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Considerações Iniciais
Propomos aqui um exercício de se pensar o que são as Relações
Internacionais e propomos fazê-lo do ponto de vista do direito inter-
nacional, em especial dos direitos humanos como objeto da filosofia
política. Nossa observação é a de que as Relações Internacionais são
caracterizadas por uma gênese esquizofrênica, quando, pelo sistema
westphaliano de Estados, a exclusão e a inclusão são práticas artifi-
ciais e problemáticas.
141
* Artigo recebido e aprovado para publicação em setembro de 2007.
** Doutorando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio), coordenador e professor da Graduação em Rela-
ções Internacionais dos Institutos Superiores de Ensino La Salle (UniLaSalle). E-mail: leonardo_braga
@hotmail.com.
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 30, no
1, janeiro/abril 2008, p. 141-169.
O Debate
Cosmopolitismo
x Comunitarismo
sobre Direitos
Humanos e a
Esquizofrenia
das Relações
Internacionais*
Leonardo Carvalho Braga**
A questão pontual de que trata este trabalho diz respeito aos direitos
humanos como uma derivação de direitos inerentes à própria huma-
nidade e direitos humanos elaborados em contextos sociais espa-
ço-temporalmente definidos. O debate sobre o universal e o particu-
lar concernente aos direitos humanos é, assim, o centro de nossa
atenção, e nele a discussão destas categorias como constructos do
real e do ideal.
Compreendemos haver um problema ainda não resolvido sobre o re-
ferido tema, mas não pretendemos resolvê-lo, se não problemati-
zá-lo, especialmente porque nos parece que o cerne do problema não
está na compreensão dos direitos humanos, mas na compreensão do
que são as Relações Internacionais.
Primeira Problematização:
O Debate Cosmopolitismo x
Comunitarismo nas
Relações Internacionais
A discussão dos direitos humanos nas Relações Internacionais e, de
modo especial, a discussão da sua universalização encontram no de-
bate cosmopolitismo x comunitarismo sua expressão maior de pro-
blematização e de tentativa de respostas. Este debate, porém, even-
tualmente, conduz a discussão dos direitos humanos mais a uma si-
tuação inconclusiva, em função do grau de auto-exclusão que as duas
correntes de pensamento se impõem, do que a uma perspectiva de
proposta, pelo menos teórica, que favoreça uma compreensão conci-
liadora dos direitos humanos.
A Teoria Normativa de Relações Internacionais propõe-se exata-
mente a fornecer possibilidades teóricas sobre o respectivo debate,
mesmo que sem alcançar uma resposta definitiva para esta proble-
mática.
Leonardo Carvalho Braga
142 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
O debate nas Relações Internacionais entre cosmopolitas e comuni-
taristas encontra no pensamento do filósofo norte-americano John
Rawls (1921-2002), ou mais propriamente no uso que alguns estudi-
osos fazem de suas idéias, a defesa da postura cosmopolita. O pró-
prio Rawls entra no debate posteriormente, oferecendo uma respos-
ta. Vejamos como isto ocorre e estejamos atentos desde já aos sinais
de esquizofrenia das Relações Internacionais.
Ao longo dos últimos quarenta anos, desde o lançamento de Uma teo-
ria da justiça (RAWLS, 1971-2000), passando por O liberalismo
político (RAWLS, 1993-2001) e até por O direito dos povos
(RAWLS,1999-2001),Rawlstemsidoumadasprincipaisreferências
na discussão sobre justiça dentro do debate entre cosmopolitas e co-
munitaristas nas Relações Internacionais. Em torno dele, o debate ga-
nha proporções tais que extrapolam e, por vezes, provocam o uso por
adaptação de suas idéias.
O referido debate apresenta os direitos humanos como (1) resultado
de um conjunto de particularidades e de práticas exclusivas pela cir-
cunscrição espaço-temporal das tradições, da cultura e da moral de
um determinado povo em contraposição a uma (2) prática inclusiva
que considera não particularismos excludentes, mas sim a própria
perspectiva humanista e universalista dos direitos humanos como
objeto de reflexão e de representação da humanidade como um todo.
De qualquer modo, o que alimenta especialmente o debate é a com-
preensão do que seja a referência moral nas Relações Internacionais
– ou os povos, para não dizer Estados, ou os indivíduos. A quem se
deve o dever moral? Que referência exige de nós este dever?
Neste sentido, o trabalho de John Rawls vem contribuir para o debate
pela tentativa de oferecer uma posição ponderada e conciliadora so-
bre a possibilidade da universalização dos direitos humanos. A pro-
posta rawlsiana compõe-se da compreensão de que é preciso res-
guardar os povos em suas peculiaridades, mas que, ao mesmo tempo,
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
143
é possível e preciso garantir os direitos humanos pelo seu próprio
significado moral e prático à medida que estes mesmos povos se sin-
tam técnica, jurídica e, claro, moralmente capazes de subscrever um
conjunto de direitos humanos respeitados e garantidos por eles após
um exercício de reflexão sobre tais direitos. A resposta rawlsiana nos
dá – à primeira vista – um alento e uma possibilidade de pensar a con-
cretização de direitos humanos universais de modo viável e seguro
naconsideraçãodequecompomos–nós,povos–umconjuntodeco-
letividades humanas que se relacionam, construindo, vivenciando e
partilhando as próprias Relações Internacionais. No entanto, como
veremos, é exatamente por isso que Rawls não consegue superar o
desenho esquizofrênico das Relações Internacionais na compreen-
são de que existem direitos do Estado e direitos dos Estados.
Apresentarei brevemente o debate e, então, compreenderemos
Rawls nele.
Para os liberais (MORRICE, 2000), o indivíduo possui uma essência
ou valor anterior à sociedade. Há uma precedência ontológica do in-
divíduo em relação ao meio social. Para isto, compreende-se o indi-
víduo como uma abstração, algo desgarrado do contexto históri-
co-social, dotado de uma significação própria, independentemente
da sociedade em que vive. Assim, os liberais tendem a valorizar o in-
dividualismo contra o coletivismo. A idéia é preservar o indivíduo
como ser livre para fazer escolhas em um ambiente político liberal e
não considerá-lo como produto do meio, sem expressão individual
própria para a condução de sua vida. Os princípios de justificação
que seguem assumem, assim, uma base neutra, dita universal. Neu-
tra,universale,portanto,imparcialeobjetiva,quegaranta,apartirda
compreensão do homem como ser anterior à sociedade e universal, a
elaboração e a defesa de princípios universalmente válidos. Se so-
mos todos iguais onde quer que estejamos, é preciso garantir princí-
pios e ordenamento social universais. Daí advêm direitos universais
comorespostamesmoànaturezahumana.Ojusnaturalismodospen-
Leonardo Carvalho Braga
144 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
sadoresmodernosestárecuperadoparafazerdoindivíduoumserdo-
tado de uma natureza universal.
Ao contrário, os comunitaristas (MORRICE, 2000) apontam a pre-
cedência ontológica da sociedade em relação ao indivíduo. Não é
possível, agora, compreender o homem como esse ser abstrato, es-
sencial, inexistente. Para os comunitaristas, o homem é um ser soci-
al, dotado de características sociais como história, cultura, valores e
princípios comuns, constituído em uma determinada relação espa-
ço-temporal. O homem existe concretamente como fruto de contra-
dições e existências históricas. A essência do homem não pode ser
aceita como fonte de legitimação de valores, princípios e direitos,
porque não há essência humana, mas existência concreta, cultural,
histórica, geográfica, ideológica, valorativa. Nenhuma realidade so-
cial pode sustentar-se enquanto representação coletiva senão por
uma existência assim. Advém disso o relativismo cultural, a compre-
ensão de diferenças e a exclusão de interferências outras que não as
da respectiva sociedade.
Os Princípios de Justiça em
Rawls e a Formulação de
Direitos
Em Uma teoria da justiça, Rawls (1971-2000) define a sociedade
como uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que
em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como
obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas.
Além disso, para Rawls, estas regras refletem um sistema de coope-
ração entre as pessoas, caracterizando a sociedade como “um empre-
endimento cooperativo que visa vantagens mútuas” (RAWLS,
1971-2000, p. 4). Assim, a sociedade rawlsiana é, por natureza, coo-
perativa. As pessoas compreendem que a cooperação social possibi-
lita que elas tenham uma vida melhor individualmente do que teriam
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
145
caso não houvesse tal cooperação e se dependessem de seus próprios
esforços e recursos para atingir os seus objetivos.
A sociedade enquanto esse empreendimento cooperativo, no entan-
to, não está isenta de conflitos. As pessoas concordam que é melhor
para elas individualmente fazerem parte de um meio cooperativo,
mas não necessariamente concordam quanto à distribuição de bene-
fícios produzidos pela cooperação social, de modo que, acredita
Rawls, cada uma preferirá obter para si uma parcela maior, a uma
menor, destes benefícios. A discussão sobre a justiça em John Rawls
nasce, portanto, da necessidade de se estabelecer um parâmetro dis-
tributivodosbenefíciosobtidospormeiodacooperaçãosocialcomo
qual as pessoas concordem.
Pensar a elaboração e efetivação de direitos na sociedade implica
pensar a natureza da sociedade e dos direitos e a distribuição destes
entre os homens. Partindo da consideração do homem como um ser
econômico, temos que as relações sociais podem estar sujeitas a uma
ordem eventualmente conflitiva em função da disputa de bens que os
homens desejam desfrutar.
Para resolver o conflito sobre a distribuição dos bens, Rawls
(1971-2000) cria a sua alegoria do contrato social com o objetivo de
formular os princípios de justiça que regularão a vida em sociedade e
que servirão como parâmetro distributivo dos benefícios sociais. Na
alegoria do contrato social rawlsiano, os homens encontram-se na
chamada posição original, que corresponde ao estado de natureza
das teorias contratualistas tradicionais. De acordo com a posição ori-
ginal, que é meramente hipotética, os homens não sabem, entre ou-
tras coisas, que lugar ocupam na sociedade, se são ricos ou pobres,
qual a sua classe e seu status social. Além disso, não têm informação
alguma a respeito de seus dotes e habilidades naturais, nem sobre
suas capacidades físicas e mentais, tais como força ou deficiência fí-
sica, inteligência ou ausência desta.
Leonardo Carvalho Braga
146 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
Essa posição original é assim caracterizada pelo que Rawls denomi-
na de véu de ignorância, ou seja, pela falta de informação que os ho-
mens possuem a respeito de si mesmos e dos outros. É sob o véu de
ignorância que os homens escolhem os princípios de justiça e é ele
que garante que ninguém será favorecido ou desfavorecido quando
da escolha destes, em função da sorte natural, que dispõe dotes e ha-
bilidades às pessoas, ou da sorte social, que identifica as pessoas nes-
ta ou naquela posição mais beneficiada socialmente.
É importante tratar aqui da definição de bens sociais primários, por-
que é precisamente em relação a eles que serão aplicados os princípi-
os de justiça. Rawls define esses bens de maneira mais ampla, como
coisas que se supõe que um homem racional deseje, não importando
mais o que ele deseje.
Rawls considera que as pessoas desejam ter uma quantidade maior a
uma menor destes bens, independentemente dos seus planos de vida.
Por isso mesmo, eles são chamados de bens sociais primários. É a
partir da posse destes bens que as pessoas acreditam poder realizar
seus planos de vida com maior sucesso. Rawls caracteriza estes bens
amplamente, como direitos, liberdades e oportunidades, assim como
renda e riqueza. Além disso, Rawls (1993-2001, p. 181-182) procura
defini-los, mais especificamente, em cinco grupos:
a. direitos e liberdades básicos;
b. liberdade de circulação e livre escolha da
ocupação face a um quadro de oportunidades
plurais;
c. poderes e prerrogativas de cargos e posições
de responsabilidade nas instituições políticas e
econômicas da estrutura básica;
d. rendimento e riqueza; e, por fim,
e. as bases sociais do respeito próprio ou au-
to-respeito.
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
147
Os princípios de justiça são escolhidos para regular a distribuição
destes bens sobre as expectativas comuns das pessoas, sobre o que
elas individualmente consideram relevante dispor enquanto bem so-
cial, que as permitam perseguir e realizar os seus planos de vida.
