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Urdimento: s.m. 1) urdume;
2)partesuperiordacaixadopalco,
onde se acomodam as roldanas,
molinetes, gornos e ganchos
destinados às manobras cênicas;
fig. urdidura, ideação, concepção.
etm. urdir + mento.
ISSN 1414-5731
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Número 11
Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEART
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
URDIMENTO é uma publicação anual do Programa de Pós-Graduação em
Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. As
opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores. A
publicação de artigos, fotos e desenhos foi autorizada pelos responsáveis ou
seus representantes.
FICHA TÉCNICA
Editor: Prof. Dr. André Carreira
Secretário de Redação: Éder Sumariva Rodrigues (bolsa PROMOP)
Capa: A Farsa da Panelada - montagem da prática de ensino dirigida pelo
Prof. Toni Edson
Contra-capa: Álbum Branco - montagem da prática de ensino dirigida pelo
Prof. André Carreira
Fotos: Cristiano Prim (capa) e Camila Ribeiro (contra-capa)
Impressão: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina - IOESC
Editoração eletrônica: Déborah Salves [salves.deborah@gmail.com],
Filipe Speck [filipespeck@gmail.com], Leonardo Silva Alvea [leonardosilvaalves
@gmail.com] e Marcelo Adelar Andreguetti [marceloadelar@gmail.com]
Design Gráfico: Israel Braglia [israelbraglia@gmail.com]
Coordenação de Editoração: Célia Penteado [celiapenteado@uol.com.br]
Editado pelo Núcleo de Comunicação do CEART/UDESC
Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES
Catalogação na fonte: Eliane Aparecida Junckes Pereira. CRB/SC 528
Biblioteca Setorial do CEART/UDESC
Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas /
Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de
Pós-Graduação em Teatro. - Vol 1, n.11 (Dez 2008) -
Florianópolis: UDESC/CEART
Anual
ISSN 1414-5731
I. Teatro - periódicos.
II. Artes Cênicas - periódicos.
III. Programa de Pós-Graduação em Teatro.
Universidade do Estado de Santa Catarina
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC
Reitor: Sebastião Iberes Lopes Melo
Vice Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Pereira de Souza
Diretor do Centro de Artes: Antonio Carlos Vargas Sant’Anna
Chefe do Departamento de Teatro: Sandra Meyer Nunes
Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Vera Regina Martins Collaço
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dra. Ana Maria Bulhões de Carvalho Edelweiss – UNIRIO
Prof. Dra. Beti Rabetti - UNIRIO
Prof. Dr. Francisco Javier - Universidad de Buenos Aires
Prof. Dra. Helena Katz - PUC/SP
Prof. Dr. Jacó Guinsburg - ECA/USP
Prof. Dra. Jerusa Pires Ferreira - PUC/SP
Prof. Dr. Joao Roberto Faria - FFLCH/USP
Prof. Dr. José Dias - UNIRIO
Prof. Dr. José Roberto O’Shea - UFSC
Prof. Dra. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo - ECA/USP
Prof. Dr. Mário Fernando Bolognesi - UNESP
Prof. Dra. Marta Isaacsson de Souza e Silva – DAD/UFRGS
Prof. Dra. Neyde Veneziano - UNICAMP
Prof. Dr. Osvaldo Pellettieri - Universidad de Buenos Aires
Prof. Dr. Roberto Romano - UNICAMP
Prof. Dr. Sérgio Coelho Farias - UFBA
Prof. Dra. Silvana Garcia - EAD/USP
Prof. Dra. Sílvia Fernandes Telesi - ECA/USP
Prof. Dra. Sônia Machado Azevedo - Escola Superior de Artes Célia Helena
Prof. Dra. Tânia Brandão - UNIRIO
Prof. Dr. Walter Lima Torres -UFPR
UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina
CEART - Centro de Artes
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO
O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, implantado em 2002, e
Doutorado, em 2009.
PROFESSORES PERMANENTES
André Luiz Antunes Netto Carreira
Antonio Carlos Vargas Sant’anna
Beatriz Ângela Vieira Cabral
Edélcio Mostaço
José Ronaldo Faleiro
Márcia Pompeo Nogueira
Maria Brígida de Miranda
Maria Isabel Rodrigues Orofino
Milton de Andrade
Sandra Meyer Nunes
Valmor Beltrame
Vera Regina Collaço
PROFESSORES VISITANTES
Marcelo da Veiga - Universidade Alanus (Alemanha)
Óscar Cornago - Conselho Superior de Pesquisas Científicas (Espanha)
O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candidatos em nível
nacional e internacional. Para acesso ao calendário de atividades, linhas e
grupos de pesquisa, corpo docente e corpo discente, disserta-
ções e teses defendidas e outras informações, consulte o sítio virtual:
http://www.ceart.udesc.br/ppgt
SUMÁRIO
		
A teatralidade em Clarice Lispector
Alex Beigui
Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico
Éder Sumariva Rodrigues
Espaço teatral e performatividade. Estratégias e táticas na cena
moderna e contemporânea
Evelyn Furquim Werneck Lima
El Galpón – narrador do sonho latino-americano
Yaska Antunes
O produtor e o produto no teatro de grupo
Flávia Janiaski
O espírito travesso na mímica corporal dramática de Etienne Decroux
George Mascarenhas
Tragédia grega e cenografia: a encenação dos textos trágicos na cena
brasileira pós-moderna
Gilson Motta
A investigação na dança: uma possível estratégia de aprendizado
Gladis Tridapalli
O Auto da compadecida e um personagem extraordinário
Irley Machado
A subpartitura corporal no processo de criação do espetáculo Batata!
Leonardo Sebiani
Rainhas, sutiãs queimados e bruxas contemporâneas - reflexões a partir
da montagem de Vinegar Tom
Maria Brígida de Miranda
13
25
33
51
67
79
89
101
113
123
133
A criação de Robert Lepage e o modelo pós-dramático
Marta Isaacsson
Pirandello encena Sei personaggi in cerca d’autore
Martha Ribeiro
Ação dramática, movimento funcional e teoria do esforço: origens do
pensamento teatral na obra de Rudolf Laban
Milton de Andrade
O corpo invisível: teatro e tecnologias da imagem
Óscar Cornago Bernal
Procedimentos estratégicos operados pelo Erro Grupo nas intervenções
urbanas Desvio e Enfim um líder
Pedro Diniz Bennaton
Hamlet em sua época e Ensaio.Hamlet, da cia dos atores: modernidade e
pós-modernidade teatral
Tania Alice Feix
Estética da existência na formação do professor-artista
Tânia Cristina dos Santos Boy
As aparências mutantes de um corpo que se desnuda
Vera Collaço
147
157
169
177
191
203
215
231
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Dezembro 2008 - N° 11 Apresentação.
APRESENTAÇÃO
Este número da Revista Urdimento comemora o início do curso de
Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC. Com a
primeira turma do doutorado nosso programa, criado em 2001, avança em
direção à sua consolidação como um núcleo de referência na pesquisa na área
das artes cênicas no Brasil. Neste sentido, registramos o crescimento do corpo
docente e a expansão dos campos de trabalho abordados pelos projetos de
pesquisa como principais características desse processo.
A Revista Urdimento é reflexo tanto da consolidação do projeto do
PPGT, como do trabalho da equipe de professores, estudantes e técnicos que
tem feito do Programa um espaço de intercâmbio e reflexão que vai muito
além da rotina diária de aulas, orientações e defesas.
Em consonância com a vocação do PPGT continua a representar um
espaço de articulação com os diversos programas de pós-graduação em artes
cênicas do país. Por isso, seguimos considerando fundamentais as contribuições
espontâneas com o fim de conformar edições que espelhem as dinâmicas das
pesquisas de pós-graduação.
A atual edição traz uma ampla diversidade temática. O conteúdo
que colocamos à disposição dos nossos leitores apresenta textos que visitam
práticas relacionadas com a experimentação teatral nas ruas; com modos
funcionais do espaço cênico; com dinâmicas organizativas e criativas de grupos
teatrais; estudos sobre procedimentos criativos para atuação e sobre diferentes
aspectos da dramaturgia; reflexões sobre técnicas corporais; estudos no campo
da história do teatro e do gênero.
Desejandoqueosleitorespossamapreciarosmateriaisquedifundimos,
aproveitamos para reiterar nosso permanente chamado à colaboração, pois
estamos seguros que a diversidade e multiplicidade de propostas é o que faz
dos periódicos científicos um instrumento chave da vida da pós-graduação.
André Carreira
Editor
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11
A TEATRALIDADE EM CLARICE LISPECTOR
Alex Beigui1
O teatro em crise
“Vou continuar, é exatamente de
minha natureza nunca me sentir ridícula, eu
me aventuro sempre, entro em todos os palcos”.
“... um instante antes da cena e um
instante depois”.
(LISPECTOR, 1999: 122-192)
A matéria fugidia com que nos deparamos ao ler os romances e
os contos de Clarice Lispector pode parecer, enquanto princípio e num
primeiro momento, contraditória ao objetivo deste trabalho: buscar as
marcas da teatralidade, lidas aqui como materialidade com que se tecem a
construção literária e o universo ficcional em questão. Paradoxo sustentado,
sobretudo, pelo campo árido e pouco demarcado de sua escrita e pelo
próprio movimento de incompletude dos enredos, além de um conjunto
Resumo
Oartigobuscaapontarerefletirsobre
os aspectos da teatralidade presentes em
Clarice Lispector, apontando os índices
de materialidade e performatividade
da linguagem plástico-sensorial de sua
escrita. Para tanto, sustentamos nosso
ponto de vista, sobretudo, na tensão
entre literariedade e teatralidade que
percorrem grande parte de sua produção
desde sua obra inaugural Perto do Coração
Selvagem.
Palavras-chave: teatralidade, litera-
riedade, Clarice Lispector.
Abstract
This article comments on some
aspectsof ClariceLispector’stheatricality.
It aims to highlight particular aspects
of Lispector’s plastic and sensorial text
pointing out and discussing about its
materiality and performartic qualities. So,
thisarticlewilllookattheexistingtension
between literality and theatricality which
is a constant within Lispector’s work
since her inaugural work Perto do Coração
Selvagem.
Keywords: theatricality, literality,
Clarice Lispector.
1
Alex Beigui, mestre
em Artes Cênicas
pela UFBA e doutor
em dramaturgia
brasileira pela USP,
atualmente é profes-
sor adjunto da UFRN
e membro do GT Ter-
ritórios e Fronteiras
da ABRACE.
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11
de intertextos, citações e imagens que ampliam e enfatizam, por meio
de arqueologismos e anacronismos, o fértil campo da subjetividade tão
explorado pela crítica especializada e pelas inúmeras montagens cênicas
das obras da autora. No entanto, ainda que sua obra recuse a síntese e
evoque a pluralidade de modo excessivo, desde o seu primeiro romance,
Perto do Coração Selvagem de 1944, tal teatralidade já aparece enquanto
questão subjacente ao tema. Com ele, a “crise da representação” inaugura
uma diferente forma de preocupação com o ato da escrita, o recurso do
fingimento abre paulatinamente espaço para a representação do real
intercalada à experiência ou, em alguns casos, à construção de um estilo
dramático. Assume-se a própria experiência como condutora da realidade
aparente do mundo e das coisas.
Para Alain Touraine (1994: 263): “As crises de mutação que fazem
passar da sociedade industrial à sociedade programada correm o risco de
fazer desaparecer a consciência de historicidade, e assim a própria idéia de
modernidade, mas é também através dessas crises que a idéia de sujeito
se desprende do historicismo”. No Brasil, a obra de Clarice é responsável
por essa mutação na estética narrativa e, conseqüente, estreitamento das
fronteiras entre os planos da história e o plano do discurso. Poderíamos
dizer que o problema da mimese marca uma primeira discussão no campo
parateatral da escrita clariciana. Vejamos como a questão nos é oferecida à
maneira platônica e aristotélica do modo de criação e legitimidade do artista/
criador – aludimos à relação do artista com a sua obra e ao efeito da mimese
enquanto conceito de valoração de sua produção na discussão iniciada por
Platão e especificamente desenvolvida mais tarde por Aristóteles na Poética.
O primeiro capítulo intitulado “O Pai” traz em primeira instância
a preocupação com a origem da experiência e seu modo de apreensão pela
lente do escritor (Artista), sem, contudo, privar pela regra de afastamento
que dispõe de modo confortável sujeito e objeto, criador e criatura, escritor/
personagem: “A máquina do Papai batia tac-tac... tac-tac-tac”. (1980:
11)2
. O problema da identidade a ser construída assume o movimento de
desconstrução, do não-lugar do sujeito dentro da referência, tanto no plano
da enunciação quanto no plano do enunciado.
Como nos lembra Genette (1972: 72-108): “No interior do universo
espácio-temporal dos eventos narrados, o discurso das personagens funciona, por seu
turno, como um simulacro do ato de enunciação, no interior do próprio discurso
narrativo”. Essa interferência do narrador traz as marcas de sua escolha, reveladas
sempre por meio de estratégias dramatúrgicas cada vez mais híbridas, colocando o
problema da criação de forma dialética: modelo e ruptura, referência e inferência,
criação e imitação, ficção e representação.
2
Todas as citações
da obra Perto do
Coração Servagem
foram retiradas
da edição cuja
referência completa
encontra-se presente
na bibliografia.
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11
A teatralidade desse modo constitui um ponto de articulação entre o
locutor e o locatário, este último estendendo-se às personagens por meio de
deslocamentos: “sempre arranjava um jeito de se colocar no papel principal
exatamente quando os acontecimentos iluminavam uma ou outra figura”
(1980: 13). A ambivalência do discurso acompanha a trajetória testemunhal de
Joana que busca, sempre através da palavra-ação, concretizar sua experiência,
materializar sua vivência, tornar palpável seu lugar no mundo. Tentativa
sempre barrada pela dificuldade de uma identidade fixa, estável: “Nunca é
homem ou mulher? Porque nunca não é filho nem filha?” (1980: 15). A busca
de si é para Joana a busca do sujeito híbrido.
Seu reconhecimento como sujeito passa por inúmeras tentativas de
despersonificação: “sim ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnava-
lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de estética”
(1980: 17). O estágio primitivo da escritura lida a todo o momento com algo
que a ultrapasse exige por parte do leitor atenção sobre a releitura interna
da obra, realizada paralelamente à consolidação da persona de Joana, sempre
incompleta e teatralizável. O ato de fingir como forma de atuar no mundo
torna-se para Joana a única possibilidade de encontro consigo mesma. Ao
contrário de Hamlet que persegue a verdade até suas últimas conseqüências,
Joana abre mão da prerrogativa de um “Eu”: “Quem sou? Bem isso já é demais”
(1980: 20). Talvez pela dura condição imposta pelo narrador: “Mente-se e
cai-se na verdade” (1980: 20). Outro ponto que dificulta, pelos sucessivos
atos de representação de Joana, o seu reconhecimento enquanto sujeito, são
as perguntas impostas de modo beckettiano à professora de Joana: “O que é
que se consegue quando se fica feliz?”; “Queria saber: depois que se é feliz o
que acontece? O que vem depois?” (1980: 30); “o que deve fazer alguém que
não sabe o que fazer de si?” (1980: 73). Essas perguntas funcionam como
recurso de trazer o olhar do leitor para a maquete imperfeita do mundo.
Equação que nas personagens de Samuel Beckett gera um movimento de
esfacelamento da idéia de identidade, impulsionando os personagens, mas
impedindo-os de alcançar o que se quer.
Tais questões, incluindo as de caráter mais intimista – “E havia
um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?” – conduzem
sempre e inevitavelmente ao intervalo e nunca ao encontro entre as demais
personagens do romance. Intervalo que, diferentemente do modelo trágico
e renascentista do herói cuja trajetória o conduz ao abismo depois de uma
seqüência ascensional ou condição privilegiada, leva a “heroína” de Clarice
a partir de antemão do abismo, como se de lá jamais ela tivesse saído. O
abismo é sempre um ponto de partida para a dúvida e a dispersão. Ele é
criado não em torno da personagem, mas está dentro dela, fazendo parte
integrante de sua composição.
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11
O movimento sempre indeterminado advém do esforço quase sempre
inútilporpartedeJoanadeapreenderotempopassado,restando-lheaexperiência
no ato de sua realização. O tempo teatral, isto é, o tempo da eternidade do agora:
“A imaginação apreendia e possuía o futuro do presente,
enquanto o corpo restava no começo do caminho, vivendo em outro
ritmo, cego à experiência do espírito... Através dessas percepções – por
meio delas Joana fazia existir alguma coisa – ela se comunicava a
uma alegria suficiente em si mesma”. (1980: 45)
A posição de Joana, nesse sentido, caminha para o não-lugar do drama:
“onde o que amava não era trágico, nem cômico” (1980: 46). A consciência
dramática desse “não-lugar” aponta, já em Perto do Coração Selvagem para uma
situação intermediária, nem trágica nem cômica da existência. Visão reforçada
pela força da teatralidade assumida como recurso narrativo. Talvez por
esse motivo seja tão presente a situação dialógica nos romances claricianos,
invadindo a narrativa como forma de quadros, cenas e acontecimentos. A
indeterminação do estado emocional das personagens abre espaço para o uso
de recursos próprios ao teatro como, por exemplo, o da “máscara neutra”:
“E não estou contente nem triste” (1980: 52). A indeterminação e o meio-
termo aparecem como forma de permanecer no discurso, mantendo-o e
condicionando-o a uma visão tragicômica do mundo. É pela consciência do
estar “entre” o julgamento e o infortúnio, a redenção e a culpa que a dúvida,
como corolário da crítica sobre a relação causa/efeito, aparece e se fixa.
O “distanciamento” ou “estranhamento”, tão caros a Bertolt Brecht,
funcionam através do “espanto”, estado em que o gesto se intensifica de acordo
com o grau de comprometimento que se tem diante da situação. É o que
notamos na parte do diálogo que Joana mantém com o Professor:
“- É um pouco simplista o que estou falando, mas não importa
por enquanto. Compreende? Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso,
piedade, bondade, é o seu temor. Todo o desespero e as buscas de outros
caminhos são a insatisfação. Eis aí um resumo, se você quer. Compreende?
- Sim.
- Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em qualquer
sentido, é porque tem uma capacidade enorme para o prazer, uma
capacidade perigosa - daí um temor maior ainda. Só quem guarda as
armas a chave é quem receia atirar sobre todos.
- Sim...
- Eu disse: quem se recusa... Porque há os... os planos, os feitos
de terra que sem adubo nunca florescerá.
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11
- Eu?
- Você? Não, por Deus... você é dos que matariam para
florescer.
(Ela continuava a ouvi-lo e era como se os seus tios jamais
tivessem existido, como se o professor e ela mesma estivessem isolados
dentro da tarde, dentro da compreensão).
- Não, realmente não sei que conselhos eu lhe daria, dizia o
professor. Diga antes de tudo: o que é bom e o que é mau?
- Não sei...” (1980: 54-55)
Apesar de longo, o diálogo demonstra a inserção dentro do romance
de enquadramentos e núcleos dramatúrgicos que, como assinalamos
anteriormente, invadem a estrutura narrativa. O cerco dramático construído
em torno de Joana revela a formação da personagem como algo inquisidor
do ponto de vista da criação. Toda a ambiência do romance conduz Joana a
assumir uma identidade de si mesma. O esforço causa-lhe vertigem, revelada
ora pelo exercício de consciência ora pela experiência do fracasso diante o
desamparo da vida, simultaneamente, humana e inanimada: “Depois de não
me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou
com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas
viva” (1980: 72). Essa despersonificação do humano frente à fragilidade de
identidade ou ao fracasso do entendimento acerca da experiência finita e
incompleta, ao contrário do que se poderia supor, aproxima a obra de Clarice
do teatro, pois a trajetória da personagem, mesmo sem movimento definido
está elaborada no plano da ação. Aqui, cabe a retomada da acepção da palavra
“drama” por Stanislavski:
“A vida é ação. Por isso é que a nossa arte vivaz, que brota
da vida, é preponderantemente ativa. Não é sem motivo que nossa
palavra ‘drama’ é derivada da palavra grega, que significa ‘eu faço’.
Em grego, isso se refere à literatura, à dramaturgia, à poesia e não
ao ator ou sua arte. Ainda assim temos muito direito a nos apropriar
dela” (1999: 69).
Eis um adendo importantíssimo para a configuração do conceito de
ação e de drama em Clarice. Ainda no livro A Criação de um Papel de 1999,
o mestre russo pontua com precisão seu conceito de “ação” que, segundo
ele, difere de “movimento”:
“Na maioria dos teatros, incorretamente, toma-se ação no
palco como sendo ação externa. Acredita-se, em geral, que as peças
têm muita ação, quando as pessoas chegam e partem constantemente,
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11
casam-se, separam-se, matam-se ou salvam-se umas das outras. Em
suma, que uma peça é rica em ação quando tem um enredo exterior
interessante e habilmente tecido. Mas isso é um erro. Ação cênica não
quer dizer andar, mover-se para todos os lados, gesticular em cena. A
questão não está no movimento dos braços, das pernas ou do corpo, mas
nos movimentos e impulsos interiores” (STANISLAVSKI, 1999: 69).
AproximidadecomqueacríticaaproximouaobradeClaricedeautores
como Virginia Woolf e James Joyce, em alguns pontos plenamente justificada,
inibiu uma leitura pela via negativa das obras da autora e, em contrapartida,
estimulou a exploração do lado intimista de sua escrita, retirando-a às vezes
do seu próprio tempo de realização. Dado evidente, mas que não se esgota no
espelho subjetivo e epifânico frente ao qual sua obra quase sempre é refletida.
Chamo de “via negativa” a necessidade de materialização da experiência em
Clarice, a idéia não apenas de realização, mas de processo inacabado ou, nas
próprias palavras da autora, do “movimento que explica a forma” (1980: 74).
As vozes que marcam o tempo mnemônico no romance, e que são
responsáveis pela própria memória da personagem principal, dão-se em
forma de play-back. Joana, assim como Krapp – protagonista de Krapp’s Last
Tape de Samuel Beckett (1958) –, “sentia vozes, compreendi-as ou não as
compreendia. Provavelmente no fim da vida, a cada timbre ouvido uma onda
de lembranças próprias subiria até sua memória, ela diria: quantas vozes eu
tive...” (1980: 78). A dualidade entre o mundo interno de Joana e o mundo
externo se torna cada vez menos demarcada, mesmo quando há esforço para
reconhecê-la: “Na verdade ela sempre fora duas, a que sabia ligeiramente que
era e a que era mesmo, profundamente. Apenas até então as duas trabalhavam
em conjunto e se confundiam” (1980: 82).
Há aqui todo um esforço de compreensão sempre frustrado no plano
exclusivamente metafísico da palavra, ocorrendo sobremaneira com a experiência
doplanofísico,oqueexplicaafortepresençadocorpoedasmarcasporeledeixadas
na experiência de Joana. Esse apelo concreto aos sentidos já marca um primeiro
desvio do plano narrativo em sentido ao dramático. Na observação de César Mota
Teixeira (2004: 165-173): “A ênfase na apreensão do ‘instante já’ é outro indício
de radicalização do projeto (existencial e estético) inaugurado em Perto do Coração
Selvagem: novamente à maneira de Joana, narradora-pintora abre e fecha ‘círculos
de vida’, incapaz de alcançar uma totalidade psicológica ou biográfica”.
