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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
        FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
            CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE




   Candomblé e Múltiplas Inteligências:
Um caminho para valorização da cultura afro-brasileira
                                            brasileira




             PRESIDENTE PRUDENTE

                  Outubro de 2010
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
        FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
            CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE




             Luís Gustavo de Freitas Dias




   Candomblé e Múltiplas Inteligências:
Um caminho para valorização da cultura afro-brasileira
                                            brasileira




                             Trabalho de conclusão de curso
                             de bacharelado em Geografia.
                             Orientadora:         Professora
                             Doutora Marília Coelho.




             PRESIDENTE PRUDENTE

                  Outubro de 2010



                                                           1
Banca Examinadora




Professora Doutora Marília Coelho

Orientadora



Nota Final: Conceito A. Nota 10.



Professor Doutor Raul Borges Guimarães



Nota Final: Conceito A. Nota 10.

Professor Doutor Irineu Aliprando Viotto Filho



Nota Final: Conceito A. Nota 10.




                                                 2
Dedico este trabalho à minha mãe, ao meu
pai, à minha irmã Fernanda que tanto me
ajudou e incentivou nesta empreitada, aos
meus amigos e à Mãe D´Água...

Odofiaba, Iemanjá!




                                       3
Agradeço minha família, meus amigos: Micheli, Rods, Heide, Thiago, Manoela,
Pássaro, Natalias Cano e Dred, Izid, Drinks, Fernanda, Gabriela, Ricardo Carlos -
amigo companheiro e Marília Coelho – minha orientadora.




                                                                               4
“Que noite mais funda calunga
                                                No porão de um navio negreiro
                                                Que viagem mais longa candonga
                                                Ouvindo o batuque das ondas
                                                Compasso de um coração de pássaro
                                                No fundo do cativeiro
                                                É o semba do mundo calunga
                                                Batendo samba em meu peito
                                                Káwo-kabiesile-káwo-okê-arô-okê

                                                Quem me pariu foi o ventre de um navio
                                                Quem me ouviu foi o vento no vazio
                                                Do ventre escuro de um porão
                                                Vou baixar no seu terreiro
                                                Êpa raio, machado e trovão
                                                Êpa justiça de guerreiro

                                                Ê semba ê ê samba ah
                                                O batuque das ondas
                                                Nas noites mais longas
                                                Me ensinou a cantar
                                                Dor é o lugar mais fundo
                                                É o umbigo do mundo
                                                É o fundo do mar
                                                No balanço das ondas okê arô
                                                Me ensinou a bater seu tambor
                                                No escuro porão eu vi o clarão
                                                Do giro do mundo
                                                Ê céu que cobriu nas noites de frio
                                                Minha solidão
                                                É oceano sem fim, sem amor, sem irmão
                                                Ê káwo quero ser seu tambor
                                                Eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão
                                                Luar de luanda em meu coração

                                                Umbigo da cor, abrigo da dor,
                                                A primeira umbigada é Massemba Yayá
                                                Yayá Massemba é o samba que dá1”




1
    Yaya Massemba - Roberto Mendes e Capinan.




                                                                                             5
Sumário



I – Introdução ............................................................................................................ 07

              1.1 – Gênese da desvalorização da cultura afro-brasileira ....................... 07

II – Da África ao novo mundo .................................................................................. 08

III – Abolição da escravatura .................................................................................... 13

IV – Afirmação da cultura negra .............................................................................. 16

V – Candomblé – religiosidade e resistência cultural ............................................... 19

VI – Sincretismo no candomblé ................................................................................ 26

VII – Terreiro - território África ............................................................................... 25

VIII – Inteligências Múltiplas em Arte/Educação – Metodologia ............................ 30

                8.1 – Inteligência musical ....................................................................... 34

                8.2 – Inteligência espacial ....................................................................... 40

                8.3 – Inteligência corporal-cinestésica ................................................... 46

                8.4 – Inteligência intrapessoal ................................................................ 48

                8.5– Inteligência interpessoal ................................................................. 49

                8.6 – Inteligência linguística .................................................................. 52

                8.7 – Inteligência lógico-matemática ..................................................... 54

IX – Avaliação .......................................................................................................... 62

X – Espetáculo de teatro como instrumento pedagógico .......................................... 63

XI – Considerações finais ......................................................................................... 65

XII – Referências bibliográficas ............................................................................... 67




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I – Introdução


        Este trabalho é fruto de uma longa caminhada, na qual se entrecruzam várias
experiências, dentre as quais o projeto de extensão universitária “A afirmação da cultura
africana como parte integrante da cultura brasileira”, iniciado em 2008, desenvolvido na
Escola Estadual Arlindo Fantini em Presidente Prudente – SP2.
        O amadurecimento teórico, bem como a reflexão sobre a temática nele
desenvolvida foram determinantes para que alguns aspectos norteadores da pesquisa se
modificassem dando origem a uma nova proposta.
        Assim, o presente trabalho de conclusão do curso de bacharelado em geografia
tem como objetivo o ensino da cultura afro-brasileira por meio da arte/educação atrelada
a teoria das múltiplas inteligências3, utilizando o teatro como ferramenta de
desenvolvimento e síntese no processo de ensino/aprendizagem. A experiência de
utilizar ferramentas metodológicas numa proposta de trabalho prático alternativas
permitiu colocar a geografia em contato direto com elementos produzidos no seio da
nossa cultura, proporcionando ao educando possibilidades novas de apreensão do tema.
Para tanto faremos um apanhado histórico, para melhor situar o educando no tema,
ressaltando que o problema da desvalorização cultural afro-brasileira deita raízes na
história da colonização do nosso país, que foi manchada de sangue, suor e lágrimas.


        1.1 – Gênese da desvalorização da cultura afro-brasileira -
        Com a abolição da escravatura no Brasil, a condição dos negros não mudou
muita coisa, mas, mesmo assim, houve uma luta no plano cultural com o fim de manter
os traços tradicionais da cultura africana que foram se inserindo de forma a enriquecer a
cultura brasileira. Dentre todas as manifestações, destacamos o candomblé, que, como
religiosidade se difundiu em larga escala e depois, por meio de artistas, se tornou parte
constituinte da cultura brasileira. Tratamos o candomblé, pelo olhar geográfico, por
meio do conceito de território, rugosidade4 e espaço sagrado, auxiliando o educando a
compreender de forma dinâmica esta religiosidade, se despindo de preconceitos e
discriminações.


2
  No ano de 2009 recebeu o prêmio na categoria A no 5º congresso de extensão universitária, realizado
em Águas de Lindóia – SP.
3
  GARDNER, 1995.
4
  SANTOS, 2008.


                                                                                                        7
Após a exposição da história dos negros no Brasil, é na proposta de Howard
Gardner acerca das múltiplas inteligências que encontramos ferramentas teóricas
necessárias para dar continuidade ao trabalho. Ao defender a pluralidade da forma de
aprendizagem, o autor prioriza outros materiais pedagógicos, bem como: pinturas,
vídeos, músicas, artes plásticas, danças, etc. Todos estes materiais são encontrados em
elementos da cultura africana, nas celebrações do candomblé, que transcenderam o
papel religioso e se encontram largamente difundidos no espaço geográfico – profano.
Percebemos que ao trabalhar as múltiplas inteligências nos educandos já estaremos
desenvolvendo o conceito de arte/educação, onde elementos artísticos são utilizados
como meios pedagógicos.
          Para costurar todas as inteligências, transformando o resultado do processo de
ensino/aprendizagem em uma síntese, utilizamos o teatro, que leva à prática todo o
conhecimento adquirido, expondo-o aos olhares de outros, ocasionando uma
valorização do educando e, sobretudo, de sua produção.




II - Da África ao novo mundo

                                                “O negro segura a cabeça com a mão e chora
                                                             Chora sentindo a falta do rei” 5


          Retirar um povo de seu país por meio de formas desumanas, utilizando a teoria
de que esse povo, por causa da cor de sua pele, era tido como infiel e por isso merecia
ser escravo, é uma forma bruta de imposição cultural do ocidente, não havendo
fundamento plausível para tal prática. Enquanto os colonizadores só enxergavam lucros
e montantes de dinheiro, a população negra, a mercê desses dominadores, é iniciada
num longo e doloroso martírio, marcado pelo sofrimento e degradação, determinadas
populações se viam a mercê desses gananciosos.
          Os negros acreditavam em uma terra sagrada que havia depois do oceano:
chamada calunga, terra sagrada, representando a barreira entre a vida e a morte, onde só
havia paz (SLENES, 1999), lá encontrariam o Axé6. Sem compreender porque eram
colocados de forma vil em um porão de navio, com pouca comida, pouca água, muitas


5
    Nego Tenga – Brilho de beleza, 1990.
4
    Poder em estado de energia pura (VERGER, 1981).



                                                                                           8
vezes longe de seus familiares e desprovidos de dignidade, tentavam procurar um
conforto pensando na calunga. O além mar, não era o das representações
simbólico/religiosas, o que esperava por eles era um futuro bem pior, manchado de
vermelho sangue, de sofrimento e angústia. O grande mal dos séculos se iniciou: a
escravidão.
       Os negros capturados eram de diversas regiões africanas, tribos e castas,
algumas até com dialetos diferentes, eram colocados nos “navios negreiros” que:
                        (...) Traziam indistintamente membros das mais diversas tribos; daí
                        uma solidariedade nova, a do sofrimento suportado em comum (...) a
                        escravidão, em seguida, concluía esse trabalho de desterritorialização,
                        disseminando as famílias ao acaso da necessidade agrícola, nas
                        fazendas dispersas. (BASTIDE, 1973, p. 260)

       Fato que auxiliava na dificuldade de organização de futuras revoltas contra os
“senhores”. O geógrafo Milton Santos afirma: “Desterritorialização é, frequentemente,
uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturação.” (2008,
p. 328) Sendo assim, a desterritorialização está completa, pois, tirou-os da terra que se
identificavam e mantinham sua cultura, e também tirou a mais remota possibilidade de
identificação com o novo lugar, que poderia brotar da relação com entes familiares
queridos, pois, os negros não eram apenas corpos pecadores sem alma nem sentimento,
transportados como peça a servir de escravo, mas pessoas com vida, anseios, portadores
de uma história única e peculiar:

                        Os navios negreiros transportaram através do atlântico, durante mais
                        de trezentos e cinqüenta anos, não apenas o contingente de cativos
                        destinados aos trabalhos de mineração, dos canaviais, das plantações
                        de fumo localizadas no novo mundo, como também sua
                        personalidade, a sua maneira de ser e se comportar, suas crenças.
                        (VERGER, 1981, p. 23)

       Ao pisar em solo brasileiro, todos os negros eram submetidos a um ritual
católico de batismo, figurando a sua conversão imediata e aceitação a um dogma
religioso ocidental, totalmente distinto de suas crenças.
                        Há um indiscutível caráter mais ou menos violento nas formas, ás
                        vezes sutis, da agressão espiritual a que era submetida a população
                        africana, a começar pelo batismo ao qual o escravo estava sujeito nos
                        portos[...]Essa igreja (católica) possuiu escravos com fins lucrativos, e
                        constantemente perseguiu e atacou crenças religiosas africanas
                        durante séculos, até os dias atuais. (NASCIMENTO, 1978, p. 101)

       A Igreja católica, apoiando a colonização do território brasileiro, apoiou também
a escravidão. Como forma expurgar os pecados desses infelizes condenou-os a servidão


                                                                                               9
eterna, pois, cometeram o grave pecado de nascerem negros. Segue um depoimento
datado de 1633, que um “bondoso e digníssimo” padre proferiu:
                       Deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de
                       si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós viveis
                       como gentios, e vos ter trazido a esta, onde, instruídos na fé, vivais
                       como cristãos e vos salveis. (VIEIRA, apud NASCIMENTO, 1978, p.
                       52)

       Demasiada prepotência fazer tais afirmações. Este é o retrato da bandeira que
igreja católica carregava na época da escravidão, que tentou suprimir de todas as formas
a cultura dos negros em nosso país, entretanto, não se deu conta de que estava lidando
com um povo que trazia consigo uma cultura milenar, com várias gerações de tradição,
e que seria ingenuidade pensar que seria fácil apagar da memória dos negros todo o
passado e o processo histórico pelo qual passaram.
       Todas as formas de suprimir a cultura dos africanos foram tomando proporções
cada vez piores, quanto maior era a chegada de negros nos portos brasileiros. Paralelo a
esse processo de aculturação, o negro assumiu seu papel na economia, que por sua vez
era de simples peça de trabalho, e essa era sua função. O trabalho forçado começou:
lavouras, plantações, trabalhos domésticos, subserviência, exploração sexual da mulher.
O negro tornou-se escravo, a áfrica ficou cada vez mais distante, a busca pelo calunga
se tornou eterna. Os abusos de poder tornaram-se cada vez mais usuais, muitas vezes
regados a requintes de crueldade. A coroa portuguesa só conseguiu tornar o Brasil um
país lucrativo por meio da exploração do negro: “A imediata exploração da nova terra se
iniciou com o simultâneo aparecimento da raça negra fertilizando o solo brasileiro com
suas lágrimas, seu sangue, seu suor e seu martírio na escravidão.” (NASCIMENTO, p.
48) As mulheres foram grupo vítima do desejo dos “senhores”. Alvo fácil de
explorações sexuais e das mais diversas fantasias pitorescas. O que ocorria muitas vezes
com o próprio consentimento da esposa, que depois se aproveitava para maltratar e até
torturar a suposta “amante” do marido.
       Não foram poucos os martírios sofridos pelos negros, o sangue continuou
jorrando enquanto durou a escravidão, entretanto o discurso dos “proprietários”
brasileiros era díspar dessa realidade, negando, que nas senzalas da escravidão, qualquer
tipo de mau trato era cometido:
                       Proprietários e mercadores de escravos no Brasil, a despeito das várias
                       alegações em contrário, em realidade submeteram seus escravos
                       africanos ao tratamento mais cruel que se possa imaginar.
                       Deformações físicas resultantes do excesso de trabalho pesado;
                       aleijões corporais conseqüentes de punições e torturas, às vezes de


                                                                                            10
efeito mortal para o escravo – eis algumas das características básicas
                        da “benevolência” brasileira para com a gente africana.
                        (NASCIMENTO, 1978, p. 57)

       Na América do Norte, a discriminação da população branca para com os negros
era bastante forte e dissimulada, mas a realidade brasileira era bem diferente – diziam os
“senhores”. O Brasil carregou por longos anos a bandeira de tolerância e, como o
próprio autor externa: “benevolência”, quando seus verdadeiros atos eram bestiais e
animalescos, ao subjugar e até mesmo torturar os cativos, muitas vezes por simples
gosto, gozando do fato de possuir o poder sobre aquele ser, privado de vida. Como o
caso da reabertura de arquivos do “santo oficio” em Lisboa, que denuncia torturas
cometidas pelo “Mestre” Garcia Dávila Pereira de Aragão, fazendeiro. Segue um dos
casos explicitados: “O preto velho Antônio Magro, beirando os 80 anos, cujo suplício
incluiu o ardor de uma manchela de pimentas malaguetas introduzidas em seu corpo
através de um canudo de pito.” (MOTT. In: REIS, 1988, P. 24)
       Entre os entes financiadores da escravidão, aliados aos interesses dos
fazendeiros e, por conseguinte, conivente com todas as atrocidades cometidas, estava a
“santa” igreja católica. Utilizando a religião como forma coercitiva, afirmando através
até mesmo de textos bíblicos a escravidão. Com o intuito de apagar completamente
todos os bens simbólicos contidos na memória e na carga cultural que negros traziam
consigo da mãe África. Entretanto, o discurso era o mais belo de todos: a salvação das
pobres almas pagãs, a intenção foi estritamente religiosa, porém: “Essa igreja possuiu
escravos com fins lucrativos, e constantemente perseguiu e atacou as crenças religiosas
africanas durante séculos, até os dias atuais.” (NASCIMENTO, 1978, p. 101) Por
melhores que possam ter sido os intentos, a realidade mostra a ferida causada, e que não
cicatrizou.
       Em vista de todo este processo, não seria espantoso saber que os exploradores
colonialistas eram bastante religiosos, afinal, em nome do sagrado que esta instituição
tanto os auxiliou em seus anseios. Documentos da época do tráfico negreiro
comprovam:
                        Passando em revista os nomes dos navios relacionados em diversos
                        documentos, observamos que, até 1800 aproximadamente, todos
                        aqueles dedicados ao tráfico de escravos encontravam-se sob a
                        proteção da Virgem Maria, de Cristo, dos santos e, até mesmo, das
                        almas. (VERGER, 1981, p. 24)




                                                                                           11
Qualquer religioso em meio a tantos santos se sentiria bem protegido. Pena que
estes santos privilegiam um tipo de cor de pele. Oram somente pelos ocidentalizados,
brancos e aptos à salvação.
       A brilhante obra de Gilberto Freyre “Casa grande e senzala” (1998), mostra que
muitos dos africanos que aqui chegaram possuíam educação refinada e escreviam numa
língua desconhecidas dos brancos; essa língua era o árabe.
       Segundo Freyre (1998), a percepção desse refinamento que divergia conforme a
casta no país de origem, era o que justamente determinava as funções desenvolvidas
tanto pelas mulheres , quanto pelos homens, quer na lavoura, quer na casa grande.
       Colocar o papel imprescindível que a obra de Gilberto Freyre tem, no sentido de
proporcionar uma outra leitura do Brasil, ao desmistificar a inferioridade da cultura
africana, colocando-a como parte integrante e importantíssima para a afirmação da
genuína cultura brasileira, fruto da miscigenação de brancos, índios e negros.
       Já os africanos, em meio a tantos interesses infundados, traziam consigo sua
cultura submersa junto a seus corpos nas piores condições possíveis, nos navios
negreiros. Passado incrustado em uma infinidade de costumes e crenças. Dentre as
crenças desta população, estavam as religiões. Entre os negros, existiam grupos que
cultuavam diversos deuses, intitulados: Orixás, figurando uma das principais práticas
religiosas do continente africano - o candomblé. No século XVI a igreja católica
reprimia de forma severa qualquer outro pensamento religioso que não coincidissem
com os seus, em busca de uma hegemonia, almejando o controle além dos limites
territoriais - “O uso da pressão política para destruir outros sistemas religiosos se deu
através da conquista e da extensão de controles políticos, que induziam à conversão por
meio de uma variedade de pressões.” (ROSENDAHL, 1996, p. 62)
       Ante toda essa carga cultural, nociva aos interesses ocidentais, a igreja e a coroa
tiveram que adotar medidas de genocídio cultural. Os negros eram obrigados a
participar de rituais católicos, adorarem um só deus e todos os santos. Como forma de
burlar a proibição às crenças religiosas africanas, os negros começaram a dar
correspondência africana, aos santos católicos. Santa Barbara passou a ser: Iansã; Nossa
Senhora: Iemanjá; São Jorge: Ogum. Assim procedendo, os negros conseguiram manter
viva sua crença, mesmo diante do genocídio cometido conta eles na época. Com toda
força típica de um povo que já aprendeu a sofrer, mais uma vez, resistiram.
       Em agosto de 1834, na Inglaterra, foi decretada a abolição completa da
escravidão em suas colônias. A pressão era cada vez maior para o Brasil tomar a mesma


                                                                                       12
atitude. A primeira alteração no sistema escravocrata nacional ocorreu em 1850, quando
foi decretada a Lei Eusébio de Queirós, que tornou ilícito o tráfico de escravos. Alguns
anos mais tarde, em 1871, entrou em vigor a Lei Visconde do Rio Branco, conhecida
também como a Lei do Ventre Livre, estabelecendo que filhos de escravos, que
nascessem após a promulgação da lei, seriam considerados livres, ficando a cargo dos
proprietários de escravos criá-los até os oito anos de idade, após esta data poderiam
entregá-los ao estado e receber uma indenização. De que adiantava o filho livre e a mãe
escrava? Os senhores cuidavam de que forma das crianças? Em 1855 era a vez dos
escravos idosos conseguirem a liberdade, com a promulgação da Lei Saraiva-Cotegipe,
mais conhecida como Lei dos Sexagenários, ao completar 65 anos de idade (se
suportassem viver tanto em condições péssimas e de exploração). A pressão continuava
por parte da Inglaterra, principalmente depois de passados 54 anos da abolição inglesa.
Em 1888, mais precisamente 13 de maio, oficialmente a escravidão foi abolida no
Brasil. Mas, mesmo assim, continuou como forma ilegal de exploração humana.



