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Mia Couto: a poesia africana
Ser, parecer
Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida
Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos
Nocturnamente
Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo
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na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio
Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces
Pequeninura do morto e do vivo
O morto
abre a terra: encontra um ventre
O vivo
abre a terra: descobre um seio
1 – O Amor, Meu Amor
Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.
Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.
E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.
E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.
Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.
Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.
Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.
E sonho-te
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para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus
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vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.
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2 – Para Ti
Foi para ti
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4 – Espiral
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5 – Saudade
Que saudade
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Deus vive por nós, sentenciava.
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ao ventre do silêncio
e dava vontade de nascer.
Que saudade
tenho de Deus.
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6 – Mudança de Idade
Para explicar
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está na mudança de idade.
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eu não tinha idade nenhuma
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no rosto do meu irmão,
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para além do sonho.
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calaram-se tambores,
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7 – Idade
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só se mede por infinitos.
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Mia Couto
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8 – Companheiros
quero
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9 – Promessa de uma noite
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10 – O Espelho
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Mia couto

  • 1. Mia Couto: a poesia africana Ser, parecer Entre o desejo de ser e o receio de parecer o tormento da hora cindida Na desordem do sangue a aventura de sermos nós restitui-nos ao ser que fazemos de conta que somos Nocturnamente Nocturnamente te construo para que sejas palavra do meu corpo Peito que em mim respira olhar em que me despojo na rouquidão da tua carne me inicio me anuncio e me denuncio Sabes agora para o que venho e por isso me desconheces Pequeninura do morto e do vivo O morto abre a terra: encontra um ventre O vivo abre a terra: descobre um seio 1 – O Amor, Meu Amor Nosso amor é impuro como impura é a luz e a água e tudo quanto nasce e vive além do tempo. Minhas pernas são água, as tuas são luz e dão a volta ao universo quando se enlaçam até se tornarem deserto e escuro. E eu sofro de te abraçar depois de te abraçar para não sofrer. E toco-te para deixares de ter corpo e o meu corpo nasce quando se extingue no teu. E respiro em ti para me sufocar e espreito em tua claridade para me cegar, meu Sol vertido em Lua, minha noite alvorecida. Tu me bebes e eu me converto na tua sede. Meus lábios mordem, meus dentes beijam, minha pele te veste e ficas ainda mais despida. Pudesse eu ser tu E em tua saudade ser a minha própria espera. Mas eu deito-me em teu leito Quando apenas queria dormir em ti. E sonho-te Quando ansiava ser um sonho teu. E levito, voo de semente, para em mim mesmo te plantar menos que flor: simples perfume, lembrança de pétala sem chão onde tombar. Teus olhos inundando os meus e a minha vida, já sem leito, vai galgando margens
  • 2. até tudo ser mar. Esse mar que só há depois do mar. No livro “Idades cidades divindades” 2 – Para Ti Foi para ti que desfolhei a chuva para ti soltei o perfume da terra toquei no nada e para ti foi tudo Para ti criei todas as palavras e todas me faltaram no minuto em que talhei o sabor do sempre Para ti dei voz às minhas mãos abri os gomos do tempo assaltei o mundo e pensei que tudo estava em nós nesse doce engano de tudo sermos donos sem nada termos simplesmente porque era de noite e não dormíamos eu descia em teu peito para me procurar e antes que a escuridão nos cingisse a cintura ficávamos nos olhos vivendo de um só amando de uma só vida No livro “Raiz de Orvalho e Outros Poemas” 3 – Destino à ternura pouca me vou acostumando enquanto me adio servente de danos e enganos vou perdendo morada na súbita lentidão de um destino que me vai sendo escasso conheço a minha morte seu lugar esquivo seu acontecer disperso agora que mais me poderei vencer? No livro “Raiz de Orvalho e Outros Poemas” 4 – Espiral No oculto do ventre, o feto se explica como o Homem: em si mesmo enrolado para caber no que ainda vai ser. Corpo ansiando ser barco, água sonhando dormir, colo em si mesmo encontrado. Na espiral do feto, o novelo do afecto ensaia o seu primeiro infinito. No livro “Tradutor de Chuvas” 5 – Saudade Que saudade tenho de nascer. Nostalgia de esperar por um nome
  • 3. como quem volta à casa que nunca ninguém habitou. Não precisas da vida, poeta. Assim falava a avó. Deus vive por nós, sentenciava. E regressava às orações. A casa voltava ao ventre do silêncio e dava vontade de nascer. Que saudade tenho de Deus. No livro “Tradutor de Chuvas” 6 – Mudança de Idade Para explicar os excessos do meu irmão a minha mãe dizia: está na mudança de idade. Na altura, eu não tinha idade nenhuma e o tempo era todo meu. Despontavam borbulhas no rosto do meu irmão, eu morria de inveja enquanto me perguntava: em que idade a idade muda? Que vida, escondida de mim, vivia ele? Em que adiantada estação o tempo lhe vinha comer à mão? Na espera de recompensa, eu à lua pedia uma outra idade. Respondiam-me batuques mas vinham de longe, de onde já não chega o luar. Antes de dormirmos a mãe vinha esticar os lençóis que era um modo de beijar o nosso sono. Meu anjo, não durmas triste, pedia. E eu não sabia se era comigo que ela falava. A tristeza, dizia, é uma doença envergonhada. Não aprendas a gostar dessa doença. As suas palavras soavam mais longe que os tambores nocturnos. O que invejas, falava a mãe, não é a idade. É a vida para além do sonho. Idades mudaram-me, calaram-se tambores, na lua se anichou a materna voz. E eu já nada reclamo. Agora sei: apenas o amor nos rouba o tempo. E ainda hoje estico os lençóis antes de adormecer. No livro “Tradutor de chuvas” 7 – Idade Mente o tempo: a idade que tenho só se mede por infinitos. Pois eu não vivo por extenso. Apenas fui a Vida em relampejo do incenso. Quando me acendi foi nas abreviaturas do imenso. Mia Couto No livro “Vagas e lumes” 8 – Companheiros quero escrever-me de homens quero calçar-me de terra
  • 4. quero ser a estrada marinha que prossegue depois do último caminho e quando ficar sem mim não terei escrito senão por vós irmãos de um sonho por vós que não sereis derrotados deixo a paciência dos rios a idade dos livros mas não lego mapa nem bússola porque andei sempre sobre meus pés e doeu-me às vezes viver hei-de inventar um verso que vos faça justiça por ora basta-me o arco-íris em que vos sonho basta-te saber que morreis demasiado por viverdes de menos mas que permaneceis sem preço companheiros 9 – Promessa de uma noite cruzo as mãos sobre as montanhas um rio esvai-se ao fogo do gesto que inflamo a lua eleva-se na tua fronte enquanto tacteias a pedra até ser flor No livro “Raiz de orvalho e outros poema” 10 – O Espelho Esse que em mim envelhece assomou ao espelho a tentar mostrar que sou eu. Os outros de mim, fingindo desconhecer a imagem, deixaram-me a sós, perplexo, com meu súbito reflexo. A idade é isto: o peso da luz com que nos vemos. No livro “Idades Cidades Divindades”