O aspecto plástico da narrativa clariciana pode ser considerado
o primeiro indício da teatralidade que aqui formulamos. A fala e a ação
são os mecanismos que acoplados ao gesto antecedem à palavra em Joana,
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11
talvez “porque a percepção do gesto vinha-lhe apenas no momento de sua
execução – uma bofetada de suas próprias mãos em seu próprio rosto”.
(1980: 87). A experiência com o absurdo é revelada na impotência frente
a qualquer organização justificável e plausível da existência pelo hábito
puro do discurso. No entanto, a experiência com o absurdo se mostra como
forma de libertação anárquica e perversa para com o mundo tanto no que
abarca sua estabilidade, enquanto uma referência externa ao sujeito, quanto
no que toca a mente auto-sugestionável da personagem: “Às vezes ouvia
palavras estranhas e loucas de sua própria boca. Mesmo sem entendê-
las, elas deixavam-na mais leve, mais liberta” (1980: 87). Aqui, torna-se
importante e sintomático o que diz Beckett no ensaio sobre Proust:
“Assim, a distração é felizmente compatível com a presença
ativa de nossos órgãos de articulação. Repetindo: a rememoração, em
seu sentido mais alto, não se aplica a esses extratos de nossa ansiedade.
Estritamente falando, só podemos lembrar do que foi registrado por
nossa extrema desatenção e armazenado naquele último e inacessível
calabouço de nosso ser, para o qual o Hábito não possui a chave”.
(BECKETT, 1986: 24)
Distosegue-seoplanocontraocampodoconhecidoedoperpectivismo
que em Clarice se altera pelo desvio. Por outro lado, abre-se o horizonte
da irrecuperabilidade do passado, estando o tempo sujeito ao processo de
decantação. Outro recurso importante em Perto do Coração Selvagem está
concentrado na forma dialética movimento / imobilidade, ponto sob o qual
colidem a inquietação da busca e o desamparo do desencontro, este último
sempre triunfando sobre o encontro: “A covardia é morna e eu a ela me resigno,
depondo todas as armas de herói que vinte e sete anos de pensamento me
concederam. O que sou hoje, nesse momento? Uma folha plana, muda, caída
sobre a terra. Nenhum movimento de ar balançando-a”. (1980: 89)
Antes de pensar o conceito, pensemos o movimento da obra não como
dilatação da experiência narrada, mas de afunilamento da mesma; a expansão,
presente e ativa no gênero épico cede, gradativamente, lugar à constrição
do lugar intermediário da personagem, nem completamente dentro nem
completamente fora. Cria-se assim, uma espécie de “foco” que delimita a área de
atuaçãodapersonageme,nocasodeClarice,encontraoseuapogeuemAPaixão
Segundo G. H. (1964), mais precisamente no quarto de empregada que G. H.
resolve visitar. Ainda no caso específico de Joana, o espaço de uma pressuposta
liberdade de atuação (os diferentes planos espácio-temporais pelos quais ela se
desloca) só acontece com o reconhecimento do aprisionamento na linguagem:
“Era uma falsa revolta, uma tentativa de libertação que vinha, sobretudo, com
U
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11
muito medo de vitória” (1980: 95). O fracasso diante da experiência como
auto-realização e enquanto drama histórico, em Clarice, corresponde à queda
dos valores humanos tão presentes nas manifestações literárias do pós-guerra
e ao conseqüente redimensionamento da idéia de sujeito e de sua identidade
em crise. Acerca disso, esclarece-nos Júlio Galharte:
“Há uma crescente atmosfera de crise com relação à
linguagem que atinge o artista moderno. Tal atmosfera se faz presente
nos textos de Lispector e Beckett no aflorar de alguns verbetes-chave
em comum, como ‘fracasso’ ou ‘falha da linguagem’, por exemplo”
(GALHAERTE, 2004: 70).
Ainda no que diz respeito à linguagem beckettiana acrescenta o autor:
“Fracasso e falha. Esses são nomes dados pelos ‘eus’ dos textos
beckettianos para o resultado da busca de uma linguagem que mostre
sua alma. Os enunciadores do autor assumem sua inépcia comunicativa
e um indicativo desse aspecto é a repetição exaustiva de palavras uma
ao lado da outra, como que para mostrar que o enunciado foi acometido
de um acesso de gagueira” (GALHAERTE, 2004: 70).
Percorreremos esses “riscos” e “falhas” no corpo do texto clariciano
como índices latentes de teatralidade. No entanto, em Clarice assim como em
Beckett, os valores apesar de trazerem ressonâncias históricas que culminam
com a sua negação, eles não perdem a conotação positiva de denúncia, ainda
que sem caráter panfletário. Trata-se antes de uma constatação deliberada da
vida em seu estado puro de crueldade, sem nostalgia ou utopias. Em relação
aos homens revela a a narradora Clarice através da personagem Joana:
“Se eu os procuro, exijo ou dou-lhes o equivalente das velhas
palavras que sempre ouvimos, ‘fraternidade’, ‘justiça’. Se elas tivessem
um valor real, seu valor não estaria em ser cume, mas base de triângulo.
Seria a condição e não o fato em si. Porém terminam ocupando todo
o espaço mental e sentimental exatamente porque são impossíveis de
realizar, são contra a natureza” (1980: 100).
Nesse sentido, o conto Mineirinho é uma construção exemplar.
Em Clarice, a quebra de utopias e a ausência de uma conotação nostálgica
contradizem a própria idéia de busca, mas a amplia e a redimensiona. Pelo
menos, a “busca” no sentido de transição, de entrega total para a fisicalização
da linguagem. A experiência com a palavra surge, então, sempre de uma
organização proposital de torná-la plástica (visível, sonora, auditiva, olfativa,
tátil), o que dificulta a leitura estritamente estrutural de sua obra. Para Joana,
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11
o pouco entendimento que tem de si mesma vem pela indistinção entre corpo
e espírito e os seus respectivos lugares na experiência: “E foi tão corpo que
foi puro espírito” (1980: 104). A tentativa de tornar presente a experiência
insurge no romance sob vários aspectos, incluindo o estatuto filosófico. Só que
ao contrário do que a filosofia pode explicar, interessa à narradora exatamente
o que escapa à razão e à inteligência, pois:
“É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar
determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista. Qualquer
homem pode saber mais do que ele e raciocinar com segurança, segundo
a verdade. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na
escuridão tornam-se fosforescentes” (1980: 126).
A analogia ao par “luz/escuridão” aparece também sob o argumento
filosófico da citação “Espinosa/Dante”, respectivamente introduzida em Perto
do Coração Selvagem. Sobre isso é relevante o esclarecimento que Marilena
Chauí fez da questão em Espinosa:
“... em Espinosa, a luz (a substância) se refere e sempre se
reflete nos modos finitos, porque estes são expressões determinadas
dela: não só o intelecto finito conhece o mesmo e da mesma maneira
que o infinito, do qual é parte, como também conhece a essência e
potência do ser absoluto tais como são em si mesmas, e a diferença
entre idéia inadequada (parcial, mutilada, abstrata) e adequada
(total, genética, concreta) é a diferença entre a luz quando difratada
pela imaginação e quando refletida pelo intelecto, pois a primeira
é aquela que possuímos quando o absoluto não constitui apenas a
essência de nossa mente singular e sim muitas mentes singulares
simultâneas (a pluralidade de ondas que se cruzam e se interrompem
no ponto de refração), enquanto a segunda é aquela que produzimos
quando o absoluto constitui apenas a essência singular de nossa mente
(a infinitude de ondas vindas de todos os lados e de todas as direções
refletindo-se, sem perda nem desvio, num único ponto singular.”
(CHAUÍ, 1999: 62)
Esse “ponto singular” em Clarice é sempre o “Sujeito” reconhecido
na contínua dualidade Sujeito/Outro. A experiência negativa adotada
pelo ponto de vista narrativo corrobora para um melhor entendimento
da posição anti-heróica de Joana. Aqui, ao contrário de Édipo, a cegueira
deixa de ser um ato-punitivo fruto da inconsciência do herói sobre os
fatos e passa a se configurar como aceitação do abismo sendo este fato
encarado como “defeito desejado” no curso dos acontecimentos referentes
à experiência da protagonista Joana:
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11
“Sim, sim, foi isso, não fugir de mim, não fugir de minha letra,
como é leve e horrível teia de aranha, não fugir de meus defeitos, meus
defeitos, eu vos adoro, minhas qualidades são tão pequenas, iguais às
dos outros homens, meus defeitos, meu lado negativo é belo e côncavo
como um abismo” (1980: 127)
Esse desnudamento da personagem frente à lente do leitor menos
atento pode expressar apenas uma forma de contraposição com o real, mas
levado a cabo junto à própria concepção de criação da obra aponta para
uma imprecisão formal: a desarticulação da experiência da personagem com
o foco narrativo. A voz de Joana se espalha pelo campo narrativo de modo
contraproducente ao efeito de unidade. Esta, tal qual na tragédia moderna,
dissipa-se e os acontecimentos narrados passam a existir em função de uma
soberana consciência dramática: “A tragédia moderna é a procura vã de
adaptação do homem ao estado de coisas que ele criou” (1980: 129).
Se a procura é vã, não o é menos o caráter assistencialista das
instituições a começar pela célula mater. Esse processo de desconstrução das
bases institucionais que legitimam a condição social do sujeito no mundo,
já presente em Perto do Coração Selvagem em forma embrionária, encontrará
sua forma mais elaborada nos livros-contos da autora, entre eles Laços
de Família (1961) e Felicidade Clandestina (1971), sob este aspecto, são os
mais significativos. Característica que aponta para uma obra que, apesar
da dispersão que assola as personagens, priva pela continuidade temática
e pelos seus aspectos de organização. Elos que se ramificam na escritura
clariciana e constroem, por meio de camadas, o movimento de adensamento
de pontos aparentemente superficiais.
A família acaba em Clarice na própria base que a alicerça: a
incomunicabilidade. Nesse sentido a posição de Joana quando indagada por
Lídia em situação dialógica, mais do que uma crítica ao casamento, mostra-se
como atestado do seu fracasso enquanto instituição:
“Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conservava
porque se arrasta consigo outra pessoa. Há alguém que sempre a
observa, que a perscruta, que acompanha todos os seus movimentos.
E mesmo o cansaço da vida ter certa beleza quando é suportado
sozinha e desesperada – eu pensava. Mas a dois, comendo diariamente
o mesmo pão sem sal, assistindo a própria derrota na derrota do
outro... Isso sem contar com o peso dos hábitos refletidos nos hábitos
do outro, o peso do leito comum, da mesa comum, da vida comum,
preparando e ameaçando a morte comum” (1980: 159)
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11
Qualquer idéia de “felicidade” em Clarice não pode ser encarada sem
o transtorno de sua reverberação. A própria questão da origem das coisas
que já aparece, aqui, e sobre a qual aludimos no início deste capítulo, não
deve ser compreendida fora da idéia de deformação e de fracasso, e da idéia
de inutilidade da criação que se crer validada por um futuro de respostas
positivas. Sobre isso, a imagem de Lady Macbeth trazida por Joana no que
tange à maternidade parece a mais adequada: “Mas depois, quando eu lhe der
leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me
esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil.
Não me sentirei burlada. Mas vencida apenas e direi: eu nada sei, posso parir
um filho e nada sei” (1980: 167). O espaço do “nada sei” é também o espaço
do “entre”, do “intervalo”, não mais o tempo cronológico, apreendido no fluxo
de uma consciência ativa e desperta, mas um tempo invadido pela interrupção
do fluxo inconsciente no ato mesmo de sua reflexão-execução; no aqui e agora
descomprometidos com a ordem das coisas.
“Deixando depois de si o intervalo perfeito como um único
som vibrando no ar. Renascer depois, guardar a memória estranha do
intervalo sem saber como misturá-lo à vida. Carregar para sempre o
pequeno ponto vazio – deslumbrado e virgem, demasiado fugaz para se
deixar desvendar” (1980: 168).
É nesse sentido que a citação de James Joyce presente na primeira
página, logo após o título do livro, mais que uma referência remetida com
o intuito de diálogo entre “estilos”, conduz o leitor a enfrentar o desamparo
dramatizado na experiência de Joana e na própria solidão do ato criador. Aqui
temos mais um ponto de aproximação com o axioma proposto por Beckett e
por ele levado a cabo no processo formal de sua obra: “Estamos sós. Incapazes
de compreender e incapazes de sermos compreendidos”. É no enfrentamento
de si que a existência de Joana se dá de modo muito próximo do teatral; o
“como se” tão caro a Stanislávski e que aparece inúmeras vezes no interior
do romance conduz ao ato de representação: “Como se fosse mentira a sua
existência” (1980: 175). Em Clarice a personagem é sempre encarada do ponto
de vista da criação, ou melhor, da relação imperfeita entre criador/criatura.
A identidade da personagem oscila em todos os níveis possíveis,
afastando-se de qualquer relação de dependência entre os fatos narrados e
sua verossimilhança. Desse modo, a dissolução da identidade, impossível de
ser apreendida em sua totalidade, aparece até no plano sexual da personagem:
“homem assim era Joana, homem. E assim fez-se mulher e envelheceu” (1980:
183). Mais que uma crítica ao universo masculino, como, aliás, a crítica feminina
sobre Clarice não cansa de repetir, o que está em jogo não é apenas a questão
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ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11
de gênero, mas, sobretudo, a matriz de uma escrita andrógina referente,
sobretudo, ao não-lugar do sujeito: “Eles dois eram duas criaturas. Que mais
importa?” (1980: 182). Matriz responsável pela condição insuficiente do sujeito
no mundo: “É que tudo o que eu tenho não se pode dar. Nem tomar. Eu mesma
posso morrer de sede diante de mim”. (1980: 191). A aceitação da solidão como
único caminho possível se caracteriza de modo determinante no espaço fechado,
palco italiano, foco ainda que imaginário, no qual as personagens claricianas se
vêem. Nesse sentido, Joana é um exemplo primoroso da crise experimentada
pelas personagens no drama moderno: “havia um círculo intransponível e
impalpável ao redor daquela criatura, isolando-a” (1980: 194.)
A interposição de diálogos abundantes nos textos narrativos de
Clarice, juntamente, com o isolamento típico de suas personagens, forma um
paradoxo da escrita que beira o estiolamento da narrativa, salvo não fosse o
ímpeto analítico da “busca” que a mantém.
Atentativadeaproximaçãonuncaconseguetransporolimiteanteposto
pela fronteira do ser. Todas as tentativas de ajuste entre esses limites fracassam,
restando por vezes apenas a consciência de síntese: “tu és um corpo vivendo,
eu sou um corpo vivendo, nada mais” (1980: 201). Daí resulta a imperfeição do
movimento assumido como matéria de expressão: “... e eu só sei usar palavras
e as palavras são mentirosas...”, ou ainda mais contundente: “... serei brutal e
mal feita...” (1980: 216). O ser-personagem é-nos dado em forma de exercício,
um laboratório de criação e de novas simetrias em andamento.
Referências bibliográficas
BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Rosen Blat Nestrovski. São Paulo:
L&PM Editores, 1986.
CHAUÌ, Marilena. A Nervura do Real: Imanência e Liberdade em Espinosa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GALHARTE, Julio Augusto Xavier. “Na Trilha da Despalavra: Silêncios em
Obras de Clarice Lispector e Samuel Beckett”. In: Leitores Leituras de Clarice
Lispector. Org. Regina Pontieri. São Paulo: Editora Hedra, 2004.
LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. 9ª ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980.
STANISLAVSKI, Constantin. A Criação de um Papel. Trad. Pontes de Paula
Lima. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Trad. Elia Ferreira Edel.
Petrópolis-RJ: Vozes, 1994.
TEIXEIRA, César Mota. “O Monólogo Dialógico: Reflexões sobre Água Viva
de Clarice Lispector”. In: Leitores e Leituras de Clarice Lispector. (Org. Regina
Pontieri). São Paulo: Editora Hedra, 2004.
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Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.Dezembro 2008 - N° 11
CINE HORTO GALPÃO:
UM PROJETO ARTÍSTICO PEDAGÓGICO
Éder Sumariva Rodrigues1
Grupo Galpão: a trajetória dos espetáculos
O Grupo Galpão foi criado por cinco atores em 1982, após uma
experiência de trabalho com o diretor George Frosher e o ator Kurt Bildstein,
ambos do Teatro Livre de Munique. O GrupoGalpão ao longo de suatrajetória
concentrou seus esforços em pesquisa de linguagem, percorrendo as mais
diversas técnicas, buscando a introdução de novos referentes técnicos para
o grupo. Neste sentido diversificou o olhar da direção, alternando convite a
diferentes diretores, e eventualmente trabalhando com a direção de um dos
integrantes do grupo.
Resumo
Este texto aborda a trajetória do
GrupoGalpãoapartirdoreconhecimento
das diversas linguagens que sustentaram
as montagens realizadas pelo grupo.
Este reconhecimento permite perceber
que o projeto pedagógico do grupo
conforma um sistema aberto, destinado
a constante formação do ator e a busca
incansável de novos procedimentos,
novas imersões cênicas. O grupo realiza
ações pedagógicas através de um projeto
catalisador das experiências produzidas
ao longo de sua trajetória do grupo. O
texto ainda identifica o projeto Galpão
Cine Horto como um centro de referência
para criação, pesquisa e fomento teatral.
Palavras-chave: Grupo Galpão,
projeto pedagógico, Galpão Cine Horto.
Abstract
This text approaches the pathway of
the Galpão Group theatre where of the
recognition of the different languages
to support the realized montage of the
group. This recognition allows realizing
pedagogic project of the group as an
open system, destined to the constant
formation of the actor and the tireless
pursuit of the news procedures, news
cenics immersions. The group realizes
pedagogic actions through of the catalyst
project of the produced experience along
of the its pathway of the group. The text
still identifies the project Galpão Cine
Horto as a centre of reference to creation,
research and theatre furtherance.
Keywords:GalpãoGroup,Pedagogic
Projetc, Galpão Cine Horto.
1
Éder Sumariva
Rogrigues é
Mestrando do
Programa de Pós-
Graduação em Teatro
na Universidade
do Estado de Santa
Catarina (UDESC).
Participa do projeto
de pesquisa "O
Teatro de Grupo
e a Construção
de modelos de
trabalho do ator".
E-mail: sumariva_
rodrigues@yahoo.
com.br
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Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues. Dezembro 2008 - Nº 11
Nas diferentes encenações do grupo funcionaram sempre como
estímulo à prática de pesquisa atorial. Por isso, o Galpão busca incorporar ao
processo de ensaios a aprendizagem de técnicas que satisfaçam a necessidade
paraamontagemqueestãorealizando,masqueaomesmotempoimpulsionemo
grupodeatoresanovosterritórios.Odesenvolvimentodesseprocessoassociado
de aprendizagem e ensaio criativo pode ser considerado uma das matrizes
geradas pelo grupo desde de seus primeiros passos. Consequentemente pode-
se dizer que o trabalho grupal aparece imerso sempre na descoberta das novas
possibilidades cênicas que vão além do desenvolvimento dos espetáculos.
A primeira opção do Grupo Galpão foi encenar na rua, em 1982, “E
A Noiva Não Quer Casar” com direção coletiva e texto de Eduardo Moreira,
utilizando elementos da linguagem circense. Logo em seguida, em 1983,
levaram à cena o espetáculo infantil “De Olhos Fechados” sob direção de
Fernando Linares e autoria de João Vianney e, em 1984 encenam o espetáculo
de teatro de rua “Ó Procê Vê na Ponta do Pé” (criação coletiva), espetáculos
nos quais o grupo ensaiou a utilização da linguagem clownesca. Sob direção
de Eduardo Moreira e Fernando Linares, encenam em 1985 o texto de Carlo
Goldoni “Arlequim Servidor de Tantos Amores”, experimentam técnicas da
Commedia dell´Arte e da máscara italiana que, posteriormente em 1986 foi
aprofundado na montagem de criação coletiva e direção de Paulinho Polika
“A Comédia da Esposa Muda - que Falava Mais do que Pobre na Chuva”. No
mesmo ano, “Triunfo, um Delírio Barroco”, Carmen Paternostro foi responsável
pela direção, concepção cênica e roteiro final do espetáculo, representou uma
experiência com a Cia. de Dança do Palácio das Artes.
Seguindo o viés experimental, em 1987 o grupo encenou o texto de
Eduardo Moreira e Antonio Edson – que também foi responsável pela direção -
“Foi Por Amor”, esquete que abordava a realidade brasileira criticando os crimes
passionais e o machismo dominante na sociedade. “Corra Enquanto é Tempo” foi
encenado em 1988 com autoria e direção de Eid Ribeiro, uma paródia sobre
grupos religiosos evangélicos que utilizava espaços da rua muito similares aos
abordados pelos grupos religiosos. Também sob direção de Eid Ribeiro, “Álbum
de Família” (1990) texto do dramaturgo Nelson Rodrigues marcou o retorno
ao palco, e significou oportunidade para experimentação atorial com uma
dramaturgia mais trágica e densa. Esta encenação foi marco divisor na estrutura
organizacional do grupo, conseguiram adquirir a própria sede, o Galpão.
“Romeu e Julieta” (1992) espetáculo de teatro de rua inspirado na
obra de Willian Shakespeare e com direção de Gabriel Villeta , teve uma
repercussão que contribuiu de forma significativa para o reconhecimento
nacional do grupo, retratava o universo cultural do sertão mineiro, e ajudou a
conformar uma imagem do grupo, constituindo quase uma marca do Galpão.
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Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.Dezembro 2008 - N° 11
O encontro com Villeta significou uma reestruturação no interior do grupo,
gerou uma estrutura profissional que deu suporte aos posteriores trabalhos
desenvolvidos pelo Galpão. Com a projeção conquistada pelo trabalho de
direção de Villela, tanto a nível nacional e internacional2
, o grupo decidiu
continuar com novas concepções teatrais trazidas pelo diretor paulista.
Seguindo o processo de renovação teatral, Villeta decide montar a
partir da adaptação de Arildo de Barros do texto de Eduardo Garrido “O
Mártir do Calvário” o espetáculo “A Rua Amargura” (1994). Esta encenação
representou uma continuidade neste processo de formalização dessa imagem
do grupo, ao associar a temática bíblica com elementos característicos da
cultura popular brasileira.
“Um Molière Imaginário” (1997) foi adaptado a partir do texto “Um
Doente Imaginário”, último texto escrito por Jean-Baptiste Poquelin, mais
conhecido como Molière. Este espetáculo foi dirigido por Eduardo Moreira e
constituiu um momento de consolidação grupal e autonomia interna, “o grupo
procurava andar com suas próprias pernas” (BRANDÃO, 2002: 138). Por um
lado havia a pressão da continuidade qualitativa dos trabalhos realizados
anteriormente que consequentemente refletia na expectativa do público.