A partir destas observações, Rawls considera que as pessoas esco-
lhem dois princípios de justiça. O primeiro garante um sistema de li-
berdades básicas para todos, igualdade eqüitativa de oportunidades e
uma divisão igual da renda e da riqueza. O segundo é decorrente do
primeiro. Considerando que algumas pessoas, que não se sabe quem
são, são menos favorecidas que outras pela sorte natural ou social, é
compreensível que, no momento de elaboração do contrato, seja es-
colhido um princípio que as proteja dessas contingências naturais e
sociais. Assim, as pessoas se dão conta de que, quando caírem os
véus de ignorância que as cobrem, algumas delas se encontrarão em
uma posição de desvantagem em relação às outras. Deste modo, as
pessoas concordam, então, em admitir que tais desigualdades serão
aceitas se, e somente se, forem vantajosas para os menos favorecidos
da sociedade.
Os dois princípios de justiça são apresentados por Rawls
(1993-2001, p. 277):
a. Cada pessoa tem um direito igual a um es-
quema plenamente adequado de iguais liberda-
des básicas que seja compatível com um esque-
ma idêntico de liberdades para todos.
b. As desigualdades sociais e econômicas de-
vem satisfazer duas condições: por um lado,
têm de estar associadas a cargos e posições
abertos a todos segundo as circunstâncias da
igualdade eqüitativa de oportunidades; por ou-
tro, têm de operar no sentido do maior benefí-
cio possível dos membros menos favorecidos
da sociedade.
Leonardo Carvalho Braga
148 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
A justiça rawlsiana consiste nessa premissa de compensação, em
função mesmo da defesa do liberalismo. As compensações têm o pa-
pel de manter plenamente ativas as liberdades das pessoas menos fa-
vorecidas, porque preservam as pessoas em uma condição de igual-
dade política e social enquanto agentes plenamente capazes de bus-
car realizar os seus planos de vida dentro das possibilidades existen-
tes, com as liberdades, as oportunidades e o sentimento de au-
to-respeito.
A crítica dos comunitaristas é de que a elaboração ideal do contrato
social rawlsiano e a escolha dos princípios de justiça não correspon-
dem à realidade social. Não há um momento em que os homens se re-
únem e decidem que princípios escolher. Os homens nascem. Não
conseguimos identificar o momento em que os homens criaram os
valores que antecedem a existência da sociedade. Pensar os homens
como dispostos em uma posição inicial e cobertos pelo véu de igno-
rância é uma abstração tamanha que se desgarra muito daquilo que
existencialmente somos.
Além disso, a crítica comunitarista não se dá somente ao construti-
vismo rawlsiano, mas à própria natureza dos princípios que são esco-
lhidos. O contrato social rawlsiano escolhe princípios liberais como
se os homens em qualquer momento da história e em qualquer lugar,
uma vez dispostos na posição original, fossem escolher princípios de
tal natureza – liberal. Isto significa simplesmente desconsiderar que
há outras visões de mundo, outras histórias, outras ideologias, que de
fato se realizam em contextos históricos definidos.
A Aplicação do Pensamento
de Rawls nas Relações
Internacionais
Charles Beitz é o principal autor das Relações Internacionais a utili-
zar o arcabouço teórico de Rawls para tratar da justiça internacional e
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
149
da possibilidade de se pensar direitos humanos universais. Oito anos
após o lançamento de Uma teoria da justiça (RAWLS, 1971-2000),
Beitz lança o seu Political theory and International Relations
(BEITZ, 1979), valendo-se dos pressupostos de Rawls e criando o
cosmopolitismo ralwsiano, ainda que o próprio Rawls somente se te-
nha debruçado sobre o tema de modo definitivo vinte anos depois,
com o lançamento de O direito dos povos (RAWLS, 1999-2001).
A defesa de princípios cosmopolitas feita por Beitz verifica-se a par-
tir da discussão de alguns pontos como cooperação social e justiça,
interdependência, recursos naturais e talentos que relacionam as so-
ciedades nacionais e a sociedade internacional.
Em uma primeira assertiva, Beitz considera que, tal qual ocorre para
os homens, para Rawls, eles nascem em posições sociais diversas e
isto pode afetar as condições para a realização de seus planos de vida,
e assim também ocorre com os Estados. Os Estados Nacionais não
escolheram nascer mais, ou menos, ricos. Isto é resultado de uma lo-
teria natural. Para Beitz, essa é uma distribuição moralmente arbitrá-
ria e deve então ser revista porque a distribuição aleatória de recursos
naturais influencia a possibilidade de determinado Estado satisfazer
as demandas e necessidades de sua população (BEITZ, 1979). A pro-
posta é aplicar as idéias de posição original e de véu de ignorância
para as Relações Internacionais e criar, então, um sistema distributi-
vo global de riqueza.
Beitz entende que os recursos naturais de que os Estados dispõem
não são adquiridos por herança genética, mas por acaso, e que estes
recursos não estão presos aos Estados. Essa situação deve levar à
compreensão de que o padrão de justiça exige uma distribuição dos
recursos naturais entre os Estados para que nenhum deles fique sujei-
to à má sorte. Para Beitz (1979, p. 138, tradução nossa),
Recursos naturais são arbitrários no sentido de
que não são merecidos. [...] Os recursos estão
Leonardo Carvalho Braga
150 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
“lá fora”, disponíveis ao primeiro que os pegar.
[...] Em um mundo de escassez, a apropriação
de recursos naturais pode deixar alguns compa-
rativamente em desvantagem em relação aos
outros. Aqueles privados sem justificativa dos
recursos escassos também desejam realizar
seus planos de vida e disso advém a distribui-
çãoequitativa destes recursosentre os Estados.
A partir de então, Beitz defende, como faz Rawls, a aplicação de
princípios de justiça entre os Estados que possam corrigir essa arbi-
trariedademoralnaofertaaleatóriaderecursosnaturais.Idéiaquefa-
vorece isto é a da interdependência entre os Estados. Mesmo que os
Estados sejam formalmente independentes, suas relações apontam
umgraudedependênciamútuabemacentuado,oquelevariaosEsta-
dos a cooperarem entre si:
Se a evidência de interdependência global eco-
nômica e política mostra a existência de uma
estrutura global de cooperação social, nós não
devemos ver fronteiras nacionais como dota-
das de uma significação moral. Desde que as
fronteiras não delimitem a cooperação interna-
cional, elas não podem marcar os limites das
obrigações sociais. [...] Se as sociedades do
mundo são agora abertas, sistemas interdepen-
dentes completos, o mundo como um todo se
encaixa na compreensão de cooperação social
e o argumento para os dois princípios (de
Rawls) se aplica agora em âmbito global
(BEITZ, 1979, p. 151, tradução nossa).
Assim, as fronteiras nacionais já não têm o papel de delimitação da
movimentação de processos como comércio internacional, difusão
tecnológica, comunicação etc. A rede de relacionamentos internaci-
onais compreende a cooperação entre os Estados para o seu próprio
êxito. Para tanto, acabar ou diminuir o peso das arbitrariedades natu-
rais na distribuição de recursos entre os Estados favorece o progresso
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
151
das Relações Internacionais e a implementação de uma idéia de justi-
ça distributiva e não arbitrária.
Nem Cosmopolita, nem
Comunitarista: A Proposta
de Rawls em O Direito dos
Povos
Após quase trinta anos, Rawls lança o seu O direito dos povos
(RAWLS, 1999-2001). Nesta obra, Rawls trata da justiça nas Rela-
ções Internacionais, aplicando a escolha de princípios de justiça ago-
ra no âmbito internacional. Boa parte de seu trabalho vem como res-
posta ou adequação a posições cosmopolitas que outros teóricos de
Relações Internacionais assumiram a partir da compreensão de Uma
teoria da justiça (RAWLS, 1971-2000), especialmente Charles
Beitz (1979).
No início de O direito dos povos, Rawls (1999-2001) afirma que seu
conteúdo é desenvolvido a partir de uma idéia liberal de justiça que é
similar, porém mais geral, àquela elaborada em suas duas obras ante-
riores (Uma teoria da justiça e O liberalismo político). Rawls pen-
sa agora o contrato social no plano internacional, valendo-se das
idéias e conceitos fundamentais desenvolvidos em torno da justiça
como eqüidade e do liberalismo político para elaborar uma Socieda-
de dos Povos razoavelmente justa.
A escolha por povos em vez de Estados possui especial significado
na teoria rawlsiana. Para Rawls, os Estados ainda são considerados
atores racionais preocupados com o poder e movidos sempre por
seus interesses básicos. Desta forma, o ambiente internacional é ca-
racterizado por uma anarquia em que os Estados lutam entre si por
poder, glória e honra, tentando garantir cada qual uma posição me-
lhor que a do outro.
Leonardo Carvalho Braga
152 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
Naturalmente, a concepção dos Estados enquanto atores racionais
preocupados com o poder e com a persecução de seus interesses bási-
cos não é adequada aos atores que Rawls pensa para a sua Sociedade
dos Povos, em que povos satisfeitos convivem em um ambiente de
paz democrática, sem maiores ambições que ponham em risco a esta-
bilidade da sociedade por eles formada. Segundo Rawls, os povos
não se limitam a serem racionais como os Estados, mas são, além de
racionais, razoáveis. A razoabilidade dos povos faz com que eles não
sejam movidos unicamente pela racionalidade egoísta dos Estados,
como tradicionalmente concebido.
Diferente dos autores liberais que aplicam nas Relações Internacio-
nais a sua teoria da justiça tal como ela é pensada para a sociedade fe-
chada, acredita que pode haver uma Sociedade dos Povos, composta
por povos bem-ordenados que são os povos liberais razoáveis (de-
mocracias constitucionais liberais) e povos decentes. Esta diferença
é muito importante porque relativiza o liberalismo rawlsiano ao pos-
sibilitar a coexistência de povos com visões de mundo diferentes.
Os povos liberais são identificados por Rawls (1999-2001) a partir
de três características. A primeira delas trata da representação de um
governo constitucional razoavelmente justo cujo povo detém de
modo eficaz o seu controle político e eleitoral, tem os seus interesses
fundamentais defendidos e está amparado por uma Constituição es-
crita ou não escrita. A segunda característica dos povos liberais trata
de afinidades comuns às quais estão ligados os seus cidadãos. Tais
afinidades comuns configuram a própria nacionalidade do povo
quando expressa a partilha entre seus cidadãos, por exemplo, da lín-
gua, da religião, dos limites geográficos, da história nacional e da
identidade de raças. A terceira trata do seu caráter moral, que permite
que os povos liberais sejam razoáveis e racionais, similarmente às
pessoas, no caso interno (RAWLS, 1993-2001, p. 46).
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
153
Rawls caracteriza também os povos decentes, atribuindo a eles dois
critérios que devem ser observados para que os mesmos façam parte
da Sociedade dos Povos. O primeiro critério estabelece que os povos
decentes não têm objetivos agressivos e reconhecem que para alcan-
çar os seus interesses legítimos perante os outros povos devem va-
ler-se da diplomacia, do comércio e de outros meios pacíficos. Além
disso, mesmo considerando que os povos decentes reconheçam para
sicomorelevanteopapeldeumadoutrinaabrangentequalquersobre
a sua estrutura de governo, eles permitem e respeitam com algum
grau de liberdade a existência de doutrinas diversas entre seus cida-
dãosetambémpreservamaindependênciaeaordempolíticaesocial
dos outros povos.
O segundo critério, de acordo com Rawls, afirma que os povos de-
centes, a partir da idéia que possuem de justiça voltada para o bem
comum,garantemaosseuscidadãosamanutençãoepreservaçãodos
direitos humanos, uma vez que esta é condição essencial para aque-
lespovosqueestabelecementresiumsistemadecooperaçãopolítica
e social. Além disso, deve haver uma crença sincera e razoável por
parte dos juízes e do sistema jurídico como um todo de que as leis
efetivamente sejam um reflexo da idéia de justiça do bem comum, no
sentido de que não são elaboradas sem a aprovação de seus cidadãos,
mas que representam sim o entendimento destes e de seus represen-
tantes acerca dos princípios de justiça como instrumentos para a rea-
lização do bem comum.
O modelo de representação do contrato social para a Sociedade dos
Povos obedece à mesma orientação apresentada no caso interno em
quase todos os seus aspectos. Os povos (liberais e decentes) são con-
siderados racionais e razoáveis e, portanto, capazes de determinar os
seus interesses próprios e de cooperar entre si, estabelecendo conjun-
tamente os princípios de justiça para a sociedade por eles formada.
Além disso, os povos estão também cobertos pelo véu de ignorância.
Assim, eles não conhecem o tamanho de seu território, a população
Leonardo Carvalho Braga
154 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
ou a força relativa uns dos outros, como também desconhecem a con-
dição de seus recursos naturais e o grau de desenvolvimento econô-
mico que possuem. Desta maneira, os povos vêem a si mesmos como
livres e iguais por gozarem de uma posição eqüitativa no momento
de escolha dos princípios que nortearão a Sociedade dos Povos.
