fanática. É a obediência às ordens do tirano, sem medir as suas
consequências. O mecanismo que transforma em normal e burocrático os
massacres e holocaustos.
Um perigo que hoje se torna tragicamente atual, com o ressurgimento de velhas e
novas ideologias de ódio e discriminação dos diferentes. Mas além desse perigo
real, que a extrema-direita e as ideologias de várias tendências ressuscitam, existe
outro, oposto. À banalidade do mal se opõe, hoje, o chamado “esquecimento do
bem”, como se a humanidade estivesse possuída definitivamente pelo mal, sem
espaços para a bondade. É o que a pensadora húngara Agnes Heller acaba de
recordar a este jornal numa entrevista, em sua casa de Budapeste, ao jornalista
Guillermo Altares, quando afirma que hoje, com seus quase 90 anos e depois de ter
vivido guerras e exílios, de seu pai ter morrido em Auschwitz e de ela ter se
salvado junto com sua mãe, a única fé que lhe resta é que, até no meio do pior
inferno, continuam existindo “pessoas boas, capazes de ajudar os demais a se
salvarem.”
O esquecimento e o silêncio da existência do bem podem ser, de fato, tão perigosos
quanto a banalização do mal, pois acabam com as chances de esperança. Outro
judeu, Sigmund Freud, pai da psicanálise, já tinha recordado, em meio aos horrores
do nazismo, que o impulso da vida supera o da morte, que é como dizer que o bem
acaba vencendo o mal. Do contrário, dizia Freud, o mundo já não existiria.
O Brasil também continua de pé, apesar de todos os tropeços e de todos os seus
demônios, graças à grande maioria das pessoas que são honradas e trabalhadoras,
2. que se sacrificam e sofrem sem vender sua consciência. É esse exército que,
mesmo furioso com os corruptos e consciente da existência do mal, continua em
seu caminho, sem se vender ao deus do derrotismo, buscando seus espaços de
felicidade – sua e dos demais. Sem essas pessoas boas e normais, nosso cotidiano
seria um inferno. Sem esses milhões de trabalhadores que não se vendem e
geralmente sofrem injustiças e penalidades todo dia, nosso cotidiano pararia. Toda
vez que acendemos uma luz, abrimos a torneira, pegamos um ônibus, compramos
num mercado e encontramos nossas ruas limpas, deveríamos pensar que, por trás
disso tudo, existe alguém que está trabalhando de forma honrada e silenciosa para
que isso seja possível.
Todos nós já cruzamos algum dia com uma dessas pessoas generosas, capazes de
ajudar sem esperar recompensa. É das pessoas boas que fala a filósofa húngara
após ter vivido os horrores do mundo. Neste momento, eu não poderia deixar de
lembrar que, se hoje estou escrevendo estas linhas, é porque, quando ainda era
criança, uma família pagou meus estudos, o que meus pais, professores de escola,
não teriam podido fazer. Uma família que não conheci porque preferiu o
anonimato. São essas famílias, e não os banalizadores do mal, as verdadeiras
construtoras e donas do mundo.
Que não se enganem os corruptos e violentos, pois essas pessoas boas, se
quiserem, também podem se rebelar. E nada mais perigoso para os canalhas que a
ira dos inocentes. O que seria, por exemplo, das pessoas abastadas das cidades
brasileiras se, por exemplo, esses milhões de favelados, deixados à própria sorte,
vítimas da banalização da violência, decidissem baixar em massa e incendiá-las?
Não é que não haja pessoas de bem. Às vezes, frente ao mal e à injustiça que as
rodeia, ao descaramento do mal, dá até vontade de pensar que são boas demais
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/26/opinion/1503698941_685704.html