Em 1998, o ator e diretor Cacá Carvalho ministra workshop com o Grupo
Galpão baseado no texto O Cavaleiro Inexistente de Ítalo Calvino. A partir dessa
experiência, o ano seguinte foi marcado pela produção do espetáculo “Partido”
(1999) adaptado da obra “O Visconde Partido ao Meio”, também do escritor italiano
Calvino. Carvalho nesta encenação explorou uma linguagem mais poética
experimentando o universo existencialista. Esta produção marcou os 17 anos de
trajetóriaeconsolidaçãodotrabalhodesenvolvidopelogrupo.“UmTremChamado
Desejo” (2000) do autor americano Tennessee Williams e dirigida por Chico
Pelúcio, outro fundador do grupo. Este espetáculo foi concebido como comédia
musical, recriava o difícil dia-a-dia de uma companhia teatral dos primeiros anos
do século XX, estabelecendo um inevitável paralelo com a própria vida do grupo.
“O Inspertor Geral” (2003) do russo Nicolai Gógol sob a direção de
Paulo José representa uma reafirmação da estratégia do Galpão de se associar
a diretores já renomados para experimentar novos caminhos. Essa parceria se
reafirmou com a estréia em 2006 de “Um Homem é um Homem” do dramaturgo
alemão Bertolt Brecht é possível visualizar outra vez o projeto cênico de Paulo
José buscando uma articulação com o capital técnico do elenco grupal.
Esta trajetória, que consolidou um espaço significativo no contexto
teatral brasileiro, se articulou a partir de um projeto grupal que insistiu na
formação técnica dos atores. Isso possibilitou a experimentação de diversas
linguagens cênicas propostas pelos diretores convidados. Os atores do Galpão
2
O Galpão foi convi-
dado para apresentar
o espetáculo "Romeu
e Julieta" no Globe
Theatre (Londres/
Inglaterra). Globe
Theatre é uma fiel
reconstrução do
teatro construído em
1599, onde trabalhou
Shakespeare e para
qual escreveu muitas
peças de teatro. É
um único teatro in-
ternacional dedicado
à exploração da obra
de Shakespeare.
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Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues. Dezembro 2008 - Nº 11
conformaram um capital criativo muito favorável para a apropriação de uma
multiplicidade das possibilidades cênicas. Assim, o grupo pode pautar-se “por
um teatro de pesquisa, onde o riso e a possibilidade são a tônica. Impulsionados
pelo desejo de fazer um teatro calcado no desenvolvimento de uma própria
linguagem de grupo”3
(MELLO, 2001: 01).
Este coletivo de atores articulou sua prática cênica com um projeto
coletivo de construção de uma estrutura de trabalho que permitisse o
aprofundamento técnico e a sobrevivência por meio do teatro. Por isso a
referência da aprendizagem caracteriza o grupo.
Galpão Cine Horto: espaço de pesquisa, aprendizagem e
fomento do teatro
Desde seus primeiros anos de trabalho o Galpão almejava ir além
da criação de espetáculos. Em 1984, com apenas dois anos de existência e,
contando com a jovialidade de seus integrantes as perspectivas promissoras
do grupo eram visíveis também para a crítica. O jornalista Marcelo Procópio
do Jornal Estado de Minas registrou em 14/10/1984 os anseios e os desejos
desse conjunto de atores que mais tarde tornar-se-ia realidade:
Eles acreditam que é possível ser profissional de teatro aqui
[em Belo Horizonte]. Trabalham cerca de cinco horas por dia, buscam
ter uma infra-estrutura que garanta a vida do grupo. E insistem no
grande sonho do espaço: um galpão para espetáculo, escola. (apud
BRANDÃO, 2002: 75)
Essa dinâmica de trabalho profissional, baseada na disciplina e no
companheirismo, repercutiu no projeto que redundou na abertura de um
espaço cultural que representou um passo decisivo para o desenvolvimento
artístico do Grupo Galpão.
A percepção de que este “novo espaço simboliza o esforço destes
quinze anos e inaugura os próximos que virão” (BRANDÃO, 2002: 146),
impulsionou o grupo a assumir um projeto que demandou um grande
esforço de produção.
A abertura do espaço Galpão Cine Horto4
, significou um importante
acontecimento para a vida cultural de Belo Horizonte, proporcionou o
desenvolvimento e fomento da criação teatral, compartilhamento de idéias
e pesquisa bem como posteriormente repercutiu no nascente movimento de
coletivos teatrais denominado Redemoinho5
.
Vizinho da sede do grupo na Rua Pitangui, o Cine Horto era um
antigo cinema abandonado, que foi transformado a partir da intervenção do
3
Artigo para o
programa "Grupo
Galpão: Uma História
de Risco e Rito".
4
O site do Galpão
Cine Horto pode
ser acessado pelo
endereço: www.
galpaocinehorto.
com.br
5
O site da
Redemoinho pode
ser acessado pelo
endereço: www.
redemoinho.org
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Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.Dezembro 2008 - N° 11
grupo no momento de expansão de suas atividades. Isso se deu também a
partir de discussões com artistas da cidade.
O Cine Horto Galpão, inaugurado em março de 19985
, tornou-se um
centro cultural que cumpre múltiplas funções, tendo como o eixo norteador
à reciclagem de atores. Assim, o Cine Horto possibilita aos artistas locais o
aprofundamento de técnicas, a realização de pesquisas, e formação técnica,
além de ser um centro de fomento do teatral.
Nos seus onze anos de trajetória, o Cine Horto abrigou projetos
concebidos pelo grupo, que visavam suprir carências identificadas pelo
Grupo no ambiente teatral de Belo Horizonte. O Cine Horto tornou-
se lugar de encontro de pessoas do teatro mineiro, possibilitando trocas
de experiências entre diferentes grupos, bem como também contato com
artistas de outras regiões do país.
O espaço também funciona como sitio de veiculação de projetos
culturais produzidos na cidade. Neste sentido, seu principal eixo é a geração
e a difusão de produtos teatrais. Estas tarefas são realizadas a partir de uma
política de abertura para a comunidade civil e artística, criando oportunidades
para o acesso às atividades desenvolvidas tanto neste centro cultural.
Com a intensa carga de viagens que o Galpão realiza durante todo
o ano, alguns projetos são realizados por profissionais, que se destacam
no circuito teatral de Belo Horizonte, e são contratos pela direção do Cine
Horto. Assim, o Cine Horto opera como um projeto de extensão do grupo,
criando oportunidades de ensino e aprendizagem teatral através de diferentes
atividades. Com apresentações de espetáculos, conferências, oficinas e
encontros, o grupo estabeleceu um projeto que fomenta o acesso ao teatro e,
dessa forma, discute os modos de criação e produção ao mesmo tempo em que
constitui um lugar de encontro.
Os projetos, atualmente em curso no Cine Horto, em suas
especificidades atendem a diferentes anseios dos artistas. O projeto Oficinão6
está dirigido à realização de uma pesquisa temática que relaciona membros
do grupo Galpão com alunos participantes. Neste projeto, o grupo aplica
junto aos alunos, técnicas desenvolvidas no trabalho cotidiano do grupo, e
particularmente aquelas absorvidas a partir da experiência com os diferentes
diretores convidados.
No Oficinão também se busca a elaboração de novos exercícios, e o
aprimoramento de técnicas. Este projeto permite que os alunos participem
de uma encenação que supõe o envolvimento com a construção geral do
espetáculo desde a produção, realização de figurinos e cenários, além da
5
O Grupo Galpão já
tinha 16 anos de
trajetória quando
inaugurou o Cine
Horto, portanto
os atores tinham
diversas experiências
de linguagens.
6
A primeira edição
aconteceu em 1998
com a direção de
Chico Pelúcio com
o espetáculo
"Noite de Reis".
Até a oitava edição,
totalizou-se 30.000
espectadores com
285 apresentações
neste espaço cultural.
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Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues. Dezembro 2008 - Nº 11
interpretação. Assim, esta oficina termina por conformar uma instância de
formação de novos grupos, dado que, ao finalizar o projeto, vários alunos se
reúnem para dar seguimento aos seus processos criativos.
O Festival de Cenas Curtas 3 X 47
é um projeto de estímulo à criação
cênica e a revelação de novos talentos. A seleção dos espetáculos breves é feita
pelo Grupo Galpão e convidados e tem como critério de avaliação a pesquisa e
da proposta teatral dos grupos proponentes. O Festival propõe que os grupos
elaborem uma apresentação de um esquete, em aproximadamente 15 minutos.
As esquetes são submetidas ao voto popular, e o ganhador ganha como prêmio
a possibilidade de realizar uma temporada no Galpão Cine Horto.
Sabadão é um evento mensal que tem por finalidade realizar aulas-
espetáculo, palestras, debates ou exibição de vídeo, sempre com a presença de
um artista renomado das artes cênicas, que interagem com o público. A troca
de experiências proporcionada por este projeto permite o contato direto com a
comunidade artística local que, a partir disso, tem a oportunidade de interagir
com outras formas de reflexão sobre a cena teatral brasileira.
Aproveitando a própria história do Cine Horto, o Grupo Galpão insere
noprojetoConexãoGalpãodoistiposdeatividadesquetêmaprioridadedeatender
estudantes e comunidade em geral, realizando assim um programa educativo na
cidade. Jáo ConexãoCinema, difunde ahistóriado cinema, relacionando-a, quando
possível com a própria história do local. Para isso o grupo utiliza a pequena sala
de projeção que foi conservada no Cine Horto. Este projeto atende crianças de 5
a 10 anos relacionadas com diferentes instituições. Conexão Teatro é um projeto
que se dedica à história do teatro e suas transformações, e está destinado às
crianças e aos pré-adolescentes, abarcando a faixa etária dos 9 aos 12 anos.
Retomando as origens do grupo, o projeto Cine Horto Pé na Rua,
proporciona a vivência do teatro de rua. Assim, os alunos que freqüentam
este projeto podem experimentar a linguagem da rua que foi a matriz do
trabalho do Galpão. Ao abordar o uso da rua o projeto amplia as perspectivas
de intervenção cênica dos atores nos espaços da cidade, propondo a criação
de novas formas de imersão artística. A primeira montagem deste projeto
intitulou-se “Papo de Anjo” com a direção de Chico Pelúcio e Lydia Del Picchia,
e foi realizada com os atores participantes do projeto Oficinão de 2003/2004.
Ultrapassando as fronteiras da cidade de Belo Horizonte, o Grupo
Galpão lançou, em 2004, o projeto Redemoinho - Rede Brasileira de Espaços de
Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral tem como finalidade reunir grupos
de teatros que administram o próprio espaço de criação, o compartilhamento
e a troca de experiências entre os grupos. As agrupações que compõem a rede
de integração Redemoinho possuem espaço próprio para criação e pesquisa
7
O primeiro festival
aconteceu em 2000.
U
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Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.Dezembro 2008 - N° 11
cênica. Esta rede de integração discute a produção teatral do Brasil, troca
experiências e busca, através deste intercâmbio, fortalecer as bases de fomento
cultural no país. O projeto Redemoinho caracteriza-se pela descentralização8
,
visando realizar o evento em todos os espaços culturais dos grupos integrantes,
realizando o evento a cada ano em uma sede diferente.
Palavras finais
O projeto do Galpão, grupo que nasceu de uma oficina em um
evento teatral, consolidou a criação de um espaço de fomento que funciona
como berço de novos grupos. Por isso, pode-se dizer que as atividades
desenvolvidas no Cine Horto Galpão conformam um projeto pedagógico
de impacto tanto local como nacional. Este projeto, além de oferecer
aprendizagem técnica, também repercute como modelo de prática pedagógica
grupal, apesar de que as condições de trabalho do Cine Horto Galpão sejam
de difícil reprodução ao longo do país. Atualmente, o Cine Horto além de
desenvolver projetos focados no fomento e produção teatral, possui outros
dois projetos em andamento que completam a estrutura de funcionamento
idealizada pelo grupo: o Centro de Memória e Pesquisa do Teatro que abriga
acervo bibliográfico e videográfico especializado na área teatral e, desde
2004 publica anualmente a Revista de Teatro Subtexto, objetiva colocar em
circulação as experiências dos coletivos de teatro.
A política de compartilhamento levada a cabo no Cine Horto implica
na abertura do grupo a novos olhares, por isso este espaço se constituiu em
lugar de criação e de reflexão, onde se reflete sobre o fazer teatral em grupo.
Referências bibliográficas
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Grupo Galpão: Uma história de risco e rito.
2º ed. Belo Horizonte: o grupo, 2002.
MELLO, Sérgio Bandeira de. Grupo Galpão: Uma História de Risco e Rito. 2001.
MOREIRA, Eduardo da Luz. Grupo Galpão: Diário de Montagem
A Rua da Amargura. Belo Horizonte, UFMG, 2003.
PELÚCIO, Chico. Galpão Cine Horto – Espaço de criação e incentivo ao
trabalho em grupo. Revista Subtexto, Belo Horizonte, v. 01, n 01, rona 2004.
RODRIGUES, Eder Sumariva. Características e perspectivas da identidade do
Teatro de Grupo no Brasil. In III JORNADA PEDAGÓGICA NACIONAL DO
SINPRO, 2005, Santa Catarina: Itajaí, 2005. p. 67–77.
8
2004 e 2005 na sede
do Grupo Galpão em
Belo Horizonte; 2006
na sede Barracão
Teatro em São Paulo;
e em 2007 será
realizado em Porto
Alegre na sede do
Grupo de Atuadores
Terreira da Tribo
Ói Nóis Aqui Traveiz.
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Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues. Dezembro 2008 - Nº 11
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11
ESPAÇO TEATRAL E PERFORMATIVIDADE.
ESTRATÉGIAS E TÁTICAS NA CENA
MODERNA E CONTEMPORÂNEA
Evelyn Furquim Werneck Lima1
O presente artigo tem por objetivo discutir os conceitos de sistemas
disciplinares e de performatividade2
no espaço cênico, buscando relacioná-los
na História do Espetáculo.
A História Cultural - vertente nascida na École des Annales-, com Marc
BlocheLucienFèbvre,nosanos1930,edesenvolvidaporJacquesLeGoff,Georges
Duby, Pierre Bourdiu e, mais recentemente, Roger Chartier, foi atravessada
Resumo
O presente artigo tem por objetivo
discutir os conceitos de sistemas
disciplinares e de performatividade no
espaço cênico, buscando relacioná-los no
âmbito da História do Espetáculo, com
fundamento nas teorias e conceitos de
Michel Foucault e Michel de Certeau.
Ambos permitem uma abordagem
teórica sobre a questão dos métodos e
da disciplina do ator. Conclui-se que a
técnicadeimprovisaçãofreqüentenacena
moderna e contemporânea parece refutar
os conceitos foucaultianos, aceitando,
ao contrário, a prática das táticas
propostas por Certeau.
Palavras-chave: espaço teatral,
sistemas disciplinares, história do
espetáculo.
Abstract
The present article focuses in the
discussion of concepts of discipline
and performativity in the scenic space,
trying to relate them in the context of
the Performing Arts History, based in the
theories and concepts of Michel Foucault
and Michel de Certeau. Both allow a
theoretical approach on the subject of
the methods and the actor’s discipline
and performing. The conclusions are
that the technique of the modern and
contemporary scene seems to refute
Foucault´s concepts, accepting, to the
opposite, the practice of the tactics
proposed by Certeau.
Keywords: theatrical space,
disciplinary systems, performing arts
history.
1
Evelyn Furquim
Werneck Lima é
professora Associada
do Centro de Letras e
Artes e do Programa
de Pós-Graduação
em Teatro (UNIRIO).
Membro do Centre
de Recherches
Interdisciplinaires sur
le Monde Lusophone
(Paris X-Nanterre).
Pós-doutora em Artes
e doutora em História
Social (UFRJ/EHESS).
Coordenadora do
Laboratório de
Estudos do Espaço
Teatral. Pesquisadora
do CNPq e da FAPERJ.
2
O termo
performatividade,
nascido e
desenvolvido entre
os estudos da
performance, indica
um "fazer como", "um
fazer fazendo como".
Designa as relações
de simulação
estabelecidas entre
oautor/ator/performer
com o real - quer
através de recursos
ficcionais quer auto-
induzidos, visando
iludir, fazer crer/
enganar o
espectador e ou
até a si mesmo,
através de
simulações.
Disponível em http://
www.ceart.udesc.br,
acessado em
25.set.2008.
U
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11
por duas personalidades que a meu ver são dois furacões no meio das teorias e
filosofias históricas: Michel Foucault e Michel de Certeau. Ambos permitem uma
abordagem teórica sobre a questão da performatividade e da disciplina do ator.
Decidi discutir este tema, pois nos anos que se seguiram às publicações
e palestras destes dois autores, foram radicalmente alterados não só conceitos
da História tout court, porém da História de todas as atividades culturais, entre
elas a do Teatro e, por conseqüência, da História do Espetáculo.
Uma das discussões mais polêmicas é encontrada na obra de Foucault
intitulada A Palavra e as Coisas, na qual o autor chama atenção para a questão
da linguagem, mais precisamente, discute a emancipação da linguagem em
relação às coisas. Segundo ele, não haveria mais unidade entre as coisas e
a linguagem, unidade perdida no tempo, unidade que se deu no período
clássico da história, e que na era moderna se esfacela. Esta afirmativa deflagra
o paroxismo da fragmentação, que têm pautado as artes contemporâneas
(FOUCAULT: 2002).
Para Foucault, ainda no século XIX, Nietzsche teria sido o primeiro
filósofo a trazer a linguagem para o cerne de todas as questões, a propor
uma reflexão radical sobre a linguagem. Antes negligenciada como objeto
de estudo filosófico, a linguagem constitui hoje o centro da curiosidade do
pensamento contemporâneo, passando a ocupar um lugar central na produção
de reflexão, arte, cultura.
Este autor defende que após a ruptura com a regra da “representação”
e de uma “unidade” que não pode ser restaurada (FOUCAULT, 2002: 419),
os “modos de ser passaram a ser múltiplos”. Acredita que houve uma ruptura
da ordem clássica, um fracionamento da linguagem e uma unidade perdida
da linguagem. A questão que aflora hoje é “seria o personagem teatral uma
unidade?” Qual a unidade possível hoje?3
Segundo o autor, cada época se
caracteriza por uma configuração geral do saber comum aos vários saberes
particulares, a qual determina o que pode ser pensado, como pode ser pensado,
dentro de critérios particulares.
Além da questão da emancipação da linguagem, em sua obra
Vigiar e Punir, escrita em 1975, Foucault defende, sobretudo, que o poder se
instala na horizontalidade do sujeito individualizado, modelando seu corpo
até à passividade. Uma anatomia do poder define o poder que se pode ter
sobre o corpo, “aumentando as forças do corpo (em termos econômicos
de utilidade) e diminuindo essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência)”. Acrescenta que, “(...) a coerção disciplinar estabelece no corpo
o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”
(FOUCAULT, 1987: 127).
3
Foucault tenta
analisar, definir, o
solo epistemológico
que serviu de base
para rupturas, o
nascimento de
novos saberes e,
finalmente, o papel
do homem e das
ciências humanas a
partir do século XIX.
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11
Vigiar e punir é o relato das formas que produziram o indivíduo,
tornado normatizado por um poder maior que ele. Entretanto, para refutar
esta disciplina corporal do indivíduo face à sociedade e as instituições, destaco o
também francês Michel de Certeau, que, em sua obra A Invenção do cotidiano, de
1980, conceitua as práticas das estratégias e táticas, demonstrando que o corpo
pode transgredir a disciplina e dar conta das artes de fazer (CERTEAU, 1994:
21). Este pensador demonstra que um jogo que táticas silenciosas e sutis se
insinuam quando o corpo ou o indivíduo não deseja se submeter às estratégias.
Tratarei mais tarde destas questões quando falar de performatividade.
Ao investigar a cena teatral entre 1970 e 1990, principalmente na
Europa e EUA, o teórico Hans-Thies Lehmann identificou que aqueles
espetáculos teriam como principal característica comum o rompimento com
os conceitos utilizados no “teatro dramático”, o qual define como “pensado
tacitamente como um teatro do drama”. Ele inclui entre os fatores teóricos
conscientes as categorias “imitação” e “ação”. Este autor afirma que “o teatro
dramático está subordinado ao primado do texto”. (LEHMANN, 2007: 25)
Não creio que se possa generalizar este primado do texto com o que
Lehmann conceitua como “teatro dramático” e que este teria cedido lugar ao
“teatro pós-dramático” após os anos 1970, pois o teatro em cena é considerado
diferente da literatura dramática há muito tempo.
Entendo que houve uma passagem conflituosa do campo dos signos
lingüísticos para o campo dos signos visuais, mas diferentemente de justificar
esta mudança apenas quando surgiu a figura do encenador, ou defender esta
transformação apenas na segunda metade do século XX, já identifico uma
demarcação relevante desta “batalha” desde os trabalhos do autor inglês Ben
Jonson e do arquiteto e cenógrafo Inigo Jones, como também afirmam Oddey
e White, referindo-se às montagens encenadas nos Court Masques, ainda
no século XVII, quando as peças escritas pelo primeiro eram radicalmente
transformadas quando encenadas (ODDEY e WHITE, 2008: 145).
Em recente estudo, Oddey e White traçam um brevíssimo, porém
detalhado panorama da questão. Reafirmam que o ponto crucial da atividade
teatral acontece no palco e esta atividade é uma experiência visual apresentada
em três dimensões e que “refletem a identidade cultural da sociedade que o
está assistindo” (ODDEY e WHITE, 2008: 145).
Apesar de citar Brecht como um marco das bases do teatro pós-
dramático, Lehmann, alega que Brecht não pertence a essa nova estética
marcada por uma absoluta liberdade no que tange à construção cênica, sem se
subjugar a modelos, formas ou fontes. Para o autor alemão, as encenações de
Brecht estavam sempre presas ao texto escrito. Assim como Gerd Borheim,
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11
concordo que Brecht utilizava “uma gramática, um todo completo e exato de
regras e métodos”. Entretanto, o próprio crítico argumenta que, partindo da
racionalidade, Brecht provoca “uma cisão entre o espetáculo e o personagem, a
cena e o texto, e esta cisão vai se refletir também na relação do público com o
espetáculo” (BORNHEIM, 2001: 27).
Para Pavis, na tradição ocidental o texto dramático permaneceu
por muito tempo como um dos componentes essenciais da representação.
Entretanto, após as mudanças de paradigmas e a possibilidade de o encenador
imprimir no texto encenado a marca de sua visão pessoal, o texto dramático
foi deixado à disposição dos filólogos, passando-se da filologia à cenologia
(PAVIS, 2003:185).
Citando como exemplo as encenações de Vilar, Jean-Jacques Roubine
alega que o teatro contemporâneo contrapõe à literatura dramática uma nova
história teatral: uma história das formas, das buscas, das inovações do palco
(ROUBINE, 1998: 57) e Pavis defende que a encenação hoje não é mais a
passagem do texto à cena e que o texto não deve ser o pólo de atração para o
ato da representação (PAVIS, 2003:192).
Espaço teatral e performatividade: diálogos
A experiência espacial, tanto no edifício teatral como fora dele, dispõe
de duas possibilidades, entre as quais todas as teorias do espaço podem oscilar:
(i) Concebe-se o espaço como um espaço vazio que se deve preencher; (ii)
Considera-se o espaço como invisível, ilimitado e ligado a seus utilizadores,
a partir de coordenadas, de seus deslocamentos, de sua trajetória, como uma
substância “não a ser preenchida, mas a ser estendida”. A essas duas concepções
antitéticas do espaço correspondem duas maneiras diferentes de descrevê-lo:
o espaço objetivo externo e o espaço gestual.