III - Abolição da escravatura


                                                   “Tava durumindo Cangoma me chamou
                                                    Disse levanta povo cativeiro acabou” 7


          Agora o escravo é livre. Livre pra que? Em uma sociedade totalmente racista,
alicerçada nas vigas da escravidão que perdurou por mais de 300 anos. Infelizmente a
lei não bastou para acabar com todos os males que este sistema brutal causou aos
negros. Restou a África perdida, o não pertencimento ao lugar onde vivem. Jogados à
margem da nossa sociedade, os negros não conseguiam empregos (herança racista do
sistema escravocrata), muitas vezes tinham que voltar e trabalhar para os seus antigos
“senhores” em condições parecidas com as que viviam anteriormente, e permaneciam
nessas fazendas, agora presos por dívidas, pois, tinham que comprar sua comida na
venda de propriedade do próprio patrão. Ainda não tinham se findados os sofrimentos
do negro na Brasil. A abolição:
                         Não resolveu o problema fundamental do escravo que era o acesso à
                         propriedade de terra. Este liberto, sem qualificação profissional, em
                         um país essencialmente agrário, não tinha outra alternativa senão


7
    Domínio Público.


                                                                                           13
transformar-se em trabalhador livre, assalariado ou semi-assalariado
                       dos seus antigos patrões. (ANDRADE, 1983, p. 40)

       A luta para conseguir se firmar no espaço foi muito grande, entretanto, as
oportunidades continuavam escassas. Muitos programas de imigração, após a abolição,
se deram no Brasil. Trazendo como mão de obra para setor primário no país: chineses e
europeus, sem nenhuma preocupação por parte do governo para com a absorção da mão
de obra interna – dos negros e tantos outros pobres desempregados no país. Esse fato
evidencia a política de embranquecimento da população, auxiliando um processo de
europeização e supremacia cultural: “A elite brasileira caminhava agora para definir o
negro como um problema racial, um obstáculo a um destino nacional que se desejava
moldado em padrões europeus.” (REIS. In: REIS, p. 88)
       À sombra de toda essa realidade, o Brasil sempre levantou a bandeira de ser um
país gozando plena democracia racial. Onde, independente da etnia, somos todos
irmãos, tolerantes, com determinada aversão ao racismo, predizendo a gratidão da
população africana e afro-descendente para com um povo tão bondoso, que até mesmo
permite que o negro comungue de sua cultura superior. Ai daqueles que duvidarem
disso, estarão fadados à repugnância da população que reproduz discursos panfletários,
dizendo que o próprio negro é racista. Nascimento (1978) discutiu acerca dessa suposta
democracia racial:
                       Devemos compreender “democracia Racial” como significado a
                       metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro(...) Da
                       classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao
                       enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de
                       erradicação da “mancha negra”(...) Monstruosa máquina ironicamente
                       designada “democracia racial” que só concede aos negros um único
                       “privilégio” aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora. A
                       palavra desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é
                       inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação,
                       aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície
                       teórica permanece intocada a crença da inferioridade do africano e
                       seus descendentes.” (p. 93)

       Podemos muito bem entender o fato de a miscigenação ser um ato positivo em
nosso país, reflexo da diversidade étnica aqui presente, oferecendo-nos a materialidade
de quão grande e plural é o nosso território nacional. Sem contar na grande contribuição
cultural que todas estas etnias ofereceram para a constituição cultural brasileira, em
termos tradicionais e globais. Porém, pensando em termos históricos, o primeiro contato
entre duas etnias se deu de forma arbitrária, portugueses e índios, dando origem ao
“caboclo”. Essa “mistura” não aconteceu de forma espontânea, os portugueses


                                                                                        14
estupravam as nativas. O resultado deste desamor era o filho bastardo, rejeitado pelo pai
e pela mãe, que via na criança um produto de seu sofrimento. Com a chegada dos
negros no Brasil, a exploração sexual mudou de foco, eram nas negras que os
“senhores” descarregariam suas vontades sexuais mais sórdidas. Mais uma vez o filho
bastardo. Relegado pelo pai e pela mãe. E assim constituímos nossa miscigenação. A
mulata (filha de branco com negro) foi cada vez mais sexualizada em nossa sociedade:
                       (...) a existência da mulata significa o “produto” do prévio estupro da
                       mulher africana, a implicação está em que após a brutal violação, a
                       mulata tornou-se só objeto de fornicação, enquanto a mulher negra
                       continuou relegada à sua função original, ou seja, o trabalho
                       compulsório. (NASCIMENTO, 1978, p. 62)

       Como resultado de todo o processo exposto, os descendentes de africanos
seguiram à margem de nossa sociedade, sobrando apenas maus salários, condições
precárias de vida, levando essa população sempre em direção às periferias e favelas,
fruto da segregação sócio-espacial, entretanto, não se direcionaram a esses lugares por
vontade, mas por não terem condições financeiras de comprar ou alugar uma casa nas
áreas habitáveis da cidade, não possuíam instrução suficiente para executar tarefas com
um retorno financeiro melhor. Sendo assim um ciclo de discriminação se dá, na escola,
na rua, no emprego. Criando uma crescente desvalorização cultural.
       No campo das artes o negro também era discriminado: “Em 1969, estreava na
TV a novela A Cabana do Pai Tomás (...) Sérgio Cardoso era maquiado para que
pudesse interpretar o papel do Pai Tomás, negro idoso, fiel e serviçal.” (LIMA;
SILVIA; SOUSA; SOUZA, p.174, 2005) Fato que ocorria também no teatro, caras
pintadas de preto para figurar negros. No teatro brasileiro demoraram aceitar os afro-
descendentes como atores, todavia, quando os englobaram nas montagens cênicas, era
para representar papéis pejorativos, cômicos:
                       Quando um ator ou uma atriz de origem africana tinha a oportunidade
                       de pisar em um palco, era, invariavelmente, para representar um papel
                       exótico, grotesco ou subalterno; um dos muitos estereótipos negros
                       destituídos de humanidade, tais como a criadinha de fácil abordagem
                       sexual, o moleque careteiro levando cascudo, a mãe preta chorosa ou
                       domesticado pai João. (NASCIMENTO, 1978, p. 162)

       Estigmas que têm reflexo em nossa sociedade até os dias atuais, manchas que
não somem do universo simbólico das representações sociais. Este é o fardo que nosso
país carrega depois de mais de trezentos anos de escravidão. Apesar de toda a carga
cultural que o negro trouxe para nossa sociedade, ele ainda sofre discriminações,




                                                                                           15
tomamos conta de uma das mais ricas representações culturais que o negro trouxe
consigo do além mar: o candomblé.



IV – Afirmação da cultura negra

                                                                 “Você me chamou de nego
                                                                  Querendo desfazer da cor
                                                              Não sabe que eu tenho orgulho
                                                                  Do que você tem horror” 8


       Como vimos, o negro foi sempre deixado a margem da sociedade, e como se não
bastasse, mesmo após a abolição da escravidão, muitas de suas práticas culturais ainda
estavam na ilegalidade. A nobre sociedade de olhares e gostos ocidentalizados,“cedeu
espaço” para o negro, entretanto, impôs limites para esta inserção:
                         Em fins do século XIX, como atestam os jornais e outros documentos
                         da época, havia grave rejeição, por parte de segmentos dominantes da
                         sociedade, às práticas religiosas afro-brasileiras. Atribuía-se a eles o
                         caráter de “selvageria”, cujos exemplos, constantemente citados, eram
                         a “lascívia das suas danças” e o “estrondoso barulho” de suas
                         batucadas. (AMARAL; SILVA, p. 189, 2006)

       Concluimos que, o governo, por meio de uma elite dominante, não hesitou em
manter proibições da época da escravidão, obrigando os negros a ocultarem seu traço
cultural mais marcante: a religiosidade, escondendo-se dos olhos da sociedade, pois:
“Tais cultos tinham um caráter candestino e as pessoas que neles tomavam parte eram
perseguidas pelas autoridades.” (VERGER, 1981, p. 29) Tornando tradição cultural em
caso de polícia.
       Mesmo perante todos os aparatos reprecivos, os negros, ainda sim, lutavam para
dar continuidade a sua cultura, afinal, a escravidão não conseguiu apagar suas crenças,
não seria depois de liberto que iriam eliminá-las. No Rio de Janeiro, eram nas casa das
“Tias” que as celebrações clandestinas aconteciam. Lá, difundia-se a cultura africana e
incitava, sobretudo, a produção artística que levasse em conta elementos étnicos
culturais, que na sociedade eram reprimidos e censurados. Nesses casos: “A arte negra é
precisamente a prática da libertação negra (...) em todos os níveis e instantes da
existência humana.” (NASCIMENTO, 1978, p. 180) As tias eram de descendência
baiana, em sua maioria negras, traziam consigo toda a carga cultural africana obtida
8
 Gasolina – “Você me Chamou de Nego”. Gravado pelo cantor Rubi, no cd “Paisagem Humana” em
2006.


                                                                                              16
através de seus antepassados. A casa, continha uma significância simbólica: liberdade.
Ali os negros eram livres para executar sua cultura, deixavam o mundo repressor de
lado para se encontrar com pessoas que comungavam dos mesmo ideais, pensamentos.
Uma das casas mais importântes, no sentido de resistência cultural da época, era a:
                        A casa de Tia Ciata, Babalaô-mirim respeitada, simboliza toda a
                        estratégia de resistência músical à cortina de marginalização erguida
                        contra o negro em seguida à abolição. A habitação – segundo
                        depoimentos de seus velhos frequantadores – tinha seis cômodos, um
                        corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas realizavam-se
                        bailes (polcas, lundus etc.); na parte dos fundos, samba de partido alto
                        ou samba-raiado; no terreiro, batucada. (SODRÉ, p.15, 1998)

       Polca e lundu são ritmos de descendencia africana, na época pouco aceitos,
(como a maioria dos resquícios de cultura negra), mas, tolerados de maneira geral pela
população, por isso que eram executados na sala de visitas. Já o samba (também de
descendencia africana) era altamente rechassado na sociedade, sua dança também era
menos contida, o lugar reservado era os fundos, mais longe dos ouvidos de quem
passava pela rua. No terreiro aconteciam os batuques e as cerimônias do candomblé,
pois, além de ser o espaço mais escondido da casa, mantinha-se ali um espaço de terra
(daí o nome “terreiro”), elemento vital nas celebrações religiosas africanas.
       Na casa das tias, não havia o porque se diminuir, nem abaixar a cabeça, muito
menos negar sua personalidade e sua descendência:
                        A África aqui é o orgulho e uma fidelidade; nenhum complexo de
                        inferioridade, mas pressentimento de conservar uma herança de beleza
                        e bondade, a vontade de não se deixar perder na civilização brasileira,
                        mas de integrá-la a essa civilização para enriquecê-la e lhe dar doçura
                        suplementar. (BASTIDE, 1973, p. 274)

       A cultura africana está muito ligada à religiosidade, como vimos, os centros de
resitência assumiam não só o papel de terreiro, mas de samba, de sociabilidade, de
danças, de divertimento. Naquele espaço idéias eram difundidas, pensamentos, modos
de vida. Não podemos negar que as casas das tias tranformavam o espaço urbano, à
medida que toda uma ideologia socio/cultural era emanada, pois:
                        A difusão da fé torna-se particularmente importante para a geografia
                        ao se refletir sobre a ação missionária de expansão de idéias e
                        condicionamentos simbólicos, algumas vezes resolvidas através de
                        trocas dramáticas no processo de aculturação. A migração de pessoas
                        que transmitem sua cultura e a migração de sistemas religiosos
                        resultam em adaptações ou integrações de religiões a um determinado
                        ambiente estranho, que pode alcançar um equilíbrio ou desenvolver
                        mecanismos de conquista. (ROSENDAHL, 1996, p. 52)




                                                                                             17
E o negro foi se afirmando cada vez mais, seja por meio da dança, da
corporalidade, dos instrumentos. Foi no samba que o negro encontrou o seu melhor
aliado em direção de sua aceitação cultural – “Sendo música religiosa, o samba
enredou-se, apesar disso, nos espaços profanos, num intenso fluxo de trocas simbólicas
entre as religiões afro-brasileiras e a sociedade.” (AMARAL; SILVA, 2006, p. 192) Foi
aí que a sociedade passou a comungar a religiosidade do negro, mesmo de forma
inconsciente. Entretanto, o samba, por muito tempo só conseguiu abarcar o público
popular, sendo ainda estigmatizado pela elite brasileira, mas esse povo não buscava a
afirmação de sua cultura por parte dos ricos, pois, até mesmo: “As letras dos sambas,
cantadas ao fim das “rodas de santo” nas casas das “tias” baianas, ou nos encontros
festivos populares, como a Festa da Penha, refletiam o cotidiano dos grupos negros do
Rio de Janeiro e a própria importância da música neste cotidiano.” (AMARAL; SILVA,
2006, p. 193) O cotidiano dessas pessoas era simples, dotado de peripécias contra a lei,
bebidas, traições e muito amor. A elite estava acostumada com músicas clássicas que
incitavam a boa educação e as boas maneiras.
          Dentre as políticas do estado novo (era Vargas), encontramos a que visava
estabelecer as bases de um estado genuinamente nacional, o que ocorreria por meio de
uma valorização das práticas culturais brasileiras, sobretudo as de origem popular,
causando assim, uma identificação da população com a nação. Dentre as culturas
escolhidas para figurar uma identidade cultural, estavam as práticas afro-brasileiras, foi
a partir dessa época que algumas manifestações foram desestigmatizadas, como a
capoeira e o carnaval. Sendo que ambos foram modificados: a primeira recebeu o nome
de capoeira regional, o segundo só foi aceito com a condição de os sambas enredos
tratarem de temas da história oficial brasileira (que não se importa muito com a cultura
negra) 9 .
          A casa das tias, por longos anos, se constituiram em refúgio e territórios de
resistência e afirmação cultural. A identidade dessa população se manteve viva, por
meio de diversas representações, muitas vezes artísticas. A arte era tida como meio de
supressão ante tanta desigualdade e injustiça. A religiosidade, sem dúvida auxiliou e
incentivou todo este processo, muitas vezes, fundida entre manifestações do sagrado e
do profano e, foi no profano que encontrou bases para transcender seu papel religioso,
firmando afinidade com a contituição cultural brasileira.

9
    AMARAL; SILVA, p. 199, 2006.



                                                                                       18
V - Candomblé – religiosidade e resistência cultural


                                          “Salve Xangô, meu Rei Senhor, Salve meu Orixá” 10


           Na religião, podemos encontrar a manifestação do sagrado, que é algo
transcende o mundo material: “O sagrado se manifesta sempre como uma realidade de
ordem inteiramente diferente da realidade do cotidiano.” (ROSENDAHL, 1996, p. 27)
E possui o poder de transportar as pessoas para fora da realidade, das preocupações,
encontrando assim, amor, acolhimento, realizações tanto no plano material como em sua
espiritualidade, “religião é uma experiência humana fundamental, definida mais
simplesmente como a experiência do sobrenatural, uma experiência independente da
razão (...). O homem religioso busca um poder transcendente que o sagrado possui.”
(ROSENDAHL, 1996, p.18) Esse poder deixa o homem religioso em paz consigo e
feliz para com suas crenças, herdadas de seus mais remotos antepassados. O sagrado se
constitui por meio de objetos, lugares, pensamentos e está totalmente ligado ao
religioso, ao poder transcendental. Os territórios onde o sagrado se manifesta, “Fazem
os objetos materiais (...) bem como as pessoas, passar de um mundo para outro, do
profano ao sagrado.” (BASTIDE, 1973, p. 255) A vida cotidiana fora da religiosidade
constitui-se como profana, o não sagrado. No Brasil, durante muitos séculos a religião
católica, por meio da força, obrigou os negros a se curvarem diante do sagrado, que, não
possuía nenhuma significação para este povo. Cada grupo religioso possui
especificidades, características próprias que o definem em torno de sua cultura. O que
não pode ocorrer é uma suposta supremacia cultural tomar frente para justificar
selvagerias.
           As práticas reliosas afro-brasileiras sofreram gande depreciação ao longo dos
séculos, entretanto, se mantiveram. Na África, em pleno século XVI (época que os
colonizadores iniciaram a captura dos negros) os negros viviam, em sua maioria, em
aglomerações tribais, cada região tinha suas peculiaridades. Como também, cada região
possuía um orixá de adoração, sendo este responsável pela proteção dos nativos. Em
determinadas datas, organizava-se a festa (nome dado à celebração do ritual religioso),
então, o orixá saía de “seu mundo” para visitar os “filhos”, por meio de uma pessoa




10
     Vinicius de Moraes e Baden Powell – “Canto para Xangô”. Garavdo no disco “Afro-Sambas” em 1966.


                                                                                                 19
específica, seu iaô (na África - elegun), ocorrendo a possessão. Este Orixá servia
também para afirmar e abeçoar o Rei, garantindo assim, a coesão social11.
          Não havia muita distinção entre o religioso e o social, prova do quão forte era a
crença dessas pessoas. A escravidão não conseguiria apagar o que foi construido em
séculos de tradição, pois: “Os seres humanos são considerados, por excelência, as
criaturas da comunicação, que armazenam significados através de palavras, desenhos,
gestos, números, padrões musicais e um grande número de outras formas simbólicas.”
(GARDNER, 1995 p.145) Toda essa carga cultural, veio para participar da constituição
da sociedade brasileira, que, embora sempre rechaçada, ainda sim se firmou e criou
raízes, por meio de muito sangue e lágrimas.
          Algumas modificações ocorreram como forma de adaptar a religião africana à
nova realidade, pois, os negros eram colocados, muitas vezes, misturados nas
embarcações, oriundos de diversas regiões. Como cada pessoa possuia devoção a um
orixá, no culto do candomblé no Brasil, vários orixás puderam ser cultuados, como
meio de agradar todos os adeptos, totalizando em média desesseis deuses. Por isso,
qualquer afirmação veemente sobre o culto do candomblé no Brasil, pode estar fadada
ao erro. O que expomos aqui é o resultado de uma revisão bibliográfica acerca do tema,
onde encontrando pontos em comum nesta manisfestação religiosa.
          Antes de prosseguir, nos atemos que são muitos os preconceitos que anulam a
possibilidade se conhecer em seu profundo o candomblé, tantos anos de repressão social
e política ainda colhem frutos. Por este motivo, se afirma cada vez mais a necessidade
de mostrar esta realidade a todos, entretanto, para não cairmos novamente no velho
discurso discriminatório: “É preciso julgar esse culto não através dos nossos conceitos
de brancos, mas tentando penetrar na alma dos fiéis e pensar como eles próprios
pensam.” (BASTIDE, 1973, p. 284) Analisar a religião, não com olhos estrangeiros, e
sim com abertura a percepções novas, só assim será possível travar qualquer
entendimento com nulidade de preconceito.
          Há uma grande complexidade nas manifestações do candomblé, que diferem em
muito dos ritos religiosos europeus. A noção de bem e mal, céu e inferno, não existe no
candomblé. O bem e o mal estão contidos no caráter do ser, resta ao adepto religioso
saber balancear ambos sentimentos, controlar seus defeitos e explorar suas qualidades.
Os deuses desta religião - os orixás, possuem qualidades e defeitos humanizados, pois,
11
     VERGER, 1981.