Rawls entende que, de acordo com esta situação, os povos estão si-
metricamente dispostos em relação uns aos outros, o que garante a
imparcialidade na escolha dos princípios de justiça entre eles.
No entanto, há uma diferença importante a ser destacada que diz res-
peito à questão das doutrinas abrangentes. Na sociedade fechada, as
pessoas, em função da capacidade para uma concepção de bem que
possuem, desenvolvem e se identificam com doutrinas abrangentes
religiosas, morais ou filosóficas com as quais relacionam os seus ob-
jetivos de vida e a sua maneira de ver o mundo. Os povos, ao contrá-
rio,representamosseuscidadãos,aspessoasquedelesfazempartee,
como agentes coletivos, não possuem para si uma doutrina abran-
gente a ser defendida propriamente. A existência do pluralismo ra-
zoável dentro dos povos, que permite a coexistência de doutrinas tão
diversas, faz, destas, instituições sem uma doutrina específica a ser
seguida como fonte de identidade com os seus objetivos enquanto
povos.
Este pluralismo razoável, que possibilita o convívio de diversas dou-
trinas abrangentes defendidas por seus cidadãos, somente é possível
a partir da validade de uma concepção política de justiça pela qual os
princípios de justiça escolhidos podem ser aceitos por todos os cida-
dãos independentemente de suas crenças pessoais, religiosas, morais
ou filosóficas. Se assim é no caso interno, Rawls supõe que entre os
povos a existência de doutrinas abrangentes diferentes é ainda maior
em função da cultura e das tradições de cada povo. Desta forma, é es-
sencial à teoria rawlsiana de justiça entre os povos, como também o é
para a sociedade fechada, a concepção de tolerância.
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
155
Rawls presume que, se há diversidade de doutrinas abrangentes den-
tro dos povos, haverá também uma diversidade, talvez até maior, en-
tre os povos. Assim, é possível imaginar que povos diferentes defen-
dam concepções de bem – reflexo dos seus cidadãos – também dife-
rentes. Rawls entende que o papel da Sociedade dos Povos consiste
em assegurar que os ideais e princípios da política exterior de um
povo liberal sejam também razoáveis a partir de um decente ponto de
vista não liberal e vice-versa. A necessidade desta garantia é caracte-
rística inerente à concepção liberal. O Direito dos Povos deve garan-
tir o exercício do pluralismo razoável e da tolerância entre os povos
liberais e decentes. Por isso, a Sociedade dos Povos não é composta
somente por sociedades liberais, porque está em sua gênese liberal o
conceito e a necessidade de tolerância entre as partes como marca
própria do liberalismo político. Os povos liberais então toleram os
povos decentes a partir da certeza e da constatação de que os últimos
cumprirão, assim como os primeiros, as condições específicas de di-
reito e de justiça a serem escolhidas e seguidas por eles mesmos
como os parâmetros reguladores da Sociedade dos Povos razoavel-
mente justa. Assim, os povos (liberais e decentes) estão prontos a
oferecer uns aos outros e a aceitar termos justos de cooperação que
sejam aprovados por todos na certeza de que todos os honrarão. A
idéia é elaborar princípios de justiça que sejam razoáveis para povos
liberais e para povos decentes. O critério de reciprocidade está mar-
cadamente presente na Sociedade dos Povos como está na sociedade
fechada.
Para Rawls (1999-2001, p. 80-81), “os povos liberais devem tentar
encorajar os povos decentes e não frustrar a sua vitalidade insistindo
coercitivamente em que todas as sociedades sejam liberais”. Rawls
valoriza o liberalismo político por meio do exercício do pluralismo
razoável, que permite o convívio entre povos liberais e povos decen-
tes, mesmo que esse mundo social formado por eles não seja plena-
mente justo.
Leonardo Carvalho Braga
156 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
O mais importante é não insistir em princípios liberais para todos os
povos, pois esta atitude fere a própria concepção liberal de tolerân-
cia. Assim, para Rawls, mais valioso que defender ferozmente prin-
cípios democráticos liberais para todos os povos é preservar a plura-
lidade de manifestações culturais, políticas e sociais dentro dos limi-
tes do razoável que os povos liberais e os povos decentes se propõem
a cumprir. O respeito ao outro, calcado na tolerância daquilo que nos
é diferente, fornece a base de justificação da existência da Sociedade
dos Povos como pensada por Rawls – plural e razoável.
De qualquer modo, mesmo considerando a defesa acalorada de
Rawls em prol do pluralismo razoável entre os povos, é de sua consi-
deração que povos liberais e não liberais partilham de princípios de
justiça iguais. Assim, para Rawls (1999-2001, p. 47-48), os povos
concordariam com os seguintes princípios:
1. Os povos são livres e independentes, e a sua
liberdade e independência devem ser respeita-
das por outros povos;
2. Os povos devem observar tratados e compro-
missos;
3. Os povos são iguais e são partes em acordos
que os obrigam;
4. Os povos sujeitam-se ao dever de não-inter-
venção;
5. Os povos têm o direito de autodefesa, mas
nenhum direito de instigar a guerra por outras
razões que não a autodefesa;
6.Os povos devemhonrar os direitos humanos;
7. Os povos devem observar certas restrições
especificadas na conduta da guerra; e
8. Os povos têm o dever de assistir outros po-
vos vivendo sob condições desfavoráveis que
os impeçam de ter um regime político e social
justo ou decente.
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
157
Em relação à lista de princípios de justiça dos povos, há uma obser-
vação muito interessante. Segundo Rawls, o objetivo a longo prazo
dos povos bem-ordenados é trazer para a Sociedade dos Povos esses
povos onerados que carecem de tradições culturais e políticas, além
de capital humano e material para se tornarem sociedades bem-orde-
nadas. Nesse sentido, Rawls entende que os povos onerados devem
ser assistidos até que disponham de condições suficientes para se tor-
narem membros da Sociedade dos Povos. O dever de assistência
identificado no oitavo princípio de justiça é mais bem especificado
por Rawls como dispositivos para assistência mútua entre os povos
em tempos de fome e seca e, na medida do possível, dispositivos para
assegurar que, em todas as sociedades liberais (e decentes) razoá-
veis, as necessidades básicas dos povos sejam cumpridas (RAWLS,
1999-2001).
Ao defender o dever de assistência dos povos liberais em direção aos
povosnãoliberais,Rawlsclaramentedásubsídiosparaaçõesuniver-
salistas, comprometendo-se com uma postura mais cosmopolita que
comunitarista. Vejamos suas implicações e por que sua proposta não
é satisfatória.
Segunda Problematização:
A Gênese Esquizofrênica do
Sistema de Estados
Nas Relações Internacionais, o debate é desdobrado na perspectiva
daquilo que está ligado ao Estado Nacional. Ora o Estado é concebi-
do como a comunidade política por excelência da sociedade interna-
cional e, portanto, uma esfera comunitária e hermética como exercí-
cio próprio da exclusão do outro pela compreensão que se tem de si
mesmo; ora o Estado é compreendido como o promotor e catalisador
de uma realidade que extrapola suas ações restritas à sua fronteira na-
cionalparatransbordarpelasociedadeinternacional–talvez,mundi-
Leonardo Carvalho Braga
158 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
al; aliás, cosmopolita – o significado e ação concreta a partir de temas
universais.
Toda a discussão, em Relações Internacionais, tem por base esse
confronto de compreensão do mundo como representação de parti-
cularismos que convivem, mas se excluem, e de universalismos que
se engajam como processos e representações de fato globais. Aliás,
isto está na própria origem do sistema westphaliano de Estados. A
criação do sistema de Estados em 1648, ao final da Guerra dos Trinta
Anos, produz uma esquizofrenia nas Relações Internacionais, pois
ao efetivar os seus princípios clássicos – de autodeterminação dos
povos e não-intervenção – promove o surgimento de espaços contra-
ditórios de ação e de interação social. Por um lado, a autodetermina-
ção dos povos propõe garantir a independência de um Estado em re-
lação ao outro no que concerne às suas escolhas individuais – é um
direito de Estado, cada Estado tem esse direito. É um direito que ex-
clui o outro. Por outro lado, o princípio de não-intervenção garante
que nenhum Estado interfira em assuntos internos de outro. Clara-
mente, há uma conexão entre os princípios, mas também fica muito
presente a perspectiva relacional deste em detrimento daquele. Este é
um direto de todos os Estados em conjunto. Só pode existir, assim,
universal – válido para as relações entre eles. É um direito que inclui
o outro.
Em decorrência disto, as Relações Internacionais testemunham essa
esquizofrenia: exclusão/inclusão; particular/universal. Há um direi-
to do Estado e há um direito dos Estados. Aqui, começamos a com-
preender a coexistência de espaços paralelos ou, mais que espaços
paralelos, espaços superpostos em uma percepção de relações interna-
cionais multidimensionais contraditórias, quando não antagônicas.
Aliás, parece ser a contradição a característica mais marcante em
consideração às sociedades politicamente organizadas. A própria
constituição do Estado como comunidade política implica uma con-
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
159
tradição referenciada pela lógica contratualista – uma parte detento-
ra do poder legítimo coercitivo, outra sujeita a ele. No funcionamen-
to do sistema capitalista mundial não é diferente: a contradição é re-
presentada por aqueles Estados que detêm os meios de produção e
aqueles que submetem a sua força de trabalho a eles.
Esse processo de exclusão e inclusão e de formação de um direito do
Estado e de um direito dos Estados, portanto, da sociedade interna-
cional, permanece ao longo do tempo. Encontramos na Organização
das Nações Unidas (ONU) exemplo disto. A ONU tenta prover um
direito internacional, quiçá universal, com a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, em 1948, exatamente trezentos anos após a
criação do Sistema Moderno de Estados em 1648. Todo esse tempo
passou e a contradição permanece. Incrível darmo-nos conta dela!
A complexidade contemporânea exponencia mais ainda essa contra-
dição. Não precisamos ir muito longe. A autodeterminação dos po-
vos é defendida especialmente na década de 1960 quando do proces-
so de descolonização afro-asiático. As coletividades humanas de-
mandavam a sua própria comunidade política, que com todas as suas
peculiaridades se encaixava na fórmula representativa de Estado Na-
cional. Trinta anos depois, as Relações Internacionais testemunha-
ram o fim da Guerra Fria, o desmantelamento da União Soviética e a
desagregação da Iugoslávia. Novamente, a demanda social por uma
organização política das coletividades humanas era voltada para a
criação de Estados Nacionais. Mesmo a divisão do mundo na Guerra
Fria entre Estados Unidos e União Soviética tem por base a formação
de dimensões imperiais e, assim, tem uma base, uma origem estatal –
ouimpériosoviéticoouimpérionorte-americano.Oprocessoexpan-
sionista é estatal. O peso do nacional, do particular, da necessidade
de diferenciação em relação ao outro é muito presente nas Relações
Internacionais.
Por outro lado, se recortarmos o mesmo período, podemos verificar
movimentos e relações não somente internacionais, mas transnacio-
Leonardo Carvalho Braga
160 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
nais e globais. As crises do petróleo de 1973 e 1979 são prova de que
não há limites entre os Estados Nacionais na determinação dos efei-
tos de acontecimentos locais no mundo. A globalização na década de
1990, como derivação da interdependência da década de 1970, dese-
nharelaçõesinternacionaisglobaiscomadefesadevaloreseordena-
mentos em torno do binômio liberal capitalismo-democracia. Confe-
rências são realizadas para o debate de temas universais.
1
Há uma concepção de mundo interligado, comum e que vive e enfren-
ta situações comuns que exigem, por sua vez, soluções comuns pensa-
das em conjunto. A lógica estatal não consegue prover uma ação desse
tipo. A esquizofrenia evidencia-se. A recusa norte-americana em assi-
nar o Tribunal Penal Internacional (TPI) ou o Protocolo de Kyoto, por
exemplo, é representativa dela. A atmosfera não reconhece fronteiras
nacionais. Devo eu, Estado Nacional, subordinar-me a meu presiden-
te, a um Tribunal Penal Internacional? Que legitimidade possui um
Tribunal assim? Deve a emissão de gases na atmosfera ser freada, ao
menos, em boa parte, diminuída? Quem responde por isso? Sim, pro-
teção ambiental sugere preservação de direitos humanos – o ar que
respiramos, a água que bebemos, o solo em que plantamos.
Temos, ao que parece, um problema gerado pelo Estado, mas que o
próprio Estado não consegue resolver do ponto de vista da ação esta-
tal, porque a ação estatal é desde Westphalia uma ação de direito do
Estado de agir em função da sua autodeterminação. Mas, ora, temos
um problema universal. O Estado gera problemas que não consegue
resolver. Significação estatal e universal coexistem, interesses ex-
cluem-se, mas, ao mesmo tempo, demandam, ao contrário, inclusão,
universalismo – disto, temos os direitos humanos como refém.
