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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
LUCAS MONTALVÃO RABELO
A CONSTRUÇÃO DOS MAPAS-MÚNDI NOS SÉCULO XV E XVI:
ENTRE A EXPERIÊNCIA E A TRADIÇÃO
CURITIBA
2009
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
LUCAS MONTALVÃO RABELO
A CONSTRUÇÃO DOS MAPAS-MÚNDI NOS SÉCULO XV E XVI:
ENTRE A EXPERIÊNCIA E A TRADIÇÃO
Monografia apresentada ao
Departamento de História como
requesito parcial à conclusão do
Curso de História do Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná
CURITIBA
2009
3
RESUMO
Essa pesquisa visou compreender a produção dos mapas-múndi no período
renascentista. Para isso contou com analise tributária de Brian Harley e Marica
Milanese. Autores que trazem uma metodologia diferente para trabalhar com essas
fontes visuais. Assim, procurou demonstrar como os conjuntos de influências –tradição
e experiência - encontram-se presentes nos mapas renascentistas e, de um mapa para
outro como isso foi se modificando. Com isso, essa pesquisa visa um olhar voltado não
apenas às questões técnicas, mas também aos elementos que revelam o contexto social
próprio da época em que este mapa encontra-se inserido. Observando-os como um
espelho da sociedade que o produziu dentro do embate renascentista.
4
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................................................................5
Quadro de Imagens............................................................................................................6
A Herança Cartográfica...................................................................................................14
A Sociedade e os Cartógrafos..........................................................................................65
Conclusão........................................................................................................................89
Referências......................................................................................................................91
5
QUADRO DE IMAGENS
As referências aos mapas são as seguintes:
Mapa dos Salmos; Made Hereford; Fra Mauro; e Atlas Catalão. Retirados de: KIMBLE,
G. H.T. A Geografia na Idade Média. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa
oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 226-270
Henricus Martellus; Cantino; Diogo Ribeiro; e André Homem. Retirados de ALEGRIA,
Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. &
CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de
Leitores, 1998, p. 55-60
Juan de La Cosa. Retirado de: Retirado de ASTON, Margaret. O Século XV. História
Ilustrada da Europa. Lisboa: Editorial Verbo, 1967, p. 88.
6
INTRODUÇÃO
Os mapas são objetos que desde sempre exercem uma fascinação sobre o homem
dada a sua capacidade de dispor o mundo diante dos olhos. Essa pesquisa teve como
meta desvendar um pouco desse olhar voltando-se para um importante período da
história Ocidental, o Renascimento. Acompanhou-se, assim, o processo de produção de
mapas ao longo da segunda metade do século XV e o século XVI.
Esses mapas-múndi estavam inseridos em uma época importante de efervescência
dos debates acerca da geografia terrestre suscitados pelas relações entre o ideal de
mundo medieval, o conhecimento recente dos autores clássicos que a muito estavam
perdidos e as descobertas realizadas durante as viagens empreendidas pelos ibéricos. É
um período que representou um momento de síntese não somente na história da
cartografia, mas em muitos outros campos da história. Esse embate pode ser sintetizado
na afirmação de Maria Fernanda Alegria:
“A cartografia oferece-nos um excelente exemplo para ilustrar [o] complexo
confronto entre o que os livros e a tradição oral registram, entre o que os mestres
ensinam e o que se aprende com a própria experiência. Na luta entre esta dupla linha
de forças [tradição e experiência], a persistência do vivido pelos Portugueses teve
um papel fundamental na alteração das mentalidades. ” 1
Essa alteração de mentalidade refere-se à experiência dos portugueses ao longo
das grandes navegações. Pois, de acordo com João de Castro Osório foi através da
aprendizagem cotidiana dos novos espaços que a realidade do mundo se apresentava
outra, diferente de tudo aquilo que os eruditos europeus diziam, ou os autores clássicos.
Assim, todo o pensamento anterior foi sendo posto em confronto com a realidade, sem
que tivesse de ser desde logo abandonado pelas verdades nascidas da experiência vivida
e dos ensinamentos da realidade vista e observada.2
Essa mudança pode, então, ser
verificada nos mapas renascentistas.
Aos poucos eles deixam de ser predominantemente simbólicos e passam a
privilegiar uma representação geográfica, o que é enriquecido pelas informações
1
ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. &
CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p.
26.
2
Ver OSÓRIO, João de Castro(org.). Idearium Antologia do Pensamento Português: A Revolução da
Experiência. Lisboa: SNI, 1947, p.16.
7
provindas das viagens portuguesas. No entanto, essas mudanças não ocorrem de forma
progressiva, mas sim lentamente e por vezes acontecendo retrocessos. As
representações do mundo seguindo o ideal medieval, como o exemplo dos mapas tipo
T-O3
, em que a concepção de mundo é estritamente ligada ao modelo bíblico, vai sendo
suplantada pelas características ditas modernas, em que há a preocupação com a
correspondência ao “real”. Esse percurso cartográfico ocorre desde o final da Idade
Média, onde os relatos sobre viagens longínquas, até os confins da Ásia, como do
veneziano Marco Polo, proporcionam à Europa Ocidental os primeiros dados mais
seguros sobre áreas praticamente desconhecidas. Entretanto, essas informações
confundiam-se com fábulas que misturavam essas experiências com outras provindas da
Bíblia ou da literatura clássica. No período soma-se ainda o resgate das idéias de autores
clássicos provindas de fontes árabes ou bizantinas. Um importante caso é de Ptolomeu,
que é amplamente utilizado como base para construção de inúmeros mapas-múndi no
século XV. Sua autoridade muitas vezes entrou em conflito com as novidades trazidas
pelos relatos das viagens portuguesas, e, em muitos casos, suas informações se
sobrepujaram às provindas das viagens marítimas, levando ao descrédito o
conhecimento dos portugueses. 4
Nesse período os cartógrafos eram solicitados a criar um determinado mapa-
múndi para um monarca, ou quem o pudesse custear. A produção destes objetos tinha
um alto custo econômico, o que criava uma relação de dependência do cartógrafo, pois
ele deveria criar um mapa segundo as exigências daquele que o contratou. No entanto,
mesmo que estivesse criando para seu patrocinador, o seu produto final apresenta uma
série de elementos particulares, assim como, da sociedade na qual ele estava inserido.
Ou seja, seu produto final estava intimamente ligado com as questões envolvendo o seu
contexto próprio. Mesmo no interior de um movimento de valorização da experiência na
produção dos mapas-múndi, deve ser observada também essa particularidade referente
ao cartógrafo. Dependendo dos objetivos propostos para um determinado mapa ele
3
Para mais informações sobre os mapas em estilo T.O. ver THROWER, Norman J.W. Maps
&Civilization: cartography in culture and society. Chicago: The University of Chicago Press,1996, p.42;
RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-
1520. Lisboa: Gradiva, 1980, p. 15 e 16; MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos
Descobrimentos Portugueses. Lisboa: ELO; CRONE, G. R. Historia de los mapas. México – Buenos
Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1956; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2.ed.
Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005.
4
GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos Mapas, novas leituras: revisitando a historia da
cartografia. São Paulo: GEOUSP, 2004. p.
8
poderia se valer tanto mais da experiência do “real” como das informações da
“tradição”.
As fontes para essa pesquisa foram seis mapas produzidos ao longo dos séculos
XV e XVI. São obras pertencentes a um período de cem anos iniciando no mapa de Fra
Mauro (1459) indo até o Planisfério de André Homem (1559). Esses mapas-múndi
selecionados estão entre os que sobreviveram, e de alguma maneira são marcantes na
história da cartografia renascentista. Busca-se apontá-los e mostrar de forma breve
porque são considerados grandes marcos:
-Fra Mauro (1459): Mostra o início das explorações portuguesas na costa da
África além de incluir os relatos de viajantes como Marco Polo nas representações
geográficas;
-Henricus Martellus (1489): É considerado um dos primeiros mapas
renascentistas. Um marco por ter iniciado a inclusão das descobertas portuguesas e de
viajantes como Marco Polo mais a fundo do que Fra Mauro;
-Juan de La Cosa (1500): É o primeiro registro cartográfico do Novo Mundo
sendo resultado direto da descoberta empreendida por Cristóvão Colombo;
-Cantino (1502): Uma referência na cartografia ao se tratar de Grandes
Navegações, mostra um continente americano definido mais claramente que no mapa de
Juan de La Cosa. O contorno do continente africano é mais próximo ao real nas
proporções norte/sul. Por isso, este mapa é considerado o primeiro registro cartográfico
“moderno”.
-Diogo Ribeiro (1529): É considerado uma das melhores produções cartográficas
deste período. Ele inova por colocar os resultados das expedições de Colombo, Caboto,
dos irmãos Corte Real, Fernão de Magalhães, entre outros;
-André Homem (1559): O planisfério de André Homem mostra um avanço com
relação ao contorno dos continentes. Nele já aparecem representações mais fiéis da
América, África e Ásia. A partir desta obra os grandes traços da geografia do planeta
estavam construídos.
A grande questão buscada a partir desses mapas foi analisar como eles dispunham
as informações do ofício cartográfico provenientes de duas fontes: dos modelos legados
pelo período medieval e pelos autores clássicos, representando a tradição erudita; e as
cartas-portulano e mapas produzidos diretamente das grandes navegações, inserindo a
experiência. Dessa forma, como o cartógrafo ao produzir seu mapa incluía essas
9
informações? Existia a predominância de uma, ou uma combinação entre elas? E como
ela se realizava?
Para responder a essa questão foi utilizada uma metodologia de estudo
fundamentada nas propostas de análise cartográficas empreendidas por J. Brian Harley.
Grande crítico das abordagens tradicionais, afirma que ao se estudar os mapas deve-se
estar atento ao contexto político próprio para compreender como o poder opera através
do discurso cartográfico, e os efeitos desse poder na sociedade. Sua proposta é estudar
os mapas mais como textos do que como imagens da natureza. Pois os mapas
representam uma linguagem gráfica, uma construção feita a partir da realidade
carregada de intenções e conseqüências que podem ser estudadas nas sociedades da
época da produção de um determinado mapa. Igualmente aos livros, eles também são
produtos de mentes individuais assim como de valores culturais mais amplos de
sociedades específicas. 5
Com isso, essa pesquisa visou um enfoque voltado não apenas às questões
técnicas, mas também aos elementos que revelam o contexto social próprio da época em
que este mapa encontra-se inserido, observando-o como um espelho da sociedade que o
produziu dentro do embate renascentista. É, portanto, sobre essa nova ótica acerca da
história da cartografia que essa pesquisa se orienta.
No primeiro capítulo desta monografia faz-se uma descrição do contexto das
produções cartográficas acessíveis aos cartógrafos renascentistas. Elas foram
subdivididas em duas partes. A primeira remete aos mapas-múndi produzidos na Baixa
Idade Média, tanto esquemáticos, como os já mencionados T-O, quanto descritivos.
Depois, no século XV incluiu-se a influência de Cláudio Ptolomeu, considerado o maior
astrônomo da Antiguidade, que deixou vários escritos, entre eles sua Geographia. Essa
obra retornou ao Ocidente no século XV e trouxe uma renovação das representações
cartográficas ganhando o status de autoridade no período. Esse primeiro grupo
pertencente a uma tradição erudita de uma cartografia essencialmente terrestre o que
constituiu uma barreira às inovações de ordem prática.
A segunda subdivisão refere-se primeiramente, as produções das cartas-portulano,
iniciadas no século XIII, provenientes das experiências no mar Mediterrâneo. Em
seguida inclui as navegações portuguesas iniciadas após a conquista de Ceuta em 1415.
Com elas foram produzidos todo um conjunto de mapas das costas africanas utilizados
5
HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Foundo de Cultura Econômica,
2005, p. 60 e 61.
10
para fins náuticos. Infelizmente esses exemplares cartográficos não sobreviveram
devido ao seu desgaste, mas os relatos sobre eles aparecem nas fontes da época. Como é
o caso das notas no mapa de Fra Mauro. Toda essa nova produção cartográfica trouxe
um conhecimento sobre o continente africano, em um primeiro momento, e a América
posteriormente, influenciando decisivamente as novas produções cartográficas a partir
da segunda metade do século XV. Desta forma, as cartas-portulano mediterrânicas e
atlânticas nasceram da experiência marítima fruto de fins fundamentalmente práticos.
Em um segundo capítulo procurou-se descrever o contexto do autor e da
sociedade. Aqui se estabeleceram as especificidades relacionadas com o autor,
diferentemente do legado provindo de outros mapas. Foram investigadas as possíveis
influências dentro da arte de cartografar desses indivíduos. Isso incluiu os responsáveis
por encomendar a obra e, portanto, as suas expectativas para com o produto final, as
disponibilidades técnicas para tal produção, como o caso dos mapas manuscritos e a
imprensa, que marcou uma mudança profunda na divulgação dos mapas-múndi
principalmente no século XVI.
O estudo de cartografia iniciou-se no século XIX. O primeiro grande marco para
os estudos realizados nos mapas remontam esse século com o crescimento dos acervos
cartográficos das nações, o desenvolvimento de um mercado de antiquário nos Estados
Unidos e Europa, e a partir de 1850, a institucionalização da Geografia enquanto
ciência. Neste momento, a história da cartografia era apenas um campo auxiliar para o
estudo da Geografia. Era entendida como a história dos descobrimentos e exploração da
Terra. Sua função era tornar os documentos cartográficos acessíveis a outras áreas do
conhecimento. Entretanto, a partir da década de 1930, três fatores propiciaram sua
independência: o início das publicações das histórias gerais da cartografia; a criação de
uma revista voltada para a divulgação de estudos feitos sobre os mapas, a Imago Mundi;
e o início da Cartografia como disciplina independente da Geografia. Essa emancipação
acadêmica inicialmente foi efêmera mais iniciou uma série de questionamentos sobre o
estudo dos mapas. O resultado foi a aplicação de novas bases filosóficas e teóricas, alem
da utilização de novas técnicas no estudo dos mapas antigos. 6
A independência da cartografia trouxe, com isso, o início de interpretações dos
mapas enquanto meios de comunicação. Essa nova perspectiva suscitou uma série de
debates conceituais, abordagens dos mapas como artefatos e meios de comunicação,
6
GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos mapas, novas leituras: revisitando a historia da
cartografia. São Paulo: GEOSP, 2004. p. 68.
11
alem da ênfase dada aos processos técnicos de sua produção. Os historiadores da
cartografia passaram, então, a focar mais a natureza de artefato do mapa, do que o seu
conteúdo informativo. É importante ressaltar que todo esse crescimento da disciplina
com essa nova perspectiva foi realizado por particulares, enquanto que a academia
estava à margem dessas discussões. Os particulares criaram sociedades nacionais e
internacionais promovendo encontros, além do estabelecimento da Internacional
Cartographic Association Commition for the History of Cartography. Outra grande
contribuição foi a produção crescente de artigos que discutiam questões metodológicas
e promoviam uma avaliação e crítica dos objetivos da Historia da Cartografia.7
Essa nova abordagem, que também é presente em Harley, feita pela Historia da
Cartografia é sintetizada na frase de Christian Jacob:
“(...) o mapa tornou-se um objeto opaco, que retém o olhar sobre ele mesmo. O mapa entrou na era
da suspeita. Ele perdeu sua inocência. Não se pode mais, atualmente, considerar a história da cartografia
sem uma dimensão antropológica atenta às especificidades dos contextos culturais, e teórica, que reflita
sobre a sua natureza de objeto e os seus poderes intelectuais e imaginários.”8
Atualmente os estudos focados nessas novas abordagens da história da cartografia
são poucos. O país foi quase intocado pelos movimentos de renovação teórica dos
últimos trinta anos da história da cartografia. Porém, existem as pesquisas empreendidas
por Enali De Biage, formada em geografia, que se utiliza das proposições empregadas
por B. Harley em sua pesquisa concebendo os mapas como construções sociais
enfatizando a questão discursiva dos mapas. Em sua tese intitulada Cartographie et les
représentat du territoire au Brésil a autora faz um panorama das representações
cartográficas do Brasil desde o período colonial até o século XX.9
Essa iniciativa é
acompanhada pelos estudos relacionados a toponímia por Íris Kantor, e os mapas
jesuíticos produzidos ao longo do século XVII no estudo de Artur Barcelos. Acrescenta-
se ainda, as pesquisas de Maria de Fátima Costa que estuda como criou-se uma visão
mítica, a partir da cartografia do lago indígena de Xarayes.
Outra importância desta pesquisa foi mostrar essa forma alternativa de se estudar
os mapas. Eles podem ser trabalhados como uma fonte principal, não necessariamente
com um papel secundário, meramente de apoio. Isso busca contrariar as abordagens
tradicionais ligadas a cartografia positivista preocupada unicamente com os aspectos
técnicos. Esse tratamento destinado aos mapas vem da tendência dos historiadores
7
Ibid.
8
Ibid, p. 1.
9
Ibid, p. 75.
12
tradicionais da cartografia considerar a historia dos mapas de uma forma progressiva.
Consequentemente passam a delegar aos mapas antigos, ou “não exatos”, um papel
descartável. Entretanto, através da experiência mostrada por essa pesquisa, aplicando-se
um método diferente, busca-se suscitar inúmeras pesquisas atentando-se a estudos
alternativos aos tradicionais.
Isso remete a outro ponto: essa pesquisa foi uma forma de desmistificação do
tema. A história da cartografia é comumente interpretada com certos preconceitos. O
principal, como mencionado, remete ao entendimento evolucionista das representações
cartográficas. Os mapas teriam uma evolução progressiva, saindo da total falta de
precisão dos mapas medievais e encontrando a representação racional e ideal da Terra a
partir do Iluminismo. Esta pesquisa busca questionar essa visão e apresentar uma
interpretação atenta às especificidades históricas, desmistificando algumas idéias,
devolvendo aos mapas antigos a sua importância enquanto parte de seu contexto
específico.
Ao se trabalhar com mapas inevitavelmente ocorrerem relações entre diversas
disciplinas como a História, a Cartografia e a Geografia. Portanto, este estudo torna-se
um diálogo entre campos de saber diferentes contribuindo para a importante prática da
interdisciplinaridade. Atualmente existe um consenso de que esta relação é algo
importante e fundamental para o intercâmbio sadio de experiências quebrando os muros
invisíveis criados pelos homens ao separarem as disciplinas. É importante lembrar que
este diálogo aqui buscado deve ocorrer sem a perda no foco da pesquisa. Sendo esta
uma pesquisa histórica, ela não pode perder o seu referencial para que não comprometa
a experiência interdisciplinar.
E finalmente, ao se estudar os mapas pertencentes ao século XV e XVI contribui-
se muito com a elucidação de um período importante da história ocidental. Os mapas
são um dos caminhos mais significativos percebidos ao se trabalhar a mudança de uma
concepção de mundo medieval para uma concepção de mundo moderna. Eles são uma
representação gráfica de todo um conjunto de pensamento e crenças de uma
determinada época através de um autor específico. Analisar essa série cartográfica do
século XV e XVI é uma forma de acompanhar essas mudanças ou permanência no
pensamento; compreendendo que dentro de um mesmo período podem existir olhares
diversos. Desta maneira, ao se estudar os mapas do início da modernidade faz-se a
importante contribuição de mostrar como os elementos ligados ao encontro de duas
concepções de mundo estão presentes nos mapas. Além de se estar atento a
13
especificidade do olhar do indivíduo. Assim, com esse estudo mostra-se como o peso
dos autores clássicos e o saber medieval relacionavam-se com as novas fontes de
informações geográficas, as descobertas ibéricas.
14
1 – A HERANÇA CARTOGRÁFICA
A etapa inicial na análise dos seis mapas dessa pesquisa buscou identificar de que
forma ocorreram as influências provindas de outros mapas. Elas estavam relacionadas
diretamente ao ofício do cartógrafo, remetendo desta maneira, à história das produções
cartográficas. Ou seja, o legado provindo das tradições de se elaborar um mapa, todo o
repertório mental e social implicado no momento da produção. Assim, resgatou-se toda
a forma de composição dos mapas-múndi medievais. Além das influências de outras
obras cartográficas produzidas ao longo do século XV: pertencentes a Geographia de
Ptolomeu e provindas das grandes navegações empreendidas pelos portugueses e
espanhóis. Dessa forma, procurou-se constatar de que maneira essas produções
cartográficas influenciaram na construção dos mapas-múndi de Fra Mauro (1459),
Henricus Martellus (1489), Juan de La Cosa (1500), Cantino (1502), Diogo Ribeiro
(1529) e André Homem (1559), as fontes dessa pesquisa.
Essa forma de identificação das influências provém do reconhecimento da relação
direta entre os mapas contemporâneos e aqueles que se tornaram uma tradição. Pois a
interligação entre um e o outro se deve a importância representada pelo legado histórico.
Pois, aplicar um ofício implica utilizar-se de algo que já foi feito anteriormente para se
apreender como fazer determinado produto. Isso se aplica aos mapas com o uso de uma
mesma simbologia. Entretanto, ela vai ter particularidades como signos dispostos de
maneira diferente representando inovações ou preferência específica do autor. Dentro
dessa escolha em prosseguir com a convenção feita ao longo de muitos anos e a
inovação a partir de outras fontes encontra-se o confronto entre a tradição erudita e a
experiência náutica.
Segundo J. Brian Harley, um mapa sempre está relacionado inevitavelmente com
outro. Isso se deve à contínua influência exercida pelo ofício cartográfico que é passado
de geração a geração. Com isso, é possível a identificação de suas relações simbólicas
através da comparação de um mapa ao lado de outros cronologicamente anteriores
traçando, desta forma, uma genealogia das suas influências e assimilações. Este método
é chamado por Harley de cartografia comparativa10
, que parte então da idéia de que
“nenhum mapa está hermeticamente cercado em si mesmo, nem pode responder a todas
10
Ver: HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Fondo de Cultura Económica, 2005,
p. 69.
15
as perguntas que desperta.”11
. Somente através da análise das relações entre as
produções cartográficas é que se podem desvendar as questões internas presentes na
construção de um mapa. Ou seja, os símbolos estabelecidos podem apenas ser
compreendidos dentro de um paralelismo com os exemplares produzidos anteriormente.
Para realizar o estudo comparativo de mapas, Harley propõe uma divisão em três
etapas. Cada uma delas vai justamente captar os níveis das relações cartográficas. A
primeira tem o objetivo se aperceber das características topográficas lineares nos mapas,
como de costas, rede de rios ou um sistema hidrográfico. Essa técnica, de acordo com
Harley, é muito utilizada por estudiosos da área da cartografia.12
O segundo aspecto
apontado refere-se ao estudo de nomes de lugares ou toponímia. Uma forma de
construir genealogias e perfis de origem podendo ser útil para estabelecer a
identificação temporal e autoral de mapas que antes se encontravam dispersos. E o
terceiro método da cartografia comparativa, a cartobibliografia, é a que possuí a maior
quantidade de publicações. Seu objetivo é reunir uma série de mapas impressos sobre a
mesma superfície destinando-se ao estudo das técnicas de impressão aplicada aos
processos que utilizam as placas de cobre, a litografia e outras formas de impressão de
mapas. 13
Os métodos sugeridos por Harley são propostos para serem trabalhados com todo
o tipo de fontes cartográficas. Isso inclui as produções realizadas desde os tempos
remotos, até aqueles produzidos no século XX através da cartografia digital. Isso
possibilita uma abertura enorme nas possibilidades de estudos.