Pavis considera o espaço objetivo externo como o espaço visível,
frontal muitas vezes, preenchível e descritivo, onde ele distingue duas
categorias:
• o lugar teatral, ou seja, o prédio e sua arquitetura, sua inscrição na
cidade, mas também o local previsto para a representação ou ainda
• o espaço cênico: lugar no qual evoluem os atores e o pessoal técnico:
a área de representação propriamente dita e seus prolongamentos para coxia,
platéia e todo o prédio teatral (PAVIS, 2003:141-142)
As formas de lugar teatral foram se modificando de acordo com cada
cultura e cada temporalidade. Na linguagem dos espetáculos, as relações
espaciais criadas surgiram a partir da organização do espaço cênico, mais
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11
especificamente, do desenvolvimento da arquitetura da casa de espetáculos.
Na Grécia clássica as artes cênicas demandaram o anfiteatro grego. No palco
principal apenas os protagonistas ocupavam esta faixa entre o palco e o público
e tinham como função representar os comentários e reações do povo perante os
nobres e os deuses. Havia, assim, uma grande interatividade entre os artistas e o
público. O mesmo acontecia nos teatros em semi-círculos e anfiteatros romanos,
os quais, apesar de não serem mais escavados nas rochas e sim edificados sobre
estruturas em arcos, apresentavam sempre um palco tipo arena.
Durante a Idade Média, o teatro profano era perseguido pelo
Cristianismo, havendo permissão da Igreja apenas para realizar os “Mistérios”
no adro ou no interior do edifício religioso. Ainda no medievo, os atores tiveram
que ocupar espaços não muito nobres, como carroças, tablados, praças, não
possuindo um espaço específico para apresentar seus espetáculos.
Teatro de criação coletiva, de jogos cênicos sob máscaras e de
personagens tipos, que caricaturavam a sociedade, a Commedia dell’arte
significou, literalmente, a profissionalização do teatro: os atores ganhavam a
sua vida representando tais comédias, ao serem freqüentemente contratados
e remunerados para se apresentarem em espaços privados, como nos grandes
castelos e palácios. Esses artistas eram capazes de representar comédias,
tragédias, tragicomédias, pastorais, além de farsas. Surgiram por volta de
1550 e se eternizaram na historia da cultura.
Desde a proposta do Teatro Olímpico de Vicenza, obra do arquiteto
Andréa Palladio inaugurada em 1580, o ator ficava bem próximo à platéia até a
adoção do longínquo e frontal palco italiano, cujo ápice é o La Scala de Milão. O
corpo dos atores ficava então bem distante para criar espaços de ilusão. (LIMA
& CARDOSO, 2006) O palco italiano foi planejado para criar um ambiente de
magia ilusionista, com o palco cênico separado da orquestra e da platéia.
Em obra de referência sobre a arquitetura do espetáculo no Ocidente
afirmo que o palco italiano - adotado em todo o mundo ocidental devido à
exportação de gosto pelo espetáculo lírico, foi o modelo que se reproduziu por
mais de duzentos anos resultando num fenômeno de longa duração na história
do espetáculo4
(LIMA, 2000: 135). Visando ampliar as dimensões reais do
palco, desde o Renascimento, os cenógrafos criaram vários recursos usando
grandes cenários, pintados em perspectiva5
, com a finalidade de criar um efeito
de profundidade ilusória. Esta ilusão criada é chamada de espaço virtual. Porém,
este espaço perspectivado transformar-se-ia pelas vanguardas do século XX.
Posteriormente, em Das Vanguardas à tradição (2006), discuti as
revoluções cênicas do século XX, citando Gordon Craig, cenógrafo e arquiteto
que estabeleceu nos anos 1920, um “quinto palco” para substituir os quatro
4
Em Arquitetura do
Espetáculo discuto
o advento e a
permanência do palco
italiano, inclusive o
empréstimo de suas
formas aos espaços
destinados ao
cinema.
5
Ver tratado de
Sebastiano Serlio.
U
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11
tipos de espaços teatrais a) o anfiteatro grego, b) o espaço medieval, c) os
tablados da Commedia dell´Arte e d) o palco italiano. Esta proposta do quinto
palco representava a substituição de um palco estático por um palco cinético,
e para cada tipo de encenação um tipo especial de lugar cênico. A iluminação
recebeu um tratamento inédito até então. Craig fez projetar a luz verticalmente
sobre o palco e frontalmente por meio de projetores colocados no fundo da
sala. A luz dos bastidores e da ribalta foi abolida, numa proposta inovadora e
vanguardista. Neste sentido, o teatro teria como objetivo absorver estas novas
tecnologias para transcendê-las, problematizando assim as tecnologias de
comunicação na cultura contemporânea.
O crítico Edélcio Mostaço afirma que a partir da implosão do espaço
propostapeloconceitodeencenaçãooumise-en-scèneaofinaldoséculoXIX,quando
André Antoine fez considerações a respeito, houve uma revolução no espaço da
cena no que tange a) ao papel e a função da quarta parede; b) à definição do espaço
cênico como contraponto ao espaço narrativo; c) à disciplina dos atores,
O espaço cênico passa a ser vislumbrado, desde então, como
uma galvanização das forças atuantes no espaço narrativo, uma busca
de adequação entre os meios (da infra-estrutura da linguagem cênica,
da iluminação e da cenotécnica, etc) e os fins (a articulação dos signos
dentrodeumcódigocênicoesuaspossíveisdecodificaçõespeloespectador)
a conformar a substância última do fenômeno teatral. Especial ênfase é
então dispensada aos intérpretes, à noção de ensemble, à administração
do elenco; evitando proeminências que comprometessem o conjunto
artístico e a coerência de cena. Não se tratava de um “rebaixamento”
da condição do ator, mas do redimensionamento de sua função
dentro do espetáculo, alinhando-o aos demais possíveis narrativos
da linguagem cênica. Com estas renovadas abordagens o teatro passa
então a ser considerado como o espaço da representação, -- e não mais
da apresentação do mundo (“o grande teatro do mundo” de matriz
barroca) --, enfatizando o que possui de ficcional, narrativa artificiosa
e produzida, universo propedêutico de vida; cabendo ao encenador
formalizar a linguagem e conduzir este processo (MOSTAÇO, s/d).
Desdeentão,oteatronãosepropõeaocuparapenasoespaçofísico-real,
cotidiano, concreto-, mas busca extrapolá-lo e, mesmo fazendo uso do espaço
real, tem a intenção de criar um espaço onde simbolismos possam ser revelados.
Os diretores, quando criam os espaços da cena, produzem sentidos, construídos
a partir de uma experiência particular. Considero que os sentidos que os artistas
criam através do espaço em suas obras se reportam às experiências espaciais já
vividas ou almejadas. Estas experiências são re-elaboradas, constituindo-se de
memórias e de desejos do artista (BACHELARD, 1993).
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11
O teatro, a dança, o cinema e o circo, entre outras artes, desenvolvem-
se no tempo e no espaço. Para Patrice Pavis, a aliança de um tempo e de um
espaço constitui o que Mikail Bakthin, na literatura, chama de cronotopo, que
vem a ser a unidade na quais os índices espaciais e temporais formam um todo
inteligível e concreto. Aplicados ao teatro, a ação e o corpo do ator se concebem
como o amalgama de um espaço e de uma temporalidade: o corpo não está
apenas no espaço, ele é feito de espaço e feito de tempo. Este espaço-tempo é
tanto concreto (espaço teatral e tempo da representação) como abstrato (lugar
funcional e temporalidade imaginária). A ação que daí resulta é ora física, ora
imaginária. O espaço-tempo-ação é percebido como um mundo concreto e
como um mundo possível imaginário.
Nos anos 1970, com as performances e os happenings, o teatro e a dança
utilizaram espaços não tradicionais e romperam limites em concordância com
uma época, que aproximava arte e vida e que questionava as relações de poder
e o lugar das coisas. Brigava-se com o autoritarismo, invadindo-se os espaços
“formais”, como os próprios museus, galpões e praças públicas.
Em 1969, o diretor Luca Ronconi exibiu a peça Orlando Furioso,
espetáculosimultâneoemváriostablados,talcomoArtaudpreviranosanos1930.
(ROUBINE, 1998:105-109) Três anos depois, em 1971, Ariane Mnouchkine
apresentou a peça 1789 - encenada na Cartoucherie de Vincennes - local no qual
o público fica em pé e a ação se desloca através de passarelas, de um tablado para
outro, em várias cenas fazendo o papel do povo de Paris. Durante o espetáculo,
os espectadores participam da festa e do foguetório da tomada da Bastillha, ou
seja, uma festa dentro da festa (ROUBINE, 1998: 114).
Louvando a peça 1789 - uma encenação que nega a estruturação cênica
ilusionista-, Lehmann afirma que estes tablados e passarelas e “as massas de
espectadoresaglomerando-seedispersando-seporentreelesconferemaoteatro
uma atmosfera semelhante à do circo”, mas que ao mesmo tempo apropriam-se
do um espaço público, das ruas e praças da Paris revolucionária (LEHMANN,
2007: 266). Na verdade, a cidade e seus espaços públicos abrigam hoje inúmeros
espetáculos, aumentando a performatividade no teatro contemporâneo.
Em 1989, durante a entrevista concedida a Gael Breton e publicada
em Theatres, Ariane Mnouchkine introduziu o conceito de espaço “encontrado”
(BRETON, 1989 apud ODDEY e WHITE, 2008: 148). O termo “espaço
encontrado” era incompreensível para muitos arquitetos de teatro, porém
para os artistas experimentais e vanguardistas, o “espaço encontrado”
anunciava claramente que o teatro contemporâneo é diferente do que era
ou ainda é representado nos edifícios teatrais tradicionais6
. O conceito de
“espaço encontrado” consiste em um uso criativo de espaços inusitados, isto
é, ambientes cujo potencial dramático dependerá da mão do artista, isto é,
6
Vale lembrar que
nas Escolas de
Arquitetura no Brasil,
o tema edifício teatral
é sempre projetado
a partir do programa
de um teatro à
italiana.
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11
a criação do artista modificando, transformando, (re) elaborando o espaço e
interferindo no projeto. Esse conceito propiciou a idéia de que “o espetáculo já
não deveria mais ser limitado ao palco, mas deveria invadir o espaço inteiro”
(ODDEY e WHITE, 2008: 148).
Espaço gestual e disciplina
Mas Pavis também identifica o espaço gestual - o que mais interessa
a este ensaio, como o espaço criado pela presença, posição cênica e os
deslocamentos dos atores: espaço emitido e traçado pelo ator, induzido por
sua corporeidade, espaço evolutivo suscetível de se estender ou se retrair. A
experiência cinestésica do ator é sensível em sua percepção do movimento,
do esquema temporal, do eixo gravitacional, do tempo-ritmo. Dados que só
pertencem ao ator, mas que ele transmite ao espectador. A sub-partitura na
qual o ator se apóia (pontos de orientação no espaço, momentos fortes que
facilitam sua ancoragem no espaço-tempo) fornece um percurso e um trajeto
que se inscrevem no espaço tanto quanto o espaço se inscreve neles. O espaço
centrífugo do ator se constitui do corpo para o mundo externo. O corpo
encontra-se prolongado pela dinâmica do movimento. O corpo do ator em
situação de representação é um corpo que tende a expressar o mais fortemente
possível suas atitudes, escolhas, sua presença. (PAVIS, 2003: 142)
O espaço ergonômico do ator, seu ambiente de trabalho e de vida,
compreende a dimensão proxêmica (relação entre as pessoas), háptica
(maneira de tocar os outros e a si mesmos) e cinéstésica (movimento de seu
próprio corpo). No entanto, este espaço ergonômico tem sido diferenciado nos
processos de criação de diretores e grupos de teatro ao longo do século XX.
Para Stanislavski o ator manifesta-se pela ausência de tensão muscular,
o corpo se sente livre para submeter-se às ordens do artista. Como ele próprio
orientava seus atores, pedia-lhes para reparar que “a dependência do corpo
em relação à alma é de particular importância em nossa escola de arte. A
fim de exprimir uma vida delicadíssima e em grande parte subconsciente, é
preciso ter controle sobre uma aparelhagem física e vocal extraordinariamente
sensível, otimamente preparada” (STANISLAVSKI, 1968: 44-45).
Destacam-se entre os ensinamentos de Stanislavski: a luta contra o
clichê, a busca da sinceridade; o estabelecimento das vontades da personagem
para motivar o jogo do ator; a elaboração de um subtexto para exprimir o que
se encontra nas entrelinhas, nos silêncios, um clima favorável à emoção cênica,
meios de desencadear uma emoção verdadeira no ator. Apesar de afirmar que
“em todo ato físico há um elemento psicológico”, ele reconhece que é possível
provocar, pela via exterior, uma grande intensidade física. A participação física
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11
do ator é conseqüência dos passos dados internamente: circunstâncias dadas,
imaginação e emoção, ligam-se automaticamente às sensações produzidas no
corpo do ator e o impulsionam às ações exteriores.
Seu Método das Ações Físicas parte do princípio de que, se se consegue
criar o corpo de um personagem necessariamente termina-se, por seu
intermédio, conhecendo e vivenciando também sua alma, pois “o elo entre o
corpo e a alma é indivisível. (...) Todo ato físico, exceto os puramente mecânicos,
tem uma fonte interior de sentimento”. Ministrou técnicas de “movimento
plástico”, levando os atores a criarem formas, nunca desprovidas de sentido.
O corpo pode levar o ator a encontrar a verdade interna, porque basta que
o ator em cena perceba “uma quantidade mínima de verdade orgânica, em
suas ações ou em seu estado geral, para que instantaneamente suas emoções
correspondam à crença interior na autenticidade daquilo que seu corpo está
fazendo” (STANISLAVSKI, 1972: 147).
Outro adepto da disciplina do ator é Meyerhold (1874-1940), para
quem o movimento cênico é o mais importante dos elementos da cena, e o
ator tem que se apropriar de um código baseado em princípios técnicos muito
bem determinados. Nos anos de 1916 e 1917, Meyerhold exigia dos atores que
cursassem disciplinas diversas como dança, música, atletismo ligeiro, esgrima;
trabalhava com a Commedia dell’Arte e com o drama hindu e criou o método da
Biomecânica, um sistema de treinamento que leva o ator a se desenvolver a tal
ponto que possa exprimir sinteticamente a substância social da personagem.
Com vistas a que o intérprete possa expressar um sentimento não é necessária
nenhuma mobilização interior, basta que ele se atenha aos reflexos físicos. O
ator precisa praticar esportes e treinar intensivamente o corpo, capacitando-o
a reagir aos estímulos mais imprevistos com toda precisão, sem intervalo de
tempoparaqualquertipodereflexão.AldomarConradoafirmaquenatécnicade
Meyerhold, para representar o medo, o ator não deve começar por sentir medo
(viver o medo e depois correr). Ele deve de início começar a correr (reflexo) e
sentir medo depois que ele se viu a correr (CONRADO, 1969: 158).
Como diretor teatral ele reestruturou a cena, desconstruiu a caixa
cênica e abandonou o conceito de “uma caixa sem a quarta parede”. Mais
precisamente ele buscou inspiração no espaço teatral espanhol dos corrales, da
Commedia dell´Arte e, seguramente do teatro da antiguidade.
Já Artaud pregava que o ator deveria desenvolver as potencialidades
orgânicas de forma a ultrapassar o comportamento natural e cotidiano, para
que acabasse atingindo o espectador. O autor considerava o mundo “como se de
um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não
fosse um meio refinado de compreender e exercer a vida” (ARTAUD, 1993: 04).
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11
A alma, concretizada no corpo, pode ser fisiologicamente reduzida a uma
meada de vibrações, adquirindo assim uma materialidade na qual o ator há
de acreditar. Se a alma dispõe dessa dimensão corpórea, o ator pode dominá-
la partindo de seu físico. O “tempo das paixões” pode ser conhecido pela
respiração, pois ao alterá-la, é possível alterar estados interiores; com uma
modificação proposital da respiração, novos estados interiores podem ser
descobertos e dominados pelo ator. O que ele pretende são gestos purificados,
gestos essenciais que busquem sua linguagem autônoma, significando por si
mesmos. Para que isso seja possível, a alma deve estar presente, unificada ao
corpo, em permanente transformação. Trata-se, portanto, de deixar o próprio
ator utilizar suas táticas e suas emoções podem fluir.
No que tange às emoções do personagem, Brecht quer o ator distante
– e muito mais distante ainda de suas emoções particulares. No ator brechtiano,
o corpo retém as características de atuante e de narrador. Deve tornar-se um
espectador atento de si mesmo. O teatro de Brecht pretende deixar à mostra
o processo de feitura das ações e reações humanas num contexto histórico
claro. Esse tipo de ator atua sem a quarta parede, demonstra consciência de que
está sendo observado, ao mesmo tempo em que observa a si mesmo enquanto
trabalha. O gesto, para ele, pretende ser uma mostra das relações sociais
presentes na caracterização de um papel. Para Brecht “a dicção” e o “gesto”
precisam ser cuidadosamente selecionados, e, devem ter amplitude. Como o
interesse do espectador é canalizado exclusivamente para o comportamento das
personagens o “gesto” destas personagens tem de ser significativo. Em O que é o
teatro épico, Walter Benjamin, afirma a propósito da teoria de Brecht, que:
O gesto é o material do teatro épico, que tem a missão de
utilizar adequadamente este material. Face às declarações e afirmações
profundamente enganadoras das pessoas, por um lado, e ao caráter
impenetrável de suas ações, por outro, o gesto tem duas vantagens.
Primeiro só em certa medida pode ser imitado, e isto é tanto mais difícil
quantomaisbanalehabitualelefor.Emsegundolugar,tem,aocontrário
das ações e realizações das pessoas, um começo e um fim determináveis.
Esta característica de delimitação rigorosa de cada elemento de uma
atitude, que, no entanto, surge como um todo, e é um dos fenômenos
dialéticos fundamentais do gesto (BENJAMIN, 1970: 40).
Em fins de 1950, Grotowski se orienta para um teatro-acontecimento.
O diretor estabelece uma relação inusitada ao propor que “o teatro é o encontro
do ator com o espectador”, justificando a invasão do ator para dentro do
espaço reservado à platéia, fazendo do público, uma peça chave para os dramas
encenados. Incentivava o ator a detectar resistências de toda ordem e a lutar
para ultrapassá-las. O seu treinamento realizava-se pela “via negativa”, pois
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11
Grotowski pretendia anular o tempo entre o surgimento de um impulso e sua
realização exterior. Em suas pesquisas investigou o Nô, o Kathakali e a Ópera
de Pequim e inspirou-se nos princípios da composição artificial, ou seja, da
estruturação disciplinada do papel. Através de uma formalização inicialmente
exterior e bastante exigente do ponto de vista técnico, pode-se chegar ao
espiritual.Oprincípiodaexpressividade,paraele,ligadoisconceitosdicotômicos,
auto-penetração e artificialidade, pois, quanto mais nos absorvemos no que
está escondido dentro de nós, no excesso, na revelação, na auto-penetração,
mais rígidos devemos ser nas disciplinas externas; isto quer dizer a forma, a
artificialidade, o ideograma, o gesto (GROTOWSKI, 1968: 23).
Para Grotowski, o ator “não deve usar seu organismo para ilustrar um
movimento da alma; deve realizar esse movimento com o seu organismo”. O
processodecadaaçãodevesertodovisível:olocalondeteminícioomovimento,
o momento do seu término e o início de uma nova ação. Desse modo o ator
percebe que há um movimento interno que ocorre antes do movimento real,
uma preparação orgânica que demanda uma mobilização de todo o organismo.
O diretor acredita que o cansaço físico colabora para burlar as resistências da
mente e acaba induzindo o ator a ser mais autêntico.
Além de estimular certa liberdade do ator, este diretor dispensa
estruturas arquitetônicas e os dispositivos habitualmente colocados a serviço
do teatro. A busca grotowskiana, concentrada no aprofundamento da relação
entre o ator e o espectador, define-se como um “teatro pobre”, e recusa a ajuda
de qualquer maquinaria (ROUBINE, 1998: 101-102). Em alguns espetáculos
o público está tão próximo que pode tocar o ator, aumentando a dinâmica
centrípeta de energias co-vivenciadas, como alega Lehmann:
“Quando o afastamento entre atores e espectadores é reduzido
de tal maneira que a proximidade física e fisiológica (respiração, suor,
tosse, movimento muscular, espasmos, olhar) se sobrepõe à significação
mental, surge um espaço de intensa dinâmica centrípeta em que o teatro
se torna um movimento das energias co-vivenciadas, e não mais dos
signos transmitidos... Já o espaço de grandes proporções representa
uma ameaça para o teatro dramático por seu efeito centrífugo”
(LEHMANN, 2007: 268).
Dirigido por Judith Malina e Julian Beck, desde 1947, o grupo Living
Theatre traz o conceito de um “teatro vivo”, norteador tanto do trabalho quanto
da vida de ambos. Influenciado inicialmente por Piscator e Brecht e com
referências poéticas, filosóficas e teatrais de outras fontes, o grupo direcionou-
se para uma obra e uma postura política diferentes desses mestres, passando,
então, a pregar, a partir de inúmeras encenações e peças, a revolução não-
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Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11
violenta e o anarquismo. parte do princípio de que a presença do ator em cena
estabelece uma relação com o espectador, e que essa presença é tanto mais
materialmente verdadeira quanto mais forem desenvolvidas e utilizadas pelo
ator a linguagem corporal e gestual. A ligação ator-público acontece ora no
confronto aberto via agressão, ora pela comunhão. A palavra é tratada em suas
possibilidades materiais de produção sonora. O trabalho corporal do Living
liga-se estreitamente ao que se convencionou chamar de Expressão Corporal,
que implica a mistura de arte-vida, com poucas regras técnicas e muita liberdade
de improvisação, refletindo teorias que Certeau reafirmou nos anos 1980.
Para Robert Wilson, diretor também contemporâneo,
“I do movement before we work on the text. Later we’ll put text
and movement together. I do movement first to makes sure it’s strong
enough to stand on its own two feet without words. The movement
must have a rhythm and structure of its own. It must not follow the
text. It can reinforce a text without illustrating it. What you hear and
what you see are two different layers. When you put them together, you
create another texture” (WILSON apud HOLMBERG: 136).
Suas peças primam pela movimentação lenta, pela quase imobilidade.
Um vocabulário foi organizado a partir de exploração individual de ações
muito simples: pular, dar um passo à frente, correr, voltar à posição inicial.
O diretor sugere que não se deve impor a quem quer que seja, seus próprios
movimentos. Estimulando em seus atores a descoberta de padrões próprios de
movimentos, prefere, portanto, movimentos naturais soltos7
.