Não nos parece muito diferente o caso dos refugiados. O refugiado é
aquele que, em geral, teve que sair de seu Estado de origem por uma
situação de guerra e que é acolhido por outro Estado. Quem lhe dá di-
reitos? Respostas (ou perguntas): o Estado de origem, envolvido em
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
161
um caos político-social de guerra ou o Estado de destino, que não
confere a ele o mesmo rol de direitos que a seus cidadãos? É o refu-
giado um apátrida errante condenado a nunca mais gozar de uma na-
cionalidade e de uma cidadania plena? O Estado cria este problema,
ou esta condição, mas não consegue resolvê-lo. Só uma perspectiva
universalista pode prover soluções para problemas deste tipo, que
transbordam as fronteiras do Estado. Contudo, apesar de haver uma
clareza de que existem problemas materiais à nossa volta, o debate
sobreauniversalizaçãodedireitoshumanosaindapareceindefinido.
AinterdependênciaexplicitaaporosidadedosEstadosnacionaiseim-
possibilita-os de resolverem, cada um independentemente do outro,
crises e problemas que extrapolam a capacidade de uma solução esta-
tal, ou mesmo interestatal. A globalização tem favorecido um proces-
sodecosmopolitanização(BECK,2002),ouseja,umprocessodeglo-
balização interna às sociedades nacionais, que transforma a natureza
do social e do político além da consciência e da identidade dentro des-
tas sociedades a partir de um processo dialógico. Alguns problemas
somente podem ser resolvidos por uma ação coletiva dotada de uma
organicidade só mais complexa do que aquela das Relações Internaci-
onais (entre nações/Estados). Isto porque os efeitos das crises e dos
problemas são globais e a sua solução também o deve ser. A participa-
ção de atores outros que não o Estado passa a ser fundamental nesse
sentido, e compreender o conjunto de direitos que demandamos como
direitos universais justifica e legitima uma ação universal.
Não é à toa que a vertente de Teoria Normativa de Relações Interna-
cionais é revitalizada no início dos anos 1990. E é neste momento
que o debate entre cosmopolitas e comunitaristas ganha fôlego nas
Relações Internacionais, exigindo que os intelectuais repensem a na-
tureza destas relações. No entanto, parece ela mesma não ser sufici-
ente como resposta aos problemas e dilemas contemporâneos.
Leonardo Carvalho Braga
162 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
Parece-nos que, apesar de ser mais razoável que as completas inclu-
são ou exclusão propostas pelo cosmopolitismo e pelo comunitaris-
mo, respectivamente, a proposta rawlsiana não consegue escapar da
esquizofrenia das Relações Internacionais. O modelo de Sociedade
dos Povos talvez favoreça, inclusive – a partir do dever de assistência
– um pouco mais o processo de inclusão de cunho cosmopolita (ou
intervencionista! – pelo dever de assistência).
Continuamos com a errante configuração das Relações Internacio-
nais dividida entre direitos do Estado e direitos dos Estados. Se cada
Estado é, no pluralismo razoável rawlsiano, dotado de uma capaci-
dade de admitir para si crenças quaisquer sem influência de outros
Estados em nome da garantia do próprio liberalismo pela possibili-
dade de escolha livre, temos aí a própria compreensão do princípio
clássico westphaliano de autodeterminação dos povos como um di-
reito do Estado – de cada Estado. Por outro lado, a defesa do dever de
assistência apresenta-se como o traço universalista, como direito dos
Estados – de todos os Estados. O que queremos dizer é que os Esta-
dos têm para si um direito exclusivo de autodeterminação, mas estão
todos igualmente sujeitos ao dever de assistência. Livres, por um
lado; sujeitados, por outro. Particularizados, por um lado; universali-
zados, por outro. Curiosamente, o princípio de não-intervenção é
transformado em princípio de intervenção pelo dever de assistência,
mas isto não o faz perder o seu aspecto de universalidade, ao contrá-
rio, reforça-o.
Compreendemos a proposta de O Direito dos povos, de Rawls
(1999-2001) como uma alternativa a dois extremos auto-excluden-
tes. Neste sentido, a contribuição rawlsiana é bastante significativa.
Porém, ainda nos parece insuficiente, porque perpetua uma esquizo-
frenia de mais de 350 anos, pois mantém viva uma lógica de exclu-
são, quando formamos a Sociedade dos Povos e excluímos dela ou-
tros povos que não estejam prontos para fazer parte dela. Ainda esta-
mos em uma lógica westphaliana, de justificação da ação política cir-
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
163
cunscrita em um espaço, quando os problemas se dimensionam em
espaços múltiplos, superpostos e interligados. Resta-nos a pergunta:
continuam o Estado e o sistema de Estados sendo as referências váli-
das de comunidade política nacional e internacional ou devemos
pensar alternativas para eles?
Repensando as Relações
Internacionais pelo
Pós-modernismo – Uma
Aproximação
Adificuldadedeestabelecerumparâmetrodeaçãoqueconsigacom-
patibilizar as vertentes comunitarista e cosmopolita sugere pensar as
Relações Internacionais por outro viés. A construção teórica
pós-moderna ganha força, nesse sentido, ao compreender que aquilo
que é moderno – o Estado Nacional – não responde satisfatoriamente
às demandas globais mais urgentes, porque estas fazem escapar das
mãos dos Estados a possibilidade de as satisfazer. Cabe-nos repensar
as Relações Internacionais.
Vejamos algumas observações que podemos fazer a título de aproxi-
mação com a teoria pós-moderna. Fiquemos tão somente com a pers-
pectiva da cidadania e dos vínculos sociais (estatais/não-estatais).
Percebemos que, enquanto estivermos presos a uma lógica estatal,
que impõe delimitações na solução de problemas globais, não conse-
guiremos agir de outro modo para solucionar estes problemas.
O sistema de Westphalia serviu apenas para “assegurar a persistên-
cia, a saliência e a centralidade do problema da diferença na socieda-
de internacional” (BLANEY; INAYATULLAH, 2000, p. 5), o que
reforça a identidade da borda para dentro do Estado e exponencia a
diferençadequemestáforadele,criandoumalógicadeexclusãoede
conflito. Para Blaney e Inayatullah (2000), nós somos ainda reféns
do Estado e da sua lógica westphaliana. Nossa compreensão se dá
Leonardo Carvalho Braga
164 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
pela perpetuação da diferença, que impossibilita visualizar oportuni-
dades de engajamento mais global no combate a questões que extra-
polam a realidade estatal.
Não vivemos mais em um ambiente estatal ou interestatal. É preciso
repensar, por exemplo, o conceito de cidadania, algo estatal, produ-
zido artificialmente pelo Estado (ele mesmo também produzido na
história), relacionado à manutenção simbólica do Estado pelo geren-
ciamentodenarrativashistóricasedeespaçoterritorial,masquehoje
não corresponde mais à noção de mundo que temos.
O crescente movimento de pessoas, uma cres-
cente diáspora global – refugiados, exilados,
estrangeiros ilegais, trabalhadores migrantes e
intelectuais – têm incentivado formas pós-na-
cionais e não territoriais de filiação e solidarie-
dade. De modo crescente, populações filiam-se
translocalmente – em outros tempos e espaço.
[...] Uma vez que reconhecemos as complexi-
dades da locação da cidadania no tempo, uma
vez que suplementamos imaginações espaciais
com temporalidade, um rico conjunto de arti-
culações, gêneros e meios podem desafiar o
tempo do Estado (SHAPIRO, 2000, p. 5-6, tra-
dução nossa).
É preciso repensar o próprio significado da comunidade política,
algo também artificial, que impõe uma noção de “particularidades
em comum” (SHAPIRO, 2000). A partir de então, podemos pensar a
aderência individual/social à comunidade política por uma concep-
ção dinâmica de “associação e desassociação”, que possibilite o re-
conhecimento de modos de presença incomensuráveis (SHAPIRO,
2000). Não há mais o estatal. Há representações diversas, atreladas
por condições comuns de exposição ao internacional, ou melhor, ao
global. E é essa condição que faz com que repensemos as relações
humanas que tenham por base não a lógica do estatismo, mas que ali-
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
165
mente compreensões diferentes sobre o agir internacional, motivado
por situações reais e demandas sociais não-estatais.
Considerações Finais
Buscamos neste artigo apresentar a questão dos direitos humanos do
ponto de vista do debate cosmopolitismo x comunitarismo como
umaraizparaumadiscussãoaindamaiorqueesta–adaprópriacom-
preensão das Relações Internacionais pela sua representação política
tradicional –: o Estado Nacional Moderno.
Acompanhamos brevemente tentativas de solucionar o problema
dos direitos humanos nas Relações Internacionais pelo pensamento
de Charles Beitz e de John Rawls, favorecendo, respectivamente, um
viéscosmopolitaeumviésconciliadordasduasvertentes.Vimos,no
entanto, que as propostas não satisfazem as demandas atuais de um
mundoquenãomaiséestatalouinterestatalequeaesquizofreniadas
Relações Internacionais se mantém entre o que é estatal e o que é
não-estatal.
Isso nos fez repensar as Relações Internacionais, aproximando-nos
do viés pós-moderno. De modo ainda introdutório, tentamos apontar
minimamente como a teoria pós-moderna pode favorecer esse exer-
cício de repensar as Relações Internacionais e enfrentar sua condição
esquizofrênica, tarefa esta à qual nos dedicamos.
Leonardo Carvalho Braga
166 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
Nota
1. Algumas das conferências realizadas no âmbito da Organização das Nações
Unidas (ONU): Cúpula Mundial sobre a Criança (1990), Conferência das Na-
ções Unidas para o Meio Ambiente (1992), Conferência Internacional sobre Di-
reitos Humanos (1993), Conferência Internacional sobre População e Desen-
volvimento (1994), IV Conferência Mundial sobre a Mulher (1995), Cúpula
para o Desenvolvimento Social (1995) e Cúpula do Milênio (2000).
Referências
Bibliográficas
BECK, Ulrich. The cosmopolitan societies and its enemies. Theory, Culture
& Society, v. 19, p. 1-2, 2002.
BEITZ, Charles. Political theory and International Relations. Princeton:
Princeton University Press, 1979.
BLANEY, David; INAYATULLAH, Naeem. The westphalian deferral. Inter-
national Studies Review, v. 2, n. 2, 2000.
MORRICE, David. The liberal-communitarian debate in contemporary politi-
cal philosophy and its significance for International Relations. Review of
International Studies, v. 26, 2000.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução: Almiro Pisetta e Lenita Este-
ves. São Paulo: Martins Fontes, 1971-2000.
. O liberalismo político. Tradução: João Sedas Nunes. Lisboa: Editorial
Presença, 1993-2001.
. O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 1999-2001.
SHAPIRO, Michael. National times and other times: re-thinking citizenship.
Cultural Studies, n. 14, v.1, 2000.
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
167
Resumo
O Debate Cosmopolitismo x
Comunitarismo sobre Direitos
Humanos e a Esquizofrenia das
Relações Internacionais
A consideração do Estado Nacional como o ator privilegiado nas Relações
Internacionais a partir da criação do Sistema de Westphalia apresenta uma
esquizofrenia congênita. Os princípios clássicos das Relações Internacio-
nais – autodeterminação dos povos e não-intervenção – sugerem, por um
lado, um direito de cada Estado se autodeterminar soberanamente e, por ou-
tro, um direito dos Estados de não sofrerem intervenção dos outros Estados.
O primeiro direito possui uma natureza mais excludente; o segundo, mais
includente. Só o próprio Estado garante a sua autodeterminação e, assim,
exclui os outros; ao passo que a não-intervenção depende de todos os Esta-
dos a respeitarem – isso inclui os outros. O debate acerca dos direitos huma-
nos nas Relações Internacionais segue a mesma lógica. Cosmopolitas de-
fendem uma inclusão; comunitaristas, uma exclusão. São direitos que se ex-
cluem e fazem das Relações Internacionais algo esquizofrênico. Rawls ten-
ta resolver este dilema com o seu “Direito dos Povos”, mas fracassa. A pro-
posta talvez então seja pensar Relações Internacionais por outro viés, a par-
tir do pós-modernismo, pelo qual pensamos a satisfação de demandas glo-
bais humanas que ultrapassam as fronteiras criadas em Westphalia por ou-
tra conformação política que não o Estado Nacional.
Palavras-chave: Direitos Humanos – Cosmopolitismo – Comunitarismo
– Estado Nacional
Leonardo Carvalho Braga
168 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no
1, jan/abr 2008
Abstract
The Cosmopolitanism x
Comunitarianism Debate on
Human Rights and the
Esquizofreny of the International
Relations
Considering the Nation State as the privilegied actor in International
Relations since Westphalian System points a congenital esquizofreny. The
International Relations classical principles – self-determination and
non-intervention – sugests, by one side, a right of each State
self-determinate itself sovereingtly and, by other side, a right of not being
object of intervention. The first right excludes, the second, includes. Just
the State guarrantees its self-determination and doing so, excludes the
others; meanwhile the non-intervention depends on the other States respect.
The debate about human rights in International Relations follows the same
logic. Cosmopolitans defends inclusion; comunitarians, exclusion. These
are rights that exlcude each other and make the International Relations
something esquizofrenic. Rawls tries to work out this dilemma, but he fails.
The proposal may be thinking International Relations from another point of
view, from post-modernism, by which we think the satisfaction of human
global demands that overcome the national boundaries made in Westphalia
by a political configuration other than the Nation State.
Keywords: Human Rights – Cosmopolitanism – Comunitarianism –
Nation State
O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo
sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia...
169

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DIREITOS HUMANOS E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

  • 1. Considerações Iniciais Propomos aqui um exercício de se pensar o que são as Relações Internacionais e propomos fazê-lo do ponto de vista do direito inter- nacional, em especial dos direitos humanos como objeto da filosofia política. Nossa observação é a de que as Relações Internacionais são caracterizadas por uma gênese esquizofrênica, quando, pelo sistema westphaliano de Estados, a exclusão e a inclusão são práticas artifi- ciais e problemáticas. 141 * Artigo recebido e aprovado para publicação em setembro de 2007. ** Doutorando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Uni- versidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio), coordenador e professor da Graduação em Rela- ções Internacionais dos Institutos Superiores de Ensino La Salle (UniLaSalle). E-mail: leonardo_braga @hotmail.com. CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 30, no 1, janeiro/abril 2008, p. 141-169. O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia das Relações Internacionais* Leonardo Carvalho Braga**
  • 2. A questão pontual de que trata este trabalho diz respeito aos direitos humanos como uma derivação de direitos inerentes à própria huma- nidade e direitos humanos elaborados em contextos sociais espa- ço-temporalmente definidos. O debate sobre o universal e o particu- lar concernente aos direitos humanos é, assim, o centro de nossa atenção, e nele a discussão destas categorias como constructos do real e do ideal. Compreendemos haver um problema ainda não resolvido sobre o re- ferido tema, mas não pretendemos resolvê-lo, se não problemati- zá-lo, especialmente porque nos parece que o cerne do problema não está na compreensão dos direitos humanos, mas na compreensão do que são as Relações Internacionais. Primeira Problematização: O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo nas Relações Internacionais A discussão dos direitos humanos nas Relações Internacionais e, de modo especial, a discussão da sua universalização encontram no de- bate cosmopolitismo x comunitarismo sua expressão maior de pro- blematização e de tentativa de respostas. Este debate, porém, even- tualmente, conduz a discussão dos direitos humanos mais a uma si- tuação inconclusiva, em função do grau de auto-exclusão que as duas correntes de pensamento se impõem, do que a uma perspectiva de proposta, pelo menos teórica, que favoreça uma compreensão conci- liadora dos direitos humanos. A Teoria Normativa de Relações Internacionais propõe-se exata- mente a fornecer possibilidades teóricas sobre o respectivo debate, mesmo que sem alcançar uma resposta definitiva para esta proble- mática. Leonardo Carvalho Braga 142 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 3. O debate nas Relações Internacionais entre cosmopolitas e comuni- taristas encontra no pensamento do filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002), ou mais propriamente no uso que alguns estudi- osos fazem de suas idéias, a defesa da postura cosmopolita. O pró- prio Rawls entra no debate posteriormente, oferecendo uma respos- ta. Vejamos como isto ocorre e estejamos atentos desde já aos sinais de esquizofrenia das Relações Internacionais. Ao longo dos últimos quarenta anos, desde o lançamento de Uma teo- ria da justiça (RAWLS, 1971-2000), passando por O liberalismo político (RAWLS, 1993-2001) e até por O direito dos povos (RAWLS,1999-2001),Rawlstemsidoumadasprincipaisreferências na discussão sobre justiça dentro do debate entre cosmopolitas e co- munitaristas nas Relações Internacionais. Em torno dele, o debate ga- nha proporções tais que extrapolam e, por vezes, provocam o uso por adaptação de suas idéias. O referido debate apresenta os direitos humanos como (1) resultado de um conjunto de particularidades e de práticas exclusivas pela cir- cunscrição espaço-temporal das tradições, da cultura e da moral de um determinado povo em contraposição a uma (2) prática inclusiva que considera não particularismos excludentes, mas sim a própria perspectiva humanista e universalista dos direitos humanos como objeto de reflexão e de representação da humanidade como um todo. De qualquer modo, o que alimenta especialmente o debate é a com- preensão do que seja a referência moral nas Relações Internacionais – ou os povos, para não dizer Estados, ou os indivíduos. A quem se deve o dever moral? Que referência exige de nós este dever? Neste sentido, o trabalho de John Rawls vem contribuir para o debate pela tentativa de oferecer uma posição ponderada e conciliadora so- bre a possibilidade da universalização dos direitos humanos. A pro- posta rawlsiana compõe-se da compreensão de que é preciso res- guardar os povos em suas peculiaridades, mas que, ao mesmo tempo, O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 143
  • 4. é possível e preciso garantir os direitos humanos pelo seu próprio significado moral e prático à medida que estes mesmos povos se sin- tam técnica, jurídica e, claro, moralmente capazes de subscrever um conjunto de direitos humanos respeitados e garantidos por eles após um exercício de reflexão sobre tais direitos. A resposta rawlsiana nos dá – à primeira vista – um alento e uma possibilidade de pensar a con- cretização de direitos humanos universais de modo viável e seguro naconsideraçãodequecompomos–nós,povos–umconjuntodeco- letividades humanas que se relacionam, construindo, vivenciando e partilhando as próprias Relações Internacionais. No entanto, como veremos, é exatamente por isso que Rawls não consegue superar o desenho esquizofrênico das Relações Internacionais na compreen- são de que existem direitos do Estado e direitos dos Estados. Apresentarei brevemente o debate e, então, compreenderemos Rawls nele. Para os liberais (MORRICE, 2000), o indivíduo possui uma essência ou valor anterior à sociedade. Há uma precedência ontológica do in- divíduo em relação ao meio social. Para isto, compreende-se o indi- víduo como uma abstração, algo desgarrado do contexto históri- co-social, dotado de uma significação própria, independentemente da sociedade em que vive. Assim, os liberais tendem a valorizar o in- dividualismo contra o coletivismo. A idéia é preservar o indivíduo como ser livre para fazer escolhas em um ambiente político liberal e não considerá-lo como produto do meio, sem expressão individual própria para a condução de sua vida. Os princípios de justificação que seguem assumem, assim, uma base neutra, dita universal. Neu- tra,universale,portanto,imparcialeobjetiva,quegaranta,apartirda compreensão do homem como ser anterior à sociedade e universal, a elaboração e a defesa de princípios universalmente válidos. Se so- mos todos iguais onde quer que estejamos, é preciso garantir princí- pios e ordenamento social universais. Daí advêm direitos universais comorespostamesmoànaturezahumana.Ojusnaturalismodospen- Leonardo Carvalho Braga 144 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 5. sadoresmodernosestárecuperadoparafazerdoindivíduoumserdo- tado de uma natureza universal. Ao contrário, os comunitaristas (MORRICE, 2000) apontam a pre- cedência ontológica da sociedade em relação ao indivíduo. Não é possível, agora, compreender o homem como esse ser abstrato, es- sencial, inexistente. Para os comunitaristas, o homem é um ser soci- al, dotado de características sociais como história, cultura, valores e princípios comuns, constituído em uma determinada relação espa- ço-temporal. O homem existe concretamente como fruto de contra- dições e existências históricas. A essência do homem não pode ser aceita como fonte de legitimação de valores, princípios e direitos, porque não há essência humana, mas existência concreta, cultural, histórica, geográfica, ideológica, valorativa. Nenhuma realidade so- cial pode sustentar-se enquanto representação coletiva senão por uma existência assim. Advém disso o relativismo cultural, a compre- ensão de diferenças e a exclusão de interferências outras que não as da respectiva sociedade. Os Princípios de Justiça em Rawls e a Formulação de Direitos Em Uma teoria da justiça, Rawls (1971-2000) define a sociedade como uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas. Além disso, para Rawls, estas regras refletem um sistema de coope- ração entre as pessoas, caracterizando a sociedade como “um empre- endimento cooperativo que visa vantagens mútuas” (RAWLS, 1971-2000, p. 4). Assim, a sociedade rawlsiana é, por natureza, coo- perativa. As pessoas compreendem que a cooperação social possibi- lita que elas tenham uma vida melhor individualmente do que teriam O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 145
  • 6. caso não houvesse tal cooperação e se dependessem de seus próprios esforços e recursos para atingir os seus objetivos. A sociedade enquanto esse empreendimento cooperativo, no entan- to, não está isenta de conflitos. As pessoas concordam que é melhor para elas individualmente fazerem parte de um meio cooperativo, mas não necessariamente concordam quanto à distribuição de bene- fícios produzidos pela cooperação social, de modo que, acredita Rawls, cada uma preferirá obter para si uma parcela maior, a uma menor, destes benefícios. A discussão sobre a justiça em John Rawls nasce, portanto, da necessidade de se estabelecer um parâmetro dis- tributivodosbenefíciosobtidospormeiodacooperaçãosocialcomo qual as pessoas concordem. Pensar a elaboração e efetivação de direitos na sociedade implica pensar a natureza da sociedade e dos direitos e a distribuição destes entre os homens. Partindo da consideração do homem como um ser econômico, temos que as relações sociais podem estar sujeitas a uma ordem eventualmente conflitiva em função da disputa de bens que os homens desejam desfrutar. Para resolver o conflito sobre a distribuição dos bens, Rawls (1971-2000) cria a sua alegoria do contrato social com o objetivo de formular os princípios de justiça que regularão a vida em sociedade e que servirão como parâmetro distributivo dos benefícios sociais. Na alegoria do contrato social rawlsiano, os homens encontram-se na chamada posição original, que corresponde ao estado de natureza das teorias contratualistas tradicionais. De acordo com a posição ori- ginal, que é meramente hipotética, os homens não sabem, entre ou- tras coisas, que lugar ocupam na sociedade, se são ricos ou pobres, qual a sua classe e seu status social. Além disso, não têm informação alguma a respeito de seus dotes e habilidades naturais, nem sobre suas capacidades físicas e mentais, tais como força ou deficiência fí- sica, inteligência ou ausência desta. Leonardo Carvalho Braga 146 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 7. Essa posição original é assim caracterizada pelo que Rawls denomi- na de véu de ignorância, ou seja, pela falta de informação que os ho- mens possuem a respeito de si mesmos e dos outros. É sob o véu de ignorância que os homens escolhem os princípios de justiça e é ele que garante que ninguém será favorecido ou desfavorecido quando da escolha destes, em função da sorte natural, que dispõe dotes e ha- bilidades às pessoas, ou da sorte social, que identifica as pessoas nes- ta ou naquela posição mais beneficiada socialmente. É importante tratar aqui da definição de bens sociais primários, por- que é precisamente em relação a eles que serão aplicados os princípi- os de justiça. Rawls define esses bens de maneira mais ampla, como coisas que se supõe que um homem racional deseje, não importando mais o que ele deseje. Rawls considera que as pessoas desejam ter uma quantidade maior a uma menor destes bens, independentemente dos seus planos de vida. Por isso mesmo, eles são chamados de bens sociais primários. É a partir da posse destes bens que as pessoas acreditam poder realizar seus planos de vida com maior sucesso. Rawls caracteriza estes bens amplamente, como direitos, liberdades e oportunidades, assim como renda e riqueza. Além disso, Rawls (1993-2001, p. 181-182) procura defini-los, mais especificamente, em cinco grupos: a. direitos e liberdades básicos; b. liberdade de circulação e livre escolha da ocupação face a um quadro de oportunidades plurais; c. poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica; d. rendimento e riqueza; e, por fim, e. as bases sociais do respeito próprio ou au- to-respeito. O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 147
  • 8. Os princípios de justiça são escolhidos para regular a distribuição destes bens sobre as expectativas comuns das pessoas, sobre o que elas individualmente consideram relevante dispor enquanto bem so- cial, que as permitam perseguir e realizar os seus planos de vida. A partir destas observações, Rawls considera que as pessoas esco- lhem dois princípios de justiça. O primeiro garante um sistema de li- berdades básicas para todos, igualdade eqüitativa de oportunidades e uma divisão igual da renda e da riqueza. O segundo é decorrente do primeiro. Considerando que algumas pessoas, que não se sabe quem são, são menos favorecidas que outras pela sorte natural ou social, é compreensível que, no momento de elaboração do contrato, seja es- colhido um princípio que as proteja dessas contingências naturais e sociais. Assim, as pessoas se dão conta de que, quando caírem os véus de ignorância que as cobrem, algumas delas se encontrarão em uma posição de desvantagem em relação às outras. Deste modo, as pessoas concordam, então, em admitir que tais desigualdades serão aceitas se, e somente se, forem vantajosas para os menos favorecidos da sociedade. Os dois princípios de justiça são apresentados por Rawls (1993-2001, p. 277): a. Cada pessoa tem um direito igual a um es- quema plenamente adequado de iguais liberda- des básicas que seja compatível com um esque- ma idêntico de liberdades para todos. b. As desigualdades sociais e econômicas de- vem satisfazer duas condições: por um lado, têm de estar associadas a cargos e posições abertos a todos segundo as circunstâncias da igualdade eqüitativa de oportunidades; por ou- tro, têm de operar no sentido do maior benefí- cio possível dos membros menos favorecidos da sociedade. Leonardo Carvalho Braga 148 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 9. A justiça rawlsiana consiste nessa premissa de compensação, em função mesmo da defesa do liberalismo. As compensações têm o pa- pel de manter plenamente ativas as liberdades das pessoas menos fa- vorecidas, porque preservam as pessoas em uma condição de igual- dade política e social enquanto agentes plenamente capazes de bus- car realizar os seus planos de vida dentro das possibilidades existen- tes, com as liberdades, as oportunidades e o sentimento de au- to-respeito. A crítica dos comunitaristas é de que a elaboração ideal do contrato social rawlsiano e a escolha dos princípios de justiça não correspon- dem à realidade social. Não há um momento em que os homens se re- únem e decidem que princípios escolher. Os homens nascem. Não conseguimos identificar o momento em que os homens criaram os valores que antecedem a existência da sociedade. Pensar os homens como dispostos em uma posição inicial e cobertos pelo véu de igno- rância é uma abstração tamanha que se desgarra muito daquilo que existencialmente somos. Além disso, a crítica comunitarista não se dá somente ao construti- vismo rawlsiano, mas à própria natureza dos princípios que são esco- lhidos. O contrato social rawlsiano escolhe princípios liberais como se os homens em qualquer momento da história e em qualquer lugar, uma vez dispostos na posição original, fossem escolher princípios de tal natureza – liberal. Isto significa simplesmente desconsiderar que há outras visões de mundo, outras histórias, outras ideologias, que de fato se realizam em contextos históricos definidos. A Aplicação do Pensamento de Rawls nas Relações Internacionais Charles Beitz é o principal autor das Relações Internacionais a utili- zar o arcabouço teórico de Rawls para tratar da justiça internacional e O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 149
  • 10. da possibilidade de se pensar direitos humanos universais. Oito anos após o lançamento de Uma teoria da justiça (RAWLS, 1971-2000), Beitz lança o seu Political theory and International Relations (BEITZ, 1979), valendo-se dos pressupostos de Rawls e criando o cosmopolitismo ralwsiano, ainda que o próprio Rawls somente se te- nha debruçado sobre o tema de modo definitivo vinte anos depois, com o lançamento de O direito dos povos (RAWLS, 1999-2001). A defesa de princípios cosmopolitas feita por Beitz verifica-se a par- tir da discussão de alguns pontos como cooperação social e justiça, interdependência, recursos naturais e talentos que relacionam as so- ciedades nacionais e a sociedade internacional. Em uma primeira assertiva, Beitz considera que, tal qual ocorre para os homens, para Rawls, eles nascem em posições sociais diversas e isto pode afetar as condições para a realização de seus planos de vida, e assim também ocorre com os Estados. Os Estados Nacionais não escolheram nascer mais, ou menos, ricos. Isto é resultado de uma lo- teria natural. Para Beitz, essa é uma distribuição moralmente arbitrá- ria e deve então ser revista porque a distribuição aleatória de recursos naturais influencia a possibilidade de determinado Estado satisfazer as demandas e necessidades de sua população (BEITZ, 1979). A pro- posta é aplicar as idéias de posição original e de véu de ignorância para as Relações Internacionais e criar, então, um sistema distributi- vo global de riqueza. Beitz entende que os recursos naturais de que os Estados dispõem não são adquiridos por herança genética, mas por acaso, e que estes recursos não estão presos aos Estados. Essa situação deve levar à compreensão de que o padrão de justiça exige uma distribuição dos recursos naturais entre os Estados para que nenhum deles fique sujei- to à má sorte. Para Beitz (1979, p. 138, tradução nossa), Recursos naturais são arbitrários no sentido de que não são merecidos. [...] Os recursos estão Leonardo Carvalho Braga 150 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 11. “lá fora”, disponíveis ao primeiro que os pegar. [...] Em um mundo de escassez, a apropriação de recursos naturais pode deixar alguns compa- rativamente em desvantagem em relação aos outros. Aqueles privados sem justificativa dos recursos escassos também desejam realizar seus planos de vida e disso advém a distribui- çãoequitativa destes recursosentre os Estados. A partir de então, Beitz defende, como faz Rawls, a aplicação de princípios de justiça entre os Estados que possam corrigir essa arbi- trariedademoralnaofertaaleatóriaderecursosnaturais.Idéiaquefa- vorece isto é a da interdependência entre os Estados. Mesmo que os Estados sejam formalmente independentes, suas relações apontam umgraudedependênciamútuabemacentuado,oquelevariaosEsta- dos a cooperarem entre si: Se a evidência de interdependência global eco- nômica e política mostra a existência de uma estrutura global de cooperação social, nós não devemos ver fronteiras nacionais como dota- das de uma significação moral. Desde que as fronteiras não delimitem a cooperação interna- cional, elas não podem marcar os limites das obrigações sociais. [...] Se as sociedades do mundo são agora abertas, sistemas interdepen- dentes completos, o mundo como um todo se encaixa na compreensão de cooperação social e o argumento para os dois princípios (de Rawls) se aplica agora em âmbito global (BEITZ, 1979, p. 151, tradução nossa). Assim, as fronteiras nacionais já não têm o papel de delimitação da movimentação de processos como comércio internacional, difusão tecnológica, comunicação etc. A rede de relacionamentos internaci- onais compreende a cooperação entre os Estados para o seu próprio êxito. Para tanto, acabar ou diminuir o peso das arbitrariedades natu- rais na distribuição de recursos entre os Estados favorece o progresso O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 151
  • 12. das Relações Internacionais e a implementação de uma idéia de justi- ça distributiva e não arbitrária. Nem Cosmopolita, nem Comunitarista: A Proposta de Rawls em O Direito dos Povos Após quase trinta anos, Rawls lança o seu O direito dos povos (RAWLS, 1999-2001). Nesta obra, Rawls trata da justiça nas Rela- ções Internacionais, aplicando a escolha de princípios de justiça ago- ra no âmbito internacional. Boa parte de seu trabalho vem como res- posta ou adequação a posições cosmopolitas que outros teóricos de Relações Internacionais assumiram a partir da compreensão de Uma teoria da justiça (RAWLS, 1971-2000), especialmente Charles Beitz (1979). No início de O direito dos povos, Rawls (1999-2001) afirma que seu conteúdo é desenvolvido a partir de uma idéia liberal de justiça que é similar, porém mais geral, àquela elaborada em suas duas obras ante- riores (Uma teoria da justiça e O liberalismo político). Rawls pen- sa agora o contrato social no plano internacional, valendo-se das idéias e conceitos fundamentais desenvolvidos em torno da justiça como eqüidade e do liberalismo político para elaborar uma Socieda- de dos Povos razoavelmente justa. A escolha por povos em vez de Estados possui especial significado na teoria rawlsiana. Para Rawls, os Estados ainda são considerados atores racionais preocupados com o poder e movidos sempre por seus interesses básicos. Desta forma, o ambiente internacional é ca- racterizado por uma anarquia em que os Estados lutam entre si por poder, glória e honra, tentando garantir cada qual uma posição me- lhor que a do outro. Leonardo Carvalho Braga 152 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 13. Naturalmente, a concepção dos Estados enquanto atores racionais preocupados com o poder e com a persecução de seus interesses bási- cos não é adequada aos atores que Rawls pensa para a sua Sociedade dos Povos, em que povos satisfeitos convivem em um ambiente de paz democrática, sem maiores ambições que ponham em risco a esta- bilidade da sociedade por eles formada. Segundo Rawls, os povos não se limitam a serem racionais como os Estados, mas são, além de racionais, razoáveis. A razoabilidade dos povos faz com que eles não sejam movidos unicamente pela racionalidade egoísta dos Estados, como tradicionalmente concebido. Diferente dos autores liberais que aplicam nas Relações Internacio- nais a sua teoria da justiça tal como ela é pensada para a sociedade fe- chada, acredita que pode haver uma Sociedade dos Povos, composta por povos bem-ordenados que são os povos liberais razoáveis (de- mocracias constitucionais liberais) e povos decentes. Esta diferença é muito importante porque relativiza o liberalismo rawlsiano ao pos- sibilitar a coexistência de povos com visões de mundo diferentes. Os povos liberais são identificados por Rawls (1999-2001) a partir de três características. A primeira delas trata da representação de um governo constitucional razoavelmente justo cujo povo detém de modo eficaz o seu controle político e eleitoral, tem os seus interesses fundamentais defendidos e está amparado por uma Constituição es- crita ou não escrita. A segunda característica dos povos liberais trata de afinidades comuns às quais estão ligados os seus cidadãos. Tais afinidades comuns configuram a própria nacionalidade do povo quando expressa a partilha entre seus cidadãos, por exemplo, da lín- gua, da religião, dos limites geográficos, da história nacional e da identidade de raças. A terceira trata do seu caráter moral, que permite que os povos liberais sejam razoáveis e racionais, similarmente às pessoas, no caso interno (RAWLS, 1993-2001, p. 46). O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 153
  • 14. Rawls caracteriza também os povos decentes, atribuindo a eles dois critérios que devem ser observados para que os mesmos façam parte da Sociedade dos Povos. O primeiro critério estabelece que os povos decentes não têm objetivos agressivos e reconhecem que para alcan- çar os seus interesses legítimos perante os outros povos devem va- ler-se da diplomacia, do comércio e de outros meios pacíficos. Além disso, mesmo considerando que os povos decentes reconheçam para sicomorelevanteopapeldeumadoutrinaabrangentequalquersobre a sua estrutura de governo, eles permitem e respeitam com algum grau de liberdade a existência de doutrinas diversas entre seus cida- dãosetambémpreservamaindependênciaeaordempolíticaesocial dos outros povos. O segundo critério, de acordo com Rawls, afirma que os povos de- centes, a partir da idéia que possuem de justiça voltada para o bem comum,garantemaosseuscidadãosamanutençãoepreservaçãodos direitos humanos, uma vez que esta é condição essencial para aque- lespovosqueestabelecementresiumsistemadecooperaçãopolítica e social. Além disso, deve haver uma crença sincera e razoável por parte dos juízes e do sistema jurídico como um todo de que as leis efetivamente sejam um reflexo da idéia de justiça do bem comum, no sentido de que não são elaboradas sem a aprovação de seus cidadãos, mas que representam sim o entendimento destes e de seus represen- tantes acerca dos princípios de justiça como instrumentos para a rea- lização do bem comum. O modelo de representação do contrato social para a Sociedade dos Povos obedece à mesma orientação apresentada no caso interno em quase todos os seus aspectos. Os povos (liberais e decentes) são con- siderados racionais e razoáveis e, portanto, capazes de determinar os seus interesses próprios e de cooperar entre si, estabelecendo conjun- tamente os princípios de justiça para a sociedade por eles formada. Além disso, os povos estão também cobertos pelo véu de ignorância. Assim, eles não conhecem o tamanho de seu território, a população Leonardo Carvalho Braga 154 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 15. ou a força relativa uns dos outros, como também desconhecem a con- dição de seus recursos naturais e o grau de desenvolvimento econô- mico que possuem. Desta maneira, os povos vêem a si mesmos como livres e iguais por gozarem de uma posição eqüitativa no momento de escolha dos princípios que nortearão a Sociedade dos Povos. Rawls entende que, de acordo com esta situação, os povos estão si- metricamente dispostos em relação uns aos outros, o que garante a imparcialidade na escolha dos princípios de justiça entre eles. No entanto, há uma diferença importante a ser destacada que diz res- peito à questão das doutrinas abrangentes. Na sociedade fechada, as pessoas, em função da capacidade para uma concepção de bem que possuem, desenvolvem e se identificam com doutrinas abrangentes religiosas, morais ou filosóficas com as quais relacionam os seus ob- jetivos de vida e a sua maneira de ver o mundo. Os povos, ao contrá- rio,representamosseuscidadãos,aspessoasquedelesfazempartee, como agentes coletivos, não possuem para si uma doutrina abran- gente a ser defendida propriamente. A existência do pluralismo ra- zoável dentro dos povos, que permite a coexistência de doutrinas tão diversas, faz, destas, instituições sem uma doutrina específica a ser seguida como fonte de identidade com os seus objetivos enquanto povos. Este pluralismo razoável, que possibilita o convívio de diversas dou- trinas abrangentes defendidas por seus cidadãos, somente é possível a partir da validade de uma concepção política de justiça pela qual os princípios de justiça escolhidos podem ser aceitos por todos os cida- dãos independentemente de suas crenças pessoais, religiosas, morais ou filosóficas. Se assim é no caso interno, Rawls supõe que entre os povos a existência de doutrinas abrangentes diferentes é ainda maior em função da cultura e das tradições de cada povo. Desta forma, é es- sencial à teoria rawlsiana de justiça entre os povos, como também o é para a sociedade fechada, a concepção de tolerância. O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 155
  • 16. Rawls presume que, se há diversidade de doutrinas abrangentes den- tro dos povos, haverá também uma diversidade, talvez até maior, en- tre os povos. Assim, é possível imaginar que povos diferentes defen- dam concepções de bem – reflexo dos seus cidadãos – também dife- rentes. Rawls entende que o papel da Sociedade dos Povos consiste em assegurar que os ideais e princípios da política exterior de um povo liberal sejam também razoáveis a partir de um decente ponto de vista não liberal e vice-versa. A necessidade desta garantia é caracte- rística inerente à concepção liberal. O Direito dos Povos deve garan- tir o exercício do pluralismo razoável e da tolerância entre os povos liberais e decentes. Por isso, a Sociedade dos Povos não é composta somente por sociedades liberais, porque está em sua gênese liberal o conceito e a necessidade de tolerância entre as partes como marca própria do liberalismo político. Os povos liberais então toleram os povos decentes a partir da certeza e da constatação de que os últimos cumprirão, assim como os primeiros, as condições específicas de di- reito e de justiça a serem escolhidas e seguidas por eles mesmos como os parâmetros reguladores da Sociedade dos Povos razoavel- mente justa. Assim, os povos (liberais e decentes) estão prontos a oferecer uns aos outros e a aceitar termos justos de cooperação que sejam aprovados por todos na certeza de que todos os honrarão. A idéia é elaborar princípios de justiça que sejam razoáveis para povos liberais e para povos decentes. O critério de reciprocidade está mar- cadamente presente na Sociedade dos Povos como está na sociedade fechada. Para Rawls (1999-2001, p. 80-81), “os povos liberais devem tentar encorajar os povos decentes e não frustrar a sua vitalidade insistindo coercitivamente em que todas as sociedades sejam liberais”. Rawls valoriza o liberalismo político por meio do exercício do pluralismo razoável, que permite o convívio entre povos liberais e povos decen- tes, mesmo que esse mundo social formado por eles não seja plena- mente justo. Leonardo Carvalho Braga 156 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 17. O mais importante é não insistir em princípios liberais para todos os povos, pois esta atitude fere a própria concepção liberal de tolerân- cia. Assim, para Rawls, mais valioso que defender ferozmente prin- cípios democráticos liberais para todos os povos é preservar a plura- lidade de manifestações culturais, políticas e sociais dentro dos limi- tes do razoável que os povos liberais e os povos decentes se propõem a cumprir. O respeito ao outro, calcado na tolerância daquilo que nos é diferente, fornece a base de justificação da existência da Sociedade dos Povos como pensada por Rawls – plural e razoável. De qualquer modo, mesmo considerando a defesa acalorada de Rawls em prol do pluralismo razoável entre os povos, é de sua consi- deração que povos liberais e não liberais partilham de princípios de justiça iguais. Assim, para Rawls (1999-2001, p. 47-48), os povos concordariam com os seguintes princípios: 1. Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência devem ser respeita- das por outros povos; 2. Os povos devem observar tratados e compro- missos; 3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam; 4. Os povos sujeitam-se ao dever de não-inter- venção; 5. Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa; 6.Os povos devemhonrar os direitos humanos; 7. Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra; e 8. Os povos têm o dever de assistir outros po- vos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente. O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 157
  • 18. Em relação à lista de princípios de justiça dos povos, há uma obser- vação muito interessante. Segundo Rawls, o objetivo a longo prazo dos povos bem-ordenados é trazer para a Sociedade dos Povos esses povos onerados que carecem de tradições culturais e políticas, além de capital humano e material para se tornarem sociedades bem-orde- nadas. Nesse sentido, Rawls entende que os povos onerados devem ser assistidos até que disponham de condições suficientes para se tor- narem membros da Sociedade dos Povos. O dever de assistência identificado no oitavo princípio de justiça é mais bem especificado por Rawls como dispositivos para assistência mútua entre os povos em tempos de fome e seca e, na medida do possível, dispositivos para assegurar que, em todas as sociedades liberais (e decentes) razoá- veis, as necessidades básicas dos povos sejam cumpridas (RAWLS, 1999-2001). Ao defender o dever de assistência dos povos liberais em direção aos povosnãoliberais,Rawlsclaramentedásubsídiosparaaçõesuniver- salistas, comprometendo-se com uma postura mais cosmopolita que comunitarista. Vejamos suas implicações e por que sua proposta não é satisfatória. Segunda Problematização: A Gênese Esquizofrênica do Sistema de Estados Nas Relações Internacionais, o debate é desdobrado na perspectiva daquilo que está ligado ao Estado Nacional. Ora o Estado é concebi- do como a comunidade política por excelência da sociedade interna- cional e, portanto, uma esfera comunitária e hermética como exercí- cio próprio da exclusão do outro pela compreensão que se tem de si mesmo; ora o Estado é compreendido como o promotor e catalisador de uma realidade que extrapola suas ações restritas à sua fronteira na- cionalparatransbordarpelasociedadeinternacional–talvez,mundi- Leonardo Carvalho Braga 158 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 19. al; aliás, cosmopolita – o significado e ação concreta a partir de temas universais. Toda a discussão, em Relações Internacionais, tem por base esse confronto de compreensão do mundo como representação de parti- cularismos que convivem, mas se excluem, e de universalismos que se engajam como processos e representações de fato globais. Aliás, isto está na própria origem do sistema westphaliano de Estados. A criação do sistema de Estados em 1648, ao final da Guerra dos Trinta Anos, produz uma esquizofrenia nas Relações Internacionais, pois ao efetivar os seus princípios clássicos – de autodeterminação dos povos e não-intervenção – promove o surgimento de espaços contra- ditórios de ação e de interação social. Por um lado, a autodetermina- ção dos povos propõe garantir a independência de um Estado em re- lação ao outro no que concerne às suas escolhas individuais – é um direito de Estado, cada Estado tem esse direito. É um direito que ex- clui o outro. Por outro lado, o princípio de não-intervenção garante que nenhum Estado interfira em assuntos internos de outro. Clara- mente, há uma conexão entre os princípios, mas também fica muito presente a perspectiva relacional deste em detrimento daquele. Este é um direto de todos os Estados em conjunto. Só pode existir, assim, universal – válido para as relações entre eles. É um direito que inclui o outro. Em decorrência disto, as Relações Internacionais testemunham essa esquizofrenia: exclusão/inclusão; particular/universal. Há um direi- to do Estado e há um direito dos Estados. Aqui, começamos a com- preender a coexistência de espaços paralelos ou, mais que espaços paralelos, espaços superpostos em uma percepção de relações interna- cionais multidimensionais contraditórias, quando não antagônicas. Aliás, parece ser a contradição a característica mais marcante em consideração às sociedades politicamente organizadas. A própria constituição do Estado como comunidade política implica uma con- O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 159
  • 20. tradição referenciada pela lógica contratualista – uma parte detento- ra do poder legítimo coercitivo, outra sujeita a ele. No funcionamen- to do sistema capitalista mundial não é diferente: a contradição é re- presentada por aqueles Estados que detêm os meios de produção e aqueles que submetem a sua força de trabalho a eles. Esse processo de exclusão e inclusão e de formação de um direito do Estado e de um direito dos Estados, portanto, da sociedade interna- cional, permanece ao longo do tempo. Encontramos na Organização das Nações Unidas (ONU) exemplo disto. A ONU tenta prover um direito internacional, quiçá universal, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, exatamente trezentos anos após a criação do Sistema Moderno de Estados em 1648. Todo esse tempo passou e a contradição permanece. Incrível darmo-nos conta dela! A complexidade contemporânea exponencia mais ainda essa contra- dição. Não precisamos ir muito longe. A autodeterminação dos po- vos é defendida especialmente na década de 1960 quando do proces- so de descolonização afro-asiático. As coletividades humanas de- mandavam a sua própria comunidade política, que com todas as suas peculiaridades se encaixava na fórmula representativa de Estado Na- cional. Trinta anos depois, as Relações Internacionais testemunha- ram o fim da Guerra Fria, o desmantelamento da União Soviética e a desagregação da Iugoslávia. Novamente, a demanda social por uma organização política das coletividades humanas era voltada para a criação de Estados Nacionais. Mesmo a divisão do mundo na Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética tem por base a formação de dimensões imperiais e, assim, tem uma base, uma origem estatal – ouimpériosoviéticoouimpérionorte-americano.Oprocessoexpan- sionista é estatal. O peso do nacional, do particular, da necessidade de diferenciação em relação ao outro é muito presente nas Relações Internacionais. Por outro lado, se recortarmos o mesmo período, podemos verificar movimentos e relações não somente internacionais, mas transnacio- Leonardo Carvalho Braga 160 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 21. nais e globais. As crises do petróleo de 1973 e 1979 são prova de que não há limites entre os Estados Nacionais na determinação dos efei- tos de acontecimentos locais no mundo. A globalização na década de 1990, como derivação da interdependência da década de 1970, dese- nharelaçõesinternacionaisglobaiscomadefesadevaloreseordena- mentos em torno do binômio liberal capitalismo-democracia. Confe- rências são realizadas para o debate de temas universais. 1 Há uma concepção de mundo interligado, comum e que vive e enfren- ta situações comuns que exigem, por sua vez, soluções comuns pensa- das em conjunto. A lógica estatal não consegue prover uma ação desse tipo. A esquizofrenia evidencia-se. A recusa norte-americana em assi- nar o Tribunal Penal Internacional (TPI) ou o Protocolo de Kyoto, por exemplo, é representativa dela. A atmosfera não reconhece fronteiras nacionais. Devo eu, Estado Nacional, subordinar-me a meu presiden- te, a um Tribunal Penal Internacional? Que legitimidade possui um Tribunal assim? Deve a emissão de gases na atmosfera ser freada, ao menos, em boa parte, diminuída? Quem responde por isso? Sim, pro- teção ambiental sugere preservação de direitos humanos – o ar que respiramos, a água que bebemos, o solo em que plantamos. Temos, ao que parece, um problema gerado pelo Estado, mas que o próprio Estado não consegue resolver do ponto de vista da ação esta- tal, porque a ação estatal é desde Westphalia uma ação de direito do Estado de agir em função da sua autodeterminação. Mas, ora, temos um problema universal. O Estado gera problemas que não consegue resolver. Significação estatal e universal coexistem, interesses ex- cluem-se, mas, ao mesmo tempo, demandam, ao contrário, inclusão, universalismo – disto, temos os direitos humanos como refém. Não nos parece muito diferente o caso dos refugiados. O refugiado é aquele que, em geral, teve que sair de seu Estado de origem por uma situação de guerra e que é acolhido por outro Estado. Quem lhe dá di- reitos? Respostas (ou perguntas): o Estado de origem, envolvido em O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 161
  • 22. um caos político-social de guerra ou o Estado de destino, que não confere a ele o mesmo rol de direitos que a seus cidadãos? É o refu- giado um apátrida errante condenado a nunca mais gozar de uma na- cionalidade e de uma cidadania plena? O Estado cria este problema, ou esta condição, mas não consegue resolvê-lo. Só uma perspectiva universalista pode prover soluções para problemas deste tipo, que transbordam as fronteiras do Estado. Contudo, apesar de haver uma clareza de que existem problemas materiais à nossa volta, o debate sobreauniversalizaçãodedireitoshumanosaindapareceindefinido. AinterdependênciaexplicitaaporosidadedosEstadosnacionaiseim- possibilita-os de resolverem, cada um independentemente do outro, crises e problemas que extrapolam a capacidade de uma solução esta- tal, ou mesmo interestatal. A globalização tem favorecido um proces- sodecosmopolitanização(BECK,2002),ouseja,umprocessodeglo- balização interna às sociedades nacionais, que transforma a natureza do social e do político além da consciência e da identidade dentro des- tas sociedades a partir de um processo dialógico. Alguns problemas somente podem ser resolvidos por uma ação coletiva dotada de uma organicidade só mais complexa do que aquela das Relações Internaci- onais (entre nações/Estados). Isto porque os efeitos das crises e dos problemas são globais e a sua solução também o deve ser. A participa- ção de atores outros que não o Estado passa a ser fundamental nesse sentido, e compreender o conjunto de direitos que demandamos como direitos universais justifica e legitima uma ação universal. Não é à toa que a vertente de Teoria Normativa de Relações Interna- cionais é revitalizada no início dos anos 1990. E é neste momento que o debate entre cosmopolitas e comunitaristas ganha fôlego nas Relações Internacionais, exigindo que os intelectuais repensem a na- tureza destas relações. No entanto, parece ela mesma não ser sufici- ente como resposta aos problemas e dilemas contemporâneos. Leonardo Carvalho Braga 162 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 23. Parece-nos que, apesar de ser mais razoável que as completas inclu- são ou exclusão propostas pelo cosmopolitismo e pelo comunitaris- mo, respectivamente, a proposta rawlsiana não consegue escapar da esquizofrenia das Relações Internacionais. O modelo de Sociedade dos Povos talvez favoreça, inclusive – a partir do dever de assistência – um pouco mais o processo de inclusão de cunho cosmopolita (ou intervencionista! – pelo dever de assistência). Continuamos com a errante configuração das Relações Internacio- nais dividida entre direitos do Estado e direitos dos Estados. Se cada Estado é, no pluralismo razoável rawlsiano, dotado de uma capaci- dade de admitir para si crenças quaisquer sem influência de outros Estados em nome da garantia do próprio liberalismo pela possibili- dade de escolha livre, temos aí a própria compreensão do princípio clássico westphaliano de autodeterminação dos povos como um di- reito do Estado – de cada Estado. Por outro lado, a defesa do dever de assistência apresenta-se como o traço universalista, como direito dos Estados – de todos os Estados. O que queremos dizer é que os Esta- dos têm para si um direito exclusivo de autodeterminação, mas estão todos igualmente sujeitos ao dever de assistência. Livres, por um lado; sujeitados, por outro. Particularizados, por um lado; universali- zados, por outro. Curiosamente, o princípio de não-intervenção é transformado em princípio de intervenção pelo dever de assistência, mas isto não o faz perder o seu aspecto de universalidade, ao contrá- rio, reforça-o. Compreendemos a proposta de O Direito dos povos, de Rawls (1999-2001) como uma alternativa a dois extremos auto-excluden- tes. Neste sentido, a contribuição rawlsiana é bastante significativa. Porém, ainda nos parece insuficiente, porque perpetua uma esquizo- frenia de mais de 350 anos, pois mantém viva uma lógica de exclu- são, quando formamos a Sociedade dos Povos e excluímos dela ou- tros povos que não estejam prontos para fazer parte dela. Ainda esta- mos em uma lógica westphaliana, de justificação da ação política cir- O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 163
  • 24. cunscrita em um espaço, quando os problemas se dimensionam em espaços múltiplos, superpostos e interligados. Resta-nos a pergunta: continuam o Estado e o sistema de Estados sendo as referências váli- das de comunidade política nacional e internacional ou devemos pensar alternativas para eles? Repensando as Relações Internacionais pelo Pós-modernismo – Uma Aproximação Adificuldadedeestabelecerumparâmetrodeaçãoqueconsigacom- patibilizar as vertentes comunitarista e cosmopolita sugere pensar as Relações Internacionais por outro viés. A construção teórica pós-moderna ganha força, nesse sentido, ao compreender que aquilo que é moderno – o Estado Nacional – não responde satisfatoriamente às demandas globais mais urgentes, porque estas fazem escapar das mãos dos Estados a possibilidade de as satisfazer. Cabe-nos repensar as Relações Internacionais. Vejamos algumas observações que podemos fazer a título de aproxi- mação com a teoria pós-moderna. Fiquemos tão somente com a pers- pectiva da cidadania e dos vínculos sociais (estatais/não-estatais). Percebemos que, enquanto estivermos presos a uma lógica estatal, que impõe delimitações na solução de problemas globais, não conse- guiremos agir de outro modo para solucionar estes problemas. O sistema de Westphalia serviu apenas para “assegurar a persistên- cia, a saliência e a centralidade do problema da diferença na socieda- de internacional” (BLANEY; INAYATULLAH, 2000, p. 5), o que reforça a identidade da borda para dentro do Estado e exponencia a diferençadequemestáforadele,criandoumalógicadeexclusãoede conflito. Para Blaney e Inayatullah (2000), nós somos ainda reféns do Estado e da sua lógica westphaliana. Nossa compreensão se dá Leonardo Carvalho Braga 164 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 25. pela perpetuação da diferença, que impossibilita visualizar oportuni- dades de engajamento mais global no combate a questões que extra- polam a realidade estatal. Não vivemos mais em um ambiente estatal ou interestatal. É preciso repensar, por exemplo, o conceito de cidadania, algo estatal, produ- zido artificialmente pelo Estado (ele mesmo também produzido na história), relacionado à manutenção simbólica do Estado pelo geren- ciamentodenarrativashistóricasedeespaçoterritorial,masquehoje não corresponde mais à noção de mundo que temos. O crescente movimento de pessoas, uma cres- cente diáspora global – refugiados, exilados, estrangeiros ilegais, trabalhadores migrantes e intelectuais – têm incentivado formas pós-na- cionais e não territoriais de filiação e solidarie- dade. De modo crescente, populações filiam-se translocalmente – em outros tempos e espaço. [...] Uma vez que reconhecemos as complexi- dades da locação da cidadania no tempo, uma vez que suplementamos imaginações espaciais com temporalidade, um rico conjunto de arti- culações, gêneros e meios podem desafiar o tempo do Estado (SHAPIRO, 2000, p. 5-6, tra- dução nossa). É preciso repensar o próprio significado da comunidade política, algo também artificial, que impõe uma noção de “particularidades em comum” (SHAPIRO, 2000). A partir de então, podemos pensar a aderência individual/social à comunidade política por uma concep- ção dinâmica de “associação e desassociação”, que possibilite o re- conhecimento de modos de presença incomensuráveis (SHAPIRO, 2000). Não há mais o estatal. Há representações diversas, atreladas por condições comuns de exposição ao internacional, ou melhor, ao global. E é essa condição que faz com que repensemos as relações humanas que tenham por base não a lógica do estatismo, mas que ali- O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 165
  • 26. mente compreensões diferentes sobre o agir internacional, motivado por situações reais e demandas sociais não-estatais. Considerações Finais Buscamos neste artigo apresentar a questão dos direitos humanos do ponto de vista do debate cosmopolitismo x comunitarismo como umaraizparaumadiscussãoaindamaiorqueesta–adaprópriacom- preensão das Relações Internacionais pela sua representação política tradicional –: o Estado Nacional Moderno. Acompanhamos brevemente tentativas de solucionar o problema dos direitos humanos nas Relações Internacionais pelo pensamento de Charles Beitz e de John Rawls, favorecendo, respectivamente, um viéscosmopolitaeumviésconciliadordasduasvertentes.Vimos,no entanto, que as propostas não satisfazem as demandas atuais de um mundoquenãomaiséestatalouinterestatalequeaesquizofreniadas Relações Internacionais se mantém entre o que é estatal e o que é não-estatal. Isso nos fez repensar as Relações Internacionais, aproximando-nos do viés pós-moderno. De modo ainda introdutório, tentamos apontar minimamente como a teoria pós-moderna pode favorecer esse exer- cício de repensar as Relações Internacionais e enfrentar sua condição esquizofrênica, tarefa esta à qual nos dedicamos. Leonardo Carvalho Braga 166 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 27. Nota 1. Algumas das conferências realizadas no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU): Cúpula Mundial sobre a Criança (1990), Conferência das Na- ções Unidas para o Meio Ambiente (1992), Conferência Internacional sobre Di- reitos Humanos (1993), Conferência Internacional sobre População e Desen- volvimento (1994), IV Conferência Mundial sobre a Mulher (1995), Cúpula para o Desenvolvimento Social (1995) e Cúpula do Milênio (2000). Referências Bibliográficas BECK, Ulrich. The cosmopolitan societies and its enemies. Theory, Culture & Society, v. 19, p. 1-2, 2002. BEITZ, Charles. Political theory and International Relations. Princeton: Princeton University Press, 1979. BLANEY, David; INAYATULLAH, Naeem. The westphalian deferral. Inter- national Studies Review, v. 2, n. 2, 2000. MORRICE, David. The liberal-communitarian debate in contemporary politi- cal philosophy and its significance for International Relations. Review of International Studies, v. 26, 2000. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução: Almiro Pisetta e Lenita Este- ves. São Paulo: Martins Fontes, 1971-2000. . O liberalismo político. Tradução: João Sedas Nunes. Lisboa: Editorial Presença, 1993-2001. . O direito dos povos. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1999-2001. SHAPIRO, Michael. National times and other times: re-thinking citizenship. Cultural Studies, n. 14, v.1, 2000. O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 167
  • 28. Resumo O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia das Relações Internacionais A consideração do Estado Nacional como o ator privilegiado nas Relações Internacionais a partir da criação do Sistema de Westphalia apresenta uma esquizofrenia congênita. Os princípios clássicos das Relações Internacio- nais – autodeterminação dos povos e não-intervenção – sugerem, por um lado, um direito de cada Estado se autodeterminar soberanamente e, por ou- tro, um direito dos Estados de não sofrerem intervenção dos outros Estados. O primeiro direito possui uma natureza mais excludente; o segundo, mais includente. Só o próprio Estado garante a sua autodeterminação e, assim, exclui os outros; ao passo que a não-intervenção depende de todos os Esta- dos a respeitarem – isso inclui os outros. O debate acerca dos direitos huma- nos nas Relações Internacionais segue a mesma lógica. Cosmopolitas de- fendem uma inclusão; comunitaristas, uma exclusão. São direitos que se ex- cluem e fazem das Relações Internacionais algo esquizofrênico. Rawls ten- ta resolver este dilema com o seu “Direito dos Povos”, mas fracassa. A pro- posta talvez então seja pensar Relações Internacionais por outro viés, a par- tir do pós-modernismo, pelo qual pensamos a satisfação de demandas glo- bais humanas que ultrapassam as fronteiras criadas em Westphalia por ou- tra conformação política que não o Estado Nacional. Palavras-chave: Direitos Humanos – Cosmopolitismo – Comunitarismo – Estado Nacional Leonardo Carvalho Braga 168 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 30, no 1, jan/abr 2008
  • 29. Abstract The Cosmopolitanism x Comunitarianism Debate on Human Rights and the Esquizofreny of the International Relations Considering the Nation State as the privilegied actor in International Relations since Westphalian System points a congenital esquizofreny. The International Relations classical principles – self-determination and non-intervention – sugests, by one side, a right of each State self-determinate itself sovereingtly and, by other side, a right of not being object of intervention. The first right excludes, the second, includes. Just the State guarrantees its self-determination and doing so, excludes the others; meanwhile the non-intervention depends on the other States respect. The debate about human rights in International Relations follows the same logic. Cosmopolitans defends inclusion; comunitarians, exclusion. These are rights that exlcude each other and make the International Relations something esquizofrenic. Rawls tries to work out this dilemma, but he fails. The proposal may be thinking International Relations from another point of view, from post-modernism, by which we think the satisfaction of human global demands that overcome the national boundaries made in Westphalia by a political configuration other than the Nation State. Keywords: Human Rights – Cosmopolitanism – Comunitarianism – Nation State O Debate Cosmopolitismo x Comunitarismo sobre Direitos Humanos e a Esquizofrenia... 169