Através do método da cartografia comparativa, essa pesquisa procura estabelecer
as características lineares nos mapas disponíveis para os cartógrafos estudados e como
elas são, então, herdadas. Uma das especificidades deste recorte temporal, final do
período denominado medieval e início da dita modernidade, são as características
provindas das representações de origem religiosa ou mitológica clássica que não
corresponderiam ao “real” topográfico, mas que acabavam figuradas nas representações
cartográficas. Como exemplo, teve-se a localização em alguns mapas do paraíso terreno,
de monstros marinhos, de cidades bíblicas entre outros.
1.1 - Os Mapas-Múndi Medievais
11
HARLEY, J. B., Op. Cit.
12
Ibid.
13
Ibid, p. 70 e 71.
16
Ao se analisar os mapas antigos é importante estar atento a considerações
temporais importantes. Trabalhar com mapas anteriores ao Iluminismo exige uma série
de cuidados por parte dos estudiosos, como nos chama a atenção Maria Fernanda
Alegria. De acordo com a autora, os mapas do final da Idade Média e início do
Renascimento14
não possuem nenhuma relação direta com os atuais. Ambos diferem em
vários âmbitos: nas formas, no conteúdo, nas dimensões e na abundância de
produções.15
Essa constatação é extremamente importante, pois a partir de visões
positivistas não atentas à historicidade, produziram-se olhares reducionistas e
evolucionistas nos estudos do período dito “renascentista”.16
Para evitar esses descuidos fez-se necessária uma análise do termo mapa-múndi.
Ele foi utilizado ao longo dos séculos, porém seu significado correspondente se alterou
com o passar do tempo. De acordo com Denis Woodward, a palavra latina mappamundi
origina-se de mapa (toalha) e mundus (mundo) levando a entender que seu significado
seria de representação gráfica de toda a Terra, como vêm sendo empregado atualmente.
No entanto, na Idade Média, o termo foi utilizado com outro sentido. De acordo com
Maria Fernanda Alegria, mapa-múndi foi usado também transmitindo a idéia de
“pintura do mundo”, não correspondendo a uma representação que utilizaria as regras
científicas da cartografia pós-Iluminismo. “A figuração poderia não contemplar toda a
Terra, ou então abarcar a Terra numa perspectiva global, a Terra no Universo.” 17
Segundo a autora, hoje se conhecem cerca de mil e cem mapas-múndi medievais
incluindo os do século XV. Aproximadamente novecentos encontram-se em pequenas
dimensões espalhados em livros manuscritos. Aí se inclui casos de mapas de tamanho
inferior a 4 cm como na representação em estilo T-O de Salústio feito no século XII. Os
mapas-múndi presentes nesses livros possuem a mesma forma das letras encontradas
nos textos escritos, o que confirma que na Idade Média produzir um mapa-múndi não
era função específica dos cartógrafos. No caso dos exemplares soltos, eles podiam
14
Esse termo na verdade é inexato como afirma Delemeau, bem como Idade Média que serviram muito
para criar grandes preconceitos históricos. Ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento.
Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.19.
15
Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. &
CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 27
16
Para mais detalhes sobre o início dos estudos cartográficos positivistas, no final do século XVIII e
início do XIX, ver CATTANEO, Angelo. “L’Atlas del Visconte de Santarém: Uma storia culturale
europea tra erudizione, orientalismo e colonialismo” In: GARCIA, João Carlos (coord.). A História da
cartografia na obra do 2º Visconde de Santarém: exposição cartobibliográfica. Lisboa: Biblioteca
Nacional, 1957.
17
ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”,Op. Cit., p. 28. Essa discussão sobre o
termo mapa-múndi encontra-se também expressa em RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da
história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”. In: Revista Tempo, Rio de Janeiro,
nº14, pp. 11-26.
17
alcançar grandes dimensões, como cerca de 3,5 m no mapa de Ebstorf do século XIII.
Além da dimensão, os objetivos dos mapas medievais também contrastam com os
atuais. O rigor geométrico não fazia parte das representações cartográficas, ou seja, não
havia necessariamente uma correspondência espacial do local figurado. O simbolismo
nas representações gráficas, nas formas, tinha tanta ou mais importância do que a
localização de fenômenos e suas relações no espaço. Nos mapas-múndi medievais há
figurações, com funções alegóricas e abstratas, que se aliam às abundantes informações
escritas. O simbolismo não é apenas expresso pela palavra, mas também por formas
gráficas. Esses exemplos mostram como os mapas-múndi medievais tinham afinidades
com as crônicas medievais, pois também registravam acontecimentos distantes no
tempo através de elementos gráficos com uma função simbólica. A influência de fontes
bíblicas e clássicas está presente, mas encontra-se também a padronização de
convenções gráficas, tanto na forma principal, como em sua distribuição interna, além
do padrão de cores para marcar especificidades: o mar Vermelho frequentemente
representado com a cor vermelha; os outros oceanos e mares com o azul ou verde; os
rios com o azul, ou o azul-esverdeado, o verde ou o cinzento; o relevo com o castanho
ou verde, mais dificilmente o vermelho.18
Complementando os apontamentos de Alegria, Kimble considera os mapas
medievais responsáveis por refletirem as ideias comuns da época, incluindo as teorias
dos gregos, as mitologias pagãs e os sistemas de cosmografia cristã. Para ele os mapas
não representavam o conhecimento geográfico da Idade Média, mas sim a concepção de
mundo da época. Essa forma de expressão era tão importante que as imagens criavam
muito mais eficazmente uma imediata compreensão do que a palavra escrita. Até as
ideias geográficas dos estudantes medievais foram fortemente influenciadas por esses
mapas. 19
Nos mapas da Idade Média ocorreria o que Kimble chama de “amor ao
ornamental”. Os livros manuscritos que eles acompanham referiam-se à história e à
cosmografia ou em outros casos eram feitos por encomenda, como o caso do atlas
18
Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”,Op. Cit., p. 28. Consultar também
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval
(séculos XII-XIII)”, Op. Cit, p.14.
19
Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo:
Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p.219. A constatação da influência dos autores clássicos
na construção dos mapas medievais pode ser observada ainda em THROWER, Norman J.W. Maps
&Civilization: cartography in culture and society. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p.42.
18
catalão de 1375 e o mapa-múndi Estense. Os mapas pequenos serviam como ornamento
das capitulares de manuscritos com iluminuras. Outros mapas possuíam um caráter
maior de obra de arte e não tanto para servirem de informação, pois representavam uma
estrutura maleável na qual objetos de interesse popular, muito mais do que científico,
poderiam ser desenhados. É como se ele fosse uma forma de expressar o sentido do
maravilhoso e no mapa estivessem contidas todas as maravilhas provindas da literatura.
Desta forma, um mapa-múndi simbólico do período medieval deveria ser visto como
um espécie de romance ilustrado. Não se podendo negar o valor prático que buscavam
fornecer, pois para além da mística, haveria uma imagem atualizada do mundo que
busca compreendê-lo no todo. Como exemplo têm-se a procura de uma solução para o
enigma do continente africano, que não era conhecido totalmente.20
.
O caráter religioso sempre se fazia presente nos mapas.21
Alguns eram executados
para mostrar a extensão da fé cristã sobre a Terra. Assim, esses mapas garantiriam
primeiramente a proeminência dos aspectos bíblicos sobre os conhecimentos
topográficos e, segundo, a sobrevivência de certas tradições na época em que o
conhecimento recente estava influenciando enormemente pelas cartas marítimas
gerando um encaminhamento em direção ao real topográfico. Como exemplo tem-se a
persistência na representação geográfica do Paraíso Terreno nos mapas-múndi, mesmo
após a importante influência das cartas marítimas. O destaque dado à Terra Santa era
dado pela proporção de aproximadamente 1/3 do continente asiático, como mostrava o
mapa dos Salmos.22
Para Kimble, os motivos para que os mapas-múndi fossem afastados da
representação fiel da realidade geográfica seria de que as amarras da tradição (tanto
clássica quanto eclesiástica) sobre a mentalidade medieval fazia com que os cartógrafos
usassem símbolos esquemáticos e imaginativos. A tradição clássica era dada por meio
de vários autores, entre eles Homero e Anaximandro com uma ideia de superfície
terrestre plana sem projeções, um disco cercado pelo “rio oceano”. A influência clássica
também se dava por criaturas da mitologia grega e romana popularizada por Hesíodo,
Homero e Plínio e outros autores da Antiguidade. Essa influência encontrava-se
também na nomenclatura dos mapas. Os lugares famosos do mundo antigo reviviam nos
mapas-múndi. Tróia e Cartago rivalizavam em importância com Roma e Jerusalém. Nos
20
Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p222.
21
Para mais informações sobre o caráter religioso presente nos mapas-múndi medievais ver BLACK,
Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Bauru, São Paulo: Edusc, 2005, p. 20 e 21.
22
Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p.228.
19
mapas-múndi do período medieval não havia, portanto, uma preocupação com a
topografia real.
Isso foi encarado por estudiosos positivistas do século XIX como uma “visão
errônea do mundo”. Podendo ser identificado através de um ditado proferido pelo 2º
Visconde de Santarém - um importante estudioso de cartografia do século XIX
considerado um dos fundadores dessa área do saber, e, o fundador do termo
“cartografia23
- que dizia que os mapas medievais seriam a prole bárbara dos
exemplares da Antiguidade. 24
1.2 – Os Mapas-Múndi Esquemáticos e Zonais
Dentro de toda essa produção cartográfica anterior ao século XV no ocidente
europeu grande parte encontrava-se dentro do estilo simbólico utilizando ou não de
esquemas pré-determinados. Essa formas de produção ainda influenciavam toda a
produção do Quinhentos e ainda influenciaram as produções posteriores. Existiram
vários estudos buscando uma maneira de classificar esses tipos de representações
cartográficas, aqui se adotou os esquemas classificatórios propostos por D. Woodward,
que dividiu os mapas medievais em quatro grandes grupos.25
O primeiro grupo de mapas medievais seriam os mapas tripartidos esquemáticos.
Esse grupo possui a maior quantidade de produções em relação aos outros até o século
XV. Uma das suas origens encontrava-se no tipo esquemático proposto por Isidoro de
Sevilha (c.560-636) - cujo original não sobreviveu – sendo um dos mais divulgados
possuindo mais de seiscentos exemplares.26
Os cartógrafos da época confiavam na
autoridade deste autor clássico que influiu na representação do Paraíso como dizia:
“limitado por todos os lados por um muro alto de chamas... De maneira que o fogo
chega até o céu.”27
Nesse esquema conhecido como “T-O” o oceano rodeava, como um
grande “O” circular, os três continentes conhecidos, Europa, Ásia e África, que se
23
GARCIA, João Carlos. “Mapas e Atlas do Visconde de Santarém: A prioridade no descobrimento da
África Ocidental” In: GARCIA, João Carlos (coord.). A História da cartografia na obra do 2º Visconde
de Santarém: exposição cartobibliográfica. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1957, p.7.
24
Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p. 227..
25
WOODWARD apud ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29.
26
Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29.
27
Citado por KIMBLE, G. H.T. op. cit., p. 225.
20
encontravam separados por duas linhas aquáticas referentes ao mar Mediterrâneo e os
rios Don e Nilo, que possuiam o formato da letra “T”. 28
O objetivo desses mapas não era ser uma representação rigorosa da superfície do
Planeta, mas corresponder a uma interpretação provinda das Sagradas Escrituras. O teor
religioso, como mencionado, estava sempre presente, com o maior exemplo sendo a
localização da cidade de Jerusalém29
na posição central. Isso envolvia a importância
dessa cidade frequentemente dominada no século XIV. Essa centralidade era
confirmada por inúmeras teorias como nas palavras de Ezequiel: “Eu a coloquei no
meio das nações e dos países que estão em torno dela.” 30
Além de Jerusalém, as
histórias do Velho Testamento eram uma constante nos mapas medievais, como a Arca
de Noé, a punição da esposa de Lot, a destruição de Sodoma e Gomorra, a passagem
pelo Egito e pelo Êxodo. Entretanto, a maior lenda referia-se as terras de Gog e Magog
onde se acreditava que Alexandre, o Grande, teria feito uma barreira em torno do Mar
do Norte. Desse lugar, o povo que o habitava marcharia “no final dos tempos” trazendo
morte e destruição para toda a cristandade.31
Comprovando que a fronteira existente
entre a realidade vivida e a aprendida com os autores clássicos foi indefinida até o
século XVI, e mesmo posteriormente. Mostrando como os mapas-múndi medievais não
tinham uma preocupação em representar apenas o tempo contemporâneo, mas sim uma
confluência de fatos e passagens consagradas de épocas distintas. 32
O mapa dos Salmos é um exemplo desse grupo de mapas. Nele aparece
claramente a influência religiosa, com o Cristo representado no alto acompanhado por
dois anjos.33
O “T” referente ao mediterrâneo, o Don e o Nilo encontra-se mais ao sul, e
ainda existe o destaque feito ao Mar Vermelho mais ao nordeste. No canto direito
28
Para mais informações sobre os mapas em estilo T.O. ver THROWER, Norman J.W. Maps
&Civilization: cartography in culture and society.Op. Cit, p.42; RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao
Globo Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520. Lisboa: Gradiva, 1980, p. 15 e 16;
MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: ELO, 1994;
CRONE, G. R. Historia de los mapas. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1956;
KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. op. Cit.
29
Para mais detalhes sobre a posição da cidade de Jerusalém na Idade Média ver: DUBY, Georges.
Europa em la Edad Media. Barcelona: Paidos, (?), p.15.
30
Citado por KIMBLE, G. H.T. op. cit., p. 227.
31
Ibid,.p..227.
32
Ver RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia
medieval (séculos XII-XIII)”, Op. Cit, p.20 e 21.
33
Essa posição de Cristo no mapa é sintomático da relação do religioso com o espaço físico. No século
XIII estava em alta um pensamento atribuído a S. Dinis que resumiria toda a mística do pensamento
cristão da época. De acordo com Duby: “Deus é luz. Desta luz inicial, incriada e criadora, participa cada
criatura. Cada criatura recebe e transmite a iluminação divina segundo sua capacidade, isto é, segundo o
nível em que o pensamento de Deus hierarquicamente a situou.” Trecho retirado de DUBY, Georges. O
Tempo das Catedrais. Arte e a Sociedade (980-1420). São Paulo: Editorial Estampa, 1978, p. 105.
21
encontram-se figuras humanas deformadas características das representações
iconográficas da Idade Média.
Figura 1 - Mapa do Salmo (século XIII).
No segundo grupo encontram-se os mapas tripartidos não esquemáticos. Eles
mantinham os três continentes habitados dos mapas T-O esquemáticos, mas eram
desenhados com menos rigidez. Este grupo incluiu vários tipos, mas os mais conhecidos
eram os que se baseavam em Paulo Orosio34
e os que receberam a sua influência e de
Isidoro de Sevilha.
Um exemplo deste grupo é o mapa de Hereford (c.1290). Nele Jerusalém não se
encontrava no centro, e o Paraíso passou a ser localizado no Extremo Oriente. Motivo
ocorrido após as viagens de Odorico de Pordenone e Marco Polo que demonstraram
estar ele localizado no continente asiático. A representação desse local sagrado
sobreviveu após a Idade Média aparecendo em representações cartográficas até o século
XVII. Sendo um importante exemplo da inclusão de locais bíblicos dentro de uma
34
Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29.
22
representação plana da Terra, ou seja, os locais espirituais provindos da leitura da Bíblia
eram figurados sem que isso causasse nenhum tipo de “erro” ou delito cartográfico.
Muito pelo contrário, era parte das tradições em voga no período. 35
Figura 2 – Mapa de Hereford c.1280
Outra espécie de mapas são os mapas zonais. Eles se baseavam no mapa de
Macróbio (c.395-436) que não se filiava nos ensinamentos da Igreja cristã, mas na
filosofia tradicional greco-romana. Seu esquema foi retirado de um comentário de
Macróbio a um estudo de Cícero (51 a.C.) Commentarius ex Cieronis in Somnium
Scipionis, datado de c. 430 d. C. Nessa dissertação, Macróbio expôs as ideias existentes
sobre o sistema-mundo, ilustrando as suas observações com um diagrama. O autor
retomou o esquema quadripartidário do mundo de Crates de Mallos (c.168 a.C.) e
afirmava que o Oceano circundava o globo correndo em duas direções contrárias,
partindo de um rio oceano principal, situado na zona tórrida, Alveus Oceani, que corria
por debaixo da superfície do mar. A leste e a oeste desta zona equatorial central o
Oceano dividia-se em dois braços, que fluíam para norte e para o sul separando as
regiões austrais das setentrionais. Das duas zonas temperadas, só a setentrional seria
habitada e a zona austral seria desconhecida, desconhecendo qual seria a espécie de
35
KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. op. cit., p.225. Ver ainda THROWER, Norman J.W.
Maps &Civilization: cartography in culture and society.Op. Cit, p.45.
23
homens que a habitaria, chamados de antípodas36
. Esse falta de conhecimento seria
devido a barreira representada pela zona tórrida, que impediria a comunicação com eles.
Para além das duas zonas temperadas e da zona tórrida central, marcadas pelos
paralelos, haveria ainda duas zonas polares. Hoje se conhece mais de uma centena de
manuscritos desta obra anteriores a 1500.37
Essa concepção planetária zonal ainda
mostrava-se presente no início do século XVI em Duarte Pacheco Pereira, na sua obra
De Situs Orbi, como testemunha o estrato a seguir:
“e em havendo mais matéria afirmaram que a terra neste meio é posta com o
centro e de toda a parte é cingida pelo mar e ela mesma em duas partes, que
hemisférios são chamados, desde oriente dividida até ocidente volvendo em oriente por
cinco zonas é repartida.”
38
Figura 3 – A concepção de mundo de Macróbio, c. 1485.
36
Vários autores defendiam a existência dos antípodas incluindo Crates de Mallos, e, posteriormente,
Pomponius Mela e Macróbio, herdeiros da tradição helênica. Ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do
Renascimento. Op. Cit., p.50.
37
Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. e RANDLES, W. G.
L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit, p. 15 e
16.
38
PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 1991,
p. 435.
24
O último grupo de mapas é dos mapas-múndi quadripartidários. Eles eram
baseados na produção do Beato De Liébana (730-798), um monge beneditino que
produziu seu esquema cartográfico de representação da Terra quando vivia no Mosteiro
de Santo Toribio de Liébana, perto de Santander. O esquema encontrava-se presente em
sua obra Commentaria in Apocalipsin, de 776, onde o Beato de Liébana parece ter
elaborado dois tipos de mapas, de que o mais conhecido apresentava forma oval. A
novidade é a figuração de um quarto continente, que o monge considerava desabitado
pelo excessivo calor. Uma cópia do Apocalipsin, datada de 1189, esteve no mosteiro de
Lorvão e guarda-se agora na Torre do Tombo, em Lisboa. Neste exemplar reproduziu-se
uma parte do mapa-múndi oval do Beato em que se localizava a leste o Paraíso Terreno
numa vinheta quadrada, cordilheiras com forma dentada, rios bem assinalados e peixes.
Em alguns manuscritos nasciam no Paraíso quatro rios: Nilo, Indo, Tigre e Eufrates.
Este mapa pode ser considerado uma reinterpretação do esquema proposto por
Macróbio.39
Esses grupos de mapas simbólicos do período medieval mostravam tentativas para
uma compreensão cosmográfica universal do mundo religioso em que se vivia, assim,
pouco interessava aos cosmógrafos as representações de caráter realista. Preocupavam-
se muito mais em incluir as fontes tradicionais da Roma antiga, como Plínio e o
Itinerário de Antonio Pio, com Macróbio e Isidoro, do que colocar somente as
realidades topográficas.
Nesse momento buscou-se perceber de que forma aparecem nas fontes dessa
pesquisa as características das produções cartográficas simbólicas medievais; como
esses mapas do século XV e XVI conservavam as características herdadas por séculos
no ocidente europeu.
No mapa de Fra Mauro, produzido no ano 1459, existem inúmeras referências
identificáveis diretamente. Primeiramente, na parte exterior ao mapa aparecem várias
características herdadas dos mapas-múndi medievais. No canto superior esquerdo
encontra-se descrita a configuração cosmográfica universal dividida segundo as esferas
que se acreditavam existir na época, fruto de uma combinação de ideias de Aristóteles e
de Ptolomeu. Partindo do centro para o exterior encontram-se a Terra, depois o Fogo,
em seguida a Lua, Mercúrio, Vênus, e o Sol. Depois ainda estão presentes outros
planetas e por fim há o Scielo. Esse plano universal descendente dos clássicos
39
Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I.
Lisboa: Caminho, 1994, p. 205.
25
encontrava uma ligação com o ideal geocêntrico típico do pensamento cristão. A
hierarquização celeste em Fra Mauro é uma herança da solução medieval de conciliar a
concepção bíblica de uma terra plana e a concepção grega de terra esférica. Assim, ao
colocar a representação esférica no exterior do mapa, o cartógrafo se remete a ambas as
tradições, sem negar nenhuma delas. 40
Figura 4 – Cosmografia universal em Fra Mauro
No canto inferior esquerdo o Paraíso Terreno é figurado encontrando-se protegido
com muros altos e um rio que corre em volta. No seu interior há um personagem idoso
associando a imagem ideal de Deus juntamente a dois homens nus, certamente Adão e
Eva. É uma referência direta à passagem bíblica da expulsão do Paraíso.
40
Um estudo sobre esse importante embate encontra-se em RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao
Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit.
26
Figura 5 – detalhe do mapa-múndi de Fra Mauro
Voltando-se ao interior do mapa, a constata-se inicialmente que ele guarda a
orientação da Terra com a Europa no sul e a África ao norte, uma herança atribuída aos
muçulmanos. Existe também uma divisão em quatro pontos cardeais principais e quatro
secundários (norte, nordeste, leste, sudeste, sul, sudoeste, oeste e noroeste). O rigor
geométrico é usado minimamente para a localização de cada um desses pontos,
indicados com uma estrela amarela envolta em um círculo de mesma cor (figura 7).
Não existindo, assim, nenhuma linha traçada, apenas essas localizações. Na
convergência desses pontos encontra-se a posição central do mapa, entretanto, a cidade
de Jerusalém que é marcada com a estrela referente a posição central (figura 6). Fra
Mauro encontra-se, dessa forma, entre o rigor geométrico e a primazia do religioso,
uma forte característica do homem no século XV. O autor ainda se justificativa pela
posição de Jerusalém que pode ser lida na legenda próxima a essa cidade:
“Na verdade Jerusalém é latitudinalmente o centro do mundo habitado, se bem [que]
longitudinalmente está um pouco a oeste; mas como a parte ocidental está mais densamente
27
povoada a causa da Europa, Jerusalém está também longitudinalmente no centro, si se olha
no espaço vazio sem a densidade populacional.”41
Figura 6 e 7 - Detalhe do mapa-múndi de Fra Mauro (esq.) e a diferença do ponto central e o referido por Fra Mauro em
Jerusalém (dir.).