                                                                                        20
foram humanos durante algum tempo. Diferentemente das religiões européias ou
europeizadas, onde o sagrado se manifesta por meio de silêncio, concentração,
subserviência, no candomblé denomina-se “festa” as celebrações religiosas, que têm
como pressuposto a alegria, muita música (pontos) tocada pelos Alabês12 nos atabaques:
rum (grave), rumpi (médio), lé (agudo); enfeites são dispostos no terreiro ao gosto do
orixá homenageado; é realizado sacrifício de um animal para preparação da comida
sagrada, que será parte destinada aos orixás e parte degustada por todos os presentes. As
orações são através dos “pontos”, das danças e da comida. Uma grande
comunhão que prioriza a sociabilidade, descontração e muita fé.
        O sagrado, no caso do candomblé, se dá como local nos terreiros – lugares
sagrados, destinados a execução dos ritos, oferendas, trabalhos. Necessariamente o
terreiro deve possuir um espaço com terra, sem nenhum tipo de piso, descoberto, pois, o
candomblé é uma religião que possui o ânima da natureza, todos os seus deuses (orixás)
possuem ligação direta com algum elemento natural, o que auxilia em uma maior
consciência ambiental e respeito ao meio natural. A noção de genealogia também é
muito forte nas práticas religiosas, sobretudo o respeito aos mais velhos e aos entes que
já faleceram:
                            A religião dos Orixás está ligada a noção de família. A família
                           numerosa originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos
                           e mortos. O Orixá seria, em principio, um ancestral divinizado, que,
                           em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre
                           certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou
                           salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas
                           atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o
                           conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização. O
                           poder, àse (axé), do ancestral-orixá teria, após sua morte, a faculdade
                           de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes
                           durante um fenômeno de possessão por ele provocada. (VERGER,
                           1981, p. 18)

        Os orixás eram seres humanos, assim como todos, com defeitos e qualidades,
que, através de um processo doloroso, por meio da ira ou outros sentimentos violentos,
passaram a ser: “Possuidores de um àse (axé) muito forte e poderes excepcionais.”
(VERGER, 1981, p. 18) Segundo a mitologia iorubana: sendo o orixá supremo, criador
da Terra - Olodumaré distribuiu todos os poderes da natureza entre todos os orixás que,
assim divinizados, puderam seguir seus caminhos.



12
  No Brasil, Ogã tocador de atabaque,chefe da orquestra do candomblé, na África dono da navalha,
encarregado da escarificações rituais (aberés). (PRANDI, 2001, p. 564)


                                                                                                   21
O mundo profano permeia as relações das pessoas religiosas, não há
possibilidade, no caso do candomblé, das pessoas viverem somente no espaço sagrado,
seria como negar toda a vivência cotidiana, portanto, ao se relacionar com o espaço que
circunda sua religiosidade, o adepto age como transformador de seu meio, levando
consigo elementos do espaço sagrado, bem como características, costumes e até mesmo
obrigações: “O homem religioso (...) se exprime sob formas simbólicas que se
relacionam no espaço.”(ROSENDAHL, 1996, p. 64). O candomblé ofereceu bases para
vários elementos que alteram a constituição da cultura brasileira e, por conseguinte, o
espaço geográfico. No plano da música, são diversas as contribuições africanas. O
samba é um ritmo que nasceu junto ao candomblé, se inspirando no ritmo africano
semba, tocado nas festas. Desenvolveu-se, sobretudo em meio a pessoas pobres e em
sua maioria afro-descendentes – ressaltando o papel da casa das Tias no Rio de Janeiro.
Os cantos executados nas celebrações começaram a serem ouvidos fora dos terreiros. A
sociedade passou a comungar das músicas, embora, muitas vezes, alienada a verdadeira
significação religiosa. O profano interage com sagrado, como no caso da culinária das
“baianas”.
       Todos os orixás possuem peculiaridades como: dia da semana, cor, música
(ritmo), força sobre determinado elemento da natureza e prato predileto. Nos dias de
festa para determinados orixás, devem ser seguidas à risca as preferências do
homenageado. A culinária predileta dos orixás é intitulada “prato sagrado”. As
responsáveis pela preparação da comida, são mulheres designadas para tal no ato de
“virar o santo”, ou seja, da iniciação na religião, os segredos culinários são passados de
geração para geração, mantendo características trazidas do continente africano. Na
Bahia, principal porto receptor de escravos do período colonial, aconteceu um fato em
particular: a comida baiana não só foi influenciada pela culinária africana, como
aconteceu em grande parte do Brasil, mas, a culinária sagrada transcendeu os terreiros,
ultrapassou os limites do sagrado, se envolvendo e alterando o espaço profano. As
típicas baianas, de roupas brancas (as mesmas utilizadas como indumentária no espaço
sagrado), vendiam preparos suculentos em meio à praça pública:
                        (...) Se muitas receitas dos pratos africanos, glória da apimentada
                        culinária baiana, chegaram até nós, é que foram fielmente conservadas
                        e transmitidas de mães para filhas pelas baianas vendedoras de
                        quitutes nas ruas. Acontecia às vezes que, antes de sair de casa, elas
                        faziam oferendas de parte das comidas nos altares de seus orixás.
                        Quando as pessoas compravam e comiam acarajé, participavam, sem
                        saber de uma comida em comum com Iansã, e se era caruru, também



                                                                                           22
chamado amalá nos terreiros de candomblé, era com Xangô que
                              comungavam. Assim por consideração aos gostos dos orixás,
                              nasceram e perpetuaram-se os vários quitutes na Bahia. (VERGER,
                              1981, p. 32)

           O espaço geográfico é alterado pelas significações herdadas da África, a cultura
se enriquece, entretanto, ainda encontramos na sociedade moderna, demasiados
preconceitos para com estas manifestações, que são frutos de um passado marcado pela
tentativa latente de etnocidio do negro. A palavra macumba, ainda é largamente
utilizada de modo pejorativo, para designar os ebós13, que são feitos aos deuses orixás.
O que poucos sabem, é que nem sempre essas oferendas são feitas com intento
negativo, para o mal, a maioria é como forma de agradecimento, pedido por entes
queridos e para agradar o orixá. A palavra macumba significa dança no dialeto iorubá.
Sendo assim, destacamos a importância da legitimação cultural que o candomblé
promove na população religiosa e da afirmação da cultura africana na sociedade. O
negro no candomblé não é o outro estranho, subserviente e receoso de suas atitudes:
                              O candomblé marca o ponto onde a continuidade existencial africana
                              tem sido resgatada. Onde o homem pode olhar a si mesmo sem ver
                              refletida a cara branca do violador físico e espiritual de sua raça. No
                              candomblé, o paradigma opressivo do poder branco, que há quatro
                              séculos vem se alimentando e se enriquecendo de um país que os
                              africanos sozinhos construíram, não tem lugar nem validez.
                              (NASCIMENTO, 1978, p. 182)

           Resgatar a auto-estima e a valorização dessa riquíssima cultura, dentro da
cultura brasileira, é um papel nobre que o candomblé exerce. Quando os adeptos negros
que se encontram a margem da sociedade participam dos ritos, eles conseguem: “Despir
a roupa da servidão cotidiana para vestir a roupagem brilhante dos Deuses.” (BASTIDE,
1973, p. 280) Em todas as celebrações do candomblé, o iaô é responsável por trazer o
orixá de volta à terra, é por meio de seu corpo, que, o deus pode retornar, o que os
adeptos chamam de “montar”, como se o iaô fosse um cavalo pronto para ser montado
pelo orixá, destruindo a teoria de que o deus “se incorpora” na pessoa. O iaô, no dia da
festa, tem que estar preparado com a indumentária de seu orixá, que na maioria dos
casos é bem suntuosa, com detalhes e dependendo do orixá, com pedras e metais
preciosos, como podemos observar na foto 1, onde um iaô de Oxum está em transe. A
celebração de transe do iaô, se dá em torno de torno de um ritual bem marcado, com




13
     Sacrifícios, oferendas, despachos.


                                                                                                  23
regras específicas, nenhuma pessoa “recebe o orixá” somente ouvindo um ponto de seu
orixá, ou permanecendo em um espaço sagrado:
                        È necessário que tenham sido preparadas para receber o orixá através
                        de certas interdições, como a do corpo limpo, certos banhos de ervas,
                        em resumo, por um conjunto de fatos regulamentados pela sociedade,
                        sem os quais a música nada produz. (BASTIDE, 1973, p. 279)


         O candomblé continua como uma forma religiosa, altamente difundida em nossa
sociedade, seja no espaço sagrado, por meio dos ritos, da ancestralidade, seja no espaço
profano por meio da cultura popular e na atualidade por meio da cultura de massa, que
por sua vez interagem com o espaço, contribuindo para estudos da geografia cultural,
bem como ilustrando toda a trajetória no espaço e no tempo, desta religião como carga
cultural de um povo, agora como elemento da composição cultural do Brasil.
         A manifestação religiosa do candomblé pode ser entendida como sendo uma
rugosidade, pois, se mantém do passado e traz consigo história de realidades passadas14,
evidenciando a herança cultural africana sociogeográfica, que, perdurou e perdura até os
dias atuais, onde sua gênese está em séculos passados. Não foram somente as práticas
religiosas que se mantiveram, mas também a territorialidade do espaço físico, pois é no
terreiro que as celebrações acontecem e este, por sua vez, tem que seguir uma série
normas que foram difundidas de geração para geração.




14
     SANTOS, 2008


                                                                                          24
Foto 1:




          Fonte: VERGER, 1981.




                                 25
VI – Sincretismo no candomblé
                                                      “Vestimenta de caboclo é samambaia” 15


        Os negros recém seqüestrados da África, como vimos, foram obrigados a se
converter a uma religião totalmente adversa a sua, que negava qualquer outra religião,
principalmente as politeístas. A religião católica, por meio de seus líderes religiosos,
pensava ser portadora da verdade suprema, e por isso cometeu uma série de atos contra
a cultura africana. Os negros começaram a “misturar” as crenças religiosas, mas isto se
deu, não de forma espontânea, e sim de forma brutal. Nas igrejas católicas os negros
exaltavam uma imagem no altar e pensavam em outra entidade, enquanto rezavam
pensavam nos orixás que tanto adoravam e amavam. Não denominamos essa junção:
catolicismo versus candomblé, de sincretismo, pelo fato de não ter se dado
espontaneamente, e sim por meio da tentativa de etnocidio pelo qual o negro passou.
Além disso, há o fato de que a igreja católica nunca reconheceu o candomblé. A obra
literária “O pagador de promessas” de Dias Gomes, conta a história do Zé-do-Burro,
que fez uma promessa em um terreiro para Iansã, a fim de que ela ajudasse seu burro
que estava doente, este por sua vez melhorou e, Zé-do-Burro foi cumprir sua promessa,
que consistia em carregar uma cruz do tamanho da de Jesus Cristo até a igreja de Santa
Bárbara (santa católica que corresponde a Iansã), lá chegando foi falar com o padre,
que, ao saber que a promessa foi feita em um terreiro para uma orixá, o proibiu de
entrar na igreja, causando grande confusão. Essa história se faz verdade até os dias
atuais, em que a discriminação a estas manifestações religiosas é latente. Não há
sincretismo do candomblé para com uma religião, que, mesmo depois de desumanas
atrocidades cometidas, ainda continua a nulificar manifestações de origens negras.
        O candomblé, ao chegar em solo brasileiro, por meio dos negros, se deparou
com uma cultura tão importante quanto a sua, e também alvo crescente de aculturação, a
cultura dos nativos indígenas. Do encontro destas duas culturas peculiares, nasceu de
forma espontânea, o que denominamos sincretismo: o candomblé de caboclo, unindo a
crença doa aborígenes com a dos africanos.

                           Só merece o nome de sincretismo o fenômeno que envolveu as
                           culturas africanas entre si, e entre elas e a religião dos índios
                           brasileiros. (...) O encontro das religiões africanas com a religião

15
  Ponto cantado na Umbanda (religião criada no Brasil que une elementos do candomblé e do espiritismo
Kardecista) - Domínio público. Adaptado e Gravado por Martinho da Vila no disco “Canta, canta minha
gente” no ano de 1974.


                                                                                                  26
nativa dos indígenas manifesta-se nos terreiros de caboclo, onde o
                       culto mistura dois sistemas espirituais (...) (NASCIMENTO, 1978, p.
                       109)

       A interação com a natureza, que as religiões indígenas brasileiras e o candomblé
possuíam, eram parecidas. Ambas eram politeístas, seus mais respeitados ícones
religiosos eram os mais velhos. No candomblé de caboclo além dos orixás, encontramos
os espíritos da floresta, que são índios que já morreram, mas continuam a zelar pelo
bem da mata e da floresta. Podemos exemplificar este sincretismo, na música “Linha de
Caboclo” gravada na voz da cantora Maria Bethânia, composta por Paulo César
Pinheiro:
                       Já chegou a hora/ Quem lá no mato mora/ É que vai agora/ Se
                       apresentar/ No chão do terreiro/ A flecha do Seu Flecheiro/ Foi que
                       primeiro/ Zuniu no ar/ Vi Seu Aimoré/ Seu Coral, vi Seu Guiné/ Vi
                       Seu Jaguaré,/ Seu Araranguá,/ Tupaíba eu vi,/ Seu Tupã, vi Seu Tupi,/
                       Seu Tupiraci,/ Seu Tupinambá/ Vi Seu Pedra-Preta se anunciar,/ Seu
                       Rompe-Mato,/ Seu Sete-Flechas,/ Vi Seu Ventania me assoviar/ Seu
                       Vence demandas eu vi dançar/ Benzeu meu patuá/ Vi Seu Pena-
                       Branca rodopiar/ Seu Mata-Virgem,/ Seu Sete-Estrelas,/ Vi Seu Vira-
                       Mundo me abençoar/ Vi toda a falange do Juremá/ Dentro do meu
                       gongá/ Seu Ubirajara/ Trouxe Seu Jupiara/ E Seu Tupiara/ Pra
                       confirmar/ Linha de Caboclo,/ Diz Seu Arranca-Toco,/ Um é irmão do
                       outro/ Quem vem lá/ Com berloque e jóia/ Vi Seu Araribóia/ Com Seu
                       Jibóia/ Beirando o mar/ Com cocar, borduna,/ Chegou Seu Grajaúna,/
                       Com Baraúna/ Mandou chamar/ Vi Seu Pedra-Branca se aproximar/
                       Seu Folha-Verde,/ Seu Serra-Negra,/ Seu Sete-Pedreiras eu vi rolar/
                       Seu Cachoeirinha ouvi cantar/ Seu Girassol girar/ Vi Seu Boiadeiro
                       me cavalgar/ Seu Treme-Terra,/ Seu Tira-Teima,/ Seu Ogum-das-
                       Matas me alumiar/ Vi toda a nação se manifestar/Dentro do meu
                       gongá/ che tua.(2008)

       Percebemos que há uma inteiração entre entidades caboclas e do candomblé,
uma coexistência pacífica, uma infinidade de nomes que trazem consigo, personalidades
e poderes de proteção. Manifestações da genuína cultura nativa brasileira, mais um
toque africano, que, ao se encontrarem, modificam suas crenças, adicionando elementos
novos e, por conseguinte expandindo-a no espaço, unindo forças contra a opressão
sócio/cultural. A umbanda é uma religião brasileira, que, recebeu forte influência do
candomblé, unindo a religião africana com os pressupostos do espiritismo difundido por
Allan Kardec. Na umbanda encontramos “entidades”, que são espíritos que guardam e
influenciam as pessoas, bem como: Pomba Gira, Tranca Rua, Maria Padilha e, em
determinados casos encontramos elementos das religiões indígenas e do catolicismo, já
no candomblé são cultuados apenas os orixás.




                                                                                         27
VII – Terreiro - território África
                                                   “Neste terreiro em festa, entre mil adobás
                                                     Prestamos nosso tributo aos Orixás” 16


        Quando denominamos o terreiro de espaço sagrado, já estamos levando em
conta a existência do não sagrado, ou seja, do profano: “A palavra sagrado tem o
sentido de separação e definição, em manter separadas as experiências sagradas das não
sagradas, isto é, profanas.” (ROSENDAHL, 1996, p. 28) Porém, no candomblé, é o
sagrado que permeia de significações a vivencia social profana. “O espaço sagrado e o
espaço profano estão sempre vinculados a um espaço social. A ordenação do espaço
requer sua distribuição entre sagrado e profano: é o sagrado que delimita e possibilita o
profano.”(ROSENDAHL, 1996, p. 32) Não há possibilidade de qualquer tipo de
separação, o religioso tem suas obrigações comportamentais, carregando consigo a
carga cultural que o candomblé lhe fornece, “na cosmovisão das diversas etnias
africanas, é a manifestação do sagrado que dá fundamento ao mundo.” (SALES. In:
BARBOSA, 2008, p.181) O terreiro além de ser um espaço sagrado, é marcado pela
ordenação espacial, que conta com regras na disposição dos objetos ritualísticos que
também são sagrados. Esta sacralidade atribuída tanto aos objetos quanto ao espaço do
terreiro depende das pessoas que praticam, acreditam e difundem o candomblé.
        As pessoas se apropriam do lugar e redefinem sua utilização. Carregando-o de
significações. Segundo Rosendahl: “Os espaços apropriados efetiva ou afetivamente são
denominados territórios.” (1996, p. 58) O espaço do terreiro se define enquanto
território, impregnado de significados e símbolos controlados pela religiosidade,
representado pelos “donos(as)” do terreiro - os pais e as mães de santo, seguido por toda
hierarquia da religião. Os adeptos encontram com seus antepassados, com sua história
cultural, com os orixás: “no interior do recinto sagrado o mundo profano é transcendido
e, como consequência, a comunicação com o divino torna-se possível.” (ROSENDAHL,
1996, p.33) É no terreiro que as divindades africanas iorubanas se manifestam, neste
território transposto diretamente da África por meio dos símbolos. O território, nesse
caso, também se torna um símbolo religioso, contém uma representação e uma aceitação
por parte dos partícipes, que, a todo momento o afirmam, fornecendo reconhecimento à
manifestação do sagrado, entrando em contato com os orixás.

16
  Mauro Duarte, Noca e Rubens Tavares. “Tributo aos Orixás”. Gravado por Clara Nunes no disco
“Clara Clarice Clara” em 1972.