No teatro e Centro de Estudos do Odin Teatret na Dinamarca, dirigido
por Eugênio Barba desde 1961, a Antropologia Teatral é utilizada com a
finalidade de induzir a descobertas que possam ser úteis ao ator na elaboração
de sua arte. O trabalho corporal adotado tem origens em Grotowski e no
teatro Kathakali: uma disciplina rigorosa e métodos precisos de codificação da
arte da atuação. Barba trabalha com um princípio que trouxe da Índia: “depois
de muitos anos de árdua formação, o ator Kathakali desenvolve não só uma
excepcional capacidade física, mas, sobretudo, a habilidade para viver como
ator sem viver para os espetáculos” (BARBA, 2007: 30).
Muitos exercícios são usados e os que contêm elementos acrobáticos
são chamados de biomecânicos. Visam a vencer o medo, chegar a uma
completa disponibilidade para obedecer aos impulsos, mobilizar totalmente
a energia em ações inesperadas, em reações imediatas. O intérprete compõe
uma partitura a partir de signos físicos, em conformidade com as intenções
que deseja imprimir ao seu trabalho; essas intenções devem achar seu
ritmo próprio. Ao diretor cabe apenas a ajudar a fixar a seqüência.
7
Jean-François
Lyotard alega que,
"o corpo pode ser
considerado como o
hardware do complexo
dispositivo técnico
queéopensamento".
Segundo as idéias de
Lyotard, o software
humano, nocasoda
linguagem,não pode
existir sem que haja
um hardware, ou
seja, o corpo. Para
ele, seria conveniente
tomar o corpo como
exemplo na produção
e programação das
inteligências
artificiais, já que o
hard/soft humano
é muito complexo e
heterogêneo.
(LYOTARD, 1989: 21)
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Omisantropo
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Urdimento 11

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  • 3. Urdimento: s.m. 1) urdume; 2)partesuperiordacaixadopalco, onde se acomodam as roldanas, molinetes, gornos e ganchos destinados às manobras cênicas; fig. urdidura, ideação, concepção. etm. urdir + mento. ISSN 1414-5731 Revista de Estudos em Artes Cênicas Número 11 Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEART UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
  • 4. URDIMENTO é uma publicação anual do Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. As opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores. A publicação de artigos, fotos e desenhos foi autorizada pelos responsáveis ou seus representantes. FICHA TÉCNICA Editor: Prof. Dr. André Carreira Secretário de Redação: Éder Sumariva Rodrigues (bolsa PROMOP) Capa: A Farsa da Panelada - montagem da prática de ensino dirigida pelo Prof. Toni Edson Contra-capa: Álbum Branco - montagem da prática de ensino dirigida pelo Prof. André Carreira Fotos: Cristiano Prim (capa) e Camila Ribeiro (contra-capa) Impressão: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina - IOESC Editoração eletrônica: Déborah Salves [salves.deborah@gmail.com], Filipe Speck [filipespeck@gmail.com], Leonardo Silva Alvea [leonardosilvaalves @gmail.com] e Marcelo Adelar Andreguetti [marceloadelar@gmail.com] Design Gráfico: Israel Braglia [israelbraglia@gmail.com] Coordenação de Editoração: Célia Penteado [celiapenteado@uol.com.br] Editado pelo Núcleo de Comunicação do CEART/UDESC Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES Catalogação na fonte: Eliane Aparecida Junckes Pereira. CRB/SC 528 Biblioteca Setorial do CEART/UDESC Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas / Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. - Vol 1, n.11 (Dez 2008) - Florianópolis: UDESC/CEART Anual ISSN 1414-5731 I. Teatro - periódicos. II. Artes Cênicas - periódicos. III. Programa de Pós-Graduação em Teatro. Universidade do Estado de Santa Catarina
  • 5. UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC Reitor: Sebastião Iberes Lopes Melo Vice Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Pereira de Souza Diretor do Centro de Artes: Antonio Carlos Vargas Sant’Anna Chefe do Departamento de Teatro: Sandra Meyer Nunes Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Vera Regina Martins Collaço CONSELHO EDITORIAL Prof. Dra. Ana Maria Bulhões de Carvalho Edelweiss – UNIRIO Prof. Dra. Beti Rabetti - UNIRIO Prof. Dr. Francisco Javier - Universidad de Buenos Aires Prof. Dra. Helena Katz - PUC/SP Prof. Dr. Jacó Guinsburg - ECA/USP Prof. Dra. Jerusa Pires Ferreira - PUC/SP Prof. Dr. Joao Roberto Faria - FFLCH/USP Prof. Dr. José Dias - UNIRIO Prof. Dr. José Roberto O’Shea - UFSC Prof. Dra. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo - ECA/USP Prof. Dr. Mário Fernando Bolognesi - UNESP Prof. Dra. Marta Isaacsson de Souza e Silva – DAD/UFRGS Prof. Dra. Neyde Veneziano - UNICAMP Prof. Dr. Osvaldo Pellettieri - Universidad de Buenos Aires Prof. Dr. Roberto Romano - UNICAMP Prof. Dr. Sérgio Coelho Farias - UFBA Prof. Dra. Silvana Garcia - EAD/USP Prof. Dra. Sílvia Fernandes Telesi - ECA/USP Prof. Dra. Sônia Machado Azevedo - Escola Superior de Artes Célia Helena Prof. Dra. Tânia Brandão - UNIRIO Prof. Dr. Walter Lima Torres -UFPR
  • 6. UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina CEART - Centro de Artes PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, implantado em 2002, e Doutorado, em 2009. PROFESSORES PERMANENTES André Luiz Antunes Netto Carreira Antonio Carlos Vargas Sant’anna Beatriz Ângela Vieira Cabral Edélcio Mostaço José Ronaldo Faleiro Márcia Pompeo Nogueira Maria Brígida de Miranda Maria Isabel Rodrigues Orofino Milton de Andrade Sandra Meyer Nunes Valmor Beltrame Vera Regina Collaço PROFESSORES VISITANTES Marcelo da Veiga - Universidade Alanus (Alemanha) Óscar Cornago - Conselho Superior de Pesquisas Científicas (Espanha) O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candidatos em nível nacional e internacional. Para acesso ao calendário de atividades, linhas e grupos de pesquisa, corpo docente e corpo discente, disserta- ções e teses defendidas e outras informações, consulte o sítio virtual: http://www.ceart.udesc.br/ppgt
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  • 9. SUMÁRIO A teatralidade em Clarice Lispector Alex Beigui Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico Éder Sumariva Rodrigues Espaço teatral e performatividade. Estratégias e táticas na cena moderna e contemporânea Evelyn Furquim Werneck Lima El Galpón – narrador do sonho latino-americano Yaska Antunes O produtor e o produto no teatro de grupo Flávia Janiaski O espírito travesso na mímica corporal dramática de Etienne Decroux George Mascarenhas Tragédia grega e cenografia: a encenação dos textos trágicos na cena brasileira pós-moderna Gilson Motta A investigação na dança: uma possível estratégia de aprendizado Gladis Tridapalli O Auto da compadecida e um personagem extraordinário Irley Machado A subpartitura corporal no processo de criação do espetáculo Batata! Leonardo Sebiani Rainhas, sutiãs queimados e bruxas contemporâneas - reflexões a partir da montagem de Vinegar Tom Maria Brígida de Miranda 13 25 33 51 67 79 89 101 113 123 133
  • 10. A criação de Robert Lepage e o modelo pós-dramático Marta Isaacsson Pirandello encena Sei personaggi in cerca d’autore Martha Ribeiro Ação dramática, movimento funcional e teoria do esforço: origens do pensamento teatral na obra de Rudolf Laban Milton de Andrade O corpo invisível: teatro e tecnologias da imagem Óscar Cornago Bernal Procedimentos estratégicos operados pelo Erro Grupo nas intervenções urbanas Desvio e Enfim um líder Pedro Diniz Bennaton Hamlet em sua época e Ensaio.Hamlet, da cia dos atores: modernidade e pós-modernidade teatral Tania Alice Feix Estética da existência na formação do professor-artista Tânia Cristina dos Santos Boy As aparências mutantes de um corpo que se desnuda Vera Collaço 147 157 169 177 191 203 215 231
  • 11. U 11 rdimento Dezembro 2008 - N° 11 Apresentação. APRESENTAÇÃO Este número da Revista Urdimento comemora o início do curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC. Com a primeira turma do doutorado nosso programa, criado em 2001, avança em direção à sua consolidação como um núcleo de referência na pesquisa na área das artes cênicas no Brasil. Neste sentido, registramos o crescimento do corpo docente e a expansão dos campos de trabalho abordados pelos projetos de pesquisa como principais características desse processo. A Revista Urdimento é reflexo tanto da consolidação do projeto do PPGT, como do trabalho da equipe de professores, estudantes e técnicos que tem feito do Programa um espaço de intercâmbio e reflexão que vai muito além da rotina diária de aulas, orientações e defesas. Em consonância com a vocação do PPGT continua a representar um espaço de articulação com os diversos programas de pós-graduação em artes cênicas do país. Por isso, seguimos considerando fundamentais as contribuições espontâneas com o fim de conformar edições que espelhem as dinâmicas das pesquisas de pós-graduação. A atual edição traz uma ampla diversidade temática. O conteúdo que colocamos à disposição dos nossos leitores apresenta textos que visitam práticas relacionadas com a experimentação teatral nas ruas; com modos funcionais do espaço cênico; com dinâmicas organizativas e criativas de grupos teatrais; estudos sobre procedimentos criativos para atuação e sobre diferentes aspectos da dramaturgia; reflexões sobre técnicas corporais; estudos no campo da história do teatro e do gênero. Desejandoqueosleitorespossamapreciarosmateriaisquedifundimos, aproveitamos para reiterar nosso permanente chamado à colaboração, pois estamos seguros que a diversidade e multiplicidade de propostas é o que faz dos periódicos científicos um instrumento chave da vida da pós-graduação. André Carreira Editor
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  • 13. U 13 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11 A TEATRALIDADE EM CLARICE LISPECTOR Alex Beigui1 O teatro em crise “Vou continuar, é exatamente de minha natureza nunca me sentir ridícula, eu me aventuro sempre, entro em todos os palcos”. “... um instante antes da cena e um instante depois”. (LISPECTOR, 1999: 122-192) A matéria fugidia com que nos deparamos ao ler os romances e os contos de Clarice Lispector pode parecer, enquanto princípio e num primeiro momento, contraditória ao objetivo deste trabalho: buscar as marcas da teatralidade, lidas aqui como materialidade com que se tecem a construção literária e o universo ficcional em questão. Paradoxo sustentado, sobretudo, pelo campo árido e pouco demarcado de sua escrita e pelo próprio movimento de incompletude dos enredos, além de um conjunto Resumo Oartigobuscaapontarerefletirsobre os aspectos da teatralidade presentes em Clarice Lispector, apontando os índices de materialidade e performatividade da linguagem plástico-sensorial de sua escrita. Para tanto, sustentamos nosso ponto de vista, sobretudo, na tensão entre literariedade e teatralidade que percorrem grande parte de sua produção desde sua obra inaugural Perto do Coração Selvagem. Palavras-chave: teatralidade, litera- riedade, Clarice Lispector. Abstract This article comments on some aspectsof ClariceLispector’stheatricality. It aims to highlight particular aspects of Lispector’s plastic and sensorial text pointing out and discussing about its materiality and performartic qualities. So, thisarticlewilllookattheexistingtension between literality and theatricality which is a constant within Lispector’s work since her inaugural work Perto do Coração Selvagem. Keywords: theatricality, literality, Clarice Lispector. 1 Alex Beigui, mestre em Artes Cênicas pela UFBA e doutor em dramaturgia brasileira pela USP, atualmente é profes- sor adjunto da UFRN e membro do GT Ter- ritórios e Fronteiras da ABRACE.
  • 14. U 14 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11 de intertextos, citações e imagens que ampliam e enfatizam, por meio de arqueologismos e anacronismos, o fértil campo da subjetividade tão explorado pela crítica especializada e pelas inúmeras montagens cênicas das obras da autora. No entanto, ainda que sua obra recuse a síntese e evoque a pluralidade de modo excessivo, desde o seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem de 1944, tal teatralidade já aparece enquanto questão subjacente ao tema. Com ele, a “crise da representação” inaugura uma diferente forma de preocupação com o ato da escrita, o recurso do fingimento abre paulatinamente espaço para a representação do real intercalada à experiência ou, em alguns casos, à construção de um estilo dramático. Assume-se a própria experiência como condutora da realidade aparente do mundo e das coisas. Para Alain Touraine (1994: 263): “As crises de mutação que fazem passar da sociedade industrial à sociedade programada correm o risco de fazer desaparecer a consciência de historicidade, e assim a própria idéia de modernidade, mas é também através dessas crises que a idéia de sujeito se desprende do historicismo”. No Brasil, a obra de Clarice é responsável por essa mutação na estética narrativa e, conseqüente, estreitamento das fronteiras entre os planos da história e o plano do discurso. Poderíamos dizer que o problema da mimese marca uma primeira discussão no campo parateatral da escrita clariciana. Vejamos como a questão nos é oferecida à maneira platônica e aristotélica do modo de criação e legitimidade do artista/ criador – aludimos à relação do artista com a sua obra e ao efeito da mimese enquanto conceito de valoração de sua produção na discussão iniciada por Platão e especificamente desenvolvida mais tarde por Aristóteles na Poética. O primeiro capítulo intitulado “O Pai” traz em primeira instância a preocupação com a origem da experiência e seu modo de apreensão pela lente do escritor (Artista), sem, contudo, privar pela regra de afastamento que dispõe de modo confortável sujeito e objeto, criador e criatura, escritor/ personagem: “A máquina do Papai batia tac-tac... tac-tac-tac”. (1980: 11)2 . O problema da identidade a ser construída assume o movimento de desconstrução, do não-lugar do sujeito dentro da referência, tanto no plano da enunciação quanto no plano do enunciado. Como nos lembra Genette (1972: 72-108): “No interior do universo espácio-temporal dos eventos narrados, o discurso das personagens funciona, por seu turno, como um simulacro do ato de enunciação, no interior do próprio discurso narrativo”. Essa interferência do narrador traz as marcas de sua escolha, reveladas sempre por meio de estratégias dramatúrgicas cada vez mais híbridas, colocando o problema da criação de forma dialética: modelo e ruptura, referência e inferência, criação e imitação, ficção e representação. 2 Todas as citações da obra Perto do Coração Servagem foram retiradas da edição cuja referência completa encontra-se presente na bibliografia.
  • 15. U 15 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11 A teatralidade desse modo constitui um ponto de articulação entre o locutor e o locatário, este último estendendo-se às personagens por meio de deslocamentos: “sempre arranjava um jeito de se colocar no papel principal exatamente quando os acontecimentos iluminavam uma ou outra figura” (1980: 13). A ambivalência do discurso acompanha a trajetória testemunhal de Joana que busca, sempre através da palavra-ação, concretizar sua experiência, materializar sua vivência, tornar palpável seu lugar no mundo. Tentativa sempre barrada pela dificuldade de uma identidade fixa, estável: “Nunca é homem ou mulher? Porque nunca não é filho nem filha?” (1980: 15). A busca de si é para Joana a busca do sujeito híbrido. Seu reconhecimento como sujeito passa por inúmeras tentativas de despersonificação: “sim ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnava- lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de estética” (1980: 17). O estágio primitivo da escritura lida a todo o momento com algo que a ultrapasse exige por parte do leitor atenção sobre a releitura interna da obra, realizada paralelamente à consolidação da persona de Joana, sempre incompleta e teatralizável. O ato de fingir como forma de atuar no mundo torna-se para Joana a única possibilidade de encontro consigo mesma. Ao contrário de Hamlet que persegue a verdade até suas últimas conseqüências, Joana abre mão da prerrogativa de um “Eu”: “Quem sou? Bem isso já é demais” (1980: 20). Talvez pela dura condição imposta pelo narrador: “Mente-se e cai-se na verdade” (1980: 20). Outro ponto que dificulta, pelos sucessivos atos de representação de Joana, o seu reconhecimento enquanto sujeito, são as perguntas impostas de modo beckettiano à professora de Joana: “O que é que se consegue quando se fica feliz?”; “Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?” (1980: 30); “o que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si?” (1980: 73). Essas perguntas funcionam como recurso de trazer o olhar do leitor para a maquete imperfeita do mundo. Equação que nas personagens de Samuel Beckett gera um movimento de esfacelamento da idéia de identidade, impulsionando os personagens, mas impedindo-os de alcançar o que se quer. Tais questões, incluindo as de caráter mais intimista – “E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?” – conduzem sempre e inevitavelmente ao intervalo e nunca ao encontro entre as demais personagens do romance. Intervalo que, diferentemente do modelo trágico e renascentista do herói cuja trajetória o conduz ao abismo depois de uma seqüência ascensional ou condição privilegiada, leva a “heroína” de Clarice a partir de antemão do abismo, como se de lá jamais ela tivesse saído. O abismo é sempre um ponto de partida para a dúvida e a dispersão. Ele é criado não em torno da personagem, mas está dentro dela, fazendo parte integrante de sua composição.
  • 16. U 16 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11 O movimento sempre indeterminado advém do esforço quase sempre inútilporpartedeJoanadeapreenderotempopassado,restando-lheaexperiência no ato de sua realização. O tempo teatral, isto é, o tempo da eternidade do agora: “A imaginação apreendia e possuía o futuro do presente, enquanto o corpo restava no começo do caminho, vivendo em outro ritmo, cego à experiência do espírito... Através dessas percepções – por meio delas Joana fazia existir alguma coisa – ela se comunicava a uma alegria suficiente em si mesma”. (1980: 45) A posição de Joana, nesse sentido, caminha para o não-lugar do drama: “onde o que amava não era trágico, nem cômico” (1980: 46). A consciência dramática desse “não-lugar” aponta, já em Perto do Coração Selvagem para uma situação intermediária, nem trágica nem cômica da existência. Visão reforçada pela força da teatralidade assumida como recurso narrativo. Talvez por esse motivo seja tão presente a situação dialógica nos romances claricianos, invadindo a narrativa como forma de quadros, cenas e acontecimentos. A indeterminação do estado emocional das personagens abre espaço para o uso de recursos próprios ao teatro como, por exemplo, o da “máscara neutra”: “E não estou contente nem triste” (1980: 52). A indeterminação e o meio- termo aparecem como forma de permanecer no discurso, mantendo-o e condicionando-o a uma visão tragicômica do mundo. É pela consciência do estar “entre” o julgamento e o infortúnio, a redenção e a culpa que a dúvida, como corolário da crítica sobre a relação causa/efeito, aparece e se fixa. O “distanciamento” ou “estranhamento”, tão caros a Bertolt Brecht, funcionam através do “espanto”, estado em que o gesto se intensifica de acordo com o grau de comprometimento que se tem diante da situação. É o que notamos na parte do diálogo que Joana mantém com o Professor: “- É um pouco simplista o que estou falando, mas não importa por enquanto. Compreende? Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso, piedade, bondade, é o seu temor. Todo o desespero e as buscas de outros caminhos são a insatisfação. Eis aí um resumo, se você quer. Compreende? - Sim. - Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em qualquer sentido, é porque tem uma capacidade enorme para o prazer, uma capacidade perigosa - daí um temor maior ainda. Só quem guarda as armas a chave é quem receia atirar sobre todos. - Sim... - Eu disse: quem se recusa... Porque há os... os planos, os feitos de terra que sem adubo nunca florescerá.
  • 17. U 17 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11 - Eu? - Você? Não, por Deus... você é dos que matariam para florescer. (Ela continuava a ouvi-lo e era como se os seus tios jamais tivessem existido, como se o professor e ela mesma estivessem isolados dentro da tarde, dentro da compreensão). - Não, realmente não sei que conselhos eu lhe daria, dizia o professor. Diga antes de tudo: o que é bom e o que é mau? - Não sei...” (1980: 54-55) Apesar de longo, o diálogo demonstra a inserção dentro do romance de enquadramentos e núcleos dramatúrgicos que, como assinalamos anteriormente, invadem a estrutura narrativa. O cerco dramático construído em torno de Joana revela a formação da personagem como algo inquisidor do ponto de vista da criação. Toda a ambiência do romance conduz Joana a assumir uma identidade de si mesma. O esforço causa-lhe vertigem, revelada ora pelo exercício de consciência ora pela experiência do fracasso diante o desamparo da vida, simultaneamente, humana e inanimada: “Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva” (1980: 72). Essa despersonificação do humano frente à fragilidade de identidade ou ao fracasso do entendimento acerca da experiência finita e incompleta, ao contrário do que se poderia supor, aproxima a obra de Clarice do teatro, pois a trajetória da personagem, mesmo sem movimento definido está elaborada no plano da ação. Aqui, cabe a retomada da acepção da palavra “drama” por Stanislavski: “A vida é ação. Por isso é que a nossa arte vivaz, que brota da vida, é preponderantemente ativa. Não é sem motivo que nossa palavra ‘drama’ é derivada da palavra grega, que significa ‘eu faço’. Em grego, isso se refere à literatura, à dramaturgia, à poesia e não ao ator ou sua arte. Ainda assim temos muito direito a nos apropriar dela” (1999: 69). Eis um adendo importantíssimo para a configuração do conceito de ação e de drama em Clarice. Ainda no livro A Criação de um Papel de 1999, o mestre russo pontua com precisão seu conceito de “ação” que, segundo ele, difere de “movimento”: “Na maioria dos teatros, incorretamente, toma-se ação no palco como sendo ação externa. Acredita-se, em geral, que as peças têm muita ação, quando as pessoas chegam e partem constantemente,
  • 18. U 18 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11 casam-se, separam-se, matam-se ou salvam-se umas das outras. Em suma, que uma peça é rica em ação quando tem um enredo exterior interessante e habilmente tecido. Mas isso é um erro. Ação cênica não quer dizer andar, mover-se para todos os lados, gesticular em cena. A questão não está no movimento dos braços, das pernas ou do corpo, mas nos movimentos e impulsos interiores” (STANISLAVSKI, 1999: 69). AproximidadecomqueacríticaaproximouaobradeClaricedeautores como Virginia Woolf e James Joyce, em alguns pontos plenamente justificada, inibiu uma leitura pela via negativa das obras da autora e, em contrapartida, estimulou a exploração do lado intimista de sua escrita, retirando-a às vezes do seu próprio tempo de realização. Dado evidente, mas que não se esgota no espelho subjetivo e epifânico frente ao qual sua obra quase sempre é refletida. Chamo de “via negativa” a necessidade de materialização da experiência em Clarice, a idéia não apenas de realização, mas de processo inacabado ou, nas próprias palavras da autora, do “movimento que explica a forma” (1980: 74). As vozes que marcam o tempo mnemônico no romance, e que são responsáveis pela própria memória da personagem principal, dão-se em forma de play-back. Joana, assim como Krapp – protagonista de Krapp’s Last Tape de Samuel Beckett (1958) –, “sentia vozes, compreendi-as ou não as compreendia. Provavelmente no fim da vida, a cada timbre ouvido uma onda de lembranças próprias subiria até sua memória, ela diria: quantas vozes eu tive...” (1980: 78). A dualidade entre o mundo interno de Joana e o mundo externo se torna cada vez menos demarcada, mesmo quando há esforço para reconhecê-la: “Na verdade ela sempre fora duas, a que sabia ligeiramente que era e a que era mesmo, profundamente. Apenas até então as duas trabalhavam em conjunto e se confundiam” (1980: 82). Há aqui todo um esforço de compreensão sempre frustrado no plano exclusivamente metafísico da palavra, ocorrendo sobremaneira com a experiência doplanofísico,oqueexplicaafortepresençadocorpoedasmarcasporeledeixadas na experiência de Joana. Esse apelo concreto aos sentidos já marca um primeiro desvio do plano narrativo em sentido ao dramático. Na observação de César Mota Teixeira (2004: 165-173): “A ênfase na apreensão do ‘instante já’ é outro indício de radicalização do projeto (existencial e estético) inaugurado em Perto do Coração Selvagem: novamente à maneira de Joana, narradora-pintora abre e fecha ‘círculos de vida’, incapaz de alcançar uma totalidade psicológica ou biográfica”. O aspecto plástico da narrativa clariciana pode ser considerado o primeiro indício da teatralidade que aqui formulamos. A fala e a ação são os mecanismos que acoplados ao gesto antecedem à palavra em Joana,
  • 19. U 19 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11 talvez “porque a percepção do gesto vinha-lhe apenas no momento de sua execução – uma bofetada de suas próprias mãos em seu próprio rosto”. (1980: 87). A experiência com o absurdo é revelada na impotência frente a qualquer organização justificável e plausível da existência pelo hábito puro do discurso. No entanto, a experiência com o absurdo se mostra como forma de libertação anárquica e perversa para com o mundo tanto no que abarca sua estabilidade, enquanto uma referência externa ao sujeito, quanto no que toca a mente auto-sugestionável da personagem: “Às vezes ouvia palavras estranhas e loucas de sua própria boca. Mesmo sem entendê- las, elas deixavam-na mais leve, mais liberta” (1980: 87). Aqui, torna-se importante e sintomático o que diz Beckett no ensaio sobre Proust: “Assim, a distração é felizmente compatível com a presença ativa de nossos órgãos de articulação. Repetindo: a rememoração, em seu sentido mais alto, não se aplica a esses extratos de nossa ansiedade. Estritamente falando, só podemos lembrar do que foi registrado por nossa extrema desatenção e armazenado naquele último e inacessível calabouço de nosso ser, para o qual o Hábito não possui a chave”. (BECKETT, 1986: 24) Distosegue-seoplanocontraocampodoconhecidoedoperpectivismo que em Clarice se altera pelo desvio. Por outro lado, abre-se o horizonte da irrecuperabilidade do passado, estando o tempo sujeito ao processo de decantação. Outro recurso importante em Perto do Coração Selvagem está concentrado na forma dialética movimento / imobilidade, ponto sob o qual colidem a inquietação da busca e o desamparo do desencontro, este último sempre triunfando sobre o encontro: “A covardia é morna e eu a ela me resigno, depondo todas as armas de herói que vinte e sete anos de pensamento me concederam. O que sou hoje, nesse momento? Uma folha plana, muda, caída sobre a terra. Nenhum movimento de ar balançando-a”. (1980: 89) Antes de pensar o conceito, pensemos o movimento da obra não como dilatação da experiência narrada, mas de afunilamento da mesma; a expansão, presente e ativa no gênero épico cede, gradativamente, lugar à constrição do lugar intermediário da personagem, nem completamente dentro nem completamente fora. Cria-se assim, uma espécie de “foco” que delimita a área de atuaçãodapersonageme,nocasodeClarice,encontraoseuapogeuemAPaixão Segundo G. H. (1964), mais precisamente no quarto de empregada que G. H. resolve visitar. Ainda no caso específico de Joana, o espaço de uma pressuposta liberdade de atuação (os diferentes planos espácio-temporais pelos quais ela se desloca) só acontece com o reconhecimento do aprisionamento na linguagem: “Era uma falsa revolta, uma tentativa de libertação que vinha, sobretudo, com
  • 20. U 20 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11 muito medo de vitória” (1980: 95). O fracasso diante da experiência como auto-realização e enquanto drama histórico, em Clarice, corresponde à queda dos valores humanos tão presentes nas manifestações literárias do pós-guerra e ao conseqüente redimensionamento da idéia de sujeito e de sua identidade em crise. Acerca disso, esclarece-nos Júlio Galharte: “Há uma crescente atmosfera de crise com relação à linguagem que atinge o artista moderno. Tal atmosfera se faz presente nos textos de Lispector e Beckett no aflorar de alguns verbetes-chave em comum, como ‘fracasso’ ou ‘falha da linguagem’, por exemplo” (GALHAERTE, 2004: 70). Ainda no que diz respeito à linguagem beckettiana acrescenta o autor: “Fracasso e falha. Esses são nomes dados pelos ‘eus’ dos textos beckettianos para o resultado da busca de uma linguagem que mostre sua alma. Os enunciadores do autor assumem sua inépcia comunicativa e um indicativo desse aspecto é a repetição exaustiva de palavras uma ao lado da outra, como que para mostrar que o enunciado foi acometido de um acesso de gagueira” (GALHAERTE, 2004: 70). Percorreremos esses “riscos” e “falhas” no corpo do texto clariciano como índices latentes de teatralidade. No entanto, em Clarice assim como em Beckett, os valores apesar de trazerem ressonâncias históricas que culminam com a sua negação, eles não perdem a conotação positiva de denúncia, ainda que sem caráter panfletário. Trata-se antes de uma constatação deliberada da vida em seu estado puro de crueldade, sem nostalgia ou utopias. Em relação aos homens revela a a narradora Clarice através da personagem Joana: “Se eu os procuro, exijo ou dou-lhes o equivalente das velhas palavras que sempre ouvimos, ‘fraternidade’, ‘justiça’. Se elas tivessem um valor real, seu valor não estaria em ser cume, mas base de triângulo. Seria a condição e não o fato em si. Porém terminam ocupando todo o espaço mental e sentimental exatamente porque são impossíveis de realizar, são contra a natureza” (1980: 100). Nesse sentido, o conto Mineirinho é uma construção exemplar. Em Clarice, a quebra de utopias e a ausência de uma conotação nostálgica contradizem a própria idéia de busca, mas a amplia e a redimensiona. Pelo menos, a “busca” no sentido de transição, de entrega total para a fisicalização da linguagem. A experiência com a palavra surge, então, sempre de uma organização proposital de torná-la plástica (visível, sonora, auditiva, olfativa, tátil), o que dificulta a leitura estritamente estrutural de sua obra. Para Joana,
  • 21. U 21 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11 o pouco entendimento que tem de si mesma vem pela indistinção entre corpo e espírito e os seus respectivos lugares na experiência: “E foi tão corpo que foi puro espírito” (1980: 104). A tentativa de tornar presente a experiência insurge no romance sob vários aspectos, incluindo o estatuto filosófico. Só que ao contrário do que a filosofia pode explicar, interessa à narradora exatamente o que escapa à razão e à inteligência, pois: “É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais do que ele e raciocinar com segurança, segundo a verdade. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na escuridão tornam-se fosforescentes” (1980: 126). A analogia ao par “luz/escuridão” aparece também sob o argumento filosófico da citação “Espinosa/Dante”, respectivamente introduzida em Perto do Coração Selvagem. Sobre isso é relevante o esclarecimento que Marilena Chauí fez da questão em Espinosa: “... em Espinosa, a luz (a substância) se refere e sempre se reflete nos modos finitos, porque estes são expressões determinadas dela: não só o intelecto finito conhece o mesmo e da mesma maneira que o infinito, do qual é parte, como também conhece a essência e potência do ser absoluto tais como são em si mesmas, e a diferença entre idéia inadequada (parcial, mutilada, abstrata) e adequada (total, genética, concreta) é a diferença entre a luz quando difratada pela imaginação e quando refletida pelo intelecto, pois a primeira é aquela que possuímos quando o absoluto não constitui apenas a essência de nossa mente singular e sim muitas mentes singulares simultâneas (a pluralidade de ondas que se cruzam e se interrompem no ponto de refração), enquanto a segunda é aquela que produzimos quando o absoluto constitui apenas a essência singular de nossa mente (a infinitude de ondas vindas de todos os lados e de todas as direções refletindo-se, sem perda nem desvio, num único ponto singular.” (CHAUÍ, 1999: 62) Esse “ponto singular” em Clarice é sempre o “Sujeito” reconhecido na contínua dualidade Sujeito/Outro. A experiência negativa adotada pelo ponto de vista narrativo corrobora para um melhor entendimento da posição anti-heróica de Joana. Aqui, ao contrário de Édipo, a cegueira deixa de ser um ato-punitivo fruto da inconsciência do herói sobre os fatos e passa a se configurar como aceitação do abismo sendo este fato encarado como “defeito desejado” no curso dos acontecimentos referentes à experiência da protagonista Joana:
  • 22. U 22 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11 “Sim, sim, foi isso, não fugir de mim, não fugir de minha letra, como é leve e horrível teia de aranha, não fugir de meus defeitos, meus defeitos, eu vos adoro, minhas qualidades são tão pequenas, iguais às dos outros homens, meus defeitos, meu lado negativo é belo e côncavo como um abismo” (1980: 127) Esse desnudamento da personagem frente à lente do leitor menos atento pode expressar apenas uma forma de contraposição com o real, mas levado a cabo junto à própria concepção de criação da obra aponta para uma imprecisão formal: a desarticulação da experiência da personagem com o foco narrativo. A voz de Joana se espalha pelo campo narrativo de modo contraproducente ao efeito de unidade. Esta, tal qual na tragédia moderna, dissipa-se e os acontecimentos narrados passam a existir em função de uma soberana consciência dramática: “A tragédia moderna é a procura vã de adaptação do homem ao estado de coisas que ele criou” (1980: 129). Se a procura é vã, não o é menos o caráter assistencialista das instituições a começar pela célula mater. Esse processo de desconstrução das bases institucionais que legitimam a condição social do sujeito no mundo, já presente em Perto do Coração Selvagem em forma embrionária, encontrará sua forma mais elaborada nos livros-contos da autora, entre eles Laços de Família (1961) e Felicidade Clandestina (1971), sob este aspecto, são os mais significativos. Característica que aponta para uma obra que, apesar da dispersão que assola as personagens, priva pela continuidade temática e pelos seus aspectos de organização. Elos que se ramificam na escritura clariciana e constroem, por meio de camadas, o movimento de adensamento de pontos aparentemente superficiais. A família acaba em Clarice na própria base que a alicerça: a incomunicabilidade. Nesse sentido a posição de Joana quando indagada por Lídia em situação dialógica, mais do que uma crítica ao casamento, mostra-se como atestado do seu fracasso enquanto instituição: “Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conservava porque se arrasta consigo outra pessoa. Há alguém que sempre a observa, que a perscruta, que acompanha todos os seus movimentos. E mesmo o cansaço da vida ter certa beleza quando é suportado sozinha e desesperada – eu pensava. Mas a dois, comendo diariamente o mesmo pão sem sal, assistindo a própria derrota na derrota do outro... Isso sem contar com o peso dos hábitos refletidos nos hábitos do outro, o peso do leito comum, da mesa comum, da vida comum, preparando e ameaçando a morte comum” (1980: 159)
  • 23. U 23 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui.Dezembro 2008 - N° 11 Qualquer idéia de “felicidade” em Clarice não pode ser encarada sem o transtorno de sua reverberação. A própria questão da origem das coisas que já aparece, aqui, e sobre a qual aludimos no início deste capítulo, não deve ser compreendida fora da idéia de deformação e de fracasso, e da idéia de inutilidade da criação que se crer validada por um futuro de respostas positivas. Sobre isso, a imagem de Lady Macbeth trazida por Joana no que tange à maternidade parece a mais adequada: “Mas depois, quando eu lhe der leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil. Não me sentirei burlada. Mas vencida apenas e direi: eu nada sei, posso parir um filho e nada sei” (1980: 167). O espaço do “nada sei” é também o espaço do “entre”, do “intervalo”, não mais o tempo cronológico, apreendido no fluxo de uma consciência ativa e desperta, mas um tempo invadido pela interrupção do fluxo inconsciente no ato mesmo de sua reflexão-execução; no aqui e agora descomprometidos com a ordem das coisas. “Deixando depois de si o intervalo perfeito como um único som vibrando no ar. Renascer depois, guardar a memória estranha do intervalo sem saber como misturá-lo à vida. Carregar para sempre o pequeno ponto vazio – deslumbrado e virgem, demasiado fugaz para se deixar desvendar” (1980: 168). É nesse sentido que a citação de James Joyce presente na primeira página, logo após o título do livro, mais que uma referência remetida com o intuito de diálogo entre “estilos”, conduz o leitor a enfrentar o desamparo dramatizado na experiência de Joana e na própria solidão do ato criador. Aqui temos mais um ponto de aproximação com o axioma proposto por Beckett e por ele levado a cabo no processo formal de sua obra: “Estamos sós. Incapazes de compreender e incapazes de sermos compreendidos”. É no enfrentamento de si que a existência de Joana se dá de modo muito próximo do teatral; o “como se” tão caro a Stanislávski e que aparece inúmeras vezes no interior do romance conduz ao ato de representação: “Como se fosse mentira a sua existência” (1980: 175). Em Clarice a personagem é sempre encarada do ponto de vista da criação, ou melhor, da relação imperfeita entre criador/criatura. A identidade da personagem oscila em todos os níveis possíveis, afastando-se de qualquer relação de dependência entre os fatos narrados e sua verossimilhança. Desse modo, a dissolução da identidade, impossível de ser apreendida em sua totalidade, aparece até no plano sexual da personagem: “homem assim era Joana, homem. E assim fez-se mulher e envelheceu” (1980: 183). Mais que uma crítica ao universo masculino, como, aliás, a crítica feminina sobre Clarice não cansa de repetir, o que está em jogo não é apenas a questão
  • 24. U 24 rdimento ATeatralidade em Clarice Lispector.Alex Beigui. Dezembro 2008 - Nº 11 de gênero, mas, sobretudo, a matriz de uma escrita andrógina referente, sobretudo, ao não-lugar do sujeito: “Eles dois eram duas criaturas. Que mais importa?” (1980: 182). Matriz responsável pela condição insuficiente do sujeito no mundo: “É que tudo o que eu tenho não se pode dar. Nem tomar. Eu mesma posso morrer de sede diante de mim”. (1980: 191). A aceitação da solidão como único caminho possível se caracteriza de modo determinante no espaço fechado, palco italiano, foco ainda que imaginário, no qual as personagens claricianas se vêem. Nesse sentido, Joana é um exemplo primoroso da crise experimentada pelas personagens no drama moderno: “havia um círculo intransponível e impalpável ao redor daquela criatura, isolando-a” (1980: 194.) A interposição de diálogos abundantes nos textos narrativos de Clarice, juntamente, com o isolamento típico de suas personagens, forma um paradoxo da escrita que beira o estiolamento da narrativa, salvo não fosse o ímpeto analítico da “busca” que a mantém. Atentativadeaproximaçãonuncaconseguetransporolimiteanteposto pela fronteira do ser. Todas as tentativas de ajuste entre esses limites fracassam, restando por vezes apenas a consciência de síntese: “tu és um corpo vivendo, eu sou um corpo vivendo, nada mais” (1980: 201). Daí resulta a imperfeição do movimento assumido como matéria de expressão: “... e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas...”, ou ainda mais contundente: “... serei brutal e mal feita...” (1980: 216). O ser-personagem é-nos dado em forma de exercício, um laboratório de criação e de novas simetrias em andamento. Referências bibliográficas BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Rosen Blat Nestrovski. São Paulo: L&PM Editores, 1986. CHAUÌ, Marilena. A Nervura do Real: Imanência e Liberdade em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. GALHARTE, Julio Augusto Xavier. “Na Trilha da Despalavra: Silêncios em Obras de Clarice Lispector e Samuel Beckett”. In: Leitores Leituras de Clarice Lispector. Org. Regina Pontieri. São Paulo: Editora Hedra, 2004. LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. 9ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. STANISLAVSKI, Constantin. A Criação de um Papel. Trad. Pontes de Paula Lima. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Trad. Elia Ferreira Edel. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994. TEIXEIRA, César Mota. “O Monólogo Dialógico: Reflexões sobre Água Viva de Clarice Lispector”. In: Leitores e Leituras de Clarice Lispector. (Org. Regina Pontieri). São Paulo: Editora Hedra, 2004.
  • 25. U 25 rdimento Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.Dezembro 2008 - N° 11 CINE HORTO GALPÃO: UM PROJETO ARTÍSTICO PEDAGÓGICO Éder Sumariva Rodrigues1 Grupo Galpão: a trajetória dos espetáculos O Grupo Galpão foi criado por cinco atores em 1982, após uma experiência de trabalho com o diretor George Frosher e o ator Kurt Bildstein, ambos do Teatro Livre de Munique. O GrupoGalpão ao longo de suatrajetória concentrou seus esforços em pesquisa de linguagem, percorrendo as mais diversas técnicas, buscando a introdução de novos referentes técnicos para o grupo. Neste sentido diversificou o olhar da direção, alternando convite a diferentes diretores, e eventualmente trabalhando com a direção de um dos integrantes do grupo. Resumo Este texto aborda a trajetória do GrupoGalpãoapartirdoreconhecimento das diversas linguagens que sustentaram as montagens realizadas pelo grupo. Este reconhecimento permite perceber que o projeto pedagógico do grupo conforma um sistema aberto, destinado a constante formação do ator e a busca incansável de novos procedimentos, novas imersões cênicas. O grupo realiza ações pedagógicas através de um projeto catalisador das experiências produzidas ao longo de sua trajetória do grupo. O texto ainda identifica o projeto Galpão Cine Horto como um centro de referência para criação, pesquisa e fomento teatral. Palavras-chave: Grupo Galpão, projeto pedagógico, Galpão Cine Horto. Abstract This text approaches the pathway of the Galpão Group theatre where of the recognition of the different languages to support the realized montage of the group. This recognition allows realizing pedagogic project of the group as an open system, destined to the constant formation of the actor and the tireless pursuit of the news procedures, news cenics immersions. The group realizes pedagogic actions through of the catalyst project of the produced experience along of the its pathway of the group. The text still identifies the project Galpão Cine Horto as a centre of reference to creation, research and theatre furtherance. Keywords:GalpãoGroup,Pedagogic Projetc, Galpão Cine Horto. 1 Éder Sumariva Rogrigues é Mestrando do Programa de Pós- Graduação em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Participa do projeto de pesquisa "O Teatro de Grupo e a Construção de modelos de trabalho do ator". E-mail: sumariva_ rodrigues@yahoo. com.br
  • 26. U 26 rdimento Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues. Dezembro 2008 - Nº 11 Nas diferentes encenações do grupo funcionaram sempre como estímulo à prática de pesquisa atorial. Por isso, o Galpão busca incorporar ao processo de ensaios a aprendizagem de técnicas que satisfaçam a necessidade paraamontagemqueestãorealizando,masqueaomesmotempoimpulsionemo grupodeatoresanovosterritórios.Odesenvolvimentodesseprocessoassociado de aprendizagem e ensaio criativo pode ser considerado uma das matrizes geradas pelo grupo desde de seus primeiros passos. Consequentemente pode- se dizer que o trabalho grupal aparece imerso sempre na descoberta das novas possibilidades cênicas que vão além do desenvolvimento dos espetáculos. A primeira opção do Grupo Galpão foi encenar na rua, em 1982, “E A Noiva Não Quer Casar” com direção coletiva e texto de Eduardo Moreira, utilizando elementos da linguagem circense. Logo em seguida, em 1983, levaram à cena o espetáculo infantil “De Olhos Fechados” sob direção de Fernando Linares e autoria de João Vianney e, em 1984 encenam o espetáculo de teatro de rua “Ó Procê Vê na Ponta do Pé” (criação coletiva), espetáculos nos quais o grupo ensaiou a utilização da linguagem clownesca. Sob direção de Eduardo Moreira e Fernando Linares, encenam em 1985 o texto de Carlo Goldoni “Arlequim Servidor de Tantos Amores”, experimentam técnicas da Commedia dell´Arte e da máscara italiana que, posteriormente em 1986 foi aprofundado na montagem de criação coletiva e direção de Paulinho Polika “A Comédia da Esposa Muda - que Falava Mais do que Pobre na Chuva”. No mesmo ano, “Triunfo, um Delírio Barroco”, Carmen Paternostro foi responsável pela direção, concepção cênica e roteiro final do espetáculo, representou uma experiência com a Cia. de Dança do Palácio das Artes. Seguindo o viés experimental, em 1987 o grupo encenou o texto de Eduardo Moreira e Antonio Edson – que também foi responsável pela direção - “Foi Por Amor”, esquete que abordava a realidade brasileira criticando os crimes passionais e o machismo dominante na sociedade. “Corra Enquanto é Tempo” foi encenado em 1988 com autoria e direção de Eid Ribeiro, uma paródia sobre grupos religiosos evangélicos que utilizava espaços da rua muito similares aos abordados pelos grupos religiosos. Também sob direção de Eid Ribeiro, “Álbum de Família” (1990) texto do dramaturgo Nelson Rodrigues marcou o retorno ao palco, e significou oportunidade para experimentação atorial com uma dramaturgia mais trágica e densa. Esta encenação foi marco divisor na estrutura organizacional do grupo, conseguiram adquirir a própria sede, o Galpão. “Romeu e Julieta” (1992) espetáculo de teatro de rua inspirado na obra de Willian Shakespeare e com direção de Gabriel Villeta , teve uma repercussão que contribuiu de forma significativa para o reconhecimento nacional do grupo, retratava o universo cultural do sertão mineiro, e ajudou a conformar uma imagem do grupo, constituindo quase uma marca do Galpão.
  • 27. U 27 rdimento Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.Dezembro 2008 - N° 11 O encontro com Villeta significou uma reestruturação no interior do grupo, gerou uma estrutura profissional que deu suporte aos posteriores trabalhos desenvolvidos pelo Galpão. Com a projeção conquistada pelo trabalho de direção de Villela, tanto a nível nacional e internacional2 , o grupo decidiu continuar com novas concepções teatrais trazidas pelo diretor paulista. Seguindo o processo de renovação teatral, Villeta decide montar a partir da adaptação de Arildo de Barros do texto de Eduardo Garrido “O Mártir do Calvário” o espetáculo “A Rua Amargura” (1994). Esta encenação representou uma continuidade neste processo de formalização dessa imagem do grupo, ao associar a temática bíblica com elementos característicos da cultura popular brasileira. “Um Molière Imaginário” (1997) foi adaptado a partir do texto “Um Doente Imaginário”, último texto escrito por Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière. Este espetáculo foi dirigido por Eduardo Moreira e constituiu um momento de consolidação grupal e autonomia interna, “o grupo procurava andar com suas próprias pernas” (BRANDÃO, 2002: 138). Por um lado havia a pressão da continuidade qualitativa dos trabalhos realizados anteriormente que consequentemente refletia na expectativa do público. Em 1998, o ator e diretor Cacá Carvalho ministra workshop com o Grupo Galpão baseado no texto O Cavaleiro Inexistente de Ítalo Calvino. A partir dessa experiência, o ano seguinte foi marcado pela produção do espetáculo “Partido” (1999) adaptado da obra “O Visconde Partido ao Meio”, também do escritor italiano Calvino. Carvalho nesta encenação explorou uma linguagem mais poética experimentando o universo existencialista. Esta produção marcou os 17 anos de trajetóriaeconsolidaçãodotrabalhodesenvolvidopelogrupo.“UmTremChamado Desejo” (2000) do autor americano Tennessee Williams e dirigida por Chico Pelúcio, outro fundador do grupo. Este espetáculo foi concebido como comédia musical, recriava o difícil dia-a-dia de uma companhia teatral dos primeiros anos do século XX, estabelecendo um inevitável paralelo com a própria vida do grupo. “O Inspertor Geral” (2003) do russo Nicolai Gógol sob a direção de Paulo José representa uma reafirmação da estratégia do Galpão de se associar a diretores já renomados para experimentar novos caminhos. Essa parceria se reafirmou com a estréia em 2006 de “Um Homem é um Homem” do dramaturgo alemão Bertolt Brecht é possível visualizar outra vez o projeto cênico de Paulo José buscando uma articulação com o capital técnico do elenco grupal. Esta trajetória, que consolidou um espaço significativo no contexto teatral brasileiro, se articulou a partir de um projeto grupal que insistiu na formação técnica dos atores. Isso possibilitou a experimentação de diversas linguagens cênicas propostas pelos diretores convidados. Os atores do Galpão 2 O Galpão foi convi- dado para apresentar o espetáculo "Romeu e Julieta" no Globe Theatre (Londres/ Inglaterra). Globe Theatre é uma fiel reconstrução do teatro construído em 1599, onde trabalhou Shakespeare e para qual escreveu muitas peças de teatro. É um único teatro in- ternacional dedicado à exploração da obra de Shakespeare.
  • 28. U 28 rdimento Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues. Dezembro 2008 - Nº 11 conformaram um capital criativo muito favorável para a apropriação de uma multiplicidade das possibilidades cênicas. Assim, o grupo pode pautar-se “por um teatro de pesquisa, onde o riso e a possibilidade são a tônica. Impulsionados pelo desejo de fazer um teatro calcado no desenvolvimento de uma própria linguagem de grupo”3 (MELLO, 2001: 01). Este coletivo de atores articulou sua prática cênica com um projeto coletivo de construção de uma estrutura de trabalho que permitisse o aprofundamento técnico e a sobrevivência por meio do teatro. Por isso a referência da aprendizagem caracteriza o grupo. Galpão Cine Horto: espaço de pesquisa, aprendizagem e fomento do teatro Desde seus primeiros anos de trabalho o Galpão almejava ir além da criação de espetáculos. Em 1984, com apenas dois anos de existência e, contando com a jovialidade de seus integrantes as perspectivas promissoras do grupo eram visíveis também para a crítica. O jornalista Marcelo Procópio do Jornal Estado de Minas registrou em 14/10/1984 os anseios e os desejos desse conjunto de atores que mais tarde tornar-se-ia realidade: Eles acreditam que é possível ser profissional de teatro aqui [em Belo Horizonte]. Trabalham cerca de cinco horas por dia, buscam ter uma infra-estrutura que garanta a vida do grupo. E insistem no grande sonho do espaço: um galpão para espetáculo, escola. (apud BRANDÃO, 2002: 75) Essa dinâmica de trabalho profissional, baseada na disciplina e no companheirismo, repercutiu no projeto que redundou na abertura de um espaço cultural que representou um passo decisivo para o desenvolvimento artístico do Grupo Galpão. A percepção de que este “novo espaço simboliza o esforço destes quinze anos e inaugura os próximos que virão” (BRANDÃO, 2002: 146), impulsionou o grupo a assumir um projeto que demandou um grande esforço de produção. A abertura do espaço Galpão Cine Horto4 , significou um importante acontecimento para a vida cultural de Belo Horizonte, proporcionou o desenvolvimento e fomento da criação teatral, compartilhamento de idéias e pesquisa bem como posteriormente repercutiu no nascente movimento de coletivos teatrais denominado Redemoinho5 . Vizinho da sede do grupo na Rua Pitangui, o Cine Horto era um antigo cinema abandonado, que foi transformado a partir da intervenção do 3 Artigo para o programa "Grupo Galpão: Uma História de Risco e Rito". 4 O site do Galpão Cine Horto pode ser acessado pelo endereço: www. galpaocinehorto. com.br 5 O site da Redemoinho pode ser acessado pelo endereço: www. redemoinho.org
  • 29. U 29 rdimento Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.Dezembro 2008 - N° 11 grupo no momento de expansão de suas atividades. Isso se deu também a partir de discussões com artistas da cidade. O Cine Horto Galpão, inaugurado em março de 19985 , tornou-se um centro cultural que cumpre múltiplas funções, tendo como o eixo norteador à reciclagem de atores. Assim, o Cine Horto possibilita aos artistas locais o aprofundamento de técnicas, a realização de pesquisas, e formação técnica, além de ser um centro de fomento do teatral. Nos seus onze anos de trajetória, o Cine Horto abrigou projetos concebidos pelo grupo, que visavam suprir carências identificadas pelo Grupo no ambiente teatral de Belo Horizonte. O Cine Horto tornou- se lugar de encontro de pessoas do teatro mineiro, possibilitando trocas de experiências entre diferentes grupos, bem como também contato com artistas de outras regiões do país. O espaço também funciona como sitio de veiculação de projetos culturais produzidos na cidade. Neste sentido, seu principal eixo é a geração e a difusão de produtos teatrais. Estas tarefas são realizadas a partir de uma política de abertura para a comunidade civil e artística, criando oportunidades para o acesso às atividades desenvolvidas tanto neste centro cultural. Com a intensa carga de viagens que o Galpão realiza durante todo o ano, alguns projetos são realizados por profissionais, que se destacam no circuito teatral de Belo Horizonte, e são contratos pela direção do Cine Horto. Assim, o Cine Horto opera como um projeto de extensão do grupo, criando oportunidades de ensino e aprendizagem teatral através de diferentes atividades. Com apresentações de espetáculos, conferências, oficinas e encontros, o grupo estabeleceu um projeto que fomenta o acesso ao teatro e, dessa forma, discute os modos de criação e produção ao mesmo tempo em que constitui um lugar de encontro. Os projetos, atualmente em curso no Cine Horto, em suas especificidades atendem a diferentes anseios dos artistas. O projeto Oficinão6 está dirigido à realização de uma pesquisa temática que relaciona membros do grupo Galpão com alunos participantes. Neste projeto, o grupo aplica junto aos alunos, técnicas desenvolvidas no trabalho cotidiano do grupo, e particularmente aquelas absorvidas a partir da experiência com os diferentes diretores convidados. No Oficinão também se busca a elaboração de novos exercícios, e o aprimoramento de técnicas. Este projeto permite que os alunos participem de uma encenação que supõe o envolvimento com a construção geral do espetáculo desde a produção, realização de figurinos e cenários, além da 5 O Grupo Galpão já tinha 16 anos de trajetória quando inaugurou o Cine Horto, portanto os atores tinham diversas experiências de linguagens. 6 A primeira edição aconteceu em 1998 com a direção de Chico Pelúcio com o espetáculo "Noite de Reis". Até a oitava edição, totalizou-se 30.000 espectadores com 285 apresentações neste espaço cultural.
  • 30. U 30 rdimento Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues. Dezembro 2008 - Nº 11 interpretação. Assim, esta oficina termina por conformar uma instância de formação de novos grupos, dado que, ao finalizar o projeto, vários alunos se reúnem para dar seguimento aos seus processos criativos. O Festival de Cenas Curtas 3 X 47 é um projeto de estímulo à criação cênica e a revelação de novos talentos. A seleção dos espetáculos breves é feita pelo Grupo Galpão e convidados e tem como critério de avaliação a pesquisa e da proposta teatral dos grupos proponentes. O Festival propõe que os grupos elaborem uma apresentação de um esquete, em aproximadamente 15 minutos. As esquetes são submetidas ao voto popular, e o ganhador ganha como prêmio a possibilidade de realizar uma temporada no Galpão Cine Horto. Sabadão é um evento mensal que tem por finalidade realizar aulas- espetáculo, palestras, debates ou exibição de vídeo, sempre com a presença de um artista renomado das artes cênicas, que interagem com o público. A troca de experiências proporcionada por este projeto permite o contato direto com a comunidade artística local que, a partir disso, tem a oportunidade de interagir com outras formas de reflexão sobre a cena teatral brasileira. Aproveitando a própria história do Cine Horto, o Grupo Galpão insere noprojetoConexãoGalpãodoistiposdeatividadesquetêmaprioridadedeatender estudantes e comunidade em geral, realizando assim um programa educativo na cidade. Jáo ConexãoCinema, difunde ahistóriado cinema, relacionando-a, quando possível com a própria história do local. Para isso o grupo utiliza a pequena sala de projeção que foi conservada no Cine Horto. Este projeto atende crianças de 5 a 10 anos relacionadas com diferentes instituições. Conexão Teatro é um projeto que se dedica à história do teatro e suas transformações, e está destinado às crianças e aos pré-adolescentes, abarcando a faixa etária dos 9 aos 12 anos. Retomando as origens do grupo, o projeto Cine Horto Pé na Rua, proporciona a vivência do teatro de rua. Assim, os alunos que freqüentam este projeto podem experimentar a linguagem da rua que foi a matriz do trabalho do Galpão. Ao abordar o uso da rua o projeto amplia as perspectivas de intervenção cênica dos atores nos espaços da cidade, propondo a criação de novas formas de imersão artística. A primeira montagem deste projeto intitulou-se “Papo de Anjo” com a direção de Chico Pelúcio e Lydia Del Picchia, e foi realizada com os atores participantes do projeto Oficinão de 2003/2004. Ultrapassando as fronteiras da cidade de Belo Horizonte, o Grupo Galpão lançou, em 2004, o projeto Redemoinho - Rede Brasileira de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral tem como finalidade reunir grupos de teatros que administram o próprio espaço de criação, o compartilhamento e a troca de experiências entre os grupos. As agrupações que compõem a rede de integração Redemoinho possuem espaço próprio para criação e pesquisa 7 O primeiro festival aconteceu em 2000.
  • 31. U 31 rdimento Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues.Dezembro 2008 - N° 11 cênica. Esta rede de integração discute a produção teatral do Brasil, troca experiências e busca, através deste intercâmbio, fortalecer as bases de fomento cultural no país. O projeto Redemoinho caracteriza-se pela descentralização8 , visando realizar o evento em todos os espaços culturais dos grupos integrantes, realizando o evento a cada ano em uma sede diferente. Palavras finais O projeto do Galpão, grupo que nasceu de uma oficina em um evento teatral, consolidou a criação de um espaço de fomento que funciona como berço de novos grupos. Por isso, pode-se dizer que as atividades desenvolvidas no Cine Horto Galpão conformam um projeto pedagógico de impacto tanto local como nacional. Este projeto, além de oferecer aprendizagem técnica, também repercute como modelo de prática pedagógica grupal, apesar de que as condições de trabalho do Cine Horto Galpão sejam de difícil reprodução ao longo do país. Atualmente, o Cine Horto além de desenvolver projetos focados no fomento e produção teatral, possui outros dois projetos em andamento que completam a estrutura de funcionamento idealizada pelo grupo: o Centro de Memória e Pesquisa do Teatro que abriga acervo bibliográfico e videográfico especializado na área teatral e, desde 2004 publica anualmente a Revista de Teatro Subtexto, objetiva colocar em circulação as experiências dos coletivos de teatro. A política de compartilhamento levada a cabo no Cine Horto implica na abertura do grupo a novos olhares, por isso este espaço se constituiu em lugar de criação e de reflexão, onde se reflete sobre o fazer teatral em grupo. Referências bibliográficas BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Grupo Galpão: Uma história de risco e rito. 2º ed. Belo Horizonte: o grupo, 2002. MELLO, Sérgio Bandeira de. Grupo Galpão: Uma História de Risco e Rito. 2001. MOREIRA, Eduardo da Luz. Grupo Galpão: Diário de Montagem A Rua da Amargura. Belo Horizonte, UFMG, 2003. PELÚCIO, Chico. Galpão Cine Horto – Espaço de criação e incentivo ao trabalho em grupo. Revista Subtexto, Belo Horizonte, v. 01, n 01, rona 2004. RODRIGUES, Eder Sumariva. Características e perspectivas da identidade do Teatro de Grupo no Brasil. In III JORNADA PEDAGÓGICA NACIONAL DO SINPRO, 2005, Santa Catarina: Itajaí, 2005. p. 67–77. 8 2004 e 2005 na sede do Grupo Galpão em Belo Horizonte; 2006 na sede Barracão Teatro em São Paulo; e em 2007 será realizado em Porto Alegre na sede do Grupo de Atuadores Terreira da Tribo Ói Nóis Aqui Traveiz.
  • 32. U 32 rdimento Cine Horto Galpão: um projeto artístico pedagógico. Éder Sumariva Rodrigues. Dezembro 2008 - Nº 11
  • 33. U 33 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11 ESPAÇO TEATRAL E PERFORMATIVIDADE. ESTRATÉGIAS E TÁTICAS NA CENA MODERNA E CONTEMPORÂNEA Evelyn Furquim Werneck Lima1 O presente artigo tem por objetivo discutir os conceitos de sistemas disciplinares e de performatividade2 no espaço cênico, buscando relacioná-los na História do Espetáculo. A História Cultural - vertente nascida na École des Annales-, com Marc BlocheLucienFèbvre,nosanos1930,edesenvolvidaporJacquesLeGoff,Georges Duby, Pierre Bourdiu e, mais recentemente, Roger Chartier, foi atravessada Resumo O presente artigo tem por objetivo discutir os conceitos de sistemas disciplinares e de performatividade no espaço cênico, buscando relacioná-los no âmbito da História do Espetáculo, com fundamento nas teorias e conceitos de Michel Foucault e Michel de Certeau. Ambos permitem uma abordagem teórica sobre a questão dos métodos e da disciplina do ator. Conclui-se que a técnicadeimprovisaçãofreqüentenacena moderna e contemporânea parece refutar os conceitos foucaultianos, aceitando, ao contrário, a prática das táticas propostas por Certeau. Palavras-chave: espaço teatral, sistemas disciplinares, história do espetáculo. Abstract The present article focuses in the discussion of concepts of discipline and performativity in the scenic space, trying to relate them in the context of the Performing Arts History, based in the theories and concepts of Michel Foucault and Michel de Certeau. Both allow a theoretical approach on the subject of the methods and the actor’s discipline and performing. The conclusions are that the technique of the modern and contemporary scene seems to refute Foucault´s concepts, accepting, to the opposite, the practice of the tactics proposed by Certeau. Keywords: theatrical space, disciplinary systems, performing arts history. 1 Evelyn Furquim Werneck Lima é professora Associada do Centro de Letras e Artes e do Programa de Pós-Graduação em Teatro (UNIRIO). Membro do Centre de Recherches Interdisciplinaires sur le Monde Lusophone (Paris X-Nanterre). Pós-doutora em Artes e doutora em História Social (UFRJ/EHESS). Coordenadora do Laboratório de Estudos do Espaço Teatral. Pesquisadora do CNPq e da FAPERJ. 2 O termo performatividade, nascido e desenvolvido entre os estudos da performance, indica um "fazer como", "um fazer fazendo como". Designa as relações de simulação estabelecidas entre oautor/ator/performer com o real - quer através de recursos ficcionais quer auto- induzidos, visando iludir, fazer crer/ enganar o espectador e ou até a si mesmo, através de simulações. Disponível em http:// www.ceart.udesc.br, acessado em 25.set.2008.
  • 34. U 34 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11 por duas personalidades que a meu ver são dois furacões no meio das teorias e filosofias históricas: Michel Foucault e Michel de Certeau. Ambos permitem uma abordagem teórica sobre a questão da performatividade e da disciplina do ator. Decidi discutir este tema, pois nos anos que se seguiram às publicações e palestras destes dois autores, foram radicalmente alterados não só conceitos da História tout court, porém da História de todas as atividades culturais, entre elas a do Teatro e, por conseqüência, da História do Espetáculo. Uma das discussões mais polêmicas é encontrada na obra de Foucault intitulada A Palavra e as Coisas, na qual o autor chama atenção para a questão da linguagem, mais precisamente, discute a emancipação da linguagem em relação às coisas. Segundo ele, não haveria mais unidade entre as coisas e a linguagem, unidade perdida no tempo, unidade que se deu no período clássico da história, e que na era moderna se esfacela. Esta afirmativa deflagra o paroxismo da fragmentação, que têm pautado as artes contemporâneas (FOUCAULT: 2002). Para Foucault, ainda no século XIX, Nietzsche teria sido o primeiro filósofo a trazer a linguagem para o cerne de todas as questões, a propor uma reflexão radical sobre a linguagem. Antes negligenciada como objeto de estudo filosófico, a linguagem constitui hoje o centro da curiosidade do pensamento contemporâneo, passando a ocupar um lugar central na produção de reflexão, arte, cultura. Este autor defende que após a ruptura com a regra da “representação” e de uma “unidade” que não pode ser restaurada (FOUCAULT, 2002: 419), os “modos de ser passaram a ser múltiplos”. Acredita que houve uma ruptura da ordem clássica, um fracionamento da linguagem e uma unidade perdida da linguagem. A questão que aflora hoje é “seria o personagem teatral uma unidade?” Qual a unidade possível hoje?3 Segundo o autor, cada época se caracteriza por uma configuração geral do saber comum aos vários saberes particulares, a qual determina o que pode ser pensado, como pode ser pensado, dentro de critérios particulares. Além da questão da emancipação da linguagem, em sua obra Vigiar e Punir, escrita em 1975, Foucault defende, sobretudo, que o poder se instala na horizontalidade do sujeito individualizado, modelando seu corpo até à passividade. Uma anatomia do poder define o poder que se pode ter sobre o corpo, “aumentando as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminuindo essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”. Acrescenta que, “(...) a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (FOUCAULT, 1987: 127). 3 Foucault tenta analisar, definir, o solo epistemológico que serviu de base para rupturas, o nascimento de novos saberes e, finalmente, o papel do homem e das ciências humanas a partir do século XIX.
  • 35. U 35 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11 Vigiar e punir é o relato das formas que produziram o indivíduo, tornado normatizado por um poder maior que ele. Entretanto, para refutar esta disciplina corporal do indivíduo face à sociedade e as instituições, destaco o também francês Michel de Certeau, que, em sua obra A Invenção do cotidiano, de 1980, conceitua as práticas das estratégias e táticas, demonstrando que o corpo pode transgredir a disciplina e dar conta das artes de fazer (CERTEAU, 1994: 21). Este pensador demonstra que um jogo que táticas silenciosas e sutis se insinuam quando o corpo ou o indivíduo não deseja se submeter às estratégias. Tratarei mais tarde destas questões quando falar de performatividade. Ao investigar a cena teatral entre 1970 e 1990, principalmente na Europa e EUA, o teórico Hans-Thies Lehmann identificou que aqueles espetáculos teriam como principal característica comum o rompimento com os conceitos utilizados no “teatro dramático”, o qual define como “pensado tacitamente como um teatro do drama”. Ele inclui entre os fatores teóricos conscientes as categorias “imitação” e “ação”. Este autor afirma que “o teatro dramático está subordinado ao primado do texto”. (LEHMANN, 2007: 25) Não creio que se possa generalizar este primado do texto com o que Lehmann conceitua como “teatro dramático” e que este teria cedido lugar ao “teatro pós-dramático” após os anos 1970, pois o teatro em cena é considerado diferente da literatura dramática há muito tempo. Entendo que houve uma passagem conflituosa do campo dos signos lingüísticos para o campo dos signos visuais, mas diferentemente de justificar esta mudança apenas quando surgiu a figura do encenador, ou defender esta transformação apenas na segunda metade do século XX, já identifico uma demarcação relevante desta “batalha” desde os trabalhos do autor inglês Ben Jonson e do arquiteto e cenógrafo Inigo Jones, como também afirmam Oddey e White, referindo-se às montagens encenadas nos Court Masques, ainda no século XVII, quando as peças escritas pelo primeiro eram radicalmente transformadas quando encenadas (ODDEY e WHITE, 2008: 145). Em recente estudo, Oddey e White traçam um brevíssimo, porém detalhado panorama da questão. Reafirmam que o ponto crucial da atividade teatral acontece no palco e esta atividade é uma experiência visual apresentada em três dimensões e que “refletem a identidade cultural da sociedade que o está assistindo” (ODDEY e WHITE, 2008: 145). Apesar de citar Brecht como um marco das bases do teatro pós- dramático, Lehmann, alega que Brecht não pertence a essa nova estética marcada por uma absoluta liberdade no que tange à construção cênica, sem se subjugar a modelos, formas ou fontes. Para o autor alemão, as encenações de Brecht estavam sempre presas ao texto escrito. Assim como Gerd Borheim,
  • 36. U 36 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11 concordo que Brecht utilizava “uma gramática, um todo completo e exato de regras e métodos”. Entretanto, o próprio crítico argumenta que, partindo da racionalidade, Brecht provoca “uma cisão entre o espetáculo e o personagem, a cena e o texto, e esta cisão vai se refletir também na relação do público com o espetáculo” (BORNHEIM, 2001: 27). Para Pavis, na tradição ocidental o texto dramático permaneceu por muito tempo como um dos componentes essenciais da representação. Entretanto, após as mudanças de paradigmas e a possibilidade de o encenador imprimir no texto encenado a marca de sua visão pessoal, o texto dramático foi deixado à disposição dos filólogos, passando-se da filologia à cenologia (PAVIS, 2003:185). Citando como exemplo as encenações de Vilar, Jean-Jacques Roubine alega que o teatro contemporâneo contrapõe à literatura dramática uma nova história teatral: uma história das formas, das buscas, das inovações do palco (ROUBINE, 1998: 57) e Pavis defende que a encenação hoje não é mais a passagem do texto à cena e que o texto não deve ser o pólo de atração para o ato da representação (PAVIS, 2003:192). Espaço teatral e performatividade: diálogos A experiência espacial, tanto no edifício teatral como fora dele, dispõe de duas possibilidades, entre as quais todas as teorias do espaço podem oscilar: (i) Concebe-se o espaço como um espaço vazio que se deve preencher; (ii) Considera-se o espaço como invisível, ilimitado e ligado a seus utilizadores, a partir de coordenadas, de seus deslocamentos, de sua trajetória, como uma substância “não a ser preenchida, mas a ser estendida”. A essas duas concepções antitéticas do espaço correspondem duas maneiras diferentes de descrevê-lo: o espaço objetivo externo e o espaço gestual. Pavis considera o espaço objetivo externo como o espaço visível, frontal muitas vezes, preenchível e descritivo, onde ele distingue duas categorias: • o lugar teatral, ou seja, o prédio e sua arquitetura, sua inscrição na cidade, mas também o local previsto para a representação ou ainda • o espaço cênico: lugar no qual evoluem os atores e o pessoal técnico: a área de representação propriamente dita e seus prolongamentos para coxia, platéia e todo o prédio teatral (PAVIS, 2003:141-142) As formas de lugar teatral foram se modificando de acordo com cada cultura e cada temporalidade. Na linguagem dos espetáculos, as relações espaciais criadas surgiram a partir da organização do espaço cênico, mais
  • 37. U 37 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11 especificamente, do desenvolvimento da arquitetura da casa de espetáculos. Na Grécia clássica as artes cênicas demandaram o anfiteatro grego. No palco principal apenas os protagonistas ocupavam esta faixa entre o palco e o público e tinham como função representar os comentários e reações do povo perante os nobres e os deuses. Havia, assim, uma grande interatividade entre os artistas e o público. O mesmo acontecia nos teatros em semi-círculos e anfiteatros romanos, os quais, apesar de não serem mais escavados nas rochas e sim edificados sobre estruturas em arcos, apresentavam sempre um palco tipo arena. Durante a Idade Média, o teatro profano era perseguido pelo Cristianismo, havendo permissão da Igreja apenas para realizar os “Mistérios” no adro ou no interior do edifício religioso. Ainda no medievo, os atores tiveram que ocupar espaços não muito nobres, como carroças, tablados, praças, não possuindo um espaço específico para apresentar seus espetáculos. Teatro de criação coletiva, de jogos cênicos sob máscaras e de personagens tipos, que caricaturavam a sociedade, a Commedia dell’arte significou, literalmente, a profissionalização do teatro: os atores ganhavam a sua vida representando tais comédias, ao serem freqüentemente contratados e remunerados para se apresentarem em espaços privados, como nos grandes castelos e palácios. Esses artistas eram capazes de representar comédias, tragédias, tragicomédias, pastorais, além de farsas. Surgiram por volta de 1550 e se eternizaram na historia da cultura. Desde a proposta do Teatro Olímpico de Vicenza, obra do arquiteto Andréa Palladio inaugurada em 1580, o ator ficava bem próximo à platéia até a adoção do longínquo e frontal palco italiano, cujo ápice é o La Scala de Milão. O corpo dos atores ficava então bem distante para criar espaços de ilusão. (LIMA & CARDOSO, 2006) O palco italiano foi planejado para criar um ambiente de magia ilusionista, com o palco cênico separado da orquestra e da platéia. Em obra de referência sobre a arquitetura do espetáculo no Ocidente afirmo que o palco italiano - adotado em todo o mundo ocidental devido à exportação de gosto pelo espetáculo lírico, foi o modelo que se reproduziu por mais de duzentos anos resultando num fenômeno de longa duração na história do espetáculo4 (LIMA, 2000: 135). Visando ampliar as dimensões reais do palco, desde o Renascimento, os cenógrafos criaram vários recursos usando grandes cenários, pintados em perspectiva5 , com a finalidade de criar um efeito de profundidade ilusória. Esta ilusão criada é chamada de espaço virtual. Porém, este espaço perspectivado transformar-se-ia pelas vanguardas do século XX. Posteriormente, em Das Vanguardas à tradição (2006), discuti as revoluções cênicas do século XX, citando Gordon Craig, cenógrafo e arquiteto que estabeleceu nos anos 1920, um “quinto palco” para substituir os quatro 4 Em Arquitetura do Espetáculo discuto o advento e a permanência do palco italiano, inclusive o empréstimo de suas formas aos espaços destinados ao cinema. 5 Ver tratado de Sebastiano Serlio.
  • 38. U 38 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11 tipos de espaços teatrais a) o anfiteatro grego, b) o espaço medieval, c) os tablados da Commedia dell´Arte e d) o palco italiano. Esta proposta do quinto palco representava a substituição de um palco estático por um palco cinético, e para cada tipo de encenação um tipo especial de lugar cênico. A iluminação recebeu um tratamento inédito até então. Craig fez projetar a luz verticalmente sobre o palco e frontalmente por meio de projetores colocados no fundo da sala. A luz dos bastidores e da ribalta foi abolida, numa proposta inovadora e vanguardista. Neste sentido, o teatro teria como objetivo absorver estas novas tecnologias para transcendê-las, problematizando assim as tecnologias de comunicação na cultura contemporânea. O crítico Edélcio Mostaço afirma que a partir da implosão do espaço propostapeloconceitodeencenaçãooumise-en-scèneaofinaldoséculoXIX,quando André Antoine fez considerações a respeito, houve uma revolução no espaço da cena no que tange a) ao papel e a função da quarta parede; b) à definição do espaço cênico como contraponto ao espaço narrativo; c) à disciplina dos atores, O espaço cênico passa a ser vislumbrado, desde então, como uma galvanização das forças atuantes no espaço narrativo, uma busca de adequação entre os meios (da infra-estrutura da linguagem cênica, da iluminação e da cenotécnica, etc) e os fins (a articulação dos signos dentrodeumcódigocênicoesuaspossíveisdecodificaçõespeloespectador) a conformar a substância última do fenômeno teatral. Especial ênfase é então dispensada aos intérpretes, à noção de ensemble, à administração do elenco; evitando proeminências que comprometessem o conjunto artístico e a coerência de cena. Não se tratava de um “rebaixamento” da condição do ator, mas do redimensionamento de sua função dentro do espetáculo, alinhando-o aos demais possíveis narrativos da linguagem cênica. Com estas renovadas abordagens o teatro passa então a ser considerado como o espaço da representação, -- e não mais da apresentação do mundo (“o grande teatro do mundo” de matriz barroca) --, enfatizando o que possui de ficcional, narrativa artificiosa e produzida, universo propedêutico de vida; cabendo ao encenador formalizar a linguagem e conduzir este processo (MOSTAÇO, s/d). Desdeentão,oteatronãosepropõeaocuparapenasoespaçofísico-real, cotidiano, concreto-, mas busca extrapolá-lo e, mesmo fazendo uso do espaço real, tem a intenção de criar um espaço onde simbolismos possam ser revelados. Os diretores, quando criam os espaços da cena, produzem sentidos, construídos a partir de uma experiência particular. Considero que os sentidos que os artistas criam através do espaço em suas obras se reportam às experiências espaciais já vividas ou almejadas. Estas experiências são re-elaboradas, constituindo-se de memórias e de desejos do artista (BACHELARD, 1993).
  • 39. U 39 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11 O teatro, a dança, o cinema e o circo, entre outras artes, desenvolvem- se no tempo e no espaço. Para Patrice Pavis, a aliança de um tempo e de um espaço constitui o que Mikail Bakthin, na literatura, chama de cronotopo, que vem a ser a unidade na quais os índices espaciais e temporais formam um todo inteligível e concreto. Aplicados ao teatro, a ação e o corpo do ator se concebem como o amalgama de um espaço e de uma temporalidade: o corpo não está apenas no espaço, ele é feito de espaço e feito de tempo. Este espaço-tempo é tanto concreto (espaço teatral e tempo da representação) como abstrato (lugar funcional e temporalidade imaginária). A ação que daí resulta é ora física, ora imaginária. O espaço-tempo-ação é percebido como um mundo concreto e como um mundo possível imaginário. Nos anos 1970, com as performances e os happenings, o teatro e a dança utilizaram espaços não tradicionais e romperam limites em concordância com uma época, que aproximava arte e vida e que questionava as relações de poder e o lugar das coisas. Brigava-se com o autoritarismo, invadindo-se os espaços “formais”, como os próprios museus, galpões e praças públicas. Em 1969, o diretor Luca Ronconi exibiu a peça Orlando Furioso, espetáculosimultâneoemváriostablados,talcomoArtaudpreviranosanos1930. (ROUBINE, 1998:105-109) Três anos depois, em 1971, Ariane Mnouchkine apresentou a peça 1789 - encenada na Cartoucherie de Vincennes - local no qual o público fica em pé e a ação se desloca através de passarelas, de um tablado para outro, em várias cenas fazendo o papel do povo de Paris. Durante o espetáculo, os espectadores participam da festa e do foguetório da tomada da Bastillha, ou seja, uma festa dentro da festa (ROUBINE, 1998: 114). Louvando a peça 1789 - uma encenação que nega a estruturação cênica ilusionista-, Lehmann afirma que estes tablados e passarelas e “as massas de espectadoresaglomerando-seedispersando-seporentreelesconferemaoteatro uma atmosfera semelhante à do circo”, mas que ao mesmo tempo apropriam-se do um espaço público, das ruas e praças da Paris revolucionária (LEHMANN, 2007: 266). Na verdade, a cidade e seus espaços públicos abrigam hoje inúmeros espetáculos, aumentando a performatividade no teatro contemporâneo. Em 1989, durante a entrevista concedida a Gael Breton e publicada em Theatres, Ariane Mnouchkine introduziu o conceito de espaço “encontrado” (BRETON, 1989 apud ODDEY e WHITE, 2008: 148). O termo “espaço encontrado” era incompreensível para muitos arquitetos de teatro, porém para os artistas experimentais e vanguardistas, o “espaço encontrado” anunciava claramente que o teatro contemporâneo é diferente do que era ou ainda é representado nos edifícios teatrais tradicionais6 . O conceito de “espaço encontrado” consiste em um uso criativo de espaços inusitados, isto é, ambientes cujo potencial dramático dependerá da mão do artista, isto é, 6 Vale lembrar que nas Escolas de Arquitetura no Brasil, o tema edifício teatral é sempre projetado a partir do programa de um teatro à italiana.
  • 40. U 40 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11 a criação do artista modificando, transformando, (re) elaborando o espaço e interferindo no projeto. Esse conceito propiciou a idéia de que “o espetáculo já não deveria mais ser limitado ao palco, mas deveria invadir o espaço inteiro” (ODDEY e WHITE, 2008: 148). Espaço gestual e disciplina Mas Pavis também identifica o espaço gestual - o que mais interessa a este ensaio, como o espaço criado pela presença, posição cênica e os deslocamentos dos atores: espaço emitido e traçado pelo ator, induzido por sua corporeidade, espaço evolutivo suscetível de se estender ou se retrair. A experiência cinestésica do ator é sensível em sua percepção do movimento, do esquema temporal, do eixo gravitacional, do tempo-ritmo. Dados que só pertencem ao ator, mas que ele transmite ao espectador. A sub-partitura na qual o ator se apóia (pontos de orientação no espaço, momentos fortes que facilitam sua ancoragem no espaço-tempo) fornece um percurso e um trajeto que se inscrevem no espaço tanto quanto o espaço se inscreve neles. O espaço centrífugo do ator se constitui do corpo para o mundo externo. O corpo encontra-se prolongado pela dinâmica do movimento. O corpo do ator em situação de representação é um corpo que tende a expressar o mais fortemente possível suas atitudes, escolhas, sua presença. (PAVIS, 2003: 142) O espaço ergonômico do ator, seu ambiente de trabalho e de vida, compreende a dimensão proxêmica (relação entre as pessoas), háptica (maneira de tocar os outros e a si mesmos) e cinéstésica (movimento de seu próprio corpo). No entanto, este espaço ergonômico tem sido diferenciado nos processos de criação de diretores e grupos de teatro ao longo do século XX. Para Stanislavski o ator manifesta-se pela ausência de tensão muscular, o corpo se sente livre para submeter-se às ordens do artista. Como ele próprio orientava seus atores, pedia-lhes para reparar que “a dependência do corpo em relação à alma é de particular importância em nossa escola de arte. A fim de exprimir uma vida delicadíssima e em grande parte subconsciente, é preciso ter controle sobre uma aparelhagem física e vocal extraordinariamente sensível, otimamente preparada” (STANISLAVSKI, 1968: 44-45). Destacam-se entre os ensinamentos de Stanislavski: a luta contra o clichê, a busca da sinceridade; o estabelecimento das vontades da personagem para motivar o jogo do ator; a elaboração de um subtexto para exprimir o que se encontra nas entrelinhas, nos silêncios, um clima favorável à emoção cênica, meios de desencadear uma emoção verdadeira no ator. Apesar de afirmar que “em todo ato físico há um elemento psicológico”, ele reconhece que é possível provocar, pela via exterior, uma grande intensidade física. A participação física
  • 41. U 41 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11 do ator é conseqüência dos passos dados internamente: circunstâncias dadas, imaginação e emoção, ligam-se automaticamente às sensações produzidas no corpo do ator e o impulsionam às ações exteriores. Seu Método das Ações Físicas parte do princípio de que, se se consegue criar o corpo de um personagem necessariamente termina-se, por seu intermédio, conhecendo e vivenciando também sua alma, pois “o elo entre o corpo e a alma é indivisível. (...) Todo ato físico, exceto os puramente mecânicos, tem uma fonte interior de sentimento”. Ministrou técnicas de “movimento plástico”, levando os atores a criarem formas, nunca desprovidas de sentido. O corpo pode levar o ator a encontrar a verdade interna, porque basta que o ator em cena perceba “uma quantidade mínima de verdade orgânica, em suas ações ou em seu estado geral, para que instantaneamente suas emoções correspondam à crença interior na autenticidade daquilo que seu corpo está fazendo” (STANISLAVSKI, 1972: 147). Outro adepto da disciplina do ator é Meyerhold (1874-1940), para quem o movimento cênico é o mais importante dos elementos da cena, e o ator tem que se apropriar de um código baseado em princípios técnicos muito bem determinados. Nos anos de 1916 e 1917, Meyerhold exigia dos atores que cursassem disciplinas diversas como dança, música, atletismo ligeiro, esgrima; trabalhava com a Commedia dell’Arte e com o drama hindu e criou o método da Biomecânica, um sistema de treinamento que leva o ator a se desenvolver a tal ponto que possa exprimir sinteticamente a substância social da personagem. Com vistas a que o intérprete possa expressar um sentimento não é necessária nenhuma mobilização interior, basta que ele se atenha aos reflexos físicos. O ator precisa praticar esportes e treinar intensivamente o corpo, capacitando-o a reagir aos estímulos mais imprevistos com toda precisão, sem intervalo de tempoparaqualquertipodereflexão.AldomarConradoafirmaquenatécnicade Meyerhold, para representar o medo, o ator não deve começar por sentir medo (viver o medo e depois correr). Ele deve de início começar a correr (reflexo) e sentir medo depois que ele se viu a correr (CONRADO, 1969: 158). Como diretor teatral ele reestruturou a cena, desconstruiu a caixa cênica e abandonou o conceito de “uma caixa sem a quarta parede”. Mais precisamente ele buscou inspiração no espaço teatral espanhol dos corrales, da Commedia dell´Arte e, seguramente do teatro da antiguidade. Já Artaud pregava que o ator deveria desenvolver as potencialidades orgânicas de forma a ultrapassar o comportamento natural e cotidiano, para que acabasse atingindo o espectador. O autor considerava o mundo “como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e exercer a vida” (ARTAUD, 1993: 04).
  • 42. U 42 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11 A alma, concretizada no corpo, pode ser fisiologicamente reduzida a uma meada de vibrações, adquirindo assim uma materialidade na qual o ator há de acreditar. Se a alma dispõe dessa dimensão corpórea, o ator pode dominá- la partindo de seu físico. O “tempo das paixões” pode ser conhecido pela respiração, pois ao alterá-la, é possível alterar estados interiores; com uma modificação proposital da respiração, novos estados interiores podem ser descobertos e dominados pelo ator. O que ele pretende são gestos purificados, gestos essenciais que busquem sua linguagem autônoma, significando por si mesmos. Para que isso seja possível, a alma deve estar presente, unificada ao corpo, em permanente transformação. Trata-se, portanto, de deixar o próprio ator utilizar suas táticas e suas emoções podem fluir. No que tange às emoções do personagem, Brecht quer o ator distante – e muito mais distante ainda de suas emoções particulares. No ator brechtiano, o corpo retém as características de atuante e de narrador. Deve tornar-se um espectador atento de si mesmo. O teatro de Brecht pretende deixar à mostra o processo de feitura das ações e reações humanas num contexto histórico claro. Esse tipo de ator atua sem a quarta parede, demonstra consciência de que está sendo observado, ao mesmo tempo em que observa a si mesmo enquanto trabalha. O gesto, para ele, pretende ser uma mostra das relações sociais presentes na caracterização de um papel. Para Brecht “a dicção” e o “gesto” precisam ser cuidadosamente selecionados, e, devem ter amplitude. Como o interesse do espectador é canalizado exclusivamente para o comportamento das personagens o “gesto” destas personagens tem de ser significativo. Em O que é o teatro épico, Walter Benjamin, afirma a propósito da teoria de Brecht, que: O gesto é o material do teatro épico, que tem a missão de utilizar adequadamente este material. Face às declarações e afirmações profundamente enganadoras das pessoas, por um lado, e ao caráter impenetrável de suas ações, por outro, o gesto tem duas vantagens. Primeiro só em certa medida pode ser imitado, e isto é tanto mais difícil quantomaisbanalehabitualelefor.Emsegundolugar,tem,aocontrário das ações e realizações das pessoas, um começo e um fim determináveis. Esta característica de delimitação rigorosa de cada elemento de uma atitude, que, no entanto, surge como um todo, e é um dos fenômenos dialéticos fundamentais do gesto (BENJAMIN, 1970: 40). Em fins de 1950, Grotowski se orienta para um teatro-acontecimento. O diretor estabelece uma relação inusitada ao propor que “o teatro é o encontro do ator com o espectador”, justificando a invasão do ator para dentro do espaço reservado à platéia, fazendo do público, uma peça chave para os dramas encenados. Incentivava o ator a detectar resistências de toda ordem e a lutar para ultrapassá-las. O seu treinamento realizava-se pela “via negativa”, pois
  • 43. U 43 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima.Dezembro 2008 - N° 11 Grotowski pretendia anular o tempo entre o surgimento de um impulso e sua realização exterior. Em suas pesquisas investigou o Nô, o Kathakali e a Ópera de Pequim e inspirou-se nos princípios da composição artificial, ou seja, da estruturação disciplinada do papel. Através de uma formalização inicialmente exterior e bastante exigente do ponto de vista técnico, pode-se chegar ao espiritual.Oprincípiodaexpressividade,paraele,ligadoisconceitosdicotômicos, auto-penetração e artificialidade, pois, quanto mais nos absorvemos no que está escondido dentro de nós, no excesso, na revelação, na auto-penetração, mais rígidos devemos ser nas disciplinas externas; isto quer dizer a forma, a artificialidade, o ideograma, o gesto (GROTOWSKI, 1968: 23). Para Grotowski, o ator “não deve usar seu organismo para ilustrar um movimento da alma; deve realizar esse movimento com o seu organismo”. O processodecadaaçãodevesertodovisível:olocalondeteminícioomovimento, o momento do seu término e o início de uma nova ação. Desse modo o ator percebe que há um movimento interno que ocorre antes do movimento real, uma preparação orgânica que demanda uma mobilização de todo o organismo. O diretor acredita que o cansaço físico colabora para burlar as resistências da mente e acaba induzindo o ator a ser mais autêntico. Além de estimular certa liberdade do ator, este diretor dispensa estruturas arquitetônicas e os dispositivos habitualmente colocados a serviço do teatro. A busca grotowskiana, concentrada no aprofundamento da relação entre o ator e o espectador, define-se como um “teatro pobre”, e recusa a ajuda de qualquer maquinaria (ROUBINE, 1998: 101-102). Em alguns espetáculos o público está tão próximo que pode tocar o ator, aumentando a dinâmica centrípeta de energias co-vivenciadas, como alega Lehmann: “Quando o afastamento entre atores e espectadores é reduzido de tal maneira que a proximidade física e fisiológica (respiração, suor, tosse, movimento muscular, espasmos, olhar) se sobrepõe à significação mental, surge um espaço de intensa dinâmica centrípeta em que o teatro se torna um movimento das energias co-vivenciadas, e não mais dos signos transmitidos... Já o espaço de grandes proporções representa uma ameaça para o teatro dramático por seu efeito centrífugo” (LEHMANN, 2007: 268). Dirigido por Judith Malina e Julian Beck, desde 1947, o grupo Living Theatre traz o conceito de um “teatro vivo”, norteador tanto do trabalho quanto da vida de ambos. Influenciado inicialmente por Piscator e Brecht e com referências poéticas, filosóficas e teatrais de outras fontes, o grupo direcionou- se para uma obra e uma postura política diferentes desses mestres, passando, então, a pregar, a partir de inúmeras encenações e peças, a revolução não-
  • 44. U 44 rdimento Espaço teatral e performatividade... Evelyn Furquim Werneck Lima. Dezembro 2008 - Nº 11 violenta e o anarquismo. parte do princípio de que a presença do ator em cena estabelece uma relação com o espectador, e que essa presença é tanto mais materialmente verdadeira quanto mais forem desenvolvidas e utilizadas pelo ator a linguagem corporal e gestual. A ligação ator-público acontece ora no confronto aberto via agressão, ora pela comunhão. A palavra é tratada em suas possibilidades materiais de produção sonora. O trabalho corporal do Living liga-se estreitamente ao que se convencionou chamar de Expressão Corporal, que implica a mistura de arte-vida, com poucas regras técnicas e muita liberdade de improvisação, refletindo teorias que Certeau reafirmou nos anos 1980. Para Robert Wilson, diretor também contemporâneo, “I do movement before we work on the text. Later we’ll put text and movement together. I do movement first to makes sure it’s strong enough to stand on its own two feet without words. The movement must have a rhythm and structure of its own. It must not follow the text. It can reinforce a text without illustrating it. What you hear and what you see are two different layers. When you put them together, you create another texture” (WILSON apud HOLMBERG: 136). Suas peças primam pela movimentação lenta, pela quase imobilidade. Um vocabulário foi organizado a partir de exploração individual de ações muito simples: pular, dar um passo à frente, correr, voltar à posição inicial. O diretor sugere que não se deve impor a quem quer que seja, seus próprios movimentos. Estimulando em seus atores a descoberta de padrões próprios de movimentos, prefere, portanto, movimentos naturais soltos7 . No teatro e Centro de Estudos do Odin Teatret na Dinamarca, dirigido por Eugênio Barba desde 1961, a Antropologia Teatral é utilizada com a finalidade de induzir a descobertas que possam ser úteis ao ator na elaboração de sua arte. O trabalho corporal adotado tem origens em Grotowski e no teatro Kathakali: uma disciplina rigorosa e métodos precisos de codificação da arte da atuação. Barba trabalha com um princípio que trouxe da Índia: “depois de muitos anos de árdua formação, o ator Kathakali desenvolve não só uma excepcional capacidade física, mas, sobretudo, a habilidade para viver como ator sem viver para os espetáculos” (BARBA, 2007: 30). Muitos exercícios são usados e os que contêm elementos acrobáticos são chamados de biomecânicos. Visam a vencer o medo, chegar a uma completa disponibilidade para obedecer aos impulsos, mobilizar totalmente a energia em ações inesperadas, em reações imediatas. O intérprete compõe uma partitura a partir de signos físicos, em conformidade com as intenções que deseja imprimir ao seu trabalho; essas intenções devem achar seu ritmo próprio. Ao diretor cabe apenas a ajudar a fixar a seqüência. 7 Jean-François Lyotard alega que, "o corpo pode ser considerado como o hardware do complexo dispositivo técnico queéopensamento". Segundo as idéias de Lyotard, o software humano, nocasoda linguagem,não pode existir sem que haja um hardware, ou seja, o corpo. Para ele, seria conveniente tomar o corpo como exemplo na produção e programação das inteligências artificiais, já que o hard/soft humano é muito complexo e heterogêneo. (LYOTARD, 1989: 21)