Já no mapa de Henricus Martellus (c. 1489), e no mapa de Cantino (1502) as
referências aos mapas-múndi medievais se remetem à ornamentação utilizada para a
construção dos mesmos, incluindo desde a utilização dos padrões de cores, até ao uso
excessivo de elementos baseados não no conhecimento empírico, mas em suposições
teóricas.
Em Henricus Martellus a ornamentação simbólica pode ser encontrada no
preenchimento que o autor realiza do interior dos continentes desconhecidos. No
continente asiático existe uma excessiva representação de cadeias montanhosas e rios
pelo interior. O contorno asiático provém das informações de autores como Ptolomeu e
viajantes como Marco Pólo, mas a complementação fantasiosa realizada pelo autor - a
hidrografia, cadeia montanhosa, etc - remete à tradição dos mapas simbólicos
medievais. Nos locais onde o conhecimento prático não chegou, a complementação
cartográfica se deu por um preenchimento pela suposição. A obra de Martellus apesar
de apresentar traços do estilo simbólico cartográfico liga-se mais fortemente a uma
outra tradição resgatada no século XV, abordada a seguir, a tradição ptolomaica.
O mapa de Cantino também traz elementos da tradição simbólica dos exemplares
medievais. Assim como Fra Mauro, a cidade de Jerusalém ganha destaque com a
representação de um castelo imenso remetendo a importância dessa localidade para a
41
Citado por CRONE, G. R. Historia de los Mapas. México-Buenos Aires: Foundo de Cultura
Econômica, 1956. p. 60 e 61.
28
cristandade. Muitas legendas principais continuam a serem utilizadas como o caso do
mar Vermelho representado na cor vermelha, além da ornamentação com símbolos
sendo constantemente utilizada para o preenchimento dos espaços desconhecidos.
Encontram-se figurados grandes castelos, bandeiras com a heráldica dos países
europeus, as araras do novo mundo. Portanto, mesmo com uma notável diminuição de
símbolos, o mapa não se afasta dessas representações porque ainda existem figurações
baseadas em animais exóticos ou importância bíblica. Comprovada por uma das mais
evidentes representações simbólicas no mapa, a “Serra Leoa”, aparecendo justamente no
formato de uma leoa, e a fortaleza de São Jorge da Mina (figura 9).
Figura 8 e 9 – Parte ocidental do mapa de Cantino (esq.) e detalhe de Serra Leoa em Cantino (dir.)
Juan de La Cosa em seu mapa de 1500, conhecido como o primeiro mapa a figurar
o continente americano, igualmente encontra-se ligado às influências simbólicas. A
primeira delas refere-se à orientação das terras no mapa, com o norte sendo ocupado
pelas terras recém descobertas. Filiando-se, assim, à tradição dos mapas-múndi
medievais por não representar ainda a convenção de orientação espacial que figurava a
Europa ao norte que lentamente iria se impor.
29
Figura 10 – O Mapa de Juan de La Cosa
O componente religioso encontra-se muito mais fortemente figurado que nos
exemplares analisados anteriormente. No extremo norte há a presença de são Cristóvão,
símbolo cristão (associado ao próprio Cristóvão Colombo) que seria responsável por
guiar os europeus para o Novo Mundo espalhando a fé às populações autóctones.
30
Estão incluídas também passagens bíblicas como indica a caracterização dos três
reis magos segurando em suas mãos os presentes a Jesus, localizados na península
arábica.
Figura 11 – Detalhe da península arábica com os três reis magos em Juan de La Cosa
Ainda em La Cosa existe a representação do continente americano de uma forma
enigmática, algo que não acontece em Cantino. O espanhol preenche de forma mais
livre o novo continente fazendo suposições acerca de seus contornos costeiros e
interioranos, prática comum nos mapas-múndi medievais.
No mapa de Diogo Ribeiro o simbolismo também está expresso pela presença de
animais, homens, árvores, castelos, seres marinhos e inúmeros outros elementos. O
componente religioso ainda é evidenciado na região da Judéia, onde é figurada a
passagem da morte de Jesus Cristo crucificado.
31
Figura 12 – Detalhe da Judéia em Diogo Ribeiro (1529)
E, finalmente, no planisfério de André Homem o simbólico aparece menos
diretamente. Ainda existem os animais exóticos inseridos nos continentes, mas os
oceanos são os locais onde mais se concentra a representação fantástica, com a presença
de seres marinhos. Essa postura diferente mostra a adoção de uma nova postura nos
continentes onde a estratégia de preencher os espaços vazios não é com figuras, mas
com inscrições grandes ou opta-se pelo não preenchimento dos espaços. Porém, a
hidrografia em algumas partes, como do Amazonas e Nilo, é ainda fantasiosa.
Figura 13 e 14 – Detalhe da cruz no mapa de André Homem e a hidrografia do rio Amazonas
1.3 – A Redescoberta de Ptolomeu
Ao se estudar os mapas do século XV por vezes são utilizadas ideias anacrônicas,
pois os mapas desse período diferem em muitos aspectos aos atuais. Por muito tempo os
exemplares cartográficos dos séculos XIV, XV e XVI foram estudados enquanto parte
32
de um caminho evolutivo, e portanto transitório, na história da representação geográfica
do mundo. Porém, essa não era a realidade do período, de acordo com Marica Milanese,
que contesta a noção de “transição” preferindo em seu lugar a denominação “síntese”.
Pois, esses mapas confluíram experiências culturais e técnicas diversas, não consistindo
em uma “transição”, termo esse que gera uma compreensão de um sentido único que
não existiu na história da cartografia. Assim, muitos mapas ainda eram produzidos
segundo as formas tradicionais e nem todos necessariamente possuíam novidades. Por
conseguinte, as produções cartográficas não tinham um processo linear. 42
Os mapas ao longo do século XV sofreram modificações iniciadas na segunda
metade do século XIV, passando a ser cada vez mais representados independentemente,
diferindo dos anteriores que em sua maioria serviam como ilustração para livros.
Juntamente a isso, verificava-se a formação de cartógrafos profissionais refletindo
diretamente a passagem de representações simbólicas para descritivas. Outra mudança
importante provinha da mudança de uma liberdade de desenho para a restrição imposta
pela imprensa que será abordada no segundo capítulo. Aliado a essas inovações, a
cartografia passou a ser influenciada pela redescoberta de um importante autor clássico,
Ptolomeu. Implicando em toda uma reavaliação das concepções de mundo do período
por uma parte dos europeus.
Esse Ptolomeu redescoberto no século XV foi Cláudio Ptolomeu nascido em
Ptolomaida de Tabaida (c.100 d.C.). Foi um grande matemático, astrônomo e geógrafo
grego que viveu em Alexandria sendo considerado o mais célebre astrônomo da
Antiguidade.43
Entre seus escritos destaca-se a obra Grande sintaxe matemática (140
d.C.), também chamada de Almagesto pelos árabes, que consistia em uma compilação
dos conhecimentos astronômicos de seus antecessores. O autor desenvolveu nessa obra
seu sistema geocêntrico, que dominou a astronomia até o século XVI44
. Outra obra sua
considerada célebre foi a Geografia45
, um grande marco que contribuiu para mudar as
concepções cosmográficas de ordem religiosa. Por outro lado, Ptolomeu interessou-se
42
MILANESI, Marica apud ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p.31.
43
Suas obras foram devedoras de outro sábio da Antiguidade, Hiparco.
44
Até o aparecimento da obra Das revoluções dos mundos celestes de Nicolau Copérnico (1543) que
contestava Ptolomeu. Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, pp.144-147.
45
Os escolásticos preferiam o termo Cosmografia ao invés de Geografia. Ver EDGERTON, Samuel Y.
Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in
the Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago:
The University of Chicago Press, 1987, p.16.
33
muito pela astrologia e, em sua Sintaxe tetrabiblos, tentou demonstrar a influência dos
astros sobre os fenômenos terrestres além de possuir obras de física.46
O retorno dessas obras ao conhecimento ocidental foi graças ao intermédio dos
árabes - exímios conhecedores de Ptolomeu destacando-se Al-Idrisi47
no século XI –
que traduziram para sua língua a obra do alexandrino. A Geografia, em particular,
influenciou os mapas-múndi do século XV e XVI, reaparecendo no Ocidente pela
tradução de Manuel Chrysoloras e Jacobo Angiolo (1410). Ganhou a primeira
impressão no ano de 1475 na cidade de Vicência sem os mapas que possuía. Após essa
edição seguiram-se outras: Bolonha em 1477 com os mapas; Roma, 1478; Florença48
,
1482; Ulm, 1482 e 1486; Roma, 1490; totalizando seis edições antes de 1500. O que
reflete a dimensão alcançada por sua obra na Europa.49
Muito se contesta sobre a autoria da obra admitindo-se que somente as idéias
fundamentais seriam do próprio Ptolomeu. Pois, o texto que a acompanha é creditado a
um sábio bizantino, que o redigiu provavelmente entre o século X e XI. De posse desse
manuscrito, um monge grego, Máximo Planudes, teria desenhado, por volta de 1300, os
vinte e seis mapas presentes na obra.50
As concepções do alexandrino apresentadas romperam com várias ideias presentes
nos mapas-múndi anteriores a sua influência. Primeiramente referente a localidade
central, que ao invés de Jerusalém estava a cidade italiana de Siena, posição confirmada
porque durante o solstício de Verão, nessa cidade, o Sol iluminaria o fundo de um poço.
Segundo, na nova representação a ecumene(conjunto das terras conhecidamente
habitadas) formava um todo, não sendo dividida em três continentes como a prática
anterior além da disposição geográfica do mundo estar em forma “esfericizada” e não
discóide. Isso é tributado aos sistemas de projeção ptolomáicos que representavam
numa superfície plana a esfericidade terrestre. Além disso, pelos cálculos do autor a
parte conhecida do mundo ocuparia apenas a quarta parte do globo terrestre.
46
Ver CRONE, G. R. Historia de Los Mapas. Op. Cit. p. 76.
47
Al-Idrisi realizou seu mapa a pedido do rei Roger II, cristão da Sicília. Ver: BARROS, Nilson Crocia.
“Ibn Kaldun, a dinâmica dos assentamentos humanos e as funções urbanas no islã histórico”. In: Revista
de Geografia da UFC, ano 4, nº8, 2005,p.9.
48
Sobre a importância dessa cidade na época do Renascimento ver: BURCKHARDT, Jacob. A cultura do
Renascimento na Itália. Brasília: Universidade de Brasília, (?), p. 40 e 41
49
Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The
Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” Op. Cit, p.16.
50
Ver BAGROW, L. “The Origino f Ptolomy’s Geographia” In: Geografiska Annaler Appud:
RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520,
Op. Cit, p. 27 e 28.
34
Segundo Bárbara mundy a interação proposta pelo autor seria de dois sistemas: a
corografia (relacionado a uma parte específica da Terra) e a cosmografia (relacionado a
uma visão do universal) constituiria a sua “geografia”51
. Eles seriam projetados não por
meios de casuística, mas em termos matemáticos. Com isso, refutava-se o elemento não
provindo da “razão” matemática e física para a organização do espaço. Outro princípio
fundamental em Ptolomeu refere-se aos mares, que não possuíam comunicação entre si
e se estendiam à superfície da Terra como lagos. Isso contrariava a tradição homérica e
bíblico-aristotélica, fundamentadas na concepção de uma terra dominada em sua maior
parte pela água. Ter-se-ia, portanto, o inverso, com a terra dominando a maior parte da
esfera, e assim, para lá do mundo conhecido haveria uma “Terra Incógnita” e não um
mar desconhecido, como defendido pela crença anterior.
A partir do último quartel do século XV a obra de Ptolomeu tornava-se conhecida
por toda a Europa, inclusive em Espanha.52
Além de Ptolomeu o século XV também
obteve informações sobre o continente asiático provinda de relatos de viajantes
europeus53
. O mais famoso deles, Marco Pólo, tinha viajado desde as terras da costa do
mar Negro até às do mar da China, entre 1240 e 1350. Nessa época, os Khans mongóis
asseguravam a sua paz pela Ásia Central. Segundo C. Boxer esses relatos de viajantes
chegaram a ser fonte para a confecção de mapas-múndi, mas as suas informações não
podem ser tomadas somente como verdadeiras porque contavam com maravilhas e eram
fragmentárias. Assim sendo, para o autor elas não contribuíram efetivamente com os
conhecimentos geográficos do período. 54
Segundo Denis Cosgrove, a redescoberta do manual geográfico de Ptolomeu seria
a grande inovação do Renascimento. Esse texto para humanistas, mercadores, e artistas
que leram, transcreveram e ilustraram fizeram com que fosse possível uma nova
51
MUNDY, Bárbara E. The mapping of New Spain indigenous cartography and the maps of the
relaciones geográficas. London: The University of Chicago Press, 1996, p. 3 e 5. Ver também: CONTA,
Gioia. “El estúdio de la Geografia Histórica” In: Semana de Estúdios Romanos. Valaparaíso: Pontifícia
Universidade Católica de Valparaíso, vol. 22, 2004, pp.19-29.
52
A influência de Ptolomeu não se restringiu a cartografia, até mesmo Leonardo Da Vinci utilizou as
idéias do sábio alexandrino. Ele teria baseado o seu homem vitruviano na Geografia de Ptolomeu porque
também dividia o homem em “minor mondo” sendo o homem o microcosmo dentro do macrocosmo. A
obra clássica o ajudou a organizar um sistema para operar a anatomia da mesma forma com que Ptolomeu
desenvolveu para representar o mundo. Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to
mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” In:
WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of
Chicago Press, 1987, p.16.
53
Entre eles destacam-se Nicolo di Conti e Pêro da Covilhã. Para mais detalhes sobre eles ver:
DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.50
54
Ver BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1972, p.40.
35
visualização do mundo. O globo terrestre foi convertido em um rede imaginária de
coordenadas de latitude e longitude trazendo uma nova representação.55
No momento em que os cartógrafos do século XV e XVI produziram seus mapas-
múndi eles estavam em contato com as ideias de Ptolomeu e dos viajantes europeus. A
principal influencia identificada nas fontes dessa monografia corresponde a inovação do
alexandrino em fazer uma representação terrestre esfericizada e não discóide. Apenas
Fra Mauro conservou a forma discóide56
, os outros já trouxeram essa solução para a
representação em superfície plana da Terra.
Além disso, todo o contorno oriental, as costas do Oceano Índico na África e Ásia,
presentes nas obras de Fra Mauro (1459), Henricus Martellus (1489) e Juan de La Cosa
(1500) são, de alguma maneira, tributários a Ptolomeu. Em menor grau situam-se
Cantino (1500), Diogo Ribeiro (1529) e André Homem (1559).
A influência do autor alexandrino no contorno asiático ocorre nitidamente na
representação da Índia57
, onde não há menção desse espaço enquanto península além da
representação desproporcional da ilha do Ceilão, dez vezes maior do que o “real”, logo
abaixo da Índia. No sudoeste asiático aparecem ainda as penínsulas resultantes da
representação proposta por Ptolomeu, principalmente a Catigara.
55
COSGROVE, Denis. “Renaissance mapping – Mapping New Worlds Culture and Cartography” In:
Sixteenth-Century Venice, Imago Mundi, XLIV, pp. 65-89, p.6.
56
Essa posição de Fra Mauro não pode ser tida como uma posição retrógrada porque segundo Cosgrove
na Renascença diversos sistemas de representação (plano, perspectiva) e diversos modos de descrição
(verbal, visual, cartográfica e histórica, matemática e literal) coexistiram. Ibid, p.7.
57
Lembrando que o termo Índia provindo também da redescoberta de Ptolomeu passou a não ser apenas a
região do que seria hoje o país asiático, mas sim toda a borda do Oceano Índico que cobre as costas
africanas e asiáticas. Assim Índia poderia ser as terras da Etiópia. Cf. THOMAZ, Fuis F. De Ceuta a
Timor, Op. Cit, 171.
36
Figura 16 – Detalhe do Índico em Fra Mauro (1459)
Figura 17 – Detalhe do Índico em Henricus Martellus (1489)
37
Figura 18 – Detalhe do Índico em Juan de La Cosa (1500)
Figura 19 – Detalhe do Oceano Índico em Juan de La Cosa (1500) com o destaque do contorno
afro-asiático.
38
Outra representação atribuída ao alexandrino diz respeito ao contorno da península
arábica podendo perceber suas contribuições nos mapas anteriores.58
Figuras 20, 21 e 22 – Representação da península arábica em Cantino, Diogo Ribeiro e André
Homem.
Entretanto, Fra-Mauro, Henrique Martellus e Juan De La Cosa apesar da ligação
ptolomaica afastam-se dela em relação a configuração do Oceano Indico, aparecendo
como um mar aberto, e não como um lago interior. Uma das legendas presentes em Fra
Mauro é sintomática desse distanciamento que para o monge não caracterizariam um
rompimento:
“Não creio ir contra Ptolomeu si não sigo sua Cosmografia, porque de observar seus
meridianos paralelos o grau havia tido, no tocante das partes conhecidas desta
circunferência, que excluir muitas províncias que Ptolomeu não menciona. Principalmente
na latitude, o mar do sul a norte, há muita “terra incógnita” porque em seu tempo era
desconhecida”.59
Porém, mesmo colocando o Índico enquanto mar aberto, Fra Mauro ainda o
mantém com um ar ptolomáico, pois, na borda sul, sudeste e leste existem várias ilhas
minúsculas com uma distância mínima entre si (ver figura 20). No caso de Martellus,
que também traz essa inovação, o sul do continente africano também se aproxima
fortemente da península ptolomaica do extremo oriente (ver figura 21). Só em La Cosa
que a aproximação do sul africano com o sudoeste asiático não aparece.
Outra característica que se destaca nas representações produzidas segundo
Ptolomeu é a presença áfrica neles do Monte da Lua. Esse local foi associado com as
nascentes do rio Nilo, já que no período não havia conhecimento direto do interior do
continente africano e também asiático. Isso indicava que o conhecimento recente através
das explorações náuticas não representou o mesmo para o interior dos continentes.
Assim, vários cartógrafos se influenciaram por representar o interior como
Ptolomeu indicava. Em Fra Mauro a localização do Monte da Lua não é claro, mas em
59
CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit., p.61.
39
Henricus Martellus, o autor que mais se filia na tradição do alexandrino, o monte
aparece ocupando um espaço amplo na metade do continente africano.
Figura 23 – Detalhe do Monte da Lua em Henricus Martellus (1489)
Já em Juan de La Cosa o interior africano é muito enigmático. Nele está a
presença de reis cobrindo grande parte do interior remetendo ao uso constante da
ornamentação para preencher os espaços desconhecidos. Uma das características
provinda do simbolismo medieval já referido anteriormente. No entanto, sem estar claro
a posição do monte fantástico, a nascente do Nilo encontra-se com outros dois rios. Eles
correm em direção oposta, um deles ao leste e outro ao oeste. Sem a representação clara
do monte pode-se dizer que a estratégia do cartógrafo de colocar os três rios nascendo
no mesmo lugar é baseada na hidrografia ptolomaica. Pois, mostra a nascente misteriosa
do Nilo, desconhecida na época, da mesma forma que a tradição do autor clássico
fizera.
40
Figura 24 – Detalhe do interior do continente africano com a nascente do rio Nilo em Juan De La
Cosa (1500)
O mapa de Cantino e de Diogo Ribeiro são exemplos da cartografia dita
renascentista do século XVI que abandonariam o simbólico em prol de uma
representação mais “fiel” ligada a tradição da experiência náutica das grandes
navegações. Entretanto, no interior também é desconhecido levando a representação do
Monte da Lua no sul do continente africano, em ambos ocupando uma grande
dimensão, todo o espaço entre a costa leste e oeste.
Figura 25 – Detalhe do Monte da Lua em Cantino (1502)
41
Figura 26 – Monte Lua em Diogo Ribeiro (1529)
E em Cantino ainda aparece representada no extremo oriente, após a Índia, a
península de Catigara tributada ao autor clássico.
No caso de André Homem o Monte da Lua não aparece representado mas a
hidrografia do interior é ainda ptolomaica. Da mesma forma que La Cosa, a localização
da nascente é na mesma região com a contribuição de dois rios que provém do Atlântico
e do Índico.
Figura 27 – Detalhe do interior africano em André Homem (1559)
42
1.4 – As Cartas-Portulano Mediterrânicas
Uma outra forma de representação da Terra, diferente dos mapas-múndi
simbólicos medievais surgidos na Idade Média, foram as cartas-portulano (ou
portulanos). Segundo Luís de Albuquerque, essa expressão serve para designar a nova
espécie de cartas surgidas nos séculos XIV e XV. No entanto, as referências a elas eram
somente como “cartas” ou, mais vulgarmente, “cartas náuticas” ou “cartas de navegar”.
Todavia, a designação hoje aplicada justifica-se plenamente, porque o tipo de
representação das áreas marítimas nessas cartas relacionava-se diretamente com os
portulanos, relatórios com um roteiro náutico. Com isso, a carta-portulano tornou-se
logo um elemento complementar desses textos e os navegadores não a dispensavam. A
inovação propiciada por elas foi de uma a representação mais próxima do real na bacia
mediterrânica, nas costas européias do atlântico chegando até o norte da França, nas
ilhas Britânicas e também no Mar Negro. Foi um recurso surgido da prática em alto mar
para auxiliar a orientação. 60
Luís de Albuquerque defende, pelo fato de não existir qualquer informação a
respeito das cartas náuticas antes do século XIII, que a origem dessas cartas poderia ter
sido herdada de modelos clássicos, de autores como Marino de Tiro, hipoteticamente, e
Ptolomeu. Que basearam a sua cartografia em determinados sistemas de projeção, ou
seja, tiveram o cuidado de basear suas cartas em alicerces científicos. No entanto, não
existe nenhuma prova suficiente que comprovaria a relação entre esses modelos da
Antiguidade e as cartas-portulano. “Em suma: parece não ser sustentável que exista na
carta-portulano qualquer ideia prévia de uma representação cartográfica de raiz teórica,
a despeito dos argumentos que alguns adiantaram como prova.”61
Numa outra vertente de estudos sobre as cartas-portulano, Norman J. W. Thrower
acredita que o uso sistemático das agulhas magnéticas trazidas da China ao Ocidente
pelos árabes ou através da Rota da Seda possibilitou esse mapeamento totalmente novo.
A representação muito mais fiel da Terra foi possibilitada pela agulha magnética que
rapidamente se espalhou pelo Mediterrâneo. Assim, através do sucesso desse novo
elemento para a representação topográfica do real originaram-se as cartas-portulano.62
60
Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op.
Cit., p.210.
61
Ibid, p.210.
62
Ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Op. Cit, p.51.
43
Por serem então fruto da experiência náutica, essas formas cartográficas
apresentavam uma visão diferente sobre o território. Enquanto os mapas-múndi
mostravam uma imagem global e simbólica, as cartas-portulano se restringiam à região
específica do Mediterrâneo traçando com uma grande precisão os territórios ao seu
redor, incluindo o perfil mediterrânico e o Mar Negro.63
De uma forma mais geral,
enquanto os mapas-múndi seguiam uma tradição erudita de cartografia terrestre, as
cartas-portulano provinham da experiência dos navegadores do Mediterrâneo para fins
decorrentes da prática e para serem utilizados para ela.64
Atualmente são conhecidas aproximadamente cento e oitenta cartas e atlas dos
séculos XIV e XV, que correspondem a uma pequena parte da produção do período,
pois elas tinham uma facilidade enorme de deterioração devido às condições de
manuseio. A maior parte foi realizada em núcleos mediterrânicos, os dois principais
foram as ilhas Baleares e as cidades italianas de Gênova e Veneza. Cada um desses
centros foi criando suas características próprias ao longo dos séculos, consolidando seus
estilos já no século XIV. Assim, constitui-se um “estilo italiano” marcado pelo traçado
de uma franja litoral sem ornamentação e um “estilo catalão” que além do litoral
representava o interior dos continentes. Todavia, vários são os exemplos de que dentro
dessas escolas houve uma versatilidade como mostrado no estilo catalão dos irmãos
Pizigani (1367) e o estilo italiano de Guillhermo Soler (1385).65
Por trazer uma nova forma de representação cartográfica, as cartas-portulano não
se encontravam desconexas do pensamento medieval. Um exemplo foi a busca catalã
por representar o interior continental divergindo da função náutica, entrando assim, no
modelo de produção dos mapas-múndi medievais. 66
Segundo Kimble, os catalães faziam muitas especulações sobre os territórios
inexplorados da Terra. Como testemunha o Atlas Catalão, onde os “montes da lua”
provindo da tradição ptolomáica foram associados em determinados momentos os
montes da antiga Guiné Francesa e os seus cinco rios afluentes. Com essa especulação
estava a “harmonização” de fatos reais com a tradição, do século XIV em diante. Eram
63
De acordo com Cosgrove o período dito renascentista passaria de um mapeamento de visualização do
texto escrito como feito com as ilustrações cartográficas dos autores tradicionais e passaria a contar com
aspectos que envolvia a matemática e a filosofia. Cf. COSGROVE, Denis. “Renaissance Mapping –
Mapping New Worlds Culture and Cartography”. Op. Cit, p. 6.
64
Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. &
CLAUDHURI, K(dir). Historia da Expansao Portuuesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p.34.
65
Ibid, p.36.
66
Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op.
Cit, p.210.
44
problemas surgidos em conciliar as novas descobertas com os mitos. Como pode ser
comprovado pelo Rio do Ouro sendo empurrado para baixo nas representações
cartográficas até a direção do Senegal/Niger, pois a medida que prosseguiam as
descobertas portuguesas e o rio mítico não era encontrado, os cartógrafos o
representavam cada vez mais abaixo. Até o momento em que ele foi associado aos rios
Senegal e Niger.67
Figura 28 – O Atlas Catalão de Carlos V, 1375.
Contudo, apesar das cartas-portulano compartilharem algum simbolismo do
homem medieval em relação ao universo culminando na representação de locais ou
elementos fantasiosos existia o traçado detalhado do perfil costeiro remetendo
fortemente à realidade topográfica, sendo esse o objetivo principal deste gênero de
produções cartográficas. 68
Segundo Luís de Albuquerque, o que caracterizaria então
uma carta-portulano seria o conjunto de linhas de rumo emergidas de vários pontos do
67
Ver DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, p.166; KIMBLE, G. H.T. A
Geografia na Idade Media. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São
Paulo, 2005, p. 245.
68
Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. Cit, p.36.
45
traçado. Seriam assim lançadas dezesseis linhas de rumo (norte, nor-nordeste, nordeste,
etc.), número que algum tempo depois duplicou, como pode ser observado na maioria
das cartas existentes, e que iriam se generalizar como identificado no planisfério de
André Homem.69
Era uma rede de loxopramas, ou linhas de rumo, originárias de um
número de pontos de convergência dispostos no mapa de forma regular que eram
copiadas de mapa para mapa. 70
O impacto dessa nova maneira de representar o espaço ligado ao rigor geométrico
e a busca da representação fidedigna do real influenciou as produções cartográficas
decisivamente a partir do século XV.
Nos seis mapas estudados as influências das cartas-portulano encontram-se
presentes. Apenas no mapa-múndi de Fra-Mauro (1459) e Henricus Martellus (1489) as
linhas de orientação provindas delas não foram adotadas. Mas o melhoramento da
representação do mar Mediterrâneo é notável.
No caso do mapa de Fra Mauro a influência encontra-se presente na preocupação
com a orientação geográfica com referência geométrica dos pontos cardeais (observar
figura 7), mesmo não havendo o traçado das linhas referentes ao equador e aos trópicos.
O Mediterrâneo é muito bem representado, confirmando as inúmeras correções
provindas dessas cartas mediterrânicas.
Figura 29 – Detalhe do Mediterrâneo em Fra Mauro
69
Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op.
Cit, p.210.
70
Ver KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. Op. Cit, p.245.
46
O Mapa-múndi de Henricus Martellus apresenta uma representação muito fiel do
contorno mediterrânico, pois nas tabuas de Ptolomeu esse mar europeu possui uma
dimensão duas vezes maior do que a original.
Figura 30 – detalhe do Mediterrâneo no mapa de Henricus Martellus
O cartógrafo espanhol Juan de La Cosa e os portugueses Cantino (atribuído),
Diogo Ribeiro e André Homem mostram claramente suas enormes influências
provindas das cartas-portulano. Em ambos encontram-se a figuração das rosas-dos-
ventos herdada dessas cartas, como mostrava o atlas catalão, refletindo a preocupação
com a localização espacial por meio dos pontos cardeais.
Figuras 31 e 32 – Detalhe de rosa-dos-ventos em Juan de La Cosa (esq.) e Cantino (dir.)
Figura 33 – Detalhe de rosa-dos-ventos em Diogo Ribeiro (esq.) e André Homem(dir.)
Notam-se juntamente a essas rosas inúmeras linhas de rumo que partem de pontos
específicos e preenchem por completo os mapas. Elas é que são as guias de rumo do
mapa-múndi.
47
Figura 34 – Detalhe do Atlântico no Planisfério de André Homem.
1.5 – As Grandes Navegações
Iniciadas pelos portugueses no século XV, as grandes navegações foram
responsáveis em parte por toda uma revisão das teorias cosmográficas dos séculos
anteriores contribuindo de maneira decisiva para o período designado como
Renascimento. Todos esses feitos marítimos foram registrados através de cartas-
portulano portuguesas. Essas novas fontes, além dos próprios relatos dos viajantes
chegaram até os cartógrafos da segunda metade do século XV e tornaram-se uma nova
fonte de referência para a produção cartográfica do período. Contribuindo
decisivamente para uma representação geográfica partindo da prática.
Apesar de supor-se terem sido inúmeras as cartas produzidas pelos portugueses,
poucas são os exemplos. Essa grande quantidade é confirmada através de alusões a elas
na literatura da época como o caso das referências freqüentes aos mapas portugueses na
Crônica da Conquista da Guiné71
de Zurara e no Esmeraldo de Situ Orbis72
de Duarte
Pacheco.
Todo esse empreendimento português para além mar, segundo C. R. Boxer, teria
se iniciado devido a quatro fatores principais que se conviveram e apareceram na
seguinte ordem no século XV: 1. Um zelo de cruzada com o Marrocos. Refletindo na
idéia original do reino português de tentar surpreender os marroquinos por uma ofensiva
71
ZURARA, Gomes Eanes da. Crônicas dos feitos que se passaram na conquista de Guiné por mandato
do Infante D. henrique, estudo crítico e anotações de Torcato Sousa Soares. Lisboa. Academia Portuguesa
da História, 1978.
72
PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Op. Cit, p. 541.
48
inesperada pelo sul.73
2. O desejo de se apoderarem do ouro da Guiné. Com o início das
explorações em direção ao sul da África após as ilhas Canárias os portugueses entram
em contato com populações envolvidas no comércio do Ouro da Guiné e isso os atrai; 3.
a questão do Preste João. Um reino fantasioso provindo das lendas medievais que teria
sido associado com as notícias da Igreja cristã copta da Abissínia, e que auxiliaria os
lusos na expulsão dos infiéis de Jerusalém; 4. a procura de especiarias do oriente. Com
as informações de que o continente africano seria circum-navegável cogitou-se em ir até
as Índias buscar as especiarias, desviando dessa maneira a intermediação dos
mamelucos – os infiéis que controlavam a Terra Santa.Assim, a expansão portuguesa
deveria ser observada tendo em mente esse quadro de interesses surgidos ao longo da
exploração marítima. 74
O primeiro grande marco das navegações ultramarinas portuguesas foi a conquista
de Ceuta em 1415 realizada durante o reinado de D. João I. A partir desse feito, iniciou-
se a expansão ultramarina, e já no ano de 1419 ocorreu a descoberta e ocupação da ilha
da Madeira. Os Açores foram reconhecidos inicialmente no ano de 1431 e completada a
exploração do conjunto de ilhas em 1432. Após dois anos, Gil Eanes conseguiu a
façanha de transpassar o Cabo Bojador, obstáculo tradicional da navegação de
cabotagem, inaugurando uma nova etapa no reconhecimento da costa africana. Nesse
momento, devidos as mudanças de orientação das terras que passam de N-S para O-E
acreditava-se que teria sido atingido o caminho para as Índias75
. Porém, o continente
volta a sua posição N-S depois do Golfo da Guiné. Nessa altura, entre 1456 e 1460,
ocorreu a descoberta e colonização das ilhas de Cabo Verde.
A experiência adquirida através dessas viagens iniciais permitiu aos portugueses
conhecerem o sistema de ventos do Atlântico Norte, e, posteriormente, os do Atlântico
Sul. Possibilitando também a construção de um novo tipo de navio, a caravela latina,
que suportava o vento melhor do que qualquer outro navio europeu. Já com essas
experiências, as viagens de Diogo Cão durante o reinado de D. João II reanimaram as
descobertas portuguesas. Ele partiu em 1482 e afirmava a conquista portuguesa, com o
73
Esse ataque ao Marrocos refletia o ódio existente entre a Cristandade e os muçulmanos. No entanto,
segundo Buckhardt a Itália escaparia ao isolamento de relações com esse grupo religioso. Ver:
BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália, Op. Cit., p. 60 e 61.
74
BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Op. Cit, p.34. Para os motivos das
navegações portuguesas verificar também: THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel,
1998, p.171.
75
Diferentemente dos portugueses, segundo Barros, os chineses já representavam a Áfica com um
formato triangular. Ver: BARROS, Nilson Crocia. “Ibn Kaldun, a dinâmica dos assentamentos humanos e
as funções urbanas no islã histórico”Op. Cit., p.13.
49
padrão de São Jorge, das terras da embocadura do Rio Zaire. Na sua segunda viagem, o
navegador atingiu as costas da atual Angola. O esforço de Diogo Cão foi continuado por
Bartolomeu Dias que, em fins de 1487, ultrapassava a costa africana até a Serra dos
Reis onde entrou em contato com uma forte tempestade que o fez perder de vista a
costa. Nesse momento ele atravessou o Cabo das Tormentas, rebatizado posteriormente
de Cabo da Boa Esperança e atingiu a Oceano Índico. Ao mesmo tempo em que se
prosseguiam as navegações ao longo da costa africana, o rei D. João II mandou que
seguissem por terra ao Oriente, Pero de Covilhã e Afonso Paiva, a fim de obterem
notícias circunstanciais sobre as terras das especiarias e do misterioso reino do Preste
João. Os informes enviados por eles davam conta das cidades indianas e das condições
de navegação no Oceano Índico. 76
Nos fins do século XV, os portugueses lançaram as bases da moderna ciência
náutica européia, sendo então, possível se guiar através em alto mar pela observação
astronômica. Contribuíram para isso três instrumentos principais: a bússola
(provavelmente de origem chinesa e conhecida por intermédio dos marinheiros árabes e
mediterrâneos), o astrolábio e o quadrante nas suas versões mais simples.
Paralelamente as descobertas portuguesas na segunda metade do século XV, os
espanhóis iniciam as suas viagens marítimas. Em 12 de outubro de 1492, o genovês
Cristóvão Colombo, navegando a serviço de Castela atingiu algumas ilhas
desconhecidas. Esse episódio fez com que os feitos portugueses para atingir a Índia
fossem ameaçados, já que Colombo77
acreditava ter chegado a ilhas asiáticas78
. Os
reinos português e espanhol entraram então em divergências diplomáticas. A solução foi
o estabelecimento no ano de 1494 do Tratado de Tordesilhas que definia a demarcação
de um meridiano separando a Terra em dois hemisférios, um luso e outro castelhano,
que passaria a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Após esse tratado,no ano de
76
Sobre as viagens ultramarinas portugueses existe vasta bibliografia aqui indica-se alguns autores:
THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a TimorOp. Cit.; BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti
(dir.). História da expansão portuguesa. Vol. I. Lisboa : CNCDP, pp. 35-44.; BOXER, Charles. O
Império colonial português (1415-1825). Op. Cit.; HOLANDA, S. Buarque de. História Geral da
Civilização Brasileira – Tomo I: A Época Colonial 1º vol.: Do Descobrimento à Expansão territorial. São
Paulo: D.E.L., 1968; Voltando-se mais para a Ásia tem-se SUBRAHMANYAM, Sanjay. O império
asiático português 1500-1700. Lisboa: Difel, 1995;
77
Segundo ele “il mondo é poco”. Para compreender um pouco do pensamento de Colombo e sua crença
em ter chegado a ilhas asiáticas ver: SILVA, Janice Theodoro da. “Colombo: entre a Experiência e a
Imaginação”. In: Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, vol. 11, nº21, 1991, p.
29.
78
Esse temor teria sido despertado também porque os portugueses não teriam dado ouvidos tanto a
Colombo como o florentino Paolo Toscanelli que afirmava que a melhor rota para se chegar a “Índia dos
aromas e das gemas”, como para o ouro de Cipango e as riquezas de Cataio, não era a rota pela Guiné,
mas sim a “direitura”, navegando ao ocidente. Cf. THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, op. Cit, p. 171.
50
1498, finalmente uma frota portuguesa atingiu a Índia: Vasco da Gama79
chegou a
Calicute estabelecendo assim uma nova rota, transoceânica, para atingir o lucrativo
comércio das especiarias.
Esses dois episódios, descoberta da América (1492) e conclusão da primeira
viagem pela rota do Cabo (1498) marcaram uma nova etapa nas relações
interplanetárias. O eixo principal do comercio europeu deixou de ser o mar
Mediterrâneo e passou a ser o oceano Atlântico.
As explorações oceânicas não se detiveram após isso avançando ao longo dos anos
o continente americano e asiático. Tentando atingir o comércio do Índico através do seu
hemisfério, a coroa espanhola financiou a viagem comandada por Fernando Magalhães.
A conclusão do périplo de Magalhães e depois, no comando Sebastião de Elcano foi a
primeira circum-navegação planetária entre 1520 e 1523. Na seqüência, descobriram-se
novos arquipélagos no Pacífico aumentando imensamente a extensão conhecida da
China, e descobrimento do Japão.
Ao longo das explorações portuguesas das costas africanas no século XV existem
relatos de que havia várias cartas marítimas sobre as novas regiões descobertas como
mencionado anteriormente. As provas desses registros cartográficos encontram-se
primeiramente no cronista Zurara80
, fonte principal para a época do estabelecimento
português na Guiné, que afirmou terem sido feitos novos mapas por ordem do Infante
D. Henrique; e uma carta régia (mandada passar pelo regente D. Pedro, em 1443, em
Penela), referente também à feitura de novos padrões cartográficos. Sobre esse assunto,
o autor Alfredo Pinheiro Marques afirma terem cruzado testemunhos de fontes
narrativas arquivísticas, para determinar com precisão a data das primeiras correções em
cartas produzidas na época do Infante D. Henrique. No seguimento de sua investigação,
no estado atual de conhecimentos, deve-se considerar a data de 1443 como da realização
da primeira carta portuguesa que se tem conhecimento. Outro indício importante da
produção cartográfica ao longo dos descobrimentos relaciona-se ao arquipélago das
Canárias. Em 1435 no Concílio de Basiléia os portugueses mostraram uma carta para
79
A chegada a Calicute, de acordo com Amélia Aguiar Andrade, foi a feliz articulação entre a
acumulação de experiência marítima anterior na costa africana e a compreensão do funcionamento do
Oceano Índico. A viagem tinha como objetivos dominar a rota das especiarias e consequentemente
neutralizar ou transformar em secundária a concorrência. Ver: ANDRADE, Amélia Aguiar. “Novos
Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”. In: Memórias do Oriente,
CNCDP, 1999, p. 35.
80
ZURARA, Gomes Eanes da. Crônicas dos feitos que se passaram na conquista de Guiné por mandato
do Infante D. henrique, Op. Cit.
51
provar que essas ilhas estavam mais próximas de Portugal do que de Castela. Incluí-se
ainda a prova apresentada no mapa de Fra Mauro que será retomada a seguir.81
Os mapas aqui analisados apresentam resultados claros dos diversos momentos
das descobertas portuguesas. Fra Mauro em seu mapa apresenta inúmeras informações
na costa ocidental da África provindas de fontes portuguesas.82
Há a inclusão das
descobertas portuguesas produzidas na primeira metade do século. O autor comenta isso
nas várias informações presente nessas regiões do mapa, segundo ele, na direção ao sul
do continente africano, os portugueses “(...) encontraram litorais que não eram
perigosos, com boas profundidades, convenientes para a navegação e sem riscos de
tempestades. Eles elaboraram novas cartas destas regiões e deram nomes aos rios, baías,
cabos e portos. Eu tenho várias destas cartas em meu poder...”Isso seria ainda em fins
da época henriquina (1459).
81
Ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Op. Cit., p.38.
82
Através dos descobrimentos geográficos instalou-se também a toponímia, ou nomeação dos locais
descobertos. Segundo Amélia Aguiar Andrade dar nome ao desconhecido significava dominar aquele
local. Ou seja, torna-lo conhecido para facilitar a identificação, e possível dominação. Ver: ANDRADE,
Amélia Aguiar. “Novos Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”. In:
Memórias do Oriente, CNCDP, 1999, p. 39.
52
Figura 35 – Detalhe do contorno africano ocidental (o mapa encontra-se na sua posição original, ou
seja, com a África ao norte).
Já a obra de Henricus Martellus (1489) também possui as informações
portuguesas apuradas sobre a costa ocidental africana. A façanha de Bartolomeu Dias de
dobrar o Cabo da Boa Esperança (das Tormentas) já mostra seus resultados. Com isso o
contorno africano ocidental se tornau mais próximo ao real geográfico como no caso do
Golfo da Guiné. Ainda estão inclusas duas grandes inscrições na altura do continente
africano relatando sobre as experiências marítimas lusas e suas descobertas.
53
Figura 36 – Detalhe do continente africano em Henricus Martellus (1489)
Figura 37 – Detalhe de inscrição em Henricus Martellus
Essa inscrição diz o seguinte: “Essa é a forma moderna africana segundo descrição
portuguesa entre o mar mediterrâneo e o oceano meridional”
Em Juan De La Cosa (1500) constam dois grandes avanços provindos das grandes
navegações. Do lado português tem-se o contorno da África, que na parte ocidental é
perfeitamente desenhada enquanto que a parte oriental ainda é pouco exata. A Ásia
ainda filia-se a Ptolomeu mesmo com a inserção da frota de Vasco da Gama que havia
atingido a Índia. No mapa existe uma menção ao “Rei” de Calicut que saldou os
portugueses. Já no lado espanhol há a contribuição da viagem de Colombo e Vicente
54
Pinzón a costa sul-americana, sendo o cartógrafo reconhecido como o primeiro a
representar o continente americano. O Novo Mundo ocupa uma posição ainda pouco
precisa, excetuando-se a região das Antilhas onde os espanhóis tiveram maior contato.
Figura 38 – Detalhe da África e da expedição de Vasco da Gama (seqüência de barcos ao redor do
continente) em Juan De La Cosa.
Figura 39 – Detalhe da chegada de Vasco da Gama a Índia em Juan De La Cosa.
55
Figura 40 – Detalhe da América em Juan De La Cosa.
56
Figura 41 – Detalhe das Antilhas em Juan De La Cosa
Dois anos após Juan de La Cosa, foi produzido o mapa de Cantino (1502). Ele
aprofunda as informações contidas no mapa anterior graças às influências maiores das
cartas portuguesas. É o mapa-múndi português mais antigo que sobreviver ao longo do
tempo. Apresenta um conhecimento extraordinariamente preciso da costa africana,
especialmente a costa ocidental a norte do rio Congo. E o contorno oriental ganha pela
primeira vez uma dimensão muito próxima ao real geográfico. Outro mérito das
explorações marítimas reside na representação da Índia enquanto península e o Ceilão
muito próximo a sua proporção em relação as outras terras.
57
Figura 42 – Detalhe da África em Cantino (1500).
Figura 43 – Detalhe do continente americano em Cantino (1500).
58
Diogo Ribeiro testemunhou o feito de Fernão de Magalhães, o primeiro a navegar
da América para a Àsia e, depois da sua morte na ilha de Bornéu, a frota continuou a
viagem e retornou a Espanha pela rota do Cabo. Realizando assim, como mencionado, a
primeira viagem de circum-navegação terrestre. O mapa ainda representa os resultados
das explorações de Colombo, Caboto83
, os irmãos Corte Real, Américo Vespúcio e
Balboa (que confirmou a existência do grande “mar do sul” posteriormente batizado de
Pacífico)84
. Em seu mapa o contorno dos continentes alcança um patamar mais próximo
ao real. O continente africano ganhou um contorno mais preciso, com a ilha de
Madagascar saindo do retângulo de Cantino e ganhando uma representação mais
fidedigna. Já a figuração do contorno asiático também melhora. A península arábica
deixa de ser associada a um “L” enquanto que as particularidades da península indiana
são representados, porém, é figurada com uma espessura menor que deveria. Sendo
assim, um retrocesso a representação observada em Cantino. Outra importante inovação
da figuração é a península da Malásia, não mais sendo aproximada a Catigara de
Ptolomeu. Nela existe a toponímia “Regno de Ansian”. Além da representação das ilhas
do sudeste asiático como “Camatra”, “Iavas” e as Molucas.
83
Tentando legitimar sua primazia sobre o continente americano e por conseqüência a navegação nos
mares espanhóis no século XVII. Os ingles Samuel Purchas apresentou Sebastião Caboto como um inglês
(na verdade era italiano) e verdadeiro descobridor do continente americano que deveria se chamar
“Cabota”. Ver a introdução de Sheila Moura Hue para a obra: KNIVET, Anthony. As incríveis aventuras
e estranhos infortúnios de Anthony Knyvet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu
país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos
selvagens. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
84
Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento, Op. Cit, p.59.
59
Figura 44 – Detalhe do contorno asiático em Diego Ribeiro (1529).
Em relação ao “Mundus Nows” Ribeiro também inovou comparando-se com La
Cosa e Cantino. O contorno americano é continuo com a especificidade da América
Central. Somente o contorno ocidental do continente que não é figurado, e a América do
Norte pouco aparece.
60
Figura 45 – Detalhe do contorno americano em Diego Ribeiro (1529).
Em André Homem há um aprofundamento no conhecimento de todas as regiões
anteriormente figuradas nos mapas. A península indiana tem sua dimensão proporcional
resgatada, a península da Malásia e a Indochina aparecem mais bem delimitadas.
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  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LUCAS MONTALVÃO RABELO A CONSTRUÇÃO DOS MAPAS-MÚNDI NOS SÉCULO XV E XVI: ENTRE A EXPERIÊNCIA E A TRADIÇÃO CURITIBA 2009
  • 2. 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LUCAS MONTALVÃO RABELO A CONSTRUÇÃO DOS MAPAS-MÚNDI NOS SÉCULO XV E XVI: ENTRE A EXPERIÊNCIA E A TRADIÇÃO Monografia apresentada ao Departamento de História como requesito parcial à conclusão do Curso de História do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná CURITIBA 2009
  • 3. 3 RESUMO Essa pesquisa visou compreender a produção dos mapas-múndi no período renascentista. Para isso contou com analise tributária de Brian Harley e Marica Milanese. Autores que trazem uma metodologia diferente para trabalhar com essas fontes visuais. Assim, procurou demonstrar como os conjuntos de influências –tradição e experiência - encontram-se presentes nos mapas renascentistas e, de um mapa para outro como isso foi se modificando. Com isso, essa pesquisa visa um olhar voltado não apenas às questões técnicas, mas também aos elementos que revelam o contexto social próprio da época em que este mapa encontra-se inserido. Observando-os como um espelho da sociedade que o produziu dentro do embate renascentista.
  • 4. 4 SUMÁRIO Introdução..........................................................................................................................5 Quadro de Imagens............................................................................................................6 A Herança Cartográfica...................................................................................................14 A Sociedade e os Cartógrafos..........................................................................................65 Conclusão........................................................................................................................89 Referências......................................................................................................................91
  • 5. 5 QUADRO DE IMAGENS As referências aos mapas são as seguintes: Mapa dos Salmos; Made Hereford; Fra Mauro; e Atlas Catalão. Retirados de: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 226-270 Henricus Martellus; Cantino; Diogo Ribeiro; e André Homem. Retirados de ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 55-60 Juan de La Cosa. Retirado de: Retirado de ASTON, Margaret. O Século XV. História Ilustrada da Europa. Lisboa: Editorial Verbo, 1967, p. 88.
  • 6. 6 INTRODUÇÃO Os mapas são objetos que desde sempre exercem uma fascinação sobre o homem dada a sua capacidade de dispor o mundo diante dos olhos. Essa pesquisa teve como meta desvendar um pouco desse olhar voltando-se para um importante período da história Ocidental, o Renascimento. Acompanhou-se, assim, o processo de produção de mapas ao longo da segunda metade do século XV e o século XVI. Esses mapas-múndi estavam inseridos em uma época importante de efervescência dos debates acerca da geografia terrestre suscitados pelas relações entre o ideal de mundo medieval, o conhecimento recente dos autores clássicos que a muito estavam perdidos e as descobertas realizadas durante as viagens empreendidas pelos ibéricos. É um período que representou um momento de síntese não somente na história da cartografia, mas em muitos outros campos da história. Esse embate pode ser sintetizado na afirmação de Maria Fernanda Alegria: “A cartografia oferece-nos um excelente exemplo para ilustrar [o] complexo confronto entre o que os livros e a tradição oral registram, entre o que os mestres ensinam e o que se aprende com a própria experiência. Na luta entre esta dupla linha de forças [tradição e experiência], a persistência do vivido pelos Portugueses teve um papel fundamental na alteração das mentalidades. ” 1 Essa alteração de mentalidade refere-se à experiência dos portugueses ao longo das grandes navegações. Pois, de acordo com João de Castro Osório foi através da aprendizagem cotidiana dos novos espaços que a realidade do mundo se apresentava outra, diferente de tudo aquilo que os eruditos europeus diziam, ou os autores clássicos. Assim, todo o pensamento anterior foi sendo posto em confronto com a realidade, sem que tivesse de ser desde logo abandonado pelas verdades nascidas da experiência vivida e dos ensinamentos da realidade vista e observada.2 Essa mudança pode, então, ser verificada nos mapas renascentistas. Aos poucos eles deixam de ser predominantemente simbólicos e passam a privilegiar uma representação geográfica, o que é enriquecido pelas informações 1 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 26. 2 Ver OSÓRIO, João de Castro(org.). Idearium Antologia do Pensamento Português: A Revolução da Experiência. Lisboa: SNI, 1947, p.16.
  • 7. 7 provindas das viagens portuguesas. No entanto, essas mudanças não ocorrem de forma progressiva, mas sim lentamente e por vezes acontecendo retrocessos. As representações do mundo seguindo o ideal medieval, como o exemplo dos mapas tipo T-O3 , em que a concepção de mundo é estritamente ligada ao modelo bíblico, vai sendo suplantada pelas características ditas modernas, em que há a preocupação com a correspondência ao “real”. Esse percurso cartográfico ocorre desde o final da Idade Média, onde os relatos sobre viagens longínquas, até os confins da Ásia, como do veneziano Marco Polo, proporcionam à Europa Ocidental os primeiros dados mais seguros sobre áreas praticamente desconhecidas. Entretanto, essas informações confundiam-se com fábulas que misturavam essas experiências com outras provindas da Bíblia ou da literatura clássica. No período soma-se ainda o resgate das idéias de autores clássicos provindas de fontes árabes ou bizantinas. Um importante caso é de Ptolomeu, que é amplamente utilizado como base para construção de inúmeros mapas-múndi no século XV. Sua autoridade muitas vezes entrou em conflito com as novidades trazidas pelos relatos das viagens portuguesas, e, em muitos casos, suas informações se sobrepujaram às provindas das viagens marítimas, levando ao descrédito o conhecimento dos portugueses. 4 Nesse período os cartógrafos eram solicitados a criar um determinado mapa- múndi para um monarca, ou quem o pudesse custear. A produção destes objetos tinha um alto custo econômico, o que criava uma relação de dependência do cartógrafo, pois ele deveria criar um mapa segundo as exigências daquele que o contratou. No entanto, mesmo que estivesse criando para seu patrocinador, o seu produto final apresenta uma série de elementos particulares, assim como, da sociedade na qual ele estava inserido. Ou seja, seu produto final estava intimamente ligado com as questões envolvendo o seu contexto próprio. Mesmo no interior de um movimento de valorização da experiência na produção dos mapas-múndi, deve ser observada também essa particularidade referente ao cartógrafo. Dependendo dos objetivos propostos para um determinado mapa ele 3 Para mais informações sobre os mapas em estilo T.O. ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Chicago: The University of Chicago Press,1996, p.42; RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480- 1520. Lisboa: Gradiva, 1980, p. 15 e 16; MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: ELO; CRONE, G. R. Historia de los mapas. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1956; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. . 2.ed. Londrina: Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005. 4 GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos Mapas, novas leituras: revisitando a historia da cartografia. São Paulo: GEOUSP, 2004. p.
  • 8. 8 poderia se valer tanto mais da experiência do “real” como das informações da “tradição”. As fontes para essa pesquisa foram seis mapas produzidos ao longo dos séculos XV e XVI. São obras pertencentes a um período de cem anos iniciando no mapa de Fra Mauro (1459) indo até o Planisfério de André Homem (1559). Esses mapas-múndi selecionados estão entre os que sobreviveram, e de alguma maneira são marcantes na história da cartografia renascentista. Busca-se apontá-los e mostrar de forma breve porque são considerados grandes marcos: -Fra Mauro (1459): Mostra o início das explorações portuguesas na costa da África além de incluir os relatos de viajantes como Marco Polo nas representações geográficas; -Henricus Martellus (1489): É considerado um dos primeiros mapas renascentistas. Um marco por ter iniciado a inclusão das descobertas portuguesas e de viajantes como Marco Polo mais a fundo do que Fra Mauro; -Juan de La Cosa (1500): É o primeiro registro cartográfico do Novo Mundo sendo resultado direto da descoberta empreendida por Cristóvão Colombo; -Cantino (1502): Uma referência na cartografia ao se tratar de Grandes Navegações, mostra um continente americano definido mais claramente que no mapa de Juan de La Cosa. O contorno do continente africano é mais próximo ao real nas proporções norte/sul. Por isso, este mapa é considerado o primeiro registro cartográfico “moderno”. -Diogo Ribeiro (1529): É considerado uma das melhores produções cartográficas deste período. Ele inova por colocar os resultados das expedições de Colombo, Caboto, dos irmãos Corte Real, Fernão de Magalhães, entre outros; -André Homem (1559): O planisfério de André Homem mostra um avanço com relação ao contorno dos continentes. Nele já aparecem representações mais fiéis da América, África e Ásia. A partir desta obra os grandes traços da geografia do planeta estavam construídos. A grande questão buscada a partir desses mapas foi analisar como eles dispunham as informações do ofício cartográfico provenientes de duas fontes: dos modelos legados pelo período medieval e pelos autores clássicos, representando a tradição erudita; e as cartas-portulano e mapas produzidos diretamente das grandes navegações, inserindo a experiência. Dessa forma, como o cartógrafo ao produzir seu mapa incluía essas
  • 9. 9 informações? Existia a predominância de uma, ou uma combinação entre elas? E como ela se realizava? Para responder a essa questão foi utilizada uma metodologia de estudo fundamentada nas propostas de análise cartográficas empreendidas por J. Brian Harley. Grande crítico das abordagens tradicionais, afirma que ao se estudar os mapas deve-se estar atento ao contexto político próprio para compreender como o poder opera através do discurso cartográfico, e os efeitos desse poder na sociedade. Sua proposta é estudar os mapas mais como textos do que como imagens da natureza. Pois os mapas representam uma linguagem gráfica, uma construção feita a partir da realidade carregada de intenções e conseqüências que podem ser estudadas nas sociedades da época da produção de um determinado mapa. Igualmente aos livros, eles também são produtos de mentes individuais assim como de valores culturais mais amplos de sociedades específicas. 5 Com isso, essa pesquisa visou um enfoque voltado não apenas às questões técnicas, mas também aos elementos que revelam o contexto social próprio da época em que este mapa encontra-se inserido, observando-o como um espelho da sociedade que o produziu dentro do embate renascentista. É, portanto, sobre essa nova ótica acerca da história da cartografia que essa pesquisa se orienta. No primeiro capítulo desta monografia faz-se uma descrição do contexto das produções cartográficas acessíveis aos cartógrafos renascentistas. Elas foram subdivididas em duas partes. A primeira remete aos mapas-múndi produzidos na Baixa Idade Média, tanto esquemáticos, como os já mencionados T-O, quanto descritivos. Depois, no século XV incluiu-se a influência de Cláudio Ptolomeu, considerado o maior astrônomo da Antiguidade, que deixou vários escritos, entre eles sua Geographia. Essa obra retornou ao Ocidente no século XV e trouxe uma renovação das representações cartográficas ganhando o status de autoridade no período. Esse primeiro grupo pertencente a uma tradição erudita de uma cartografia essencialmente terrestre o que constituiu uma barreira às inovações de ordem prática. A segunda subdivisão refere-se primeiramente, as produções das cartas-portulano, iniciadas no século XIII, provenientes das experiências no mar Mediterrâneo. Em seguida inclui as navegações portuguesas iniciadas após a conquista de Ceuta em 1415. Com elas foram produzidos todo um conjunto de mapas das costas africanas utilizados 5 HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Foundo de Cultura Econômica, 2005, p. 60 e 61.
  • 10. 10 para fins náuticos. Infelizmente esses exemplares cartográficos não sobreviveram devido ao seu desgaste, mas os relatos sobre eles aparecem nas fontes da época. Como é o caso das notas no mapa de Fra Mauro. Toda essa nova produção cartográfica trouxe um conhecimento sobre o continente africano, em um primeiro momento, e a América posteriormente, influenciando decisivamente as novas produções cartográficas a partir da segunda metade do século XV. Desta forma, as cartas-portulano mediterrânicas e atlânticas nasceram da experiência marítima fruto de fins fundamentalmente práticos. Em um segundo capítulo procurou-se descrever o contexto do autor e da sociedade. Aqui se estabeleceram as especificidades relacionadas com o autor, diferentemente do legado provindo de outros mapas. Foram investigadas as possíveis influências dentro da arte de cartografar desses indivíduos. Isso incluiu os responsáveis por encomendar a obra e, portanto, as suas expectativas para com o produto final, as disponibilidades técnicas para tal produção, como o caso dos mapas manuscritos e a imprensa, que marcou uma mudança profunda na divulgação dos mapas-múndi principalmente no século XVI. O estudo de cartografia iniciou-se no século XIX. O primeiro grande marco para os estudos realizados nos mapas remontam esse século com o crescimento dos acervos cartográficos das nações, o desenvolvimento de um mercado de antiquário nos Estados Unidos e Europa, e a partir de 1850, a institucionalização da Geografia enquanto ciência. Neste momento, a história da cartografia era apenas um campo auxiliar para o estudo da Geografia. Era entendida como a história dos descobrimentos e exploração da Terra. Sua função era tornar os documentos cartográficos acessíveis a outras áreas do conhecimento. Entretanto, a partir da década de 1930, três fatores propiciaram sua independência: o início das publicações das histórias gerais da cartografia; a criação de uma revista voltada para a divulgação de estudos feitos sobre os mapas, a Imago Mundi; e o início da Cartografia como disciplina independente da Geografia. Essa emancipação acadêmica inicialmente foi efêmera mais iniciou uma série de questionamentos sobre o estudo dos mapas. O resultado foi a aplicação de novas bases filosóficas e teóricas, alem da utilização de novas técnicas no estudo dos mapas antigos. 6 A independência da cartografia trouxe, com isso, o início de interpretações dos mapas enquanto meios de comunicação. Essa nova perspectiva suscitou uma série de debates conceituais, abordagens dos mapas como artefatos e meios de comunicação, 6 GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos mapas, novas leituras: revisitando a historia da cartografia. São Paulo: GEOSP, 2004. p. 68.
  • 11. 11 alem da ênfase dada aos processos técnicos de sua produção. Os historiadores da cartografia passaram, então, a focar mais a natureza de artefato do mapa, do que o seu conteúdo informativo. É importante ressaltar que todo esse crescimento da disciplina com essa nova perspectiva foi realizado por particulares, enquanto que a academia estava à margem dessas discussões. Os particulares criaram sociedades nacionais e internacionais promovendo encontros, além do estabelecimento da Internacional Cartographic Association Commition for the History of Cartography. Outra grande contribuição foi a produção crescente de artigos que discutiam questões metodológicas e promoviam uma avaliação e crítica dos objetivos da Historia da Cartografia.7 Essa nova abordagem, que também é presente em Harley, feita pela Historia da Cartografia é sintetizada na frase de Christian Jacob: “(...) o mapa tornou-se um objeto opaco, que retém o olhar sobre ele mesmo. O mapa entrou na era da suspeita. Ele perdeu sua inocência. Não se pode mais, atualmente, considerar a história da cartografia sem uma dimensão antropológica atenta às especificidades dos contextos culturais, e teórica, que reflita sobre a sua natureza de objeto e os seus poderes intelectuais e imaginários.”8 Atualmente os estudos focados nessas novas abordagens da história da cartografia são poucos. O país foi quase intocado pelos movimentos de renovação teórica dos últimos trinta anos da história da cartografia. Porém, existem as pesquisas empreendidas por Enali De Biage, formada em geografia, que se utiliza das proposições empregadas por B. Harley em sua pesquisa concebendo os mapas como construções sociais enfatizando a questão discursiva dos mapas. Em sua tese intitulada Cartographie et les représentat du territoire au Brésil a autora faz um panorama das representações cartográficas do Brasil desde o período colonial até o século XX.9 Essa iniciativa é acompanhada pelos estudos relacionados a toponímia por Íris Kantor, e os mapas jesuíticos produzidos ao longo do século XVII no estudo de Artur Barcelos. Acrescenta- se ainda, as pesquisas de Maria de Fátima Costa que estuda como criou-se uma visão mítica, a partir da cartografia do lago indígena de Xarayes. Outra importância desta pesquisa foi mostrar essa forma alternativa de se estudar os mapas. Eles podem ser trabalhados como uma fonte principal, não necessariamente com um papel secundário, meramente de apoio. Isso busca contrariar as abordagens tradicionais ligadas a cartografia positivista preocupada unicamente com os aspectos técnicos. Esse tratamento destinado aos mapas vem da tendência dos historiadores 7 Ibid. 8 Ibid, p. 1. 9 Ibid, p. 75.
  • 12. 12 tradicionais da cartografia considerar a historia dos mapas de uma forma progressiva. Consequentemente passam a delegar aos mapas antigos, ou “não exatos”, um papel descartável. Entretanto, através da experiência mostrada por essa pesquisa, aplicando-se um método diferente, busca-se suscitar inúmeras pesquisas atentando-se a estudos alternativos aos tradicionais. Isso remete a outro ponto: essa pesquisa foi uma forma de desmistificação do tema. A história da cartografia é comumente interpretada com certos preconceitos. O principal, como mencionado, remete ao entendimento evolucionista das representações cartográficas. Os mapas teriam uma evolução progressiva, saindo da total falta de precisão dos mapas medievais e encontrando a representação racional e ideal da Terra a partir do Iluminismo. Esta pesquisa busca questionar essa visão e apresentar uma interpretação atenta às especificidades históricas, desmistificando algumas idéias, devolvendo aos mapas antigos a sua importância enquanto parte de seu contexto específico. Ao se trabalhar com mapas inevitavelmente ocorrerem relações entre diversas disciplinas como a História, a Cartografia e a Geografia. Portanto, este estudo torna-se um diálogo entre campos de saber diferentes contribuindo para a importante prática da interdisciplinaridade. Atualmente existe um consenso de que esta relação é algo importante e fundamental para o intercâmbio sadio de experiências quebrando os muros invisíveis criados pelos homens ao separarem as disciplinas. É importante lembrar que este diálogo aqui buscado deve ocorrer sem a perda no foco da pesquisa. Sendo esta uma pesquisa histórica, ela não pode perder o seu referencial para que não comprometa a experiência interdisciplinar. E finalmente, ao se estudar os mapas pertencentes ao século XV e XVI contribui- se muito com a elucidação de um período importante da história ocidental. Os mapas são um dos caminhos mais significativos percebidos ao se trabalhar a mudança de uma concepção de mundo medieval para uma concepção de mundo moderna. Eles são uma representação gráfica de todo um conjunto de pensamento e crenças de uma determinada época através de um autor específico. Analisar essa série cartográfica do século XV e XVI é uma forma de acompanhar essas mudanças ou permanência no pensamento; compreendendo que dentro de um mesmo período podem existir olhares diversos. Desta maneira, ao se estudar os mapas do início da modernidade faz-se a importante contribuição de mostrar como os elementos ligados ao encontro de duas concepções de mundo estão presentes nos mapas. Além de se estar atento a
  • 13. 13 especificidade do olhar do indivíduo. Assim, com esse estudo mostra-se como o peso dos autores clássicos e o saber medieval relacionavam-se com as novas fontes de informações geográficas, as descobertas ibéricas.
  • 14. 14 1 – A HERANÇA CARTOGRÁFICA A etapa inicial na análise dos seis mapas dessa pesquisa buscou identificar de que forma ocorreram as influências provindas de outros mapas. Elas estavam relacionadas diretamente ao ofício do cartógrafo, remetendo desta maneira, à história das produções cartográficas. Ou seja, o legado provindo das tradições de se elaborar um mapa, todo o repertório mental e social implicado no momento da produção. Assim, resgatou-se toda a forma de composição dos mapas-múndi medievais. Além das influências de outras obras cartográficas produzidas ao longo do século XV: pertencentes a Geographia de Ptolomeu e provindas das grandes navegações empreendidas pelos portugueses e espanhóis. Dessa forma, procurou-se constatar de que maneira essas produções cartográficas influenciaram na construção dos mapas-múndi de Fra Mauro (1459), Henricus Martellus (1489), Juan de La Cosa (1500), Cantino (1502), Diogo Ribeiro (1529) e André Homem (1559), as fontes dessa pesquisa. Essa forma de identificação das influências provém do reconhecimento da relação direta entre os mapas contemporâneos e aqueles que se tornaram uma tradição. Pois a interligação entre um e o outro se deve a importância representada pelo legado histórico. Pois, aplicar um ofício implica utilizar-se de algo que já foi feito anteriormente para se apreender como fazer determinado produto. Isso se aplica aos mapas com o uso de uma mesma simbologia. Entretanto, ela vai ter particularidades como signos dispostos de maneira diferente representando inovações ou preferência específica do autor. Dentro dessa escolha em prosseguir com a convenção feita ao longo de muitos anos e a inovação a partir de outras fontes encontra-se o confronto entre a tradição erudita e a experiência náutica. Segundo J. Brian Harley, um mapa sempre está relacionado inevitavelmente com outro. Isso se deve à contínua influência exercida pelo ofício cartográfico que é passado de geração a geração. Com isso, é possível a identificação de suas relações simbólicas através da comparação de um mapa ao lado de outros cronologicamente anteriores traçando, desta forma, uma genealogia das suas influências e assimilações. Este método é chamado por Harley de cartografia comparativa10 , que parte então da idéia de que “nenhum mapa está hermeticamente cercado em si mesmo, nem pode responder a todas 10 Ver: HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Fondo de Cultura Económica, 2005, p. 69.
  • 15. 15 as perguntas que desperta.”11 . Somente através da análise das relações entre as produções cartográficas é que se podem desvendar as questões internas presentes na construção de um mapa. Ou seja, os símbolos estabelecidos podem apenas ser compreendidos dentro de um paralelismo com os exemplares produzidos anteriormente. Para realizar o estudo comparativo de mapas, Harley propõe uma divisão em três etapas. Cada uma delas vai justamente captar os níveis das relações cartográficas. A primeira tem o objetivo se aperceber das características topográficas lineares nos mapas, como de costas, rede de rios ou um sistema hidrográfico. Essa técnica, de acordo com Harley, é muito utilizada por estudiosos da área da cartografia.12 O segundo aspecto apontado refere-se ao estudo de nomes de lugares ou toponímia. Uma forma de construir genealogias e perfis de origem podendo ser útil para estabelecer a identificação temporal e autoral de mapas que antes se encontravam dispersos. E o terceiro método da cartografia comparativa, a cartobibliografia, é a que possuí a maior quantidade de publicações. Seu objetivo é reunir uma série de mapas impressos sobre a mesma superfície destinando-se ao estudo das técnicas de impressão aplicada aos processos que utilizam as placas de cobre, a litografia e outras formas de impressão de mapas. 13 Os métodos sugeridos por Harley são propostos para serem trabalhados com todo o tipo de fontes cartográficas. Isso inclui as produções realizadas desde os tempos remotos, até aqueles produzidos no século XX através da cartografia digital. Isso possibilita uma abertura enorme nas possibilidades de estudos. Através do método da cartografia comparativa, essa pesquisa procura estabelecer as características lineares nos mapas disponíveis para os cartógrafos estudados e como elas são, então, herdadas. Uma das especificidades deste recorte temporal, final do período denominado medieval e início da dita modernidade, são as características provindas das representações de origem religiosa ou mitológica clássica que não corresponderiam ao “real” topográfico, mas que acabavam figuradas nas representações cartográficas. Como exemplo, teve-se a localização em alguns mapas do paraíso terreno, de monstros marinhos, de cidades bíblicas entre outros. 1.1 - Os Mapas-Múndi Medievais 11 HARLEY, J. B., Op. Cit. 12 Ibid. 13 Ibid, p. 70 e 71.
  • 16. 16 Ao se analisar os mapas antigos é importante estar atento a considerações temporais importantes. Trabalhar com mapas anteriores ao Iluminismo exige uma série de cuidados por parte dos estudiosos, como nos chama a atenção Maria Fernanda Alegria. De acordo com a autora, os mapas do final da Idade Média e início do Renascimento14 não possuem nenhuma relação direta com os atuais. Ambos diferem em vários âmbitos: nas formas, no conteúdo, nas dimensões e na abundância de produções.15 Essa constatação é extremamente importante, pois a partir de visões positivistas não atentas à historicidade, produziram-se olhares reducionistas e evolucionistas nos estudos do período dito “renascentista”.16 Para evitar esses descuidos fez-se necessária uma análise do termo mapa-múndi. Ele foi utilizado ao longo dos séculos, porém seu significado correspondente se alterou com o passar do tempo. De acordo com Denis Woodward, a palavra latina mappamundi origina-se de mapa (toalha) e mundus (mundo) levando a entender que seu significado seria de representação gráfica de toda a Terra, como vêm sendo empregado atualmente. No entanto, na Idade Média, o termo foi utilizado com outro sentido. De acordo com Maria Fernanda Alegria, mapa-múndi foi usado também transmitindo a idéia de “pintura do mundo”, não correspondendo a uma representação que utilizaria as regras científicas da cartografia pós-Iluminismo. “A figuração poderia não contemplar toda a Terra, ou então abarcar a Terra numa perspectiva global, a Terra no Universo.” 17 Segundo a autora, hoje se conhecem cerca de mil e cem mapas-múndi medievais incluindo os do século XV. Aproximadamente novecentos encontram-se em pequenas dimensões espalhados em livros manuscritos. Aí se inclui casos de mapas de tamanho inferior a 4 cm como na representação em estilo T-O de Salústio feito no século XII. Os mapas-múndi presentes nesses livros possuem a mesma forma das letras encontradas nos textos escritos, o que confirma que na Idade Média produzir um mapa-múndi não era função específica dos cartógrafos. No caso dos exemplares soltos, eles podiam 14 Esse termo na verdade é inexato como afirma Delemeau, bem como Idade Média que serviram muito para criar grandes preconceitos históricos. Ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.19. 15 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir.). História da Expansão Portuguesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 27 16 Para mais detalhes sobre o início dos estudos cartográficos positivistas, no final do século XVIII e início do XIX, ver CATTANEO, Angelo. “L’Atlas del Visconte de Santarém: Uma storia culturale europea tra erudizione, orientalismo e colonialismo” In: GARCIA, João Carlos (coord.). A História da cartografia na obra do 2º Visconde de Santarém: exposição cartobibliográfica. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1957. 17 ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”,Op. Cit., p. 28. Essa discussão sobre o termo mapa-múndi encontra-se também expressa em RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”. In: Revista Tempo, Rio de Janeiro, nº14, pp. 11-26.
  • 17. 17 alcançar grandes dimensões, como cerca de 3,5 m no mapa de Ebstorf do século XIII. Além da dimensão, os objetivos dos mapas medievais também contrastam com os atuais. O rigor geométrico não fazia parte das representações cartográficas, ou seja, não havia necessariamente uma correspondência espacial do local figurado. O simbolismo nas representações gráficas, nas formas, tinha tanta ou mais importância do que a localização de fenômenos e suas relações no espaço. Nos mapas-múndi medievais há figurações, com funções alegóricas e abstratas, que se aliam às abundantes informações escritas. O simbolismo não é apenas expresso pela palavra, mas também por formas gráficas. Esses exemplos mostram como os mapas-múndi medievais tinham afinidades com as crônicas medievais, pois também registravam acontecimentos distantes no tempo através de elementos gráficos com uma função simbólica. A influência de fontes bíblicas e clássicas está presente, mas encontra-se também a padronização de convenções gráficas, tanto na forma principal, como em sua distribuição interna, além do padrão de cores para marcar especificidades: o mar Vermelho frequentemente representado com a cor vermelha; os outros oceanos e mares com o azul ou verde; os rios com o azul, ou o azul-esverdeado, o verde ou o cinzento; o relevo com o castanho ou verde, mais dificilmente o vermelho.18 Complementando os apontamentos de Alegria, Kimble considera os mapas medievais responsáveis por refletirem as ideias comuns da época, incluindo as teorias dos gregos, as mitologias pagãs e os sistemas de cosmografia cristã. Para ele os mapas não representavam o conhecimento geográfico da Idade Média, mas sim a concepção de mundo da época. Essa forma de expressão era tão importante que as imagens criavam muito mais eficazmente uma imediata compreensão do que a palavra escrita. Até as ideias geográficas dos estudantes medievais foram fortemente influenciadas por esses mapas. 19 Nos mapas da Idade Média ocorreria o que Kimble chama de “amor ao ornamental”. Os livros manuscritos que eles acompanham referiam-se à história e à cosmografia ou em outros casos eram feitos por encomenda, como o caso do atlas 18 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”,Op. Cit., p. 28. Consultar também RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”, Op. Cit, p.14. 19 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p.219. A constatação da influência dos autores clássicos na construção dos mapas medievais pode ser observada ainda em THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Chicago: The University of Chicago Press, 1996, p.42.
  • 18. 18 catalão de 1375 e o mapa-múndi Estense. Os mapas pequenos serviam como ornamento das capitulares de manuscritos com iluminuras. Outros mapas possuíam um caráter maior de obra de arte e não tanto para servirem de informação, pois representavam uma estrutura maleável na qual objetos de interesse popular, muito mais do que científico, poderiam ser desenhados. É como se ele fosse uma forma de expressar o sentido do maravilhoso e no mapa estivessem contidas todas as maravilhas provindas da literatura. Desta forma, um mapa-múndi simbólico do período medieval deveria ser visto como um espécie de romance ilustrado. Não se podendo negar o valor prático que buscavam fornecer, pois para além da mística, haveria uma imagem atualizada do mundo que busca compreendê-lo no todo. Como exemplo têm-se a procura de uma solução para o enigma do continente africano, que não era conhecido totalmente.20 . O caráter religioso sempre se fazia presente nos mapas.21 Alguns eram executados para mostrar a extensão da fé cristã sobre a Terra. Assim, esses mapas garantiriam primeiramente a proeminência dos aspectos bíblicos sobre os conhecimentos topográficos e, segundo, a sobrevivência de certas tradições na época em que o conhecimento recente estava influenciando enormemente pelas cartas marítimas gerando um encaminhamento em direção ao real topográfico. Como exemplo tem-se a persistência na representação geográfica do Paraíso Terreno nos mapas-múndi, mesmo após a importante influência das cartas marítimas. O destaque dado à Terra Santa era dado pela proporção de aproximadamente 1/3 do continente asiático, como mostrava o mapa dos Salmos.22 Para Kimble, os motivos para que os mapas-múndi fossem afastados da representação fiel da realidade geográfica seria de que as amarras da tradição (tanto clássica quanto eclesiástica) sobre a mentalidade medieval fazia com que os cartógrafos usassem símbolos esquemáticos e imaginativos. A tradição clássica era dada por meio de vários autores, entre eles Homero e Anaximandro com uma ideia de superfície terrestre plana sem projeções, um disco cercado pelo “rio oceano”. A influência clássica também se dava por criaturas da mitologia grega e romana popularizada por Hesíodo, Homero e Plínio e outros autores da Antiguidade. Essa influência encontrava-se também na nomenclatura dos mapas. Os lugares famosos do mundo antigo reviviam nos mapas-múndi. Tróia e Cartago rivalizavam em importância com Roma e Jerusalém. Nos 20 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p222. 21 Para mais informações sobre o caráter religioso presente nos mapas-múndi medievais ver BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Bauru, São Paulo: Edusc, 2005, p. 20 e 21. 22 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p.228.
  • 19. 19 mapas-múndi do período medieval não havia, portanto, uma preocupação com a topografia real. Isso foi encarado por estudiosos positivistas do século XIX como uma “visão errônea do mundo”. Podendo ser identificado através de um ditado proferido pelo 2º Visconde de Santarém - um importante estudioso de cartografia do século XIX considerado um dos fundadores dessa área do saber, e, o fundador do termo “cartografia23 - que dizia que os mapas medievais seriam a prole bárbara dos exemplares da Antiguidade. 24 1.2 – Os Mapas-Múndi Esquemáticos e Zonais Dentro de toda essa produção cartográfica anterior ao século XV no ocidente europeu grande parte encontrava-se dentro do estilo simbólico utilizando ou não de esquemas pré-determinados. Essa formas de produção ainda influenciavam toda a produção do Quinhentos e ainda influenciaram as produções posteriores. Existiram vários estudos buscando uma maneira de classificar esses tipos de representações cartográficas, aqui se adotou os esquemas classificatórios propostos por D. Woodward, que dividiu os mapas medievais em quatro grandes grupos.25 O primeiro grupo de mapas medievais seriam os mapas tripartidos esquemáticos. Esse grupo possui a maior quantidade de produções em relação aos outros até o século XV. Uma das suas origens encontrava-se no tipo esquemático proposto por Isidoro de Sevilha (c.560-636) - cujo original não sobreviveu – sendo um dos mais divulgados possuindo mais de seiscentos exemplares.26 Os cartógrafos da época confiavam na autoridade deste autor clássico que influiu na representação do Paraíso como dizia: “limitado por todos os lados por um muro alto de chamas... De maneira que o fogo chega até o céu.”27 Nesse esquema conhecido como “T-O” o oceano rodeava, como um grande “O” circular, os três continentes conhecidos, Europa, Ásia e África, que se 23 GARCIA, João Carlos. “Mapas e Atlas do Visconde de Santarém: A prioridade no descobrimento da África Ocidental” In: GARCIA, João Carlos (coord.). A História da cartografia na obra do 2º Visconde de Santarém: exposição cartobibliográfica. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1957, p.7. 24 Ver: KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Média. Op. Cit, p. 227.. 25 WOODWARD apud ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. 26 Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. 27 Citado por KIMBLE, G. H.T. op. cit., p. 225.
  • 20. 20 encontravam separados por duas linhas aquáticas referentes ao mar Mediterrâneo e os rios Don e Nilo, que possuiam o formato da letra “T”. 28 O objetivo desses mapas não era ser uma representação rigorosa da superfície do Planeta, mas corresponder a uma interpretação provinda das Sagradas Escrituras. O teor religioso, como mencionado, estava sempre presente, com o maior exemplo sendo a localização da cidade de Jerusalém29 na posição central. Isso envolvia a importância dessa cidade frequentemente dominada no século XIV. Essa centralidade era confirmada por inúmeras teorias como nas palavras de Ezequiel: “Eu a coloquei no meio das nações e dos países que estão em torno dela.” 30 Além de Jerusalém, as histórias do Velho Testamento eram uma constante nos mapas medievais, como a Arca de Noé, a punição da esposa de Lot, a destruição de Sodoma e Gomorra, a passagem pelo Egito e pelo Êxodo. Entretanto, a maior lenda referia-se as terras de Gog e Magog onde se acreditava que Alexandre, o Grande, teria feito uma barreira em torno do Mar do Norte. Desse lugar, o povo que o habitava marcharia “no final dos tempos” trazendo morte e destruição para toda a cristandade.31 Comprovando que a fronteira existente entre a realidade vivida e a aprendida com os autores clássicos foi indefinida até o século XVI, e mesmo posteriormente. Mostrando como os mapas-múndi medievais não tinham uma preocupação em representar apenas o tempo contemporâneo, mas sim uma confluência de fatos e passagens consagradas de épocas distintas. 32 O mapa dos Salmos é um exemplo desse grupo de mapas. Nele aparece claramente a influência religiosa, com o Cristo representado no alto acompanhado por dois anjos.33 O “T” referente ao mediterrâneo, o Don e o Nilo encontra-se mais ao sul, e ainda existe o destaque feito ao Mar Vermelho mais ao nordeste. No canto direito 28 Para mais informações sobre os mapas em estilo T.O. ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society.Op. Cit, p.42; RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globo Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520. Lisboa: Gradiva, 1980, p. 15 e 16; MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: ELO, 1994; CRONE, G. R. Historia de los mapas. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1956; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. op. Cit. 29 Para mais detalhes sobre a posição da cidade de Jerusalém na Idade Média ver: DUBY, Georges. Europa em la Edad Media. Barcelona: Paidos, (?), p.15. 30 Citado por KIMBLE, G. H.T. op. cit., p. 227. 31 Ibid,.p..227. 32 Ver RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “O sentido da história: tempo e espaço na cartografia medieval (séculos XII-XIII)”, Op. Cit, p.20 e 21. 33 Essa posição de Cristo no mapa é sintomático da relação do religioso com o espaço físico. No século XIII estava em alta um pensamento atribuído a S. Dinis que resumiria toda a mística do pensamento cristão da época. De acordo com Duby: “Deus é luz. Desta luz inicial, incriada e criadora, participa cada criatura. Cada criatura recebe e transmite a iluminação divina segundo sua capacidade, isto é, segundo o nível em que o pensamento de Deus hierarquicamente a situou.” Trecho retirado de DUBY, Georges. O Tempo das Catedrais. Arte e a Sociedade (980-1420). São Paulo: Editorial Estampa, 1978, p. 105.
  • 21. 21 encontram-se figuras humanas deformadas características das representações iconográficas da Idade Média. Figura 1 - Mapa do Salmo (século XIII). No segundo grupo encontram-se os mapas tripartidos não esquemáticos. Eles mantinham os três continentes habitados dos mapas T-O esquemáticos, mas eram desenhados com menos rigidez. Este grupo incluiu vários tipos, mas os mais conhecidos eram os que se baseavam em Paulo Orosio34 e os que receberam a sua influência e de Isidoro de Sevilha. Um exemplo deste grupo é o mapa de Hereford (c.1290). Nele Jerusalém não se encontrava no centro, e o Paraíso passou a ser localizado no Extremo Oriente. Motivo ocorrido após as viagens de Odorico de Pordenone e Marco Polo que demonstraram estar ele localizado no continente asiático. A representação desse local sagrado sobreviveu após a Idade Média aparecendo em representações cartográficas até o século XVII. Sendo um importante exemplo da inclusão de locais bíblicos dentro de uma 34 Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29.
  • 22. 22 representação plana da Terra, ou seja, os locais espirituais provindos da leitura da Bíblia eram figurados sem que isso causasse nenhum tipo de “erro” ou delito cartográfico. Muito pelo contrário, era parte das tradições em voga no período. 35 Figura 2 – Mapa de Hereford c.1280 Outra espécie de mapas são os mapas zonais. Eles se baseavam no mapa de Macróbio (c.395-436) que não se filiava nos ensinamentos da Igreja cristã, mas na filosofia tradicional greco-romana. Seu esquema foi retirado de um comentário de Macróbio a um estudo de Cícero (51 a.C.) Commentarius ex Cieronis in Somnium Scipionis, datado de c. 430 d. C. Nessa dissertação, Macróbio expôs as ideias existentes sobre o sistema-mundo, ilustrando as suas observações com um diagrama. O autor retomou o esquema quadripartidário do mundo de Crates de Mallos (c.168 a.C.) e afirmava que o Oceano circundava o globo correndo em duas direções contrárias, partindo de um rio oceano principal, situado na zona tórrida, Alveus Oceani, que corria por debaixo da superfície do mar. A leste e a oeste desta zona equatorial central o Oceano dividia-se em dois braços, que fluíam para norte e para o sul separando as regiões austrais das setentrionais. Das duas zonas temperadas, só a setentrional seria habitada e a zona austral seria desconhecida, desconhecendo qual seria a espécie de 35 KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. op. cit., p.225. Ver ainda THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society.Op. Cit, p.45.
  • 23. 23 homens que a habitaria, chamados de antípodas36 . Esse falta de conhecimento seria devido a barreira representada pela zona tórrida, que impediria a comunicação com eles. Para além das duas zonas temperadas e da zona tórrida central, marcadas pelos paralelos, haveria ainda duas zonas polares. Hoje se conhece mais de uma centena de manuscritos desta obra anteriores a 1500.37 Essa concepção planetária zonal ainda mostrava-se presente no início do século XVI em Duarte Pacheco Pereira, na sua obra De Situs Orbi, como testemunha o estrato a seguir: “e em havendo mais matéria afirmaram que a terra neste meio é posta com o centro e de toda a parte é cingida pelo mar e ela mesma em duas partes, que hemisférios são chamados, desde oriente dividida até ocidente volvendo em oriente por cinco zonas é repartida.” 38 Figura 3 – A concepção de mundo de Macróbio, c. 1485. 36 Vários autores defendiam a existência dos antípodas incluindo Crates de Mallos, e, posteriormente, Pomponius Mela e Macróbio, herdeiros da tradição helênica. Ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit., p.50. 37 Ver: ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p. 29. e RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit, p. 15 e 16. 38 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 1991, p. 435.
  • 24. 24 O último grupo de mapas é dos mapas-múndi quadripartidários. Eles eram baseados na produção do Beato De Liébana (730-798), um monge beneditino que produziu seu esquema cartográfico de representação da Terra quando vivia no Mosteiro de Santo Toribio de Liébana, perto de Santander. O esquema encontrava-se presente em sua obra Commentaria in Apocalipsin, de 776, onde o Beato de Liébana parece ter elaborado dois tipos de mapas, de que o mais conhecido apresentava forma oval. A novidade é a figuração de um quarto continente, que o monge considerava desabitado pelo excessivo calor. Uma cópia do Apocalipsin, datada de 1189, esteve no mosteiro de Lorvão e guarda-se agora na Torre do Tombo, em Lisboa. Neste exemplar reproduziu-se uma parte do mapa-múndi oval do Beato em que se localizava a leste o Paraíso Terreno numa vinheta quadrada, cordilheiras com forma dentada, rios bem assinalados e peixes. Em alguns manuscritos nasciam no Paraíso quatro rios: Nilo, Indo, Tigre e Eufrates. Este mapa pode ser considerado uma reinterpretação do esquema proposto por Macróbio.39 Esses grupos de mapas simbólicos do período medieval mostravam tentativas para uma compreensão cosmográfica universal do mundo religioso em que se vivia, assim, pouco interessava aos cosmógrafos as representações de caráter realista. Preocupavam- se muito mais em incluir as fontes tradicionais da Roma antiga, como Plínio e o Itinerário de Antonio Pio, com Macróbio e Isidoro, do que colocar somente as realidades topográficas. Nesse momento buscou-se perceber de que forma aparecem nas fontes dessa pesquisa as características das produções cartográficas simbólicas medievais; como esses mapas do século XV e XVI conservavam as características herdadas por séculos no ocidente europeu. No mapa de Fra Mauro, produzido no ano 1459, existem inúmeras referências identificáveis diretamente. Primeiramente, na parte exterior ao mapa aparecem várias características herdadas dos mapas-múndi medievais. No canto superior esquerdo encontra-se descrita a configuração cosmográfica universal dividida segundo as esferas que se acreditavam existir na época, fruto de uma combinação de ideias de Aristóteles e de Ptolomeu. Partindo do centro para o exterior encontram-se a Terra, depois o Fogo, em seguida a Lua, Mercúrio, Vênus, e o Sol. Depois ainda estão presentes outros planetas e por fim há o Scielo. Esse plano universal descendente dos clássicos 39 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Lisboa: Caminho, 1994, p. 205.
  • 25. 25 encontrava uma ligação com o ideal geocêntrico típico do pensamento cristão. A hierarquização celeste em Fra Mauro é uma herança da solução medieval de conciliar a concepção bíblica de uma terra plana e a concepção grega de terra esférica. Assim, ao colocar a representação esférica no exterior do mapa, o cartógrafo se remete a ambas as tradições, sem negar nenhuma delas. 40 Figura 4 – Cosmografia universal em Fra Mauro No canto inferior esquerdo o Paraíso Terreno é figurado encontrando-se protegido com muros altos e um rio que corre em volta. No seu interior há um personagem idoso associando a imagem ideal de Deus juntamente a dois homens nus, certamente Adão e Eva. É uma referência direta à passagem bíblica da expulsão do Paraíso. 40 Um estudo sobre esse importante embate encontra-se em RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit.
  • 26. 26 Figura 5 – detalhe do mapa-múndi de Fra Mauro Voltando-se ao interior do mapa, a constata-se inicialmente que ele guarda a orientação da Terra com a Europa no sul e a África ao norte, uma herança atribuída aos muçulmanos. Existe também uma divisão em quatro pontos cardeais principais e quatro secundários (norte, nordeste, leste, sudeste, sul, sudoeste, oeste e noroeste). O rigor geométrico é usado minimamente para a localização de cada um desses pontos, indicados com uma estrela amarela envolta em um círculo de mesma cor (figura 7). Não existindo, assim, nenhuma linha traçada, apenas essas localizações. Na convergência desses pontos encontra-se a posição central do mapa, entretanto, a cidade de Jerusalém que é marcada com a estrela referente a posição central (figura 6). Fra Mauro encontra-se, dessa forma, entre o rigor geométrico e a primazia do religioso, uma forte característica do homem no século XV. O autor ainda se justificativa pela posição de Jerusalém que pode ser lida na legenda próxima a essa cidade: “Na verdade Jerusalém é latitudinalmente o centro do mundo habitado, se bem [que] longitudinalmente está um pouco a oeste; mas como a parte ocidental está mais densamente
  • 27. 27 povoada a causa da Europa, Jerusalém está também longitudinalmente no centro, si se olha no espaço vazio sem a densidade populacional.”41 Figura 6 e 7 - Detalhe do mapa-múndi de Fra Mauro (esq.) e a diferença do ponto central e o referido por Fra Mauro em Jerusalém (dir.). Já no mapa de Henricus Martellus (c. 1489), e no mapa de Cantino (1502) as referências aos mapas-múndi medievais se remetem à ornamentação utilizada para a construção dos mesmos, incluindo desde a utilização dos padrões de cores, até ao uso excessivo de elementos baseados não no conhecimento empírico, mas em suposições teóricas. Em Henricus Martellus a ornamentação simbólica pode ser encontrada no preenchimento que o autor realiza do interior dos continentes desconhecidos. No continente asiático existe uma excessiva representação de cadeias montanhosas e rios pelo interior. O contorno asiático provém das informações de autores como Ptolomeu e viajantes como Marco Pólo, mas a complementação fantasiosa realizada pelo autor - a hidrografia, cadeia montanhosa, etc - remete à tradição dos mapas simbólicos medievais. Nos locais onde o conhecimento prático não chegou, a complementação cartográfica se deu por um preenchimento pela suposição. A obra de Martellus apesar de apresentar traços do estilo simbólico cartográfico liga-se mais fortemente a uma outra tradição resgatada no século XV, abordada a seguir, a tradição ptolomaica. O mapa de Cantino também traz elementos da tradição simbólica dos exemplares medievais. Assim como Fra Mauro, a cidade de Jerusalém ganha destaque com a representação de um castelo imenso remetendo a importância dessa localidade para a 41 Citado por CRONE, G. R. Historia de los Mapas. México-Buenos Aires: Foundo de Cultura Econômica, 1956. p. 60 e 61.
  • 28. 28 cristandade. Muitas legendas principais continuam a serem utilizadas como o caso do mar Vermelho representado na cor vermelha, além da ornamentação com símbolos sendo constantemente utilizada para o preenchimento dos espaços desconhecidos. Encontram-se figurados grandes castelos, bandeiras com a heráldica dos países europeus, as araras do novo mundo. Portanto, mesmo com uma notável diminuição de símbolos, o mapa não se afasta dessas representações porque ainda existem figurações baseadas em animais exóticos ou importância bíblica. Comprovada por uma das mais evidentes representações simbólicas no mapa, a “Serra Leoa”, aparecendo justamente no formato de uma leoa, e a fortaleza de São Jorge da Mina (figura 9). Figura 8 e 9 – Parte ocidental do mapa de Cantino (esq.) e detalhe de Serra Leoa em Cantino (dir.) Juan de La Cosa em seu mapa de 1500, conhecido como o primeiro mapa a figurar o continente americano, igualmente encontra-se ligado às influências simbólicas. A primeira delas refere-se à orientação das terras no mapa, com o norte sendo ocupado pelas terras recém descobertas. Filiando-se, assim, à tradição dos mapas-múndi medievais por não representar ainda a convenção de orientação espacial que figurava a Europa ao norte que lentamente iria se impor.
  • 29. 29 Figura 10 – O Mapa de Juan de La Cosa O componente religioso encontra-se muito mais fortemente figurado que nos exemplares analisados anteriormente. No extremo norte há a presença de são Cristóvão, símbolo cristão (associado ao próprio Cristóvão Colombo) que seria responsável por guiar os europeus para o Novo Mundo espalhando a fé às populações autóctones.
  • 30. 30 Estão incluídas também passagens bíblicas como indica a caracterização dos três reis magos segurando em suas mãos os presentes a Jesus, localizados na península arábica. Figura 11 – Detalhe da península arábica com os três reis magos em Juan de La Cosa Ainda em La Cosa existe a representação do continente americano de uma forma enigmática, algo que não acontece em Cantino. O espanhol preenche de forma mais livre o novo continente fazendo suposições acerca de seus contornos costeiros e interioranos, prática comum nos mapas-múndi medievais. No mapa de Diogo Ribeiro o simbolismo também está expresso pela presença de animais, homens, árvores, castelos, seres marinhos e inúmeros outros elementos. O componente religioso ainda é evidenciado na região da Judéia, onde é figurada a passagem da morte de Jesus Cristo crucificado.
  • 31. 31 Figura 12 – Detalhe da Judéia em Diogo Ribeiro (1529) E, finalmente, no planisfério de André Homem o simbólico aparece menos diretamente. Ainda existem os animais exóticos inseridos nos continentes, mas os oceanos são os locais onde mais se concentra a representação fantástica, com a presença de seres marinhos. Essa postura diferente mostra a adoção de uma nova postura nos continentes onde a estratégia de preencher os espaços vazios não é com figuras, mas com inscrições grandes ou opta-se pelo não preenchimento dos espaços. Porém, a hidrografia em algumas partes, como do Amazonas e Nilo, é ainda fantasiosa. Figura 13 e 14 – Detalhe da cruz no mapa de André Homem e a hidrografia do rio Amazonas 1.3 – A Redescoberta de Ptolomeu Ao se estudar os mapas do século XV por vezes são utilizadas ideias anacrônicas, pois os mapas desse período diferem em muitos aspectos aos atuais. Por muito tempo os exemplares cartográficos dos séculos XIV, XV e XVI foram estudados enquanto parte
  • 32. 32 de um caminho evolutivo, e portanto transitório, na história da representação geográfica do mundo. Porém, essa não era a realidade do período, de acordo com Marica Milanese, que contesta a noção de “transição” preferindo em seu lugar a denominação “síntese”. Pois, esses mapas confluíram experiências culturais e técnicas diversas, não consistindo em uma “transição”, termo esse que gera uma compreensão de um sentido único que não existiu na história da cartografia. Assim, muitos mapas ainda eram produzidos segundo as formas tradicionais e nem todos necessariamente possuíam novidades. Por conseguinte, as produções cartográficas não tinham um processo linear. 42 Os mapas ao longo do século XV sofreram modificações iniciadas na segunda metade do século XIV, passando a ser cada vez mais representados independentemente, diferindo dos anteriores que em sua maioria serviam como ilustração para livros. Juntamente a isso, verificava-se a formação de cartógrafos profissionais refletindo diretamente a passagem de representações simbólicas para descritivas. Outra mudança importante provinha da mudança de uma liberdade de desenho para a restrição imposta pela imprensa que será abordada no segundo capítulo. Aliado a essas inovações, a cartografia passou a ser influenciada pela redescoberta de um importante autor clássico, Ptolomeu. Implicando em toda uma reavaliação das concepções de mundo do período por uma parte dos europeus. Esse Ptolomeu redescoberto no século XV foi Cláudio Ptolomeu nascido em Ptolomaida de Tabaida (c.100 d.C.). Foi um grande matemático, astrônomo e geógrafo grego que viveu em Alexandria sendo considerado o mais célebre astrônomo da Antiguidade.43 Entre seus escritos destaca-se a obra Grande sintaxe matemática (140 d.C.), também chamada de Almagesto pelos árabes, que consistia em uma compilação dos conhecimentos astronômicos de seus antecessores. O autor desenvolveu nessa obra seu sistema geocêntrico, que dominou a astronomia até o século XVI44 . Outra obra sua considerada célebre foi a Geografia45 , um grande marco que contribuiu para mudar as concepções cosmográficas de ordem religiosa. Por outro lado, Ptolomeu interessou-se 42 MILANESI, Marica apud ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. cit., p.31. 43 Suas obras foram devedoras de outro sábio da Antiguidade, Hiparco. 44 Até o aparecimento da obra Das revoluções dos mundos celestes de Nicolau Copérnico (1543) que contestava Ptolomeu. Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, pp.144-147. 45 Os escolásticos preferiam o termo Cosmografia ao invés de Geografia. Ver EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.16.
  • 33. 33 muito pela astrologia e, em sua Sintaxe tetrabiblos, tentou demonstrar a influência dos astros sobre os fenômenos terrestres além de possuir obras de física.46 O retorno dessas obras ao conhecimento ocidental foi graças ao intermédio dos árabes - exímios conhecedores de Ptolomeu destacando-se Al-Idrisi47 no século XI – que traduziram para sua língua a obra do alexandrino. A Geografia, em particular, influenciou os mapas-múndi do século XV e XVI, reaparecendo no Ocidente pela tradução de Manuel Chrysoloras e Jacobo Angiolo (1410). Ganhou a primeira impressão no ano de 1475 na cidade de Vicência sem os mapas que possuía. Após essa edição seguiram-se outras: Bolonha em 1477 com os mapas; Roma, 1478; Florença48 , 1482; Ulm, 1482 e 1486; Roma, 1490; totalizando seis edições antes de 1500. O que reflete a dimensão alcançada por sua obra na Europa.49 Muito se contesta sobre a autoria da obra admitindo-se que somente as idéias fundamentais seriam do próprio Ptolomeu. Pois, o texto que a acompanha é creditado a um sábio bizantino, que o redigiu provavelmente entre o século X e XI. De posse desse manuscrito, um monge grego, Máximo Planudes, teria desenhado, por volta de 1300, os vinte e seis mapas presentes na obra.50 As concepções do alexandrino apresentadas romperam com várias ideias presentes nos mapas-múndi anteriores a sua influência. Primeiramente referente a localidade central, que ao invés de Jerusalém estava a cidade italiana de Siena, posição confirmada porque durante o solstício de Verão, nessa cidade, o Sol iluminaria o fundo de um poço. Segundo, na nova representação a ecumene(conjunto das terras conhecidamente habitadas) formava um todo, não sendo dividida em três continentes como a prática anterior além da disposição geográfica do mundo estar em forma “esfericizada” e não discóide. Isso é tributado aos sistemas de projeção ptolomáicos que representavam numa superfície plana a esfericidade terrestre. Além disso, pelos cálculos do autor a parte conhecida do mundo ocuparia apenas a quarta parte do globo terrestre. 46 Ver CRONE, G. R. Historia de Los Mapas. Op. Cit. p. 76. 47 Al-Idrisi realizou seu mapa a pedido do rei Roger II, cristão da Sicília. Ver: BARROS, Nilson Crocia. “Ibn Kaldun, a dinâmica dos assentamentos humanos e as funções urbanas no islã histórico”. In: Revista de Geografia da UFC, ano 4, nº8, 2005,p.9. 48 Sobre a importância dessa cidade na época do Renascimento ver: BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Universidade de Brasília, (?), p. 40 e 41 49 Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” Op. Cit, p.16. 50 Ver BAGROW, L. “The Origino f Ptolomy’s Geographia” In: Geografiska Annaler Appud: RANDLES, W. G. L. Da Terra Plana ao Globi Terrestre: Uma rápida mutação epistemológica 1480-1520, Op. Cit, p. 27 e 28.
  • 34. 34 Segundo Bárbara mundy a interação proposta pelo autor seria de dois sistemas: a corografia (relacionado a uma parte específica da Terra) e a cosmografia (relacionado a uma visão do universal) constituiria a sua “geografia”51 . Eles seriam projetados não por meios de casuística, mas em termos matemáticos. Com isso, refutava-se o elemento não provindo da “razão” matemática e física para a organização do espaço. Outro princípio fundamental em Ptolomeu refere-se aos mares, que não possuíam comunicação entre si e se estendiam à superfície da Terra como lagos. Isso contrariava a tradição homérica e bíblico-aristotélica, fundamentadas na concepção de uma terra dominada em sua maior parte pela água. Ter-se-ia, portanto, o inverso, com a terra dominando a maior parte da esfera, e assim, para lá do mundo conhecido haveria uma “Terra Incógnita” e não um mar desconhecido, como defendido pela crença anterior. A partir do último quartel do século XV a obra de Ptolomeu tornava-se conhecida por toda a Europa, inclusive em Espanha.52 Além de Ptolomeu o século XV também obteve informações sobre o continente asiático provinda de relatos de viajantes europeus53 . O mais famoso deles, Marco Pólo, tinha viajado desde as terras da costa do mar Negro até às do mar da China, entre 1240 e 1350. Nessa época, os Khans mongóis asseguravam a sua paz pela Ásia Central. Segundo C. Boxer esses relatos de viajantes chegaram a ser fonte para a confecção de mapas-múndi, mas as suas informações não podem ser tomadas somente como verdadeiras porque contavam com maravilhas e eram fragmentárias. Assim sendo, para o autor elas não contribuíram efetivamente com os conhecimentos geográficos do período. 54 Segundo Denis Cosgrove, a redescoberta do manual geográfico de Ptolomeu seria a grande inovação do Renascimento. Esse texto para humanistas, mercadores, e artistas que leram, transcreveram e ilustraram fizeram com que fosse possível uma nova 51 MUNDY, Bárbara E. The mapping of New Spain indigenous cartography and the maps of the relaciones geográficas. London: The University of Chicago Press, 1996, p. 3 e 5. Ver também: CONTA, Gioia. “El estúdio de la Geografia Histórica” In: Semana de Estúdios Romanos. Valaparaíso: Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, vol. 22, 2004, pp.19-29. 52 A influência de Ptolomeu não se restringiu a cartografia, até mesmo Leonardo Da Vinci utilizou as idéias do sábio alexandrino. Ele teria baseado o seu homem vitruviano na Geografia de Ptolomeu porque também dividia o homem em “minor mondo” sendo o homem o microcosmo dentro do macrocosmo. A obra clássica o ajudou a organizar um sistema para operar a anatomia da mesma forma com que Ptolomeu desenvolveu para representar o mundo. Cf. EDGERTON, Samuel Y. Jr. “From mental matrix to mappamundi to Christian Empire: The Heritage of Ptolomaic Cartography in the Renaissance.” In: WOODWARD, David (edit). Art and Cartography. Six Historical Essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p.16. 53 Entre eles destacam-se Nicolo di Conti e Pêro da Covilhã. Para mais detalhes sobre eles ver: DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p.50 54 Ver BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1972, p.40.
  • 35. 35 visualização do mundo. O globo terrestre foi convertido em um rede imaginária de coordenadas de latitude e longitude trazendo uma nova representação.55 No momento em que os cartógrafos do século XV e XVI produziram seus mapas- múndi eles estavam em contato com as ideias de Ptolomeu e dos viajantes europeus. A principal influencia identificada nas fontes dessa monografia corresponde a inovação do alexandrino em fazer uma representação terrestre esfericizada e não discóide. Apenas Fra Mauro conservou a forma discóide56 , os outros já trouxeram essa solução para a representação em superfície plana da Terra. Além disso, todo o contorno oriental, as costas do Oceano Índico na África e Ásia, presentes nas obras de Fra Mauro (1459), Henricus Martellus (1489) e Juan de La Cosa (1500) são, de alguma maneira, tributários a Ptolomeu. Em menor grau situam-se Cantino (1500), Diogo Ribeiro (1529) e André Homem (1559). A influência do autor alexandrino no contorno asiático ocorre nitidamente na representação da Índia57 , onde não há menção desse espaço enquanto península além da representação desproporcional da ilha do Ceilão, dez vezes maior do que o “real”, logo abaixo da Índia. No sudoeste asiático aparecem ainda as penínsulas resultantes da representação proposta por Ptolomeu, principalmente a Catigara. 55 COSGROVE, Denis. “Renaissance mapping – Mapping New Worlds Culture and Cartography” In: Sixteenth-Century Venice, Imago Mundi, XLIV, pp. 65-89, p.6. 56 Essa posição de Fra Mauro não pode ser tida como uma posição retrógrada porque segundo Cosgrove na Renascença diversos sistemas de representação (plano, perspectiva) e diversos modos de descrição (verbal, visual, cartográfica e histórica, matemática e literal) coexistiram. Ibid, p.7. 57 Lembrando que o termo Índia provindo também da redescoberta de Ptolomeu passou a não ser apenas a região do que seria hoje o país asiático, mas sim toda a borda do Oceano Índico que cobre as costas africanas e asiáticas. Assim Índia poderia ser as terras da Etiópia. Cf. THOMAZ, Fuis F. De Ceuta a Timor, Op. Cit, 171.
  • 36. 36 Figura 16 – Detalhe do Índico em Fra Mauro (1459) Figura 17 – Detalhe do Índico em Henricus Martellus (1489)
  • 37. 37 Figura 18 – Detalhe do Índico em Juan de La Cosa (1500) Figura 19 – Detalhe do Oceano Índico em Juan de La Cosa (1500) com o destaque do contorno afro-asiático.
  • 38. 38 Outra representação atribuída ao alexandrino diz respeito ao contorno da península arábica podendo perceber suas contribuições nos mapas anteriores.58 Figuras 20, 21 e 22 – Representação da península arábica em Cantino, Diogo Ribeiro e André Homem. Entretanto, Fra-Mauro, Henrique Martellus e Juan De La Cosa apesar da ligação ptolomaica afastam-se dela em relação a configuração do Oceano Indico, aparecendo como um mar aberto, e não como um lago interior. Uma das legendas presentes em Fra Mauro é sintomática desse distanciamento que para o monge não caracterizariam um rompimento: “Não creio ir contra Ptolomeu si não sigo sua Cosmografia, porque de observar seus meridianos paralelos o grau havia tido, no tocante das partes conhecidas desta circunferência, que excluir muitas províncias que Ptolomeu não menciona. Principalmente na latitude, o mar do sul a norte, há muita “terra incógnita” porque em seu tempo era desconhecida”.59 Porém, mesmo colocando o Índico enquanto mar aberto, Fra Mauro ainda o mantém com um ar ptolomáico, pois, na borda sul, sudeste e leste existem várias ilhas minúsculas com uma distância mínima entre si (ver figura 20). No caso de Martellus, que também traz essa inovação, o sul do continente africano também se aproxima fortemente da península ptolomaica do extremo oriente (ver figura 21). Só em La Cosa que a aproximação do sul africano com o sudoeste asiático não aparece. Outra característica que se destaca nas representações produzidas segundo Ptolomeu é a presença áfrica neles do Monte da Lua. Esse local foi associado com as nascentes do rio Nilo, já que no período não havia conhecimento direto do interior do continente africano e também asiático. Isso indicava que o conhecimento recente através das explorações náuticas não representou o mesmo para o interior dos continentes. Assim, vários cartógrafos se influenciaram por representar o interior como Ptolomeu indicava. Em Fra Mauro a localização do Monte da Lua não é claro, mas em 59 CRONE, G. R. Historia de los mapas. Op. Cit., p.61.
  • 39. 39 Henricus Martellus, o autor que mais se filia na tradição do alexandrino, o monte aparece ocupando um espaço amplo na metade do continente africano. Figura 23 – Detalhe do Monte da Lua em Henricus Martellus (1489) Já em Juan de La Cosa o interior africano é muito enigmático. Nele está a presença de reis cobrindo grande parte do interior remetendo ao uso constante da ornamentação para preencher os espaços desconhecidos. Uma das características provinda do simbolismo medieval já referido anteriormente. No entanto, sem estar claro a posição do monte fantástico, a nascente do Nilo encontra-se com outros dois rios. Eles correm em direção oposta, um deles ao leste e outro ao oeste. Sem a representação clara do monte pode-se dizer que a estratégia do cartógrafo de colocar os três rios nascendo no mesmo lugar é baseada na hidrografia ptolomaica. Pois, mostra a nascente misteriosa do Nilo, desconhecida na época, da mesma forma que a tradição do autor clássico fizera.
  • 40. 40 Figura 24 – Detalhe do interior do continente africano com a nascente do rio Nilo em Juan De La Cosa (1500) O mapa de Cantino e de Diogo Ribeiro são exemplos da cartografia dita renascentista do século XVI que abandonariam o simbólico em prol de uma representação mais “fiel” ligada a tradição da experiência náutica das grandes navegações. Entretanto, no interior também é desconhecido levando a representação do Monte da Lua no sul do continente africano, em ambos ocupando uma grande dimensão, todo o espaço entre a costa leste e oeste. Figura 25 – Detalhe do Monte da Lua em Cantino (1502)
  • 41. 41 Figura 26 – Monte Lua em Diogo Ribeiro (1529) E em Cantino ainda aparece representada no extremo oriente, após a Índia, a península de Catigara tributada ao autor clássico. No caso de André Homem o Monte da Lua não aparece representado mas a hidrografia do interior é ainda ptolomaica. Da mesma forma que La Cosa, a localização da nascente é na mesma região com a contribuição de dois rios que provém do Atlântico e do Índico. Figura 27 – Detalhe do interior africano em André Homem (1559)
  • 42. 42 1.4 – As Cartas-Portulano Mediterrânicas Uma outra forma de representação da Terra, diferente dos mapas-múndi simbólicos medievais surgidos na Idade Média, foram as cartas-portulano (ou portulanos). Segundo Luís de Albuquerque, essa expressão serve para designar a nova espécie de cartas surgidas nos séculos XIV e XV. No entanto, as referências a elas eram somente como “cartas” ou, mais vulgarmente, “cartas náuticas” ou “cartas de navegar”. Todavia, a designação hoje aplicada justifica-se plenamente, porque o tipo de representação das áreas marítimas nessas cartas relacionava-se diretamente com os portulanos, relatórios com um roteiro náutico. Com isso, a carta-portulano tornou-se logo um elemento complementar desses textos e os navegadores não a dispensavam. A inovação propiciada por elas foi de uma a representação mais próxima do real na bacia mediterrânica, nas costas européias do atlântico chegando até o norte da França, nas ilhas Britânicas e também no Mar Negro. Foi um recurso surgido da prática em alto mar para auxiliar a orientação. 60 Luís de Albuquerque defende, pelo fato de não existir qualquer informação a respeito das cartas náuticas antes do século XIII, que a origem dessas cartas poderia ter sido herdada de modelos clássicos, de autores como Marino de Tiro, hipoteticamente, e Ptolomeu. Que basearam a sua cartografia em determinados sistemas de projeção, ou seja, tiveram o cuidado de basear suas cartas em alicerces científicos. No entanto, não existe nenhuma prova suficiente que comprovaria a relação entre esses modelos da Antiguidade e as cartas-portulano. “Em suma: parece não ser sustentável que exista na carta-portulano qualquer ideia prévia de uma representação cartográfica de raiz teórica, a despeito dos argumentos que alguns adiantaram como prova.”61 Numa outra vertente de estudos sobre as cartas-portulano, Norman J. W. Thrower acredita que o uso sistemático das agulhas magnéticas trazidas da China ao Ocidente pelos árabes ou através da Rota da Seda possibilitou esse mapeamento totalmente novo. A representação muito mais fiel da Terra foi possibilitada pela agulha magnética que rapidamente se espalhou pelo Mediterrâneo. Assim, através do sucesso desse novo elemento para a representação topográfica do real originaram-se as cartas-portulano.62 60 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op. Cit., p.210. 61 Ibid, p.210. 62 Ver THROWER, Norman J.W. Maps &Civilization: cartography in culture and society. Op. Cit, p.51.
  • 43. 43 Por serem então fruto da experiência náutica, essas formas cartográficas apresentavam uma visão diferente sobre o território. Enquanto os mapas-múndi mostravam uma imagem global e simbólica, as cartas-portulano se restringiam à região específica do Mediterrâneo traçando com uma grande precisão os territórios ao seu redor, incluindo o perfil mediterrânico e o Mar Negro.63 De uma forma mais geral, enquanto os mapas-múndi seguiam uma tradição erudita de cartografia terrestre, as cartas-portulano provinham da experiência dos navegadores do Mediterrâneo para fins decorrentes da prática e para serem utilizados para ela.64 Atualmente são conhecidas aproximadamente cento e oitenta cartas e atlas dos séculos XIV e XV, que correspondem a uma pequena parte da produção do período, pois elas tinham uma facilidade enorme de deterioração devido às condições de manuseio. A maior parte foi realizada em núcleos mediterrânicos, os dois principais foram as ilhas Baleares e as cidades italianas de Gênova e Veneza. Cada um desses centros foi criando suas características próprias ao longo dos séculos, consolidando seus estilos já no século XIV. Assim, constitui-se um “estilo italiano” marcado pelo traçado de uma franja litoral sem ornamentação e um “estilo catalão” que além do litoral representava o interior dos continentes. Todavia, vários são os exemplos de que dentro dessas escolas houve uma versatilidade como mostrado no estilo catalão dos irmãos Pizigani (1367) e o estilo italiano de Guillhermo Soler (1385).65 Por trazer uma nova forma de representação cartográfica, as cartas-portulano não se encontravam desconexas do pensamento medieval. Um exemplo foi a busca catalã por representar o interior continental divergindo da função náutica, entrando assim, no modelo de produção dos mapas-múndi medievais. 66 Segundo Kimble, os catalães faziam muitas especulações sobre os territórios inexplorados da Terra. Como testemunha o Atlas Catalão, onde os “montes da lua” provindo da tradição ptolomáica foram associados em determinados momentos os montes da antiga Guiné Francesa e os seus cinco rios afluentes. Com essa especulação estava a “harmonização” de fatos reais com a tradição, do século XIV em diante. Eram 63 De acordo com Cosgrove o período dito renascentista passaria de um mapeamento de visualização do texto escrito como feito com as ilustrações cartográficas dos autores tradicionais e passaria a contar com aspectos que envolvia a matemática e a filosofia. Cf. COSGROVE, Denis. “Renaissance Mapping – Mapping New Worlds Culture and Cartography”. Op. Cit, p. 6. 64 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. In: BETHENCOURT, F. & CLAUDHURI, K(dir). Historia da Expansao Portuuesa. Vol I. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p.34. 65 Ibid, p.36. 66 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op. Cit, p.210.
  • 44. 44 problemas surgidos em conciliar as novas descobertas com os mitos. Como pode ser comprovado pelo Rio do Ouro sendo empurrado para baixo nas representações cartográficas até a direção do Senegal/Niger, pois a medida que prosseguiam as descobertas portuguesas e o rio mítico não era encontrado, os cartógrafos o representavam cada vez mais abaixo. Até o momento em que ele foi associado aos rios Senegal e Niger.67 Figura 28 – O Atlas Catalão de Carlos V, 1375. Contudo, apesar das cartas-portulano compartilharem algum simbolismo do homem medieval em relação ao universo culminando na representação de locais ou elementos fantasiosos existia o traçado detalhado do perfil costeiro remetendo fortemente à realidade topográfica, sendo esse o objetivo principal deste gênero de produções cartográficas. 68 Segundo Luís de Albuquerque, o que caracterizaria então uma carta-portulano seria o conjunto de linhas de rumo emergidas de vários pontos do 67 Ver DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Op. Cit, p.166; KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. 2.ed. Londrina (PR): Eduel, São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2005, p. 245. 68 Ver ALEGRIA, Maria Fernanda, et alli. “Cartografia e Viagens”. Op. Cit, p.36.
  • 45. 45 traçado. Seriam assim lançadas dezesseis linhas de rumo (norte, nor-nordeste, nordeste, etc.), número que algum tempo depois duplicou, como pode ser observado na maioria das cartas existentes, e que iriam se generalizar como identificado no planisfério de André Homem.69 Era uma rede de loxopramas, ou linhas de rumo, originárias de um número de pontos de convergência dispostos no mapa de forma regular que eram copiadas de mapa para mapa. 70 O impacto dessa nova maneira de representar o espaço ligado ao rigor geométrico e a busca da representação fidedigna do real influenciou as produções cartográficas decisivamente a partir do século XV. Nos seis mapas estudados as influências das cartas-portulano encontram-se presentes. Apenas no mapa-múndi de Fra-Mauro (1459) e Henricus Martellus (1489) as linhas de orientação provindas delas não foram adotadas. Mas o melhoramento da representação do mar Mediterrâneo é notável. No caso do mapa de Fra Mauro a influência encontra-se presente na preocupação com a orientação geográfica com referência geométrica dos pontos cardeais (observar figura 7), mesmo não havendo o traçado das linhas referentes ao equador e aos trópicos. O Mediterrâneo é muito bem representado, confirmando as inúmeras correções provindas dessas cartas mediterrânicas. Figura 29 – Detalhe do Mediterrâneo em Fra Mauro 69 Ver ALBUQUERQUE, Luís (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses v. I. Op. Cit, p.210. 70 Ver KIMBLE, G. H.T. A Geografia na Idade Media. Op. Cit, p.245.
  • 46. 46 O Mapa-múndi de Henricus Martellus apresenta uma representação muito fiel do contorno mediterrânico, pois nas tabuas de Ptolomeu esse mar europeu possui uma dimensão duas vezes maior do que a original. Figura 30 – detalhe do Mediterrâneo no mapa de Henricus Martellus O cartógrafo espanhol Juan de La Cosa e os portugueses Cantino (atribuído), Diogo Ribeiro e André Homem mostram claramente suas enormes influências provindas das cartas-portulano. Em ambos encontram-se a figuração das rosas-dos- ventos herdada dessas cartas, como mostrava o atlas catalão, refletindo a preocupação com a localização espacial por meio dos pontos cardeais. Figuras 31 e 32 – Detalhe de rosa-dos-ventos em Juan de La Cosa (esq.) e Cantino (dir.) Figura 33 – Detalhe de rosa-dos-ventos em Diogo Ribeiro (esq.) e André Homem(dir.) Notam-se juntamente a essas rosas inúmeras linhas de rumo que partem de pontos específicos e preenchem por completo os mapas. Elas é que são as guias de rumo do mapa-múndi.
  • 47. 47 Figura 34 – Detalhe do Atlântico no Planisfério de André Homem. 1.5 – As Grandes Navegações Iniciadas pelos portugueses no século XV, as grandes navegações foram responsáveis em parte por toda uma revisão das teorias cosmográficas dos séculos anteriores contribuindo de maneira decisiva para o período designado como Renascimento. Todos esses feitos marítimos foram registrados através de cartas- portulano portuguesas. Essas novas fontes, além dos próprios relatos dos viajantes chegaram até os cartógrafos da segunda metade do século XV e tornaram-se uma nova fonte de referência para a produção cartográfica do período. Contribuindo decisivamente para uma representação geográfica partindo da prática. Apesar de supor-se terem sido inúmeras as cartas produzidas pelos portugueses, poucas são os exemplos. Essa grande quantidade é confirmada através de alusões a elas na literatura da época como o caso das referências freqüentes aos mapas portugueses na Crônica da Conquista da Guiné71 de Zurara e no Esmeraldo de Situ Orbis72 de Duarte Pacheco. Todo esse empreendimento português para além mar, segundo C. R. Boxer, teria se iniciado devido a quatro fatores principais que se conviveram e apareceram na seguinte ordem no século XV: 1. Um zelo de cruzada com o Marrocos. Refletindo na idéia original do reino português de tentar surpreender os marroquinos por uma ofensiva 71 ZURARA, Gomes Eanes da. Crônicas dos feitos que se passaram na conquista de Guiné por mandato do Infante D. henrique, estudo crítico e anotações de Torcato Sousa Soares. Lisboa. Academia Portuguesa da História, 1978. 72 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo De Situ Orbis, Op. Cit, p. 541.
  • 48. 48 inesperada pelo sul.73 2. O desejo de se apoderarem do ouro da Guiné. Com o início das explorações em direção ao sul da África após as ilhas Canárias os portugueses entram em contato com populações envolvidas no comércio do Ouro da Guiné e isso os atrai; 3. a questão do Preste João. Um reino fantasioso provindo das lendas medievais que teria sido associado com as notícias da Igreja cristã copta da Abissínia, e que auxiliaria os lusos na expulsão dos infiéis de Jerusalém; 4. a procura de especiarias do oriente. Com as informações de que o continente africano seria circum-navegável cogitou-se em ir até as Índias buscar as especiarias, desviando dessa maneira a intermediação dos mamelucos – os infiéis que controlavam a Terra Santa.Assim, a expansão portuguesa deveria ser observada tendo em mente esse quadro de interesses surgidos ao longo da exploração marítima. 74 O primeiro grande marco das navegações ultramarinas portuguesas foi a conquista de Ceuta em 1415 realizada durante o reinado de D. João I. A partir desse feito, iniciou- se a expansão ultramarina, e já no ano de 1419 ocorreu a descoberta e ocupação da ilha da Madeira. Os Açores foram reconhecidos inicialmente no ano de 1431 e completada a exploração do conjunto de ilhas em 1432. Após dois anos, Gil Eanes conseguiu a façanha de transpassar o Cabo Bojador, obstáculo tradicional da navegação de cabotagem, inaugurando uma nova etapa no reconhecimento da costa africana. Nesse momento, devidos as mudanças de orientação das terras que passam de N-S para O-E acreditava-se que teria sido atingido o caminho para as Índias75 . Porém, o continente volta a sua posição N-S depois do Golfo da Guiné. Nessa altura, entre 1456 e 1460, ocorreu a descoberta e colonização das ilhas de Cabo Verde. A experiência adquirida através dessas viagens iniciais permitiu aos portugueses conhecerem o sistema de ventos do Atlântico Norte, e, posteriormente, os do Atlântico Sul. Possibilitando também a construção de um novo tipo de navio, a caravela latina, que suportava o vento melhor do que qualquer outro navio europeu. Já com essas experiências, as viagens de Diogo Cão durante o reinado de D. João II reanimaram as descobertas portuguesas. Ele partiu em 1482 e afirmava a conquista portuguesa, com o 73 Esse ataque ao Marrocos refletia o ódio existente entre a Cristandade e os muçulmanos. No entanto, segundo Buckhardt a Itália escaparia ao isolamento de relações com esse grupo religioso. Ver: BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália, Op. Cit., p. 60 e 61. 74 BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Op. Cit, p.34. Para os motivos das navegações portuguesas verificar também: THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1998, p.171. 75 Diferentemente dos portugueses, segundo Barros, os chineses já representavam a Áfica com um formato triangular. Ver: BARROS, Nilson Crocia. “Ibn Kaldun, a dinâmica dos assentamentos humanos e as funções urbanas no islã histórico”Op. Cit., p.13.
  • 49. 49 padrão de São Jorge, das terras da embocadura do Rio Zaire. Na sua segunda viagem, o navegador atingiu as costas da atual Angola. O esforço de Diogo Cão foi continuado por Bartolomeu Dias que, em fins de 1487, ultrapassava a costa africana até a Serra dos Reis onde entrou em contato com uma forte tempestade que o fez perder de vista a costa. Nesse momento ele atravessou o Cabo das Tormentas, rebatizado posteriormente de Cabo da Boa Esperança e atingiu a Oceano Índico. Ao mesmo tempo em que se prosseguiam as navegações ao longo da costa africana, o rei D. João II mandou que seguissem por terra ao Oriente, Pero de Covilhã e Afonso Paiva, a fim de obterem notícias circunstanciais sobre as terras das especiarias e do misterioso reino do Preste João. Os informes enviados por eles davam conta das cidades indianas e das condições de navegação no Oceano Índico. 76 Nos fins do século XV, os portugueses lançaram as bases da moderna ciência náutica européia, sendo então, possível se guiar através em alto mar pela observação astronômica. Contribuíram para isso três instrumentos principais: a bússola (provavelmente de origem chinesa e conhecida por intermédio dos marinheiros árabes e mediterrâneos), o astrolábio e o quadrante nas suas versões mais simples. Paralelamente as descobertas portuguesas na segunda metade do século XV, os espanhóis iniciam as suas viagens marítimas. Em 12 de outubro de 1492, o genovês Cristóvão Colombo, navegando a serviço de Castela atingiu algumas ilhas desconhecidas. Esse episódio fez com que os feitos portugueses para atingir a Índia fossem ameaçados, já que Colombo77 acreditava ter chegado a ilhas asiáticas78 . Os reinos português e espanhol entraram então em divergências diplomáticas. A solução foi o estabelecimento no ano de 1494 do Tratado de Tordesilhas que definia a demarcação de um meridiano separando a Terra em dois hemisférios, um luso e outro castelhano, que passaria a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Após esse tratado,no ano de 76 Sobre as viagens ultramarinas portugueses existe vasta bibliografia aqui indica-se alguns autores: THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a TimorOp. Cit.; BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (dir.). História da expansão portuguesa. Vol. I. Lisboa : CNCDP, pp. 35-44.; BOXER, Charles. O Império colonial português (1415-1825). Op. Cit.; HOLANDA, S. Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira – Tomo I: A Época Colonial 1º vol.: Do Descobrimento à Expansão territorial. São Paulo: D.E.L., 1968; Voltando-se mais para a Ásia tem-se SUBRAHMANYAM, Sanjay. O império asiático português 1500-1700. Lisboa: Difel, 1995; 77 Segundo ele “il mondo é poco”. Para compreender um pouco do pensamento de Colombo e sua crença em ter chegado a ilhas asiáticas ver: SILVA, Janice Theodoro da. “Colombo: entre a Experiência e a Imaginação”. In: Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, vol. 11, nº21, 1991, p. 29. 78 Esse temor teria sido despertado também porque os portugueses não teriam dado ouvidos tanto a Colombo como o florentino Paolo Toscanelli que afirmava que a melhor rota para se chegar a “Índia dos aromas e das gemas”, como para o ouro de Cipango e as riquezas de Cataio, não era a rota pela Guiné, mas sim a “direitura”, navegando ao ocidente. Cf. THOMAZ, Luis F. De Ceuta a Timor, op. Cit, p. 171.
  • 50. 50 1498, finalmente uma frota portuguesa atingiu a Índia: Vasco da Gama79 chegou a Calicute estabelecendo assim uma nova rota, transoceânica, para atingir o lucrativo comércio das especiarias. Esses dois episódios, descoberta da América (1492) e conclusão da primeira viagem pela rota do Cabo (1498) marcaram uma nova etapa nas relações interplanetárias. O eixo principal do comercio europeu deixou de ser o mar Mediterrâneo e passou a ser o oceano Atlântico. As explorações oceânicas não se detiveram após isso avançando ao longo dos anos o continente americano e asiático. Tentando atingir o comércio do Índico através do seu hemisfério, a coroa espanhola financiou a viagem comandada por Fernando Magalhães. A conclusão do périplo de Magalhães e depois, no comando Sebastião de Elcano foi a primeira circum-navegação planetária entre 1520 e 1523. Na seqüência, descobriram-se novos arquipélagos no Pacífico aumentando imensamente a extensão conhecida da China, e descobrimento do Japão. Ao longo das explorações portuguesas das costas africanas no século XV existem relatos de que havia várias cartas marítimas sobre as novas regiões descobertas como mencionado anteriormente. As provas desses registros cartográficos encontram-se primeiramente no cronista Zurara80 , fonte principal para a época do estabelecimento português na Guiné, que afirmou terem sido feitos novos mapas por ordem do Infante D. Henrique; e uma carta régia (mandada passar pelo regente D. Pedro, em 1443, em Penela), referente também à feitura de novos padrões cartográficos. Sobre esse assunto, o autor Alfredo Pinheiro Marques afirma terem cruzado testemunhos de fontes narrativas arquivísticas, para determinar com precisão a data das primeiras correções em cartas produzidas na época do Infante D. Henrique. No seguimento de sua investigação, no estado atual de conhecimentos, deve-se considerar a data de 1443 como da realização da primeira carta portuguesa que se tem conhecimento. Outro indício importante da produção cartográfica ao longo dos descobrimentos relaciona-se ao arquipélago das Canárias. Em 1435 no Concílio de Basiléia os portugueses mostraram uma carta para 79 A chegada a Calicute, de acordo com Amélia Aguiar Andrade, foi a feliz articulação entre a acumulação de experiência marítima anterior na costa africana e a compreensão do funcionamento do Oceano Índico. A viagem tinha como objetivos dominar a rota das especiarias e consequentemente neutralizar ou transformar em secundária a concorrência. Ver: ANDRADE, Amélia Aguiar. “Novos Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”. In: Memórias do Oriente, CNCDP, 1999, p. 35. 80 ZURARA, Gomes Eanes da. Crônicas dos feitos que se passaram na conquista de Guiné por mandato do Infante D. henrique, Op. Cit.
  • 51. 51 provar que essas ilhas estavam mais próximas de Portugal do que de Castela. Incluí-se ainda a prova apresentada no mapa de Fra Mauro que será retomada a seguir.81 Os mapas aqui analisados apresentam resultados claros dos diversos momentos das descobertas portuguesas. Fra Mauro em seu mapa apresenta inúmeras informações na costa ocidental da África provindas de fontes portuguesas.82 Há a inclusão das descobertas portuguesas produzidas na primeira metade do século. O autor comenta isso nas várias informações presente nessas regiões do mapa, segundo ele, na direção ao sul do continente africano, os portugueses “(...) encontraram litorais que não eram perigosos, com boas profundidades, convenientes para a navegação e sem riscos de tempestades. Eles elaboraram novas cartas destas regiões e deram nomes aos rios, baías, cabos e portos. Eu tenho várias destas cartas em meu poder...”Isso seria ainda em fins da época henriquina (1459). 81 Ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Op. Cit., p.38. 82 Através dos descobrimentos geográficos instalou-se também a toponímia, ou nomeação dos locais descobertos. Segundo Amélia Aguiar Andrade dar nome ao desconhecido significava dominar aquele local. Ou seja, torna-lo conhecido para facilitar a identificação, e possível dominação. Ver: ANDRADE, Amélia Aguiar. “Novos Espaços, Antigas Estratégias: o Enquadramento dos Espaços Orientais”. In: Memórias do Oriente, CNCDP, 1999, p. 39.
  • 52. 52 Figura 35 – Detalhe do contorno africano ocidental (o mapa encontra-se na sua posição original, ou seja, com a África ao norte). Já a obra de Henricus Martellus (1489) também possui as informações portuguesas apuradas sobre a costa ocidental africana. A façanha de Bartolomeu Dias de dobrar o Cabo da Boa Esperança (das Tormentas) já mostra seus resultados. Com isso o contorno africano ocidental se tornau mais próximo ao real geográfico como no caso do Golfo da Guiné. Ainda estão inclusas duas grandes inscrições na altura do continente africano relatando sobre as experiências marítimas lusas e suas descobertas.
  • 53. 53 Figura 36 – Detalhe do continente africano em Henricus Martellus (1489) Figura 37 – Detalhe de inscrição em Henricus Martellus Essa inscrição diz o seguinte: “Essa é a forma moderna africana segundo descrição portuguesa entre o mar mediterrâneo e o oceano meridional” Em Juan De La Cosa (1500) constam dois grandes avanços provindos das grandes navegações. Do lado português tem-se o contorno da África, que na parte ocidental é perfeitamente desenhada enquanto que a parte oriental ainda é pouco exata. A Ásia ainda filia-se a Ptolomeu mesmo com a inserção da frota de Vasco da Gama que havia atingido a Índia. No mapa existe uma menção ao “Rei” de Calicut que saldou os portugueses. Já no lado espanhol há a contribuição da viagem de Colombo e Vicente
  • 54. 54 Pinzón a costa sul-americana, sendo o cartógrafo reconhecido como o primeiro a representar o continente americano. O Novo Mundo ocupa uma posição ainda pouco precisa, excetuando-se a região das Antilhas onde os espanhóis tiveram maior contato. Figura 38 – Detalhe da África e da expedição de Vasco da Gama (seqüência de barcos ao redor do continente) em Juan De La Cosa. Figura 39 – Detalhe da chegada de Vasco da Gama a Índia em Juan De La Cosa.
  • 55. 55 Figura 40 – Detalhe da América em Juan De La Cosa.
  • 56. 56 Figura 41 – Detalhe das Antilhas em Juan De La Cosa Dois anos após Juan de La Cosa, foi produzido o mapa de Cantino (1502). Ele aprofunda as informações contidas no mapa anterior graças às influências maiores das cartas portuguesas. É o mapa-múndi português mais antigo que sobreviver ao longo do tempo. Apresenta um conhecimento extraordinariamente preciso da costa africana, especialmente a costa ocidental a norte do rio Congo. E o contorno oriental ganha pela primeira vez uma dimensão muito próxima ao real geográfico. Outro mérito das explorações marítimas reside na representação da Índia enquanto península e o Ceilão muito próximo a sua proporção em relação as outras terras.
  • 57. 57 Figura 42 – Detalhe da África em Cantino (1500). Figura 43 – Detalhe do continente americano em Cantino (1500).
  • 58. 58 Diogo Ribeiro testemunhou o feito de Fernão de Magalhães, o primeiro a navegar da América para a Àsia e, depois da sua morte na ilha de Bornéu, a frota continuou a viagem e retornou a Espanha pela rota do Cabo. Realizando assim, como mencionado, a primeira viagem de circum-navegação terrestre. O mapa ainda representa os resultados das explorações de Colombo, Caboto83 , os irmãos Corte Real, Américo Vespúcio e Balboa (que confirmou a existência do grande “mar do sul” posteriormente batizado de Pacífico)84 . Em seu mapa o contorno dos continentes alcança um patamar mais próximo ao real. O continente africano ganhou um contorno mais preciso, com a ilha de Madagascar saindo do retângulo de Cantino e ganhando uma representação mais fidedigna. Já a figuração do contorno asiático também melhora. A península arábica deixa de ser associada a um “L” enquanto que as particularidades da península indiana são representados, porém, é figurada com uma espessura menor que deveria. Sendo assim, um retrocesso a representação observada em Cantino. Outra importante inovação da figuração é a península da Malásia, não mais sendo aproximada a Catigara de Ptolomeu. Nela existe a toponímia “Regno de Ansian”. Além da representação das ilhas do sudeste asiático como “Camatra”, “Iavas” e as Molucas. 83 Tentando legitimar sua primazia sobre o continente americano e por conseqüência a navegação nos mares espanhóis no século XVII. Os ingles Samuel Purchas apresentou Sebastião Caboto como um inglês (na verdade era italiano) e verdadeiro descobridor do continente americano que deveria se chamar “Cabota”. Ver a introdução de Sheila Moura Hue para a obra: KNIVET, Anthony. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knyvet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 84 Cf. DELEMEAU, Jean. A civilização do Renascimento, Op. Cit, p.59.
  • 59. 59 Figura 44 – Detalhe do contorno asiático em Diego Ribeiro (1529). Em relação ao “Mundus Nows” Ribeiro também inovou comparando-se com La Cosa e Cantino. O contorno americano é continuo com a especificidade da América Central. Somente o contorno ocidental do continente que não é figurado, e a América do Norte pouco aparece.
  • 60. 60 Figura 45 – Detalhe do contorno americano em Diego Ribeiro (1529). Em André Homem há um aprofundamento no conhecimento de todas as regiões anteriormente figuradas nos mapas. A península indiana tem sua dimensão proporcional resgatada, a península da Malásia e a Indochina aparecem mais bem delimitadas.