                                                                                                28
É por meio dos símbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce
                        sua função de mediação entre o homem e a divindade. É o espaço
                        sagrado, enquanto expressão do sagrado, que possibilita ao homem
                        entrar em contato com a realidade transcendente chamada deuses.
                        (ROSENDAHL, 1996, p. 30)

       No território terreiro, a provisão cultural é forte. Na verdade, é a cultura que
possibilita e mantém toda a estrutura religiosa, fornecendo base hereditária - tradicional,
mítica, existencial e sócio-cultural, nutrindo de harmonia o seu território, podemos
chamar esse processo de: “Territorialidade” que “por sua vez, significa o conjunto de
práticas desenvolvido por instituições ou grupos no sentido de controlar um dado
território.” (ROSENDAHL, 1996, p. 58) De acordo com a teoria do Milton Santos
(2008) de fixos e fluxos, podemos separar as representações do sagrado responsáveis
pela construção da territorialidade no terreiro de candomblé. Sendo os fixos: rios – sob a
proteção de Oxum; mata – Oxossi; mar – Iemanjá; pedras – Xangô. Por fluxos
entendemos a dinâmica produzida, através da comunicação religiosa, das representações
simbólicas atribuídas a diversos objetos como: os atabaques Rum, Rumpi e Lé; adornos
dos orixás como o machado de Xangô; o espelho de Oxum; a vestimenta sagrada dos
orixás; os “colares de contas”, utilizados para designar proteção a quem usa, concedidos
por meio de presente para o recém ingressante na religião, têm uma ligação direta com o
orixá que rege a vida do iniciado.
       Para uma pessoa que está alheia a religião, todos os objetos sagrados, além de
adorno, não possuem mais nenhum significado, daí a importância de observá-los, de
acordo com a significação cultural neles contida. Ao desprezarmos toda a simbologia
contida no objeto, não levando em conta o processo histórico-cultural de representação,
estamos fadados a reduzir o candomblé ao título de folclore. Nei Lopes conceitua bem o
termo folclore e folclorização na “Enciclopédia da diáspora africana”:
                        FOLCLORE. Conjunto de costumes, crenças e técnicas de um povo,
                        transmitidas através de gerações por meio de relatos mitológicos,
                        provérbios, enigmas, canções e da experiência cotidiana. Com relação
                        aos produtos culturais de origem africana, o termo é muitas vezes mal
                        empregado, com utilização quase sempre servindo a um recalcamento
                        dessa produção em função de uma suposta superioridade da chamada
                        “cultura erudita”, de base européia. A esse tipo de recalcamento dá-se
                        o nome de folclorização. Com relação às expressões culturais negras,
                        a folclorização costuma, a partir de uma perspectiva eurocêntrica,
                        ressaltar seus aspectos exteriores, “pitorescos”, para mascarar as
                        condições em que essas manifestações são produzidas, sempre à



                                                                                           29
margem da produção cultural dominante, e, assim, ocultar seu papel
                         de agente transformador. (p. 280, 2004)

         Portanto, o processo de folclorização, visa descaracterizar a cultura afro-
brasileira, tirá-la todo o seu teor simbólico, ocasionando um processo de fetichização,
onde um objeto sagrado passa a ser exposto em um museu, ou em qualquer local, aquém
de seu território, desprovido de sua original significação, e passa a ser visto como algo
diferente, exótico. “A cultura africana posta de lado como simples folclore se torna um
instrumento mortal no esquema de imobilização e fossilização de seus elementos vitais.
Uma forma sutil de etnocidio.”(NASCIMENTO, 1978, p. 119) Os elementos simbólicos
contidos nos objetos, se esvaem, recebendo uma nova significação puramente estética e,
por conseguinte, eliminando toda a memória cultural. Consequentemente, “Arrancados
de seu ambiente, de suas referências geográficas, de suas funções rituais, de olhares de
seus participes, esses objetos não seriam mais que resíduos de crenças tribais para o
preconceito tão longamente afirmado.” (SALES. In: BARBOSA, 2008, p.170)




VIII – Inteligências Múltiplas em Arte/Educação – Metodologia

                                      “A vida penetra na arte como a arte age na vida” 17

         O propósito de descortinar a presença da cultura africana como parte constituinte
de nossa cultura, encontra na teoria das inteligências múltiplas, desenvolvida por
Howard Gardner, um importante suporte de sustentação teórica e aplicação prática dos
objetivos do trabalho. A educação fornece ferramentas de conscientização, que, por
conseguinte, intervêm no social levando a uma possível reconstrução da sociedade18. A
educação, de per si, já fornece aparato necessário de transformação social, pois, o
intento do trabalho é desmitificar idéias que perduraram durante séculos em nossa
sociedade, que sempre colocaram o negro à margem da sociedade. Portanto,
defendemos no presente trabalho, “a esfera educativa como sendo um dos ângulos
essenciais para a reafirmação cultural e a derrota da vergonha étnica, implantada nos
sistemas educacionais oficiais.” (GARCIA. In: OLIVEIRA, p. 14)




17
     PAREYSON, 2001, p. 41.
18
     BALLENGE-MORRIS; DANIEL; STUHR. In: BARBOSA, 2008.


                                                                                        30
Gardner (1995) identificou inteligências múltiplas em campos distintos, a saber:
linguística, lógico-matemática, espacial, musical, corporal-cinestésica, interpessoal,
intrapessoal.
          Como nos mostra este autor, identificar a inteligência que cada indivíduo possui,
tomando por base a Teorias das Inteligências Múltiplas, nos possibilita perceber que a
competência cognitiva humana é melhor descrita em termos de um conjunto de
capacidades, talentos, ou habilidades mentais que chamamos de inteligências19. O autor
define inteligência como: “A capacidade de resolver problemas ou elaborar produtos
que sejam valorizados em um ou mais ambientes culturais ou comunitários.” (1995,
p.14) Isto possibilita também, que cada pessoa expresse, por meio de ferramentas
artísticas (teatro, música, dança, pinturas, poesias, crônicas) o que conseguiu absorver
sobre o tema.
          A proposta de Gardner nos permite identificar na cultura brasileira a influência
de elementos africanos oriundos das celebrações do candomblé e usá-los como
instrumentos pedagógicos a fim de desenvolver nos educandos as múltiplas
inteligências, auxiliando a dissipação de discriminações e opiniões discriminatórias em
nossa realidade, pois, só por meio de uma cultura de paz conseguiremos acabar com
todo processo de desumanização pautado no preconceito20. Com os pressupostos de
Gardner, desenvolvemos a idéia de multiculturalismo em nossa sociedade, que abarca
diversas visões da realidade, podendo, assim, atingir um maior esclarecimento das
situações - que dizem respeito a culturas tradicionais e populares enquanto portadoras
de riqueza ímpar em nossa sociedade – conseguindo, dessa forma, traçar um paralelo
com outras áreas do saber, como literatura, artes, história, ciências sociais, etc. Unindo
áreas afins em prol do processo ensino aprendizagem, percebemos “(...) que a
competência cognitiva humana é melhor descrita em termos de um conjunto de
capacidades, talentos ou habilidades mentais que chamamos de ‘inteligências’.”
(GARDNER, 1995, p.21)
          Ao unir o candomblé (como cultura afro-brasileira) com a teoria das
inteligências múltiplas, estamos ampliando a visão das pessoas sobre sua comunidade,
onde poderiam participar mais ativamente, integrando-se e compreendendo as diferentes
pluralidades existentes, além de proporcionar-lhes mais recursos para a apreensão de um
tema, ao mesmo tempo atual e complexo.

19
     GARDNER, 1995.
20
     CAO. In: BARBOSA, 2008.


                                                                                        31
Com o intuito de mostrar uma visão diferenciada e alternativa à convencional,
buscamos embasar o conhecimento e torná-lo tão interessante quanto é, pois,
cometeríamos um crime pedagógico se acreditássemos que todos os educandos possuem
uma forma única de aprendizagem e, para suprirmos esta realidade, temos que levar em
conta a pluralidade do intelecto. Para tanto, utilizamos diferentes elementos expositivos
e práticos como instrumentos pedagógicos, a exemplo de: filmes, músicas, ilustrações,
poesias, textos, fotografias, instrumentos musicais e pratos típicos com referência no
candomblé, expondo elementos da cultura africana, que, transcenderam a religiosidade e
estão presentes no cotidiano cultural brasileiro, pois: “uma inteligência também deve ser
capaz de ser codificada num sistema de símbolos – um sistema de significados
culturalmente criado, que captura e transmite formas importantes de informação.”
(GARDNER, 1995, p.22)
         Nos capítulos posteriores haverá a exposição de cada tipo de inteligência e como
ela se relaciona com as manifestações culturais africanas no Brasil.
         Intimamente ligada às múltiplas inteligências está a arte/educação. Podemos
dizer que, somente pelo fato de se trabalhar a teoria de Gardner, já estamos praticando a
arte/educação. A arte, por sua vez, tem o poder de alcançar sentimentos e sensações que
normalmente não são alçadas, ressaltando que ela penetra no inconsciente por meio da
consciência21. O que gera uma maior criatividade e crítica ante o tema abordado, pois, a
arte abre perspectivas amplas, que fornecem instrumentos necessários para se
compreender o mundo com mais sensibilidade de maneira poética, flexível e
significativa22. Utilizar a arte na educação só faz enriquecer a proposta de trabalho,
proporcionando ao educando a visão de quão artísticas são as manifestações da cultura
africana no Brasil, principalmente do candomblé: “A vida social enobreceu-se e refinou-
se sob a evidente influência de um ideal estético, as várias cerimônias da vida (...)
religiosa colorem-se com arte, num nexo concreto em que a beleza não é separável do
resto, do culto, da convenção, do símbolo.” (PAREYSON, 2001, p. 30) Não há
possibilidade de dissociar a arte das celebrações do candomblé: “Essas minorias trazem
culturas, portanto arte, e desenvolvem-na em sua comunidade. Acredito ser importante
que a arte que eles fazem e sua peculiaridade seja reconhecida, analisada e registrada”
(SMITH. In: BARBOSA, 2008, p.33) O que devemos fazer é utilizar essa cultura
ressaltando suas significações culturais em prol do processo ensino–aprendizagem,

21
     VIGOTSKI, 2001.
22
     STRAZZACAPPA, 2006.


                                                                                      32
enfatizando que a interpretação das obras artísticas não é estática, de modo que sempre
nos deparamos com uma variável, imposta pelo nosso inconsciente:
                       A verdadeira natureza da arte sempre implica algo que transforma,
                       que superação sentimento comum, e aquele mesmo medo, aquela
                       mesma dor, aquela mesma inquietação, quando suscitadas pela arte,
                       implicam o algo a mais acima daquilo que nelas está contido.
                       (VIGOTSKI, 2001, p. 307)

       Neste processo, a educação se torna dinâmica, suprimindo o senso comum, que
difunde a idéia de que arte é somente aquela produzida por uma “elite” artística alheia
ao mundo exterior e, obras de arte são aquelas expostas nos museus que figuram, do
ponto de vista comportamental do adolescente, espaços monótonos, onde não se pode
conversar, correr, enfim em espaço de repressão. Apontar as diversas artes oriundas do
popular, bem como as expressões do candomblé na cultura brasileira é fazer com que o
educando comece a observar à sua volta elementos artísticos que são passíveis de
valorização, passando a observar seu cotidiano, atribuindo-lhes significados positivos,
reconhecendo e afirmando sua cultura. Portanto “a arte na educação, como expressão
pessoal e como cultura, é um importante instrumento para a identificação cultural e o
desenvolvimento individual.” (BARBOSA, 2008, p. 99)
       Para melhor situar o presente trabalho na temática da atualidade brasileira e
apontar a pertinência da abordagem do tema, nos remetemos à Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que inclui no currículo oficial da rede de ensino “História e Cultura
Afro-Brasileira”, sendo alterada pela Lei no 10.639, de 09 de janeiro de 2003, recebendo
sua versão final por meio da Lei nº 11.645, de 10 março de 2008, abarcando não
somente história e cultura afro-brasileira, mas também história e cultura indígena:
                       O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
                       aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da
                       população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
                       estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos
                       povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o
                       negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
                       contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
                       história do Brasil. (BRASIL. lei nº 11.645, 10 de março de 2008)

       A criação desta lei foi uma medida da União que podemos considerar como
contraditória, pois estas matérias já deveriam ser trabalhadas no conteúdo normal.
Portanto, o que podemos constatar é que há um processo de “embranquecimento” da
nossa memória, pois os ícones históricos no que tange a política, a cultura, ao social,
citados nos processo de ensino, são em sua maioria brancos, de modo que já deveria ter


                                                                                          33
sido reconhecida a importância de outras etnias na constituição cultural brasileira. Fato
que não é exclusivo do Brasil, pois, o governo colombiano, diante da mesma
problemática, em 1993 (três anos antes da criação da lei no Brasil) sancionou a “lei 70”
- de comunidades negras da Colômbia, que assegura o ensino das práticas, história e
cultura dos negros. Entretanto, mesmo tardia, a criação da lei em nosso país vem
auxiliar um processo de recuperação e valorização da memória indígena e africana, o
que ocorre espontaneamente nas celebrações do candomblé, nas quais são resgatadas
não só a memória, mas também a cultura do povo africano e, no caso do candomblé de
caboclo, além disso, nos deparamos com a valorização de traços da cultura aborígene
(indígena).



      8.1 – Inteligência musical
                                            “Negro entoou um canto de revolta pelos ares” 23

        Entendemos como inteligência musical a capacidade que indivíduos têm de
assimilar assuntos e temas por meio de músicas, possuindo facilidade rítmica, sendo
predispostos a tocar instrumentos e cantar. A música sempre teve seu espaço garantido
na constituição cultural da humanidade, são raros os povos que não possuem nenhuma
manifestação musical, que por sua vez, é uma importante agente de sociabilidade e
interação, pois muitos ritmos suscitam euforia e alegria, amor e desencanto. A música é
considerada uma forma de arte, por conseguinte, atinge o inconsciente, agindo por meio
dos sentidos, causando diversos tipos de emoções. Encontramos a gênese da sonoridade,
não no ser humanos racional, mas na própria natureza, onde as ondas ao “quebrarem” na
praia executam certa sonoridade, e a mitologia iorubana24 atribui a Iemanjá (a rainha do
mar) este som; o vento, ao soprar por entre as árvores regido por Iansã; as cachoeiras de
Oxum; passando de sonoridades para a música oriunda do “canto dos pássaros” que
“proporciona um vínculo com outras espécies. Evidências de várias culturas apóiam a
noção de que a música é uma faculdade universal.” (GARDNER, 1995, p.23)
        Como sabemos, a cultura africana alterou o espaço geográfico em que se inseriu,
re-significando vários aspectos da cultura vigente e um destes aspectos foi a música:
“As sonoridades, ritmos, danças e gestos são fatores distintivos das culturas africanas e


23
   Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro. “O Canto das Três Raças”. Gravada por Clara Nunes, no disco
“O Canto das Três Raças” no ano de 1976.
24
   Elementos míticos oriundos da África, que fundamentam o candomblé.


                                                                                                  34
revolucionaram a música nos diversos países onde essa presença chegou.” (SALES. In:
BARBOSA, 2008, p.185) Daí a relevância de se tratar deste assunto, pois a música
brasileira de um modo geral foi altamente influenciada por ritmos africanos, sobretudo
pelo candomblé, que possui como uma das bases de suas celebrações a música, sendo
impossível a existência da musicalidade brasileira sem se levar em conta ritmos
africanos.
          Na inteligência musical serão trabalhadas músicas compostas ou interpretadas a
partir de canções de umbanda e candomblé que foram incorporadas à cultura musical
brasileira, considerando que as músicas africanas são fundamentalmente rítmicas e,
portanto, plenamente musicais25. Ressaltando que estas músicas, foram gravadas e
comercializadas por seus intérpretes, despidas de toda a sua significação religiosa para
se tornarem produtos culturais, que na atualidade, pela ampla difusão tornaram-se
elementos da cultura global brasileira. Os intérpretes e compositores que difundiram o
candomblé como cultura brasileira são inúmeros, mas no presente trabalho nos atemos a
cinco artistas que auxiliaram neste processo, que são: Martinho da Vila, Maria Bethânia,
Vinicius Moraes e Baden Powell, Clara Nunes e Rita Ribeiro. Levando em
consideração que o intento do trabalho é abordar os temas por meio da arte/educação,
vale lembrar que os meios artísticos não são somente figuração do tema trabalhado, mas
possuem uma valoração estética, pois: “Arte e utilidade, beleza e funcionalidade nascem
juntos.” (PAREYSON, 2001, p. 54)
          O Interprete e compositor Martinho da Vila gravou se primeiro disco em 1969,
com músicas de samba, que como vimos, têm influência direta do ritmo semba –
executados nos terreiros em celebrações do candomblé. Este trabalho ainda não
continha um teor alto de religiosidade africana, mas, cita um procedimento ritualístico
do candomblé, conhecido como festa, na música “Casa de bamba”, composta por ele:
“Macumba lá na minha casa/ Tem galinha preta, azeite de dendê/ Mas ladainha lá na
minha casa/ Tem reza bonitinha e canjiquinha pra comer”. No disco gravado em 1974 –
“Canta, canta, minha gente”, Martinho transpôs para o disco pontos (músicas) da
religião umbanda, como observamos na música “Festa de umbanda”:
                         O sino da Igrejinha/ Faz belém blem blam/ Deu meia-noite/ O galo já
                         cantou/ Seu tranca rua/ Que é dono da gira/ Oi corre gira/ Que ogum
                         mandou/ Tem pena dele/ Benedito tenha dó/ Ele é filho de Zambi/ Ô
                         São Benedito tenha dó/ Tem pena dele Nanã/ Tenha dó/ Ele é filho de
                         Zambi/ Ô Zambi tenha dó/ Foi numa tarde serena/ Lá nas matas da

25
     SODRÉ, 1998.


                                                                                         35
Jurema/ Que eu vi o caboclo bradar/ Quiô/ Quiô, quiô, quiô, quiera/
                       Sua mata está em festa/ Saravá seu mata virgem/ Que ele é rei da
                       floresta/ Vestimenta de caboclo/ É samambaia/ Saia caboclo/ Não me
                       atrapalha/ Saia do meio/ Da samambaia.

       Na referida música, Martinho da Vila assume a adaptação da música, mas não a
composição, que está como domínio público. O Tranca Rua é a entidade umbandística
responsável por zelar pelas pessoas que ficam na rua depois da meia noite, sendo “dono
da gira”. Jurema é uma cabocla, aborígene que cuida das matas e florestas como todos
os caboclos.
       Dando continuidade a analise dos referidos artistas, expomos que Maria
Bethânia foi reconhecida no cenário brasileiro por não esconder sua religiosidade,
exaltando suas crenças por meio de canções. Seu primeiro disco foi datado de 1965, mas
somente em 1969 em seu 4º trabalho que gravou músicas referentes ao candomblé como
“Dia dois de Fevereiro” de Dorival Caymmi: “Dia dois de fevereiro/ Dia de festa no
mar/ Eu quero ser o primeiro/ A saudar Iemanjá”. Dia em que milhares de devotos vão
ao mar entregar “oferendas” - “O presente que eu mandei pra ela/ De cravos e rosas
vingou/ Chegou, chegou, chegou/ Afinal que o dia dela chegou”. Em 1970, Bethânia
gravou dois pontos - utilizados nas celebrações do candomblé, a autoria de ambas
consta como domínio público adaptado pela Cantora: “Ponto de Iansã” no dialeto iorubá
- “Oya, Oya, olha ê!/ Olha a Matamba de karoká zingue/ Oya, Oya, Olha ê!/ Olha a
Matamba de Kakoká zingue ô.”, e “Ponto de Oxossi”: “O galo cantou/ Ta chegando a
hora/ Oxalá ta me chamando/ Caçador já vai embora.”. Oxalá é, na mitologia, o criador
da terra, portanto, todos os orixás lhe devem obediência, inclusive Oxossi que é caçador
e senhor das matas (PRANDI, 2001). Em 1971, grava “Ponto de Oxum” composição de
Toquinho e Vinícius de Moraes: “Nhem-nhem-nhem/ Nhem-nhem ô xorodô/ É o mar, é
o mar/ Fé-fé xorodô/ Xangô vivia em guerra/ Conhecia toda terra/ Tinha ao seu lado
Iansã pra lhe ajudar/ Oxum era rainha,/ Na mão direita tinha/ O seu espelho onde vivia/
A se mirar”. Na mitologia iorubana, que fundamenta o candomblé, bem como nas
sociedades africanas antes da escravidão, era permitido ao homem possuir várias
esposas, Xangô era casado com Iansã, depois se casou com Oxum, que é a orixá da
beleza e da fertilidade, apresenta alto grau de vaidade se preocupando com sua beleza,
por isso anda com espelho para se mirar (VERGER, 1981). Em 2009, a cantora gravou
o cd “Encanteria”, dedicado a elementos da musicalidade popular, na música “Feita na
Bahia” composta por Roque Ferreira, a cantora faz um apanhado de sua religiosidade:



                                                                                       36
Fui feita na Bahia/ Num terreiro de Oxum/ Os tambores sagrados/
                         Bateram pra mim/ Me banhei com guiné, alfazema e dandá/ Defumei
                         com quarô, benjoin/ E de pano da costa/ Batizei no Bonfim/ Um velho
                         preto alaketo me disse/ Que foi lá de Keto que eu vim/ Eu já vim
                         predestinada pra cantar assim/ Sou iluminada, eu sou/ Sou de Keto
                         sim/ Sou iluminada, eu sou/ Sou de Keto sim.

       O termo “feita” faz alusão ao ritual de virar o santo, ou seja, se iniciar no
candomblé, a música completa com os passos de purificação para estar preparada para
tal evento, o “velho preto alketo” diz respeito ao “pai de santo” figura respeitada, no
topo da hierarquia do território terreiro.
       O cantor e compositor Vinicius de Moraes se uniu com o instrumentista Baden
Powell em 1966 e gravaram um disco que entrou pra história da música e nos interessa
pelo fato de ter marcado a inserção da cultura africana no mercado fonográfico e, por
conseguinte, no espaço profano. Com elementos de exaltação em uma genuína
africanidade brasileira, o disco intitulado de “Afro-Sambas”, reúne onze músicas que
em suas letras e seus ritmos fazem alusão ao candomblé e umbanda. Na música “Canto
de Ossanha” contam a história do Orixá que “vivia numa guerra não declarada contra
Orunmilá, procurando sempre enganá-lo, preparando armadilhas, para transtorno do
velho.” (PRANDI, 2001, p. 161)
                         O homem que diz "dou" não dá/ Porque quem dá mesmo não diz/ O
                         homem que diz "vou" não vai/ Porque quando foi já não quis/ O
                         homem que diz "sou" não é/ Porque quem é mesmo é "não sou"/ O
                         homem que diz "estou" não está/ Porque ninguém está quando quer/
                         Coitado do homem que cai/ No canto de Ossanha, traidor/ Coitado do
                         homem que vai/ Atrás de mandinga de amor/ Vai, vai, vai, vai, não
                         vou/ Vai, vai, vai, vai, não vou/ Que eu não sou ninguém de ir/ Em
                         conversa de esquecer/ A tristeza de um amor que passou/ Não, eu só
                         vou se for pra ver/ Uma estrela aparecer/ Na manhã de um novo amor/
                         Amigo sinhô Saravá/ Xangô me mandou lhe dizer/ Se é canto de
                         Ossanha, não vá/ Que muito vai se arrepender/ Pergunte pro seu
                         Orixá/ Amor só é bom se doer (...)

        Na música “Canto para Xangô” do mesmo disco, percebemos a importância
dada a Xangô, o filho direto de Oxalá, orixá da Justiça, que carrega consigo um
machado de duas lâminas, possuidor do Axé:
                         Eu vim de bem longe/ Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim/
                         Sou filho de Rei/ Muito lutei pra ser o que eu sou/ Eu sou negro de
                         cor/ Mas tudo é só amor em mim/ Tudo é só amor para mim/ Xangô
                         Agodô/ Hoje é tempo de amor/ Hoje é tempo de dor, em mim Xangô
                         Agodô/ Salve, Xangô, meu Rei Senhor Salve, meu orixá/ Tem sete
                         cores sua cor/ Sete dias para a gente amar (...)




                                                                                         37
A cor deste orixá é o branco, por isso a designação “tem sete cores sua cor”, seu
dia da semana é sexta-feira, em que todos os devotos devem se privar de bebidas
alcoólicas, sexo, e por obrigação devem usar indumentária branca em respeito ao “Rei”.
       No contexto da exaltação da cultura afro-brasileira está a cantora Clara Nunes,
que, durante sua vida foi devota fervorosa da umbanda e a maioria de seus trabalhos
continham alusão à religiosidade iorubana:
                       Clara Nunes surgiu como uma espécie de “reedição” da baiana de
                       Carmen Miranda, imprimindo-lhe um conteúdo religioso mais
                       evidente. Apresentava-se, freqüentemente, descalça e vestida de
                       “filha-de-santo” estilizada, usando saia rodada de renda branca,
                       colares e figas, pulseiras e, na cabeça, diademas de conchas, palhas e
                       flores. (AMARAL; SILVA, 2006, p. 210)

      Na música “Guerreira”, composta por João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro,
gravada pela cantora no disco “Guerreira” em 1978, os autores fazem um apanhado da
vida da artista, mostrando sua religiosidade, dizendo ser: “Filha de Angola, de Ketu e
Nagô”, afirmando ainda na canção: “Não sou de brincadeira/ Canto pelos sete cantos/
Não temo quebrantos/ Porque eu sou guerreira/ Dentro do samba eu nasci,/ Me criei, me
converti/ E ninguém vai tombar a minha bandeira (...) Eu sambo pela noite inteira/ Até
amanhã de manhã/ Sou a mineira guerreira/ Filha de Ogum com Iansã.” Encontramos
neste trecho a afirmação de sua africanidade e, sobretudo, um orgulho de ser partícipe
desta cultura, expondo o nome de seus “pais” no candomblé. As religiões africanas são
cerceadas por superstições que auxiliam o bom andamento da vida de seus adeptos, a
música “Banho de manjericão”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, gravada no
disco “Esperança” em 1979 “mostra uma síntese das mais conhecidas maneiras de se
livrar do mal e obter proteção” (AMARAL. SILVA, 2006, p. 210) Como observamos:
                       Eu vou me banhar / De manjericão / Vou sacudir a poeira do corpo
                       batendo com a mão / E vou voltar lá pro meu congado / Pra pedir pro
                       santo pra rezar quebranto e cortar mau-olhado / Eu vou bater na
                       madeira três vezes com o dedo cruzado / Vou pendurar uma figa no
                       aço do meu cordão / Em casa um galho de arruda é que corta / Um
                       copo d’água no canto da porta / A vela acesa e uma pimenteira no
                       portão / E com vovó Maria que tem simpatia pra corpo fechado / É
                       com Pai Benedito que benze os aflitos com o toque de mão / E Pai
                       Antônio cura desengano(...)

       A cantora e compositora Rita Ribeiro gravou em 2006 o cd “Tecnomacumba”
que consiste na união entre músicas com influência do candomblé e da umbanda com
elementos da música técno - eletrônica. Re-significando toda a sonoridade das músicas,
proporcionando um toque contemporâneo à religiosidade afro-brasileira. Na música que



                                                                                          38
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  • 1. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE Candomblé e Múltiplas Inteligências: Um caminho para valorização da cultura afro-brasileira brasileira PRESIDENTE PRUDENTE Outubro de 2010
  • 2. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE Luís Gustavo de Freitas Dias Candomblé e Múltiplas Inteligências: Um caminho para valorização da cultura afro-brasileira brasileira Trabalho de conclusão de curso de bacharelado em Geografia. Orientadora: Professora Doutora Marília Coelho. PRESIDENTE PRUDENTE Outubro de 2010 1
  • 3. Banca Examinadora Professora Doutora Marília Coelho Orientadora Nota Final: Conceito A. Nota 10. Professor Doutor Raul Borges Guimarães Nota Final: Conceito A. Nota 10. Professor Doutor Irineu Aliprando Viotto Filho Nota Final: Conceito A. Nota 10. 2
  • 4. Dedico este trabalho à minha mãe, ao meu pai, à minha irmã Fernanda que tanto me ajudou e incentivou nesta empreitada, aos meus amigos e à Mãe D´Água... Odofiaba, Iemanjá! 3
  • 5. Agradeço minha família, meus amigos: Micheli, Rods, Heide, Thiago, Manoela, Pássaro, Natalias Cano e Dred, Izid, Drinks, Fernanda, Gabriela, Ricardo Carlos - amigo companheiro e Marília Coelho – minha orientadora. 4
  • 6. “Que noite mais funda calunga No porão de um navio negreiro Que viagem mais longa candonga Ouvindo o batuque das ondas Compasso de um coração de pássaro No fundo do cativeiro É o semba do mundo calunga Batendo samba em meu peito Káwo-kabiesile-káwo-okê-arô-okê Quem me pariu foi o ventre de um navio Quem me ouviu foi o vento no vazio Do ventre escuro de um porão Vou baixar no seu terreiro Êpa raio, machado e trovão Êpa justiça de guerreiro Ê semba ê ê samba ah O batuque das ondas Nas noites mais longas Me ensinou a cantar Dor é o lugar mais fundo É o umbigo do mundo É o fundo do mar No balanço das ondas okê arô Me ensinou a bater seu tambor No escuro porão eu vi o clarão Do giro do mundo Ê céu que cobriu nas noites de frio Minha solidão É oceano sem fim, sem amor, sem irmão Ê káwo quero ser seu tambor Eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão Luar de luanda em meu coração Umbigo da cor, abrigo da dor, A primeira umbigada é Massemba Yayá Yayá Massemba é o samba que dá1” 1 Yaya Massemba - Roberto Mendes e Capinan. 5
  • 7. Sumário I – Introdução ............................................................................................................ 07 1.1 – Gênese da desvalorização da cultura afro-brasileira ....................... 07 II – Da África ao novo mundo .................................................................................. 08 III – Abolição da escravatura .................................................................................... 13 IV – Afirmação da cultura negra .............................................................................. 16 V – Candomblé – religiosidade e resistência cultural ............................................... 19 VI – Sincretismo no candomblé ................................................................................ 26 VII – Terreiro - território África ............................................................................... 25 VIII – Inteligências Múltiplas em Arte/Educação – Metodologia ............................ 30 8.1 – Inteligência musical ....................................................................... 34 8.2 – Inteligência espacial ....................................................................... 40 8.3 – Inteligência corporal-cinestésica ................................................... 46 8.4 – Inteligência intrapessoal ................................................................ 48 8.5– Inteligência interpessoal ................................................................. 49 8.6 – Inteligência linguística .................................................................. 52 8.7 – Inteligência lógico-matemática ..................................................... 54 IX – Avaliação .......................................................................................................... 62 X – Espetáculo de teatro como instrumento pedagógico .......................................... 63 XI – Considerações finais ......................................................................................... 65 XII – Referências bibliográficas ............................................................................... 67 6
  • 8. I – Introdução Este trabalho é fruto de uma longa caminhada, na qual se entrecruzam várias experiências, dentre as quais o projeto de extensão universitária “A afirmação da cultura africana como parte integrante da cultura brasileira”, iniciado em 2008, desenvolvido na Escola Estadual Arlindo Fantini em Presidente Prudente – SP2. O amadurecimento teórico, bem como a reflexão sobre a temática nele desenvolvida foram determinantes para que alguns aspectos norteadores da pesquisa se modificassem dando origem a uma nova proposta. Assim, o presente trabalho de conclusão do curso de bacharelado em geografia tem como objetivo o ensino da cultura afro-brasileira por meio da arte/educação atrelada a teoria das múltiplas inteligências3, utilizando o teatro como ferramenta de desenvolvimento e síntese no processo de ensino/aprendizagem. A experiência de utilizar ferramentas metodológicas numa proposta de trabalho prático alternativas permitiu colocar a geografia em contato direto com elementos produzidos no seio da nossa cultura, proporcionando ao educando possibilidades novas de apreensão do tema. Para tanto faremos um apanhado histórico, para melhor situar o educando no tema, ressaltando que o problema da desvalorização cultural afro-brasileira deita raízes na história da colonização do nosso país, que foi manchada de sangue, suor e lágrimas. 1.1 – Gênese da desvalorização da cultura afro-brasileira - Com a abolição da escravatura no Brasil, a condição dos negros não mudou muita coisa, mas, mesmo assim, houve uma luta no plano cultural com o fim de manter os traços tradicionais da cultura africana que foram se inserindo de forma a enriquecer a cultura brasileira. Dentre todas as manifestações, destacamos o candomblé, que, como religiosidade se difundiu em larga escala e depois, por meio de artistas, se tornou parte constituinte da cultura brasileira. Tratamos o candomblé, pelo olhar geográfico, por meio do conceito de território, rugosidade4 e espaço sagrado, auxiliando o educando a compreender de forma dinâmica esta religiosidade, se despindo de preconceitos e discriminações. 2 No ano de 2009 recebeu o prêmio na categoria A no 5º congresso de extensão universitária, realizado em Águas de Lindóia – SP. 3 GARDNER, 1995. 4 SANTOS, 2008. 7
  • 9. Após a exposição da história dos negros no Brasil, é na proposta de Howard Gardner acerca das múltiplas inteligências que encontramos ferramentas teóricas necessárias para dar continuidade ao trabalho. Ao defender a pluralidade da forma de aprendizagem, o autor prioriza outros materiais pedagógicos, bem como: pinturas, vídeos, músicas, artes plásticas, danças, etc. Todos estes materiais são encontrados em elementos da cultura africana, nas celebrações do candomblé, que transcenderam o papel religioso e se encontram largamente difundidos no espaço geográfico – profano. Percebemos que ao trabalhar as múltiplas inteligências nos educandos já estaremos desenvolvendo o conceito de arte/educação, onde elementos artísticos são utilizados como meios pedagógicos. Para costurar todas as inteligências, transformando o resultado do processo de ensino/aprendizagem em uma síntese, utilizamos o teatro, que leva à prática todo o conhecimento adquirido, expondo-o aos olhares de outros, ocasionando uma valorização do educando e, sobretudo, de sua produção. II - Da África ao novo mundo “O negro segura a cabeça com a mão e chora Chora sentindo a falta do rei” 5 Retirar um povo de seu país por meio de formas desumanas, utilizando a teoria de que esse povo, por causa da cor de sua pele, era tido como infiel e por isso merecia ser escravo, é uma forma bruta de imposição cultural do ocidente, não havendo fundamento plausível para tal prática. Enquanto os colonizadores só enxergavam lucros e montantes de dinheiro, a população negra, a mercê desses dominadores, é iniciada num longo e doloroso martírio, marcado pelo sofrimento e degradação, determinadas populações se viam a mercê desses gananciosos. Os negros acreditavam em uma terra sagrada que havia depois do oceano: chamada calunga, terra sagrada, representando a barreira entre a vida e a morte, onde só havia paz (SLENES, 1999), lá encontrariam o Axé6. Sem compreender porque eram colocados de forma vil em um porão de navio, com pouca comida, pouca água, muitas 5 Nego Tenga – Brilho de beleza, 1990. 4 Poder em estado de energia pura (VERGER, 1981). 8
  • 10. vezes longe de seus familiares e desprovidos de dignidade, tentavam procurar um conforto pensando na calunga. O além mar, não era o das representações simbólico/religiosas, o que esperava por eles era um futuro bem pior, manchado de vermelho sangue, de sofrimento e angústia. O grande mal dos séculos se iniciou: a escravidão. Os negros capturados eram de diversas regiões africanas, tribos e castas, algumas até com dialetos diferentes, eram colocados nos “navios negreiros” que: (...) Traziam indistintamente membros das mais diversas tribos; daí uma solidariedade nova, a do sofrimento suportado em comum (...) a escravidão, em seguida, concluía esse trabalho de desterritorialização, disseminando as famílias ao acaso da necessidade agrícola, nas fazendas dispersas. (BASTIDE, 1973, p. 260) Fato que auxiliava na dificuldade de organização de futuras revoltas contra os “senhores”. O geógrafo Milton Santos afirma: “Desterritorialização é, frequentemente, uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturação.” (2008, p. 328) Sendo assim, a desterritorialização está completa, pois, tirou-os da terra que se identificavam e mantinham sua cultura, e também tirou a mais remota possibilidade de identificação com o novo lugar, que poderia brotar da relação com entes familiares queridos, pois, os negros não eram apenas corpos pecadores sem alma nem sentimento, transportados como peça a servir de escravo, mas pessoas com vida, anseios, portadores de uma história única e peculiar: Os navios negreiros transportaram através do atlântico, durante mais de trezentos e cinqüenta anos, não apenas o contingente de cativos destinados aos trabalhos de mineração, dos canaviais, das plantações de fumo localizadas no novo mundo, como também sua personalidade, a sua maneira de ser e se comportar, suas crenças. (VERGER, 1981, p. 23) Ao pisar em solo brasileiro, todos os negros eram submetidos a um ritual católico de batismo, figurando a sua conversão imediata e aceitação a um dogma religioso ocidental, totalmente distinto de suas crenças. Há um indiscutível caráter mais ou menos violento nas formas, ás vezes sutis, da agressão espiritual a que era submetida a população africana, a começar pelo batismo ao qual o escravo estava sujeito nos portos[...]Essa igreja (católica) possuiu escravos com fins lucrativos, e constantemente perseguiu e atacou crenças religiosas africanas durante séculos, até os dias atuais. (NASCIMENTO, 1978, p. 101) A Igreja católica, apoiando a colonização do território brasileiro, apoiou também a escravidão. Como forma expurgar os pecados desses infelizes condenou-os a servidão 9
  • 11. eterna, pois, cometeram o grave pecado de nascerem negros. Segue um depoimento datado de 1633, que um “bondoso e digníssimo” padre proferiu: Deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós viveis como gentios, e vos ter trazido a esta, onde, instruídos na fé, vivais como cristãos e vos salveis. (VIEIRA, apud NASCIMENTO, 1978, p. 52) Demasiada prepotência fazer tais afirmações. Este é o retrato da bandeira que igreja católica carregava na época da escravidão, que tentou suprimir de todas as formas a cultura dos negros em nosso país, entretanto, não se deu conta de que estava lidando com um povo que trazia consigo uma cultura milenar, com várias gerações de tradição, e que seria ingenuidade pensar que seria fácil apagar da memória dos negros todo o passado e o processo histórico pelo qual passaram. Todas as formas de suprimir a cultura dos africanos foram tomando proporções cada vez piores, quanto maior era a chegada de negros nos portos brasileiros. Paralelo a esse processo de aculturação, o negro assumiu seu papel na economia, que por sua vez era de simples peça de trabalho, e essa era sua função. O trabalho forçado começou: lavouras, plantações, trabalhos domésticos, subserviência, exploração sexual da mulher. O negro tornou-se escravo, a áfrica ficou cada vez mais distante, a busca pelo calunga se tornou eterna. Os abusos de poder tornaram-se cada vez mais usuais, muitas vezes regados a requintes de crueldade. A coroa portuguesa só conseguiu tornar o Brasil um país lucrativo por meio da exploração do negro: “A imediata exploração da nova terra se iniciou com o simultâneo aparecimento da raça negra fertilizando o solo brasileiro com suas lágrimas, seu sangue, seu suor e seu martírio na escravidão.” (NASCIMENTO, p. 48) As mulheres foram grupo vítima do desejo dos “senhores”. Alvo fácil de explorações sexuais e das mais diversas fantasias pitorescas. O que ocorria muitas vezes com o próprio consentimento da esposa, que depois se aproveitava para maltratar e até torturar a suposta “amante” do marido. Não foram poucos os martírios sofridos pelos negros, o sangue continuou jorrando enquanto durou a escravidão, entretanto o discurso dos “proprietários” brasileiros era díspar dessa realidade, negando, que nas senzalas da escravidão, qualquer tipo de mau trato era cometido: Proprietários e mercadores de escravos no Brasil, a despeito das várias alegações em contrário, em realidade submeteram seus escravos africanos ao tratamento mais cruel que se possa imaginar. Deformações físicas resultantes do excesso de trabalho pesado; aleijões corporais conseqüentes de punições e torturas, às vezes de 10
  • 12. efeito mortal para o escravo – eis algumas das características básicas da “benevolência” brasileira para com a gente africana. (NASCIMENTO, 1978, p. 57) Na América do Norte, a discriminação da população branca para com os negros era bastante forte e dissimulada, mas a realidade brasileira era bem diferente – diziam os “senhores”. O Brasil carregou por longos anos a bandeira de tolerância e, como o próprio autor externa: “benevolência”, quando seus verdadeiros atos eram bestiais e animalescos, ao subjugar e até mesmo torturar os cativos, muitas vezes por simples gosto, gozando do fato de possuir o poder sobre aquele ser, privado de vida. Como o caso da reabertura de arquivos do “santo oficio” em Lisboa, que denuncia torturas cometidas pelo “Mestre” Garcia Dávila Pereira de Aragão, fazendeiro. Segue um dos casos explicitados: “O preto velho Antônio Magro, beirando os 80 anos, cujo suplício incluiu o ardor de uma manchela de pimentas malaguetas introduzidas em seu corpo através de um canudo de pito.” (MOTT. In: REIS, 1988, P. 24) Entre os entes financiadores da escravidão, aliados aos interesses dos fazendeiros e, por conseguinte, conivente com todas as atrocidades cometidas, estava a “santa” igreja católica. Utilizando a religião como forma coercitiva, afirmando através até mesmo de textos bíblicos a escravidão. Com o intuito de apagar completamente todos os bens simbólicos contidos na memória e na carga cultural que negros traziam consigo da mãe África. Entretanto, o discurso era o mais belo de todos: a salvação das pobres almas pagãs, a intenção foi estritamente religiosa, porém: “Essa igreja possuiu escravos com fins lucrativos, e constantemente perseguiu e atacou as crenças religiosas africanas durante séculos, até os dias atuais.” (NASCIMENTO, 1978, p. 101) Por melhores que possam ter sido os intentos, a realidade mostra a ferida causada, e que não cicatrizou. Em vista de todo este processo, não seria espantoso saber que os exploradores colonialistas eram bastante religiosos, afinal, em nome do sagrado que esta instituição tanto os auxiliou em seus anseios. Documentos da época do tráfico negreiro comprovam: Passando em revista os nomes dos navios relacionados em diversos documentos, observamos que, até 1800 aproximadamente, todos aqueles dedicados ao tráfico de escravos encontravam-se sob a proteção da Virgem Maria, de Cristo, dos santos e, até mesmo, das almas. (VERGER, 1981, p. 24) 11
  • 13. Qualquer religioso em meio a tantos santos se sentiria bem protegido. Pena que estes santos privilegiam um tipo de cor de pele. Oram somente pelos ocidentalizados, brancos e aptos à salvação. A brilhante obra de Gilberto Freyre “Casa grande e senzala” (1998), mostra que muitos dos africanos que aqui chegaram possuíam educação refinada e escreviam numa língua desconhecidas dos brancos; essa língua era o árabe. Segundo Freyre (1998), a percepção desse refinamento que divergia conforme a casta no país de origem, era o que justamente determinava as funções desenvolvidas tanto pelas mulheres , quanto pelos homens, quer na lavoura, quer na casa grande. Colocar o papel imprescindível que a obra de Gilberto Freyre tem, no sentido de proporcionar uma outra leitura do Brasil, ao desmistificar a inferioridade da cultura africana, colocando-a como parte integrante e importantíssima para a afirmação da genuína cultura brasileira, fruto da miscigenação de brancos, índios e negros. Já os africanos, em meio a tantos interesses infundados, traziam consigo sua cultura submersa junto a seus corpos nas piores condições possíveis, nos navios negreiros. Passado incrustado em uma infinidade de costumes e crenças. Dentre as crenças desta população, estavam as religiões. Entre os negros, existiam grupos que cultuavam diversos deuses, intitulados: Orixás, figurando uma das principais práticas religiosas do continente africano - o candomblé. No século XVI a igreja católica reprimia de forma severa qualquer outro pensamento religioso que não coincidissem com os seus, em busca de uma hegemonia, almejando o controle além dos limites territoriais - “O uso da pressão política para destruir outros sistemas religiosos se deu através da conquista e da extensão de controles políticos, que induziam à conversão por meio de uma variedade de pressões.” (ROSENDAHL, 1996, p. 62) Ante toda essa carga cultural, nociva aos interesses ocidentais, a igreja e a coroa tiveram que adotar medidas de genocídio cultural. Os negros eram obrigados a participar de rituais católicos, adorarem um só deus e todos os santos. Como forma de burlar a proibição às crenças religiosas africanas, os negros começaram a dar correspondência africana, aos santos católicos. Santa Barbara passou a ser: Iansã; Nossa Senhora: Iemanjá; São Jorge: Ogum. Assim procedendo, os negros conseguiram manter viva sua crença, mesmo diante do genocídio cometido conta eles na época. Com toda força típica de um povo que já aprendeu a sofrer, mais uma vez, resistiram. Em agosto de 1834, na Inglaterra, foi decretada a abolição completa da escravidão em suas colônias. A pressão era cada vez maior para o Brasil tomar a mesma 12
  • 14. atitude. A primeira alteração no sistema escravocrata nacional ocorreu em 1850, quando foi decretada a Lei Eusébio de Queirós, que tornou ilícito o tráfico de escravos. Alguns anos mais tarde, em 1871, entrou em vigor a Lei Visconde do Rio Branco, conhecida também como a Lei do Ventre Livre, estabelecendo que filhos de escravos, que nascessem após a promulgação da lei, seriam considerados livres, ficando a cargo dos proprietários de escravos criá-los até os oito anos de idade, após esta data poderiam entregá-los ao estado e receber uma indenização. De que adiantava o filho livre e a mãe escrava? Os senhores cuidavam de que forma das crianças? Em 1855 era a vez dos escravos idosos conseguirem a liberdade, com a promulgação da Lei Saraiva-Cotegipe, mais conhecida como Lei dos Sexagenários, ao completar 65 anos de idade (se suportassem viver tanto em condições péssimas e de exploração). A pressão continuava por parte da Inglaterra, principalmente depois de passados 54 anos da abolição inglesa. Em 1888, mais precisamente 13 de maio, oficialmente a escravidão foi abolida no Brasil. Mas, mesmo assim, continuou como forma ilegal de exploração humana. III - Abolição da escravatura “Tava durumindo Cangoma me chamou Disse levanta povo cativeiro acabou” 7 Agora o escravo é livre. Livre pra que? Em uma sociedade totalmente racista, alicerçada nas vigas da escravidão que perdurou por mais de 300 anos. Infelizmente a lei não bastou para acabar com todos os males que este sistema brutal causou aos negros. Restou a África perdida, o não pertencimento ao lugar onde vivem. Jogados à margem da nossa sociedade, os negros não conseguiam empregos (herança racista do sistema escravocrata), muitas vezes tinham que voltar e trabalhar para os seus antigos “senhores” em condições parecidas com as que viviam anteriormente, e permaneciam nessas fazendas, agora presos por dívidas, pois, tinham que comprar sua comida na venda de propriedade do próprio patrão. Ainda não tinham se findados os sofrimentos do negro na Brasil. A abolição: Não resolveu o problema fundamental do escravo que era o acesso à propriedade de terra. Este liberto, sem qualificação profissional, em um país essencialmente agrário, não tinha outra alternativa senão 7 Domínio Público. 13
  • 15. transformar-se em trabalhador livre, assalariado ou semi-assalariado dos seus antigos patrões. (ANDRADE, 1983, p. 40) A luta para conseguir se firmar no espaço foi muito grande, entretanto, as oportunidades continuavam escassas. Muitos programas de imigração, após a abolição, se deram no Brasil. Trazendo como mão de obra para setor primário no país: chineses e europeus, sem nenhuma preocupação por parte do governo para com a absorção da mão de obra interna – dos negros e tantos outros pobres desempregados no país. Esse fato evidencia a política de embranquecimento da população, auxiliando um processo de europeização e supremacia cultural: “A elite brasileira caminhava agora para definir o negro como um problema racial, um obstáculo a um destino nacional que se desejava moldado em padrões europeus.” (REIS. In: REIS, p. 88) À sombra de toda essa realidade, o Brasil sempre levantou a bandeira de ser um país gozando plena democracia racial. Onde, independente da etnia, somos todos irmãos, tolerantes, com determinada aversão ao racismo, predizendo a gratidão da população africana e afro-descendente para com um povo tão bondoso, que até mesmo permite que o negro comungue de sua cultura superior. Ai daqueles que duvidarem disso, estarão fadados à repugnância da população que reproduz discursos panfletários, dizendo que o próprio negro é racista. Nascimento (1978) discutiu acerca dessa suposta democracia racial: Devemos compreender “democracia Racial” como significado a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro(...) Da classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicação da “mancha negra”(...) Monstruosa máquina ironicamente designada “democracia racial” que só concede aos negros um único “privilégio” aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora. A palavra desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação, aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície teórica permanece intocada a crença da inferioridade do africano e seus descendentes.” (p. 93) Podemos muito bem entender o fato de a miscigenação ser um ato positivo em nosso país, reflexo da diversidade étnica aqui presente, oferecendo-nos a materialidade de quão grande e plural é o nosso território nacional. Sem contar na grande contribuição cultural que todas estas etnias ofereceram para a constituição cultural brasileira, em termos tradicionais e globais. Porém, pensando em termos históricos, o primeiro contato entre duas etnias se deu de forma arbitrária, portugueses e índios, dando origem ao “caboclo”. Essa “mistura” não aconteceu de forma espontânea, os portugueses 14
  • 16. estupravam as nativas. O resultado deste desamor era o filho bastardo, rejeitado pelo pai e pela mãe, que via na criança um produto de seu sofrimento. Com a chegada dos negros no Brasil, a exploração sexual mudou de foco, eram nas negras que os “senhores” descarregariam suas vontades sexuais mais sórdidas. Mais uma vez o filho bastardo. Relegado pelo pai e pela mãe. E assim constituímos nossa miscigenação. A mulata (filha de branco com negro) foi cada vez mais sexualizada em nossa sociedade: (...) a existência da mulata significa o “produto” do prévio estupro da mulher africana, a implicação está em que após a brutal violação, a mulata tornou-se só objeto de fornicação, enquanto a mulher negra continuou relegada à sua função original, ou seja, o trabalho compulsório. (NASCIMENTO, 1978, p. 62) Como resultado de todo o processo exposto, os descendentes de africanos seguiram à margem de nossa sociedade, sobrando apenas maus salários, condições precárias de vida, levando essa população sempre em direção às periferias e favelas, fruto da segregação sócio-espacial, entretanto, não se direcionaram a esses lugares por vontade, mas por não terem condições financeiras de comprar ou alugar uma casa nas áreas habitáveis da cidade, não possuíam instrução suficiente para executar tarefas com um retorno financeiro melhor. Sendo assim um ciclo de discriminação se dá, na escola, na rua, no emprego. Criando uma crescente desvalorização cultural. No campo das artes o negro também era discriminado: “Em 1969, estreava na TV a novela A Cabana do Pai Tomás (...) Sérgio Cardoso era maquiado para que pudesse interpretar o papel do Pai Tomás, negro idoso, fiel e serviçal.” (LIMA; SILVIA; SOUSA; SOUZA, p.174, 2005) Fato que ocorria também no teatro, caras pintadas de preto para figurar negros. No teatro brasileiro demoraram aceitar os afro- descendentes como atores, todavia, quando os englobaram nas montagens cênicas, era para representar papéis pejorativos, cômicos: Quando um ator ou uma atriz de origem africana tinha a oportunidade de pisar em um palco, era, invariavelmente, para representar um papel exótico, grotesco ou subalterno; um dos muitos estereótipos negros destituídos de humanidade, tais como a criadinha de fácil abordagem sexual, o moleque careteiro levando cascudo, a mãe preta chorosa ou domesticado pai João. (NASCIMENTO, 1978, p. 162) Estigmas que têm reflexo em nossa sociedade até os dias atuais, manchas que não somem do universo simbólico das representações sociais. Este é o fardo que nosso país carrega depois de mais de trezentos anos de escravidão. Apesar de toda a carga cultural que o negro trouxe para nossa sociedade, ele ainda sofre discriminações, 15
  • 17. tomamos conta de uma das mais ricas representações culturais que o negro trouxe consigo do além mar: o candomblé. IV – Afirmação da cultura negra “Você me chamou de nego Querendo desfazer da cor Não sabe que eu tenho orgulho Do que você tem horror” 8 Como vimos, o negro foi sempre deixado a margem da sociedade, e como se não bastasse, mesmo após a abolição da escravidão, muitas de suas práticas culturais ainda estavam na ilegalidade. A nobre sociedade de olhares e gostos ocidentalizados,“cedeu espaço” para o negro, entretanto, impôs limites para esta inserção: Em fins do século XIX, como atestam os jornais e outros documentos da época, havia grave rejeição, por parte de segmentos dominantes da sociedade, às práticas religiosas afro-brasileiras. Atribuía-se a eles o caráter de “selvageria”, cujos exemplos, constantemente citados, eram a “lascívia das suas danças” e o “estrondoso barulho” de suas batucadas. (AMARAL; SILVA, p. 189, 2006) Concluimos que, o governo, por meio de uma elite dominante, não hesitou em manter proibições da época da escravidão, obrigando os negros a ocultarem seu traço cultural mais marcante: a religiosidade, escondendo-se dos olhos da sociedade, pois: “Tais cultos tinham um caráter candestino e as pessoas que neles tomavam parte eram perseguidas pelas autoridades.” (VERGER, 1981, p. 29) Tornando tradição cultural em caso de polícia. Mesmo perante todos os aparatos reprecivos, os negros, ainda sim, lutavam para dar continuidade a sua cultura, afinal, a escravidão não conseguiu apagar suas crenças, não seria depois de liberto que iriam eliminá-las. No Rio de Janeiro, eram nas casa das “Tias” que as celebrações clandestinas aconteciam. Lá, difundia-se a cultura africana e incitava, sobretudo, a produção artística que levasse em conta elementos étnicos culturais, que na sociedade eram reprimidos e censurados. Nesses casos: “A arte negra é precisamente a prática da libertação negra (...) em todos os níveis e instantes da existência humana.” (NASCIMENTO, 1978, p. 180) As tias eram de descendência baiana, em sua maioria negras, traziam consigo toda a carga cultural africana obtida 8 Gasolina – “Você me Chamou de Nego”. Gravado pelo cantor Rubi, no cd “Paisagem Humana” em 2006. 16
  • 18. através de seus antepassados. A casa, continha uma significância simbólica: liberdade. Ali os negros eram livres para executar sua cultura, deixavam o mundo repressor de lado para se encontrar com pessoas que comungavam dos mesmo ideais, pensamentos. Uma das casas mais importântes, no sentido de resistência cultural da época, era a: A casa de Tia Ciata, Babalaô-mirim respeitada, simboliza toda a estratégia de resistência músical à cortina de marginalização erguida contra o negro em seguida à abolição. A habitação – segundo depoimentos de seus velhos frequantadores – tinha seis cômodos, um corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas realizavam-se bailes (polcas, lundus etc.); na parte dos fundos, samba de partido alto ou samba-raiado; no terreiro, batucada. (SODRÉ, p.15, 1998) Polca e lundu são ritmos de descendencia africana, na época pouco aceitos, (como a maioria dos resquícios de cultura negra), mas, tolerados de maneira geral pela população, por isso que eram executados na sala de visitas. Já o samba (também de descendencia africana) era altamente rechassado na sociedade, sua dança também era menos contida, o lugar reservado era os fundos, mais longe dos ouvidos de quem passava pela rua. No terreiro aconteciam os batuques e as cerimônias do candomblé, pois, além de ser o espaço mais escondido da casa, mantinha-se ali um espaço de terra (daí o nome “terreiro”), elemento vital nas celebrações religiosas africanas. Na casa das tias, não havia o porque se diminuir, nem abaixar a cabeça, muito menos negar sua personalidade e sua descendência: A África aqui é o orgulho e uma fidelidade; nenhum complexo de inferioridade, mas pressentimento de conservar uma herança de beleza e bondade, a vontade de não se deixar perder na civilização brasileira, mas de integrá-la a essa civilização para enriquecê-la e lhe dar doçura suplementar. (BASTIDE, 1973, p. 274) A cultura africana está muito ligada à religiosidade, como vimos, os centros de resitência assumiam não só o papel de terreiro, mas de samba, de sociabilidade, de danças, de divertimento. Naquele espaço idéias eram difundidas, pensamentos, modos de vida. Não podemos negar que as casas das tias tranformavam o espaço urbano, à medida que toda uma ideologia socio/cultural era emanada, pois: A difusão da fé torna-se particularmente importante para a geografia ao se refletir sobre a ação missionária de expansão de idéias e condicionamentos simbólicos, algumas vezes resolvidas através de trocas dramáticas no processo de aculturação. A migração de pessoas que transmitem sua cultura e a migração de sistemas religiosos resultam em adaptações ou integrações de religiões a um determinado ambiente estranho, que pode alcançar um equilíbrio ou desenvolver mecanismos de conquista. (ROSENDAHL, 1996, p. 52) 17
  • 19. E o negro foi se afirmando cada vez mais, seja por meio da dança, da corporalidade, dos instrumentos. Foi no samba que o negro encontrou o seu melhor aliado em direção de sua aceitação cultural – “Sendo música religiosa, o samba enredou-se, apesar disso, nos espaços profanos, num intenso fluxo de trocas simbólicas entre as religiões afro-brasileiras e a sociedade.” (AMARAL; SILVA, 2006, p. 192) Foi aí que a sociedade passou a comungar a religiosidade do negro, mesmo de forma inconsciente. Entretanto, o samba, por muito tempo só conseguiu abarcar o público popular, sendo ainda estigmatizado pela elite brasileira, mas esse povo não buscava a afirmação de sua cultura por parte dos ricos, pois, até mesmo: “As letras dos sambas, cantadas ao fim das “rodas de santo” nas casas das “tias” baianas, ou nos encontros festivos populares, como a Festa da Penha, refletiam o cotidiano dos grupos negros do Rio de Janeiro e a própria importância da música neste cotidiano.” (AMARAL; SILVA, 2006, p. 193) O cotidiano dessas pessoas era simples, dotado de peripécias contra a lei, bebidas, traições e muito amor. A elite estava acostumada com músicas clássicas que incitavam a boa educação e as boas maneiras. Dentre as políticas do estado novo (era Vargas), encontramos a que visava estabelecer as bases de um estado genuinamente nacional, o que ocorreria por meio de uma valorização das práticas culturais brasileiras, sobretudo as de origem popular, causando assim, uma identificação da população com a nação. Dentre as culturas escolhidas para figurar uma identidade cultural, estavam as práticas afro-brasileiras, foi a partir dessa época que algumas manifestações foram desestigmatizadas, como a capoeira e o carnaval. Sendo que ambos foram modificados: a primeira recebeu o nome de capoeira regional, o segundo só foi aceito com a condição de os sambas enredos tratarem de temas da história oficial brasileira (que não se importa muito com a cultura negra) 9 . A casa das tias, por longos anos, se constituiram em refúgio e territórios de resistência e afirmação cultural. A identidade dessa população se manteve viva, por meio de diversas representações, muitas vezes artísticas. A arte era tida como meio de supressão ante tanta desigualdade e injustiça. A religiosidade, sem dúvida auxiliou e incentivou todo este processo, muitas vezes, fundida entre manifestações do sagrado e do profano e, foi no profano que encontrou bases para transcender seu papel religioso, firmando afinidade com a contituição cultural brasileira. 9 AMARAL; SILVA, p. 199, 2006. 18
  • 20. V - Candomblé – religiosidade e resistência cultural “Salve Xangô, meu Rei Senhor, Salve meu Orixá” 10 Na religião, podemos encontrar a manifestação do sagrado, que é algo transcende o mundo material: “O sagrado se manifesta sempre como uma realidade de ordem inteiramente diferente da realidade do cotidiano.” (ROSENDAHL, 1996, p. 27) E possui o poder de transportar as pessoas para fora da realidade, das preocupações, encontrando assim, amor, acolhimento, realizações tanto no plano material como em sua espiritualidade, “religião é uma experiência humana fundamental, definida mais simplesmente como a experiência do sobrenatural, uma experiência independente da razão (...). O homem religioso busca um poder transcendente que o sagrado possui.” (ROSENDAHL, 1996, p.18) Esse poder deixa o homem religioso em paz consigo e feliz para com suas crenças, herdadas de seus mais remotos antepassados. O sagrado se constitui por meio de objetos, lugares, pensamentos e está totalmente ligado ao religioso, ao poder transcendental. Os territórios onde o sagrado se manifesta, “Fazem os objetos materiais (...) bem como as pessoas, passar de um mundo para outro, do profano ao sagrado.” (BASTIDE, 1973, p. 255) A vida cotidiana fora da religiosidade constitui-se como profana, o não sagrado. No Brasil, durante muitos séculos a religião católica, por meio da força, obrigou os negros a se curvarem diante do sagrado, que, não possuía nenhuma significação para este povo. Cada grupo religioso possui especificidades, características próprias que o definem em torno de sua cultura. O que não pode ocorrer é uma suposta supremacia cultural tomar frente para justificar selvagerias. As práticas reliosas afro-brasileiras sofreram gande depreciação ao longo dos séculos, entretanto, se mantiveram. Na África, em pleno século XVI (época que os colonizadores iniciaram a captura dos negros) os negros viviam, em sua maioria, em aglomerações tribais, cada região tinha suas peculiaridades. Como também, cada região possuía um orixá de adoração, sendo este responsável pela proteção dos nativos. Em determinadas datas, organizava-se a festa (nome dado à celebração do ritual religioso), então, o orixá saía de “seu mundo” para visitar os “filhos”, por meio de uma pessoa 10 Vinicius de Moraes e Baden Powell – “Canto para Xangô”. Garavdo no disco “Afro-Sambas” em 1966. 19
  • 21. específica, seu iaô (na África - elegun), ocorrendo a possessão. Este Orixá servia também para afirmar e abeçoar o Rei, garantindo assim, a coesão social11. Não havia muita distinção entre o religioso e o social, prova do quão forte era a crença dessas pessoas. A escravidão não conseguiria apagar o que foi construido em séculos de tradição, pois: “Os seres humanos são considerados, por excelência, as criaturas da comunicação, que armazenam significados através de palavras, desenhos, gestos, números, padrões musicais e um grande número de outras formas simbólicas.” (GARDNER, 1995 p.145) Toda essa carga cultural, veio para participar da constituição da sociedade brasileira, que, embora sempre rechaçada, ainda sim se firmou e criou raízes, por meio de muito sangue e lágrimas. Algumas modificações ocorreram como forma de adaptar a religião africana à nova realidade, pois, os negros eram colocados, muitas vezes, misturados nas embarcações, oriundos de diversas regiões. Como cada pessoa possuia devoção a um orixá, no culto do candomblé no Brasil, vários orixás puderam ser cultuados, como meio de agradar todos os adeptos, totalizando em média desesseis deuses. Por isso, qualquer afirmação veemente sobre o culto do candomblé no Brasil, pode estar fadada ao erro. O que expomos aqui é o resultado de uma revisão bibliográfica acerca do tema, onde encontrando pontos em comum nesta manisfestação religiosa. Antes de prosseguir, nos atemos que são muitos os preconceitos que anulam a possibilidade se conhecer em seu profundo o candomblé, tantos anos de repressão social e política ainda colhem frutos. Por este motivo, se afirma cada vez mais a necessidade de mostrar esta realidade a todos, entretanto, para não cairmos novamente no velho discurso discriminatório: “É preciso julgar esse culto não através dos nossos conceitos de brancos, mas tentando penetrar na alma dos fiéis e pensar como eles próprios pensam.” (BASTIDE, 1973, p. 284) Analisar a religião, não com olhos estrangeiros, e sim com abertura a percepções novas, só assim será possível travar qualquer entendimento com nulidade de preconceito. Há uma grande complexidade nas manifestações do candomblé, que diferem em muito dos ritos religiosos europeus. A noção de bem e mal, céu e inferno, não existe no candomblé. O bem e o mal estão contidos no caráter do ser, resta ao adepto religioso saber balancear ambos sentimentos, controlar seus defeitos e explorar suas qualidades. Os deuses desta religião - os orixás, possuem qualidades e defeitos humanizados, pois, 11 VERGER, 1981. 20
  • 22. foram humanos durante algum tempo. Diferentemente das religiões européias ou europeizadas, onde o sagrado se manifesta por meio de silêncio, concentração, subserviência, no candomblé denomina-se “festa” as celebrações religiosas, que têm como pressuposto a alegria, muita música (pontos) tocada pelos Alabês12 nos atabaques: rum (grave), rumpi (médio), lé (agudo); enfeites são dispostos no terreiro ao gosto do orixá homenageado; é realizado sacrifício de um animal para preparação da comida sagrada, que será parte destinada aos orixás e parte degustada por todos os presentes. As orações são através dos “pontos”, das danças e da comida. Uma grande comunhão que prioriza a sociabilidade, descontração e muita fé. O sagrado, no caso do candomblé, se dá como local nos terreiros – lugares sagrados, destinados a execução dos ritos, oferendas, trabalhos. Necessariamente o terreiro deve possuir um espaço com terra, sem nenhum tipo de piso, descoberto, pois, o candomblé é uma religião que possui o ânima da natureza, todos os seus deuses (orixás) possuem ligação direta com algum elemento natural, o que auxilia em uma maior consciência ambiental e respeito ao meio natural. A noção de genealogia também é muito forte nas práticas religiosas, sobretudo o respeito aos mais velhos e aos entes que já faleceram: A religião dos Orixás está ligada a noção de família. A família numerosa originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e mortos. O Orixá seria, em principio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização. O poder, àse (axé), do ancestral-orixá teria, após sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão por ele provocada. (VERGER, 1981, p. 18) Os orixás eram seres humanos, assim como todos, com defeitos e qualidades, que, através de um processo doloroso, por meio da ira ou outros sentimentos violentos, passaram a ser: “Possuidores de um àse (axé) muito forte e poderes excepcionais.” (VERGER, 1981, p. 18) Segundo a mitologia iorubana: sendo o orixá supremo, criador da Terra - Olodumaré distribuiu todos os poderes da natureza entre todos os orixás que, assim divinizados, puderam seguir seus caminhos. 12 No Brasil, Ogã tocador de atabaque,chefe da orquestra do candomblé, na África dono da navalha, encarregado da escarificações rituais (aberés). (PRANDI, 2001, p. 564) 21
  • 23. O mundo profano permeia as relações das pessoas religiosas, não há possibilidade, no caso do candomblé, das pessoas viverem somente no espaço sagrado, seria como negar toda a vivência cotidiana, portanto, ao se relacionar com o espaço que circunda sua religiosidade, o adepto age como transformador de seu meio, levando consigo elementos do espaço sagrado, bem como características, costumes e até mesmo obrigações: “O homem religioso (...) se exprime sob formas simbólicas que se relacionam no espaço.”(ROSENDAHL, 1996, p. 64). O candomblé ofereceu bases para vários elementos que alteram a constituição da cultura brasileira e, por conseguinte, o espaço geográfico. No plano da música, são diversas as contribuições africanas. O samba é um ritmo que nasceu junto ao candomblé, se inspirando no ritmo africano semba, tocado nas festas. Desenvolveu-se, sobretudo em meio a pessoas pobres e em sua maioria afro-descendentes – ressaltando o papel da casa das Tias no Rio de Janeiro. Os cantos executados nas celebrações começaram a serem ouvidos fora dos terreiros. A sociedade passou a comungar das músicas, embora, muitas vezes, alienada a verdadeira significação religiosa. O profano interage com sagrado, como no caso da culinária das “baianas”. Todos os orixás possuem peculiaridades como: dia da semana, cor, música (ritmo), força sobre determinado elemento da natureza e prato predileto. Nos dias de festa para determinados orixás, devem ser seguidas à risca as preferências do homenageado. A culinária predileta dos orixás é intitulada “prato sagrado”. As responsáveis pela preparação da comida, são mulheres designadas para tal no ato de “virar o santo”, ou seja, da iniciação na religião, os segredos culinários são passados de geração para geração, mantendo características trazidas do continente africano. Na Bahia, principal porto receptor de escravos do período colonial, aconteceu um fato em particular: a comida baiana não só foi influenciada pela culinária africana, como aconteceu em grande parte do Brasil, mas, a culinária sagrada transcendeu os terreiros, ultrapassou os limites do sagrado, se envolvendo e alterando o espaço profano. As típicas baianas, de roupas brancas (as mesmas utilizadas como indumentária no espaço sagrado), vendiam preparos suculentos em meio à praça pública: (...) Se muitas receitas dos pratos africanos, glória da apimentada culinária baiana, chegaram até nós, é que foram fielmente conservadas e transmitidas de mães para filhas pelas baianas vendedoras de quitutes nas ruas. Acontecia às vezes que, antes de sair de casa, elas faziam oferendas de parte das comidas nos altares de seus orixás. Quando as pessoas compravam e comiam acarajé, participavam, sem saber de uma comida em comum com Iansã, e se era caruru, também 22
  • 24. chamado amalá nos terreiros de candomblé, era com Xangô que comungavam. Assim por consideração aos gostos dos orixás, nasceram e perpetuaram-se os vários quitutes na Bahia. (VERGER, 1981, p. 32) O espaço geográfico é alterado pelas significações herdadas da África, a cultura se enriquece, entretanto, ainda encontramos na sociedade moderna, demasiados preconceitos para com estas manifestações, que são frutos de um passado marcado pela tentativa latente de etnocidio do negro. A palavra macumba, ainda é largamente utilizada de modo pejorativo, para designar os ebós13, que são feitos aos deuses orixás. O que poucos sabem, é que nem sempre essas oferendas são feitas com intento negativo, para o mal, a maioria é como forma de agradecimento, pedido por entes queridos e para agradar o orixá. A palavra macumba significa dança no dialeto iorubá. Sendo assim, destacamos a importância da legitimação cultural que o candomblé promove na população religiosa e da afirmação da cultura africana na sociedade. O negro no candomblé não é o outro estranho, subserviente e receoso de suas atitudes: O candomblé marca o ponto onde a continuidade existencial africana tem sido resgatada. Onde o homem pode olhar a si mesmo sem ver refletida a cara branca do violador físico e espiritual de sua raça. No candomblé, o paradigma opressivo do poder branco, que há quatro séculos vem se alimentando e se enriquecendo de um país que os africanos sozinhos construíram, não tem lugar nem validez. (NASCIMENTO, 1978, p. 182) Resgatar a auto-estima e a valorização dessa riquíssima cultura, dentro da cultura brasileira, é um papel nobre que o candomblé exerce. Quando os adeptos negros que se encontram a margem da sociedade participam dos ritos, eles conseguem: “Despir a roupa da servidão cotidiana para vestir a roupagem brilhante dos Deuses.” (BASTIDE, 1973, p. 280) Em todas as celebrações do candomblé, o iaô é responsável por trazer o orixá de volta à terra, é por meio de seu corpo, que, o deus pode retornar, o que os adeptos chamam de “montar”, como se o iaô fosse um cavalo pronto para ser montado pelo orixá, destruindo a teoria de que o deus “se incorpora” na pessoa. O iaô, no dia da festa, tem que estar preparado com a indumentária de seu orixá, que na maioria dos casos é bem suntuosa, com detalhes e dependendo do orixá, com pedras e metais preciosos, como podemos observar na foto 1, onde um iaô de Oxum está em transe. A celebração de transe do iaô, se dá em torno de torno de um ritual bem marcado, com 13 Sacrifícios, oferendas, despachos. 23
  • 25. regras específicas, nenhuma pessoa “recebe o orixá” somente ouvindo um ponto de seu orixá, ou permanecendo em um espaço sagrado: È necessário que tenham sido preparadas para receber o orixá através de certas interdições, como a do corpo limpo, certos banhos de ervas, em resumo, por um conjunto de fatos regulamentados pela sociedade, sem os quais a música nada produz. (BASTIDE, 1973, p. 279) O candomblé continua como uma forma religiosa, altamente difundida em nossa sociedade, seja no espaço sagrado, por meio dos ritos, da ancestralidade, seja no espaço profano por meio da cultura popular e na atualidade por meio da cultura de massa, que por sua vez interagem com o espaço, contribuindo para estudos da geografia cultural, bem como ilustrando toda a trajetória no espaço e no tempo, desta religião como carga cultural de um povo, agora como elemento da composição cultural do Brasil. A manifestação religiosa do candomblé pode ser entendida como sendo uma rugosidade, pois, se mantém do passado e traz consigo história de realidades passadas14, evidenciando a herança cultural africana sociogeográfica, que, perdurou e perdura até os dias atuais, onde sua gênese está em séculos passados. Não foram somente as práticas religiosas que se mantiveram, mas também a territorialidade do espaço físico, pois é no terreiro que as celebrações acontecem e este, por sua vez, tem que seguir uma série normas que foram difundidas de geração para geração. 14 SANTOS, 2008 24
  • 26. Foto 1: Fonte: VERGER, 1981. 25
  • 27. VI – Sincretismo no candomblé “Vestimenta de caboclo é samambaia” 15 Os negros recém seqüestrados da África, como vimos, foram obrigados a se converter a uma religião totalmente adversa a sua, que negava qualquer outra religião, principalmente as politeístas. A religião católica, por meio de seus líderes religiosos, pensava ser portadora da verdade suprema, e por isso cometeu uma série de atos contra a cultura africana. Os negros começaram a “misturar” as crenças religiosas, mas isto se deu, não de forma espontânea, e sim de forma brutal. Nas igrejas católicas os negros exaltavam uma imagem no altar e pensavam em outra entidade, enquanto rezavam pensavam nos orixás que tanto adoravam e amavam. Não denominamos essa junção: catolicismo versus candomblé, de sincretismo, pelo fato de não ter se dado espontaneamente, e sim por meio da tentativa de etnocidio pelo qual o negro passou. Além disso, há o fato de que a igreja católica nunca reconheceu o candomblé. A obra literária “O pagador de promessas” de Dias Gomes, conta a história do Zé-do-Burro, que fez uma promessa em um terreiro para Iansã, a fim de que ela ajudasse seu burro que estava doente, este por sua vez melhorou e, Zé-do-Burro foi cumprir sua promessa, que consistia em carregar uma cruz do tamanho da de Jesus Cristo até a igreja de Santa Bárbara (santa católica que corresponde a Iansã), lá chegando foi falar com o padre, que, ao saber que a promessa foi feita em um terreiro para uma orixá, o proibiu de entrar na igreja, causando grande confusão. Essa história se faz verdade até os dias atuais, em que a discriminação a estas manifestações religiosas é latente. Não há sincretismo do candomblé para com uma religião, que, mesmo depois de desumanas atrocidades cometidas, ainda continua a nulificar manifestações de origens negras. O candomblé, ao chegar em solo brasileiro, por meio dos negros, se deparou com uma cultura tão importante quanto a sua, e também alvo crescente de aculturação, a cultura dos nativos indígenas. Do encontro destas duas culturas peculiares, nasceu de forma espontânea, o que denominamos sincretismo: o candomblé de caboclo, unindo a crença doa aborígenes com a dos africanos. Só merece o nome de sincretismo o fenômeno que envolveu as culturas africanas entre si, e entre elas e a religião dos índios brasileiros. (...) O encontro das religiões africanas com a religião 15 Ponto cantado na Umbanda (religião criada no Brasil que une elementos do candomblé e do espiritismo Kardecista) - Domínio público. Adaptado e Gravado por Martinho da Vila no disco “Canta, canta minha gente” no ano de 1974. 26
  • 28. nativa dos indígenas manifesta-se nos terreiros de caboclo, onde o culto mistura dois sistemas espirituais (...) (NASCIMENTO, 1978, p. 109) A interação com a natureza, que as religiões indígenas brasileiras e o candomblé possuíam, eram parecidas. Ambas eram politeístas, seus mais respeitados ícones religiosos eram os mais velhos. No candomblé de caboclo além dos orixás, encontramos os espíritos da floresta, que são índios que já morreram, mas continuam a zelar pelo bem da mata e da floresta. Podemos exemplificar este sincretismo, na música “Linha de Caboclo” gravada na voz da cantora Maria Bethânia, composta por Paulo César Pinheiro: Já chegou a hora/ Quem lá no mato mora/ É que vai agora/ Se apresentar/ No chão do terreiro/ A flecha do Seu Flecheiro/ Foi que primeiro/ Zuniu no ar/ Vi Seu Aimoré/ Seu Coral, vi Seu Guiné/ Vi Seu Jaguaré,/ Seu Araranguá,/ Tupaíba eu vi,/ Seu Tupã, vi Seu Tupi,/ Seu Tupiraci,/ Seu Tupinambá/ Vi Seu Pedra-Preta se anunciar,/ Seu Rompe-Mato,/ Seu Sete-Flechas,/ Vi Seu Ventania me assoviar/ Seu Vence demandas eu vi dançar/ Benzeu meu patuá/ Vi Seu Pena- Branca rodopiar/ Seu Mata-Virgem,/ Seu Sete-Estrelas,/ Vi Seu Vira- Mundo me abençoar/ Vi toda a falange do Juremá/ Dentro do meu gongá/ Seu Ubirajara/ Trouxe Seu Jupiara/ E Seu Tupiara/ Pra confirmar/ Linha de Caboclo,/ Diz Seu Arranca-Toco,/ Um é irmão do outro/ Quem vem lá/ Com berloque e jóia/ Vi Seu Araribóia/ Com Seu Jibóia/ Beirando o mar/ Com cocar, borduna,/ Chegou Seu Grajaúna,/ Com Baraúna/ Mandou chamar/ Vi Seu Pedra-Branca se aproximar/ Seu Folha-Verde,/ Seu Serra-Negra,/ Seu Sete-Pedreiras eu vi rolar/ Seu Cachoeirinha ouvi cantar/ Seu Girassol girar/ Vi Seu Boiadeiro me cavalgar/ Seu Treme-Terra,/ Seu Tira-Teima,/ Seu Ogum-das- Matas me alumiar/ Vi toda a nação se manifestar/Dentro do meu gongá/ che tua.(2008) Percebemos que há uma inteiração entre entidades caboclas e do candomblé, uma coexistência pacífica, uma infinidade de nomes que trazem consigo, personalidades e poderes de proteção. Manifestações da genuína cultura nativa brasileira, mais um toque africano, que, ao se encontrarem, modificam suas crenças, adicionando elementos novos e, por conseguinte expandindo-a no espaço, unindo forças contra a opressão sócio/cultural. A umbanda é uma religião brasileira, que, recebeu forte influência do candomblé, unindo a religião africana com os pressupostos do espiritismo difundido por Allan Kardec. Na umbanda encontramos “entidades”, que são espíritos que guardam e influenciam as pessoas, bem como: Pomba Gira, Tranca Rua, Maria Padilha e, em determinados casos encontramos elementos das religiões indígenas e do catolicismo, já no candomblé são cultuados apenas os orixás. 27
  • 29. VII – Terreiro - território África “Neste terreiro em festa, entre mil adobás Prestamos nosso tributo aos Orixás” 16 Quando denominamos o terreiro de espaço sagrado, já estamos levando em conta a existência do não sagrado, ou seja, do profano: “A palavra sagrado tem o sentido de separação e definição, em manter separadas as experiências sagradas das não sagradas, isto é, profanas.” (ROSENDAHL, 1996, p. 28) Porém, no candomblé, é o sagrado que permeia de significações a vivencia social profana. “O espaço sagrado e o espaço profano estão sempre vinculados a um espaço social. A ordenação do espaço requer sua distribuição entre sagrado e profano: é o sagrado que delimita e possibilita o profano.”(ROSENDAHL, 1996, p. 32) Não há possibilidade de qualquer tipo de separação, o religioso tem suas obrigações comportamentais, carregando consigo a carga cultural que o candomblé lhe fornece, “na cosmovisão das diversas etnias africanas, é a manifestação do sagrado que dá fundamento ao mundo.” (SALES. In: BARBOSA, 2008, p.181) O terreiro além de ser um espaço sagrado, é marcado pela ordenação espacial, que conta com regras na disposição dos objetos ritualísticos que também são sagrados. Esta sacralidade atribuída tanto aos objetos quanto ao espaço do terreiro depende das pessoas que praticam, acreditam e difundem o candomblé. As pessoas se apropriam do lugar e redefinem sua utilização. Carregando-o de significações. Segundo Rosendahl: “Os espaços apropriados efetiva ou afetivamente são denominados territórios.” (1996, p. 58) O espaço do terreiro se define enquanto território, impregnado de significados e símbolos controlados pela religiosidade, representado pelos “donos(as)” do terreiro - os pais e as mães de santo, seguido por toda hierarquia da religião. Os adeptos encontram com seus antepassados, com sua história cultural, com os orixás: “no interior do recinto sagrado o mundo profano é transcendido e, como consequência, a comunicação com o divino torna-se possível.” (ROSENDAHL, 1996, p.33) É no terreiro que as divindades africanas iorubanas se manifestam, neste território transposto diretamente da África por meio dos símbolos. O território, nesse caso, também se torna um símbolo religioso, contém uma representação e uma aceitação por parte dos partícipes, que, a todo momento o afirmam, fornecendo reconhecimento à manifestação do sagrado, entrando em contato com os orixás. 16 Mauro Duarte, Noca e Rubens Tavares. “Tributo aos Orixás”. Gravado por Clara Nunes no disco “Clara Clarice Clara” em 1972. 28
  • 30. É por meio dos símbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce sua função de mediação entre o homem e a divindade. É o espaço sagrado, enquanto expressão do sagrado, que possibilita ao homem entrar em contato com a realidade transcendente chamada deuses. (ROSENDAHL, 1996, p. 30) No território terreiro, a provisão cultural é forte. Na verdade, é a cultura que possibilita e mantém toda a estrutura religiosa, fornecendo base hereditária - tradicional, mítica, existencial e sócio-cultural, nutrindo de harmonia o seu território, podemos chamar esse processo de: “Territorialidade” que “por sua vez, significa o conjunto de práticas desenvolvido por instituições ou grupos no sentido de controlar um dado território.” (ROSENDAHL, 1996, p. 58) De acordo com a teoria do Milton Santos (2008) de fixos e fluxos, podemos separar as representações do sagrado responsáveis pela construção da territorialidade no terreiro de candomblé. Sendo os fixos: rios – sob a proteção de Oxum; mata – Oxossi; mar – Iemanjá; pedras – Xangô. Por fluxos entendemos a dinâmica produzida, através da comunicação religiosa, das representações simbólicas atribuídas a diversos objetos como: os atabaques Rum, Rumpi e Lé; adornos dos orixás como o machado de Xangô; o espelho de Oxum; a vestimenta sagrada dos orixás; os “colares de contas”, utilizados para designar proteção a quem usa, concedidos por meio de presente para o recém ingressante na religião, têm uma ligação direta com o orixá que rege a vida do iniciado. Para uma pessoa que está alheia a religião, todos os objetos sagrados, além de adorno, não possuem mais nenhum significado, daí a importância de observá-los, de acordo com a significação cultural neles contida. Ao desprezarmos toda a simbologia contida no objeto, não levando em conta o processo histórico-cultural de representação, estamos fadados a reduzir o candomblé ao título de folclore. Nei Lopes conceitua bem o termo folclore e folclorização na “Enciclopédia da diáspora africana”: FOLCLORE. Conjunto de costumes, crenças e técnicas de um povo, transmitidas através de gerações por meio de relatos mitológicos, provérbios, enigmas, canções e da experiência cotidiana. Com relação aos produtos culturais de origem africana, o termo é muitas vezes mal empregado, com utilização quase sempre servindo a um recalcamento dessa produção em função de uma suposta superioridade da chamada “cultura erudita”, de base européia. A esse tipo de recalcamento dá-se o nome de folclorização. Com relação às expressões culturais negras, a folclorização costuma, a partir de uma perspectiva eurocêntrica, ressaltar seus aspectos exteriores, “pitorescos”, para mascarar as condições em que essas manifestações são produzidas, sempre à 29
  • 31. margem da produção cultural dominante, e, assim, ocultar seu papel de agente transformador. (p. 280, 2004) Portanto, o processo de folclorização, visa descaracterizar a cultura afro- brasileira, tirá-la todo o seu teor simbólico, ocasionando um processo de fetichização, onde um objeto sagrado passa a ser exposto em um museu, ou em qualquer local, aquém de seu território, desprovido de sua original significação, e passa a ser visto como algo diferente, exótico. “A cultura africana posta de lado como simples folclore se torna um instrumento mortal no esquema de imobilização e fossilização de seus elementos vitais. Uma forma sutil de etnocidio.”(NASCIMENTO, 1978, p. 119) Os elementos simbólicos contidos nos objetos, se esvaem, recebendo uma nova significação puramente estética e, por conseguinte, eliminando toda a memória cultural. Consequentemente, “Arrancados de seu ambiente, de suas referências geográficas, de suas funções rituais, de olhares de seus participes, esses objetos não seriam mais que resíduos de crenças tribais para o preconceito tão longamente afirmado.” (SALES. In: BARBOSA, 2008, p.170) VIII – Inteligências Múltiplas em Arte/Educação – Metodologia “A vida penetra na arte como a arte age na vida” 17 O propósito de descortinar a presença da cultura africana como parte constituinte de nossa cultura, encontra na teoria das inteligências múltiplas, desenvolvida por Howard Gardner, um importante suporte de sustentação teórica e aplicação prática dos objetivos do trabalho. A educação fornece ferramentas de conscientização, que, por conseguinte, intervêm no social levando a uma possível reconstrução da sociedade18. A educação, de per si, já fornece aparato necessário de transformação social, pois, o intento do trabalho é desmitificar idéias que perduraram durante séculos em nossa sociedade, que sempre colocaram o negro à margem da sociedade. Portanto, defendemos no presente trabalho, “a esfera educativa como sendo um dos ângulos essenciais para a reafirmação cultural e a derrota da vergonha étnica, implantada nos sistemas educacionais oficiais.” (GARCIA. In: OLIVEIRA, p. 14) 17 PAREYSON, 2001, p. 41. 18 BALLENGE-MORRIS; DANIEL; STUHR. In: BARBOSA, 2008. 30
  • 32. Gardner (1995) identificou inteligências múltiplas em campos distintos, a saber: linguística, lógico-matemática, espacial, musical, corporal-cinestésica, interpessoal, intrapessoal. Como nos mostra este autor, identificar a inteligência que cada indivíduo possui, tomando por base a Teorias das Inteligências Múltiplas, nos possibilita perceber que a competência cognitiva humana é melhor descrita em termos de um conjunto de capacidades, talentos, ou habilidades mentais que chamamos de inteligências19. O autor define inteligência como: “A capacidade de resolver problemas ou elaborar produtos que sejam valorizados em um ou mais ambientes culturais ou comunitários.” (1995, p.14) Isto possibilita também, que cada pessoa expresse, por meio de ferramentas artísticas (teatro, música, dança, pinturas, poesias, crônicas) o que conseguiu absorver sobre o tema. A proposta de Gardner nos permite identificar na cultura brasileira a influência de elementos africanos oriundos das celebrações do candomblé e usá-los como instrumentos pedagógicos a fim de desenvolver nos educandos as múltiplas inteligências, auxiliando a dissipação de discriminações e opiniões discriminatórias em nossa realidade, pois, só por meio de uma cultura de paz conseguiremos acabar com todo processo de desumanização pautado no preconceito20. Com os pressupostos de Gardner, desenvolvemos a idéia de multiculturalismo em nossa sociedade, que abarca diversas visões da realidade, podendo, assim, atingir um maior esclarecimento das situações - que dizem respeito a culturas tradicionais e populares enquanto portadoras de riqueza ímpar em nossa sociedade – conseguindo, dessa forma, traçar um paralelo com outras áreas do saber, como literatura, artes, história, ciências sociais, etc. Unindo áreas afins em prol do processo ensino aprendizagem, percebemos “(...) que a competência cognitiva humana é melhor descrita em termos de um conjunto de capacidades, talentos ou habilidades mentais que chamamos de ‘inteligências’.” (GARDNER, 1995, p.21) Ao unir o candomblé (como cultura afro-brasileira) com a teoria das inteligências múltiplas, estamos ampliando a visão das pessoas sobre sua comunidade, onde poderiam participar mais ativamente, integrando-se e compreendendo as diferentes pluralidades existentes, além de proporcionar-lhes mais recursos para a apreensão de um tema, ao mesmo tempo atual e complexo. 19 GARDNER, 1995. 20 CAO. In: BARBOSA, 2008. 31
  • 33. Com o intuito de mostrar uma visão diferenciada e alternativa à convencional, buscamos embasar o conhecimento e torná-lo tão interessante quanto é, pois, cometeríamos um crime pedagógico se acreditássemos que todos os educandos possuem uma forma única de aprendizagem e, para suprirmos esta realidade, temos que levar em conta a pluralidade do intelecto. Para tanto, utilizamos diferentes elementos expositivos e práticos como instrumentos pedagógicos, a exemplo de: filmes, músicas, ilustrações, poesias, textos, fotografias, instrumentos musicais e pratos típicos com referência no candomblé, expondo elementos da cultura africana, que, transcenderam a religiosidade e estão presentes no cotidiano cultural brasileiro, pois: “uma inteligência também deve ser capaz de ser codificada num sistema de símbolos – um sistema de significados culturalmente criado, que captura e transmite formas importantes de informação.” (GARDNER, 1995, p.22) Nos capítulos posteriores haverá a exposição de cada tipo de inteligência e como ela se relaciona com as manifestações culturais africanas no Brasil. Intimamente ligada às múltiplas inteligências está a arte/educação. Podemos dizer que, somente pelo fato de se trabalhar a teoria de Gardner, já estamos praticando a arte/educação. A arte, por sua vez, tem o poder de alcançar sentimentos e sensações que normalmente não são alçadas, ressaltando que ela penetra no inconsciente por meio da consciência21. O que gera uma maior criatividade e crítica ante o tema abordado, pois, a arte abre perspectivas amplas, que fornecem instrumentos necessários para se compreender o mundo com mais sensibilidade de maneira poética, flexível e significativa22. Utilizar a arte na educação só faz enriquecer a proposta de trabalho, proporcionando ao educando a visão de quão artísticas são as manifestações da cultura africana no Brasil, principalmente do candomblé: “A vida social enobreceu-se e refinou- se sob a evidente influência de um ideal estético, as várias cerimônias da vida (...) religiosa colorem-se com arte, num nexo concreto em que a beleza não é separável do resto, do culto, da convenção, do símbolo.” (PAREYSON, 2001, p. 30) Não há possibilidade de dissociar a arte das celebrações do candomblé: “Essas minorias trazem culturas, portanto arte, e desenvolvem-na em sua comunidade. Acredito ser importante que a arte que eles fazem e sua peculiaridade seja reconhecida, analisada e registrada” (SMITH. In: BARBOSA, 2008, p.33) O que devemos fazer é utilizar essa cultura ressaltando suas significações culturais em prol do processo ensino–aprendizagem, 21 VIGOTSKI, 2001. 22 STRAZZACAPPA, 2006. 32
  • 34. enfatizando que a interpretação das obras artísticas não é estática, de modo que sempre nos deparamos com uma variável, imposta pelo nosso inconsciente: A verdadeira natureza da arte sempre implica algo que transforma, que superação sentimento comum, e aquele mesmo medo, aquela mesma dor, aquela mesma inquietação, quando suscitadas pela arte, implicam o algo a mais acima daquilo que nelas está contido. (VIGOTSKI, 2001, p. 307) Neste processo, a educação se torna dinâmica, suprimindo o senso comum, que difunde a idéia de que arte é somente aquela produzida por uma “elite” artística alheia ao mundo exterior e, obras de arte são aquelas expostas nos museus que figuram, do ponto de vista comportamental do adolescente, espaços monótonos, onde não se pode conversar, correr, enfim em espaço de repressão. Apontar as diversas artes oriundas do popular, bem como as expressões do candomblé na cultura brasileira é fazer com que o educando comece a observar à sua volta elementos artísticos que são passíveis de valorização, passando a observar seu cotidiano, atribuindo-lhes significados positivos, reconhecendo e afirmando sua cultura. Portanto “a arte na educação, como expressão pessoal e como cultura, é um importante instrumento para a identificação cultural e o desenvolvimento individual.” (BARBOSA, 2008, p. 99) Para melhor situar o presente trabalho na temática da atualidade brasileira e apontar a pertinência da abordagem do tema, nos remetemos à Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que inclui no currículo oficial da rede de ensino “História e Cultura Afro-Brasileira”, sendo alterada pela Lei no 10.639, de 09 de janeiro de 2003, recebendo sua versão final por meio da Lei nº 11.645, de 10 março de 2008, abarcando não somente história e cultura afro-brasileira, mas também história e cultura indígena: O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL. lei nº 11.645, 10 de março de 2008) A criação desta lei foi uma medida da União que podemos considerar como contraditória, pois estas matérias já deveriam ser trabalhadas no conteúdo normal. Portanto, o que podemos constatar é que há um processo de “embranquecimento” da nossa memória, pois os ícones históricos no que tange a política, a cultura, ao social, citados nos processo de ensino, são em sua maioria brancos, de modo que já deveria ter 33
  • 35. sido reconhecida a importância de outras etnias na constituição cultural brasileira. Fato que não é exclusivo do Brasil, pois, o governo colombiano, diante da mesma problemática, em 1993 (três anos antes da criação da lei no Brasil) sancionou a “lei 70” - de comunidades negras da Colômbia, que assegura o ensino das práticas, história e cultura dos negros. Entretanto, mesmo tardia, a criação da lei em nosso país vem auxiliar um processo de recuperação e valorização da memória indígena e africana, o que ocorre espontaneamente nas celebrações do candomblé, nas quais são resgatadas não só a memória, mas também a cultura do povo africano e, no caso do candomblé de caboclo, além disso, nos deparamos com a valorização de traços da cultura aborígene (indígena). 8.1 – Inteligência musical “Negro entoou um canto de revolta pelos ares” 23 Entendemos como inteligência musical a capacidade que indivíduos têm de assimilar assuntos e temas por meio de músicas, possuindo facilidade rítmica, sendo predispostos a tocar instrumentos e cantar. A música sempre teve seu espaço garantido na constituição cultural da humanidade, são raros os povos que não possuem nenhuma manifestação musical, que por sua vez, é uma importante agente de sociabilidade e interação, pois muitos ritmos suscitam euforia e alegria, amor e desencanto. A música é considerada uma forma de arte, por conseguinte, atinge o inconsciente, agindo por meio dos sentidos, causando diversos tipos de emoções. Encontramos a gênese da sonoridade, não no ser humanos racional, mas na própria natureza, onde as ondas ao “quebrarem” na praia executam certa sonoridade, e a mitologia iorubana24 atribui a Iemanjá (a rainha do mar) este som; o vento, ao soprar por entre as árvores regido por Iansã; as cachoeiras de Oxum; passando de sonoridades para a música oriunda do “canto dos pássaros” que “proporciona um vínculo com outras espécies. Evidências de várias culturas apóiam a noção de que a música é uma faculdade universal.” (GARDNER, 1995, p.23) Como sabemos, a cultura africana alterou o espaço geográfico em que se inseriu, re-significando vários aspectos da cultura vigente e um destes aspectos foi a música: “As sonoridades, ritmos, danças e gestos são fatores distintivos das culturas africanas e 23 Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro. “O Canto das Três Raças”. Gravada por Clara Nunes, no disco “O Canto das Três Raças” no ano de 1976. 24 Elementos míticos oriundos da África, que fundamentam o candomblé. 34
  • 36. revolucionaram a música nos diversos países onde essa presença chegou.” (SALES. In: BARBOSA, 2008, p.185) Daí a relevância de se tratar deste assunto, pois a música brasileira de um modo geral foi altamente influenciada por ritmos africanos, sobretudo pelo candomblé, que possui como uma das bases de suas celebrações a música, sendo impossível a existência da musicalidade brasileira sem se levar em conta ritmos africanos. Na inteligência musical serão trabalhadas músicas compostas ou interpretadas a partir de canções de umbanda e candomblé que foram incorporadas à cultura musical brasileira, considerando que as músicas africanas são fundamentalmente rítmicas e, portanto, plenamente musicais25. Ressaltando que estas músicas, foram gravadas e comercializadas por seus intérpretes, despidas de toda a sua significação religiosa para se tornarem produtos culturais, que na atualidade, pela ampla difusão tornaram-se elementos da cultura global brasileira. Os intérpretes e compositores que difundiram o candomblé como cultura brasileira são inúmeros, mas no presente trabalho nos atemos a cinco artistas que auxiliaram neste processo, que são: Martinho da Vila, Maria Bethânia, Vinicius Moraes e Baden Powell, Clara Nunes e Rita Ribeiro. Levando em consideração que o intento do trabalho é abordar os temas por meio da arte/educação, vale lembrar que os meios artísticos não são somente figuração do tema trabalhado, mas possuem uma valoração estética, pois: “Arte e utilidade, beleza e funcionalidade nascem juntos.” (PAREYSON, 2001, p. 54) O Interprete e compositor Martinho da Vila gravou se primeiro disco em 1969, com músicas de samba, que como vimos, têm influência direta do ritmo semba – executados nos terreiros em celebrações do candomblé. Este trabalho ainda não continha um teor alto de religiosidade africana, mas, cita um procedimento ritualístico do candomblé, conhecido como festa, na música “Casa de bamba”, composta por ele: “Macumba lá na minha casa/ Tem galinha preta, azeite de dendê/ Mas ladainha lá na minha casa/ Tem reza bonitinha e canjiquinha pra comer”. No disco gravado em 1974 – “Canta, canta, minha gente”, Martinho transpôs para o disco pontos (músicas) da religião umbanda, como observamos na música “Festa de umbanda”: O sino da Igrejinha/ Faz belém blem blam/ Deu meia-noite/ O galo já cantou/ Seu tranca rua/ Que é dono da gira/ Oi corre gira/ Que ogum mandou/ Tem pena dele/ Benedito tenha dó/ Ele é filho de Zambi/ Ô São Benedito tenha dó/ Tem pena dele Nanã/ Tenha dó/ Ele é filho de Zambi/ Ô Zambi tenha dó/ Foi numa tarde serena/ Lá nas matas da 25 SODRÉ, 1998. 35
  • 37. Jurema/ Que eu vi o caboclo bradar/ Quiô/ Quiô, quiô, quiô, quiera/ Sua mata está em festa/ Saravá seu mata virgem/ Que ele é rei da floresta/ Vestimenta de caboclo/ É samambaia/ Saia caboclo/ Não me atrapalha/ Saia do meio/ Da samambaia. Na referida música, Martinho da Vila assume a adaptação da música, mas não a composição, que está como domínio público. O Tranca Rua é a entidade umbandística responsável por zelar pelas pessoas que ficam na rua depois da meia noite, sendo “dono da gira”. Jurema é uma cabocla, aborígene que cuida das matas e florestas como todos os caboclos. Dando continuidade a analise dos referidos artistas, expomos que Maria Bethânia foi reconhecida no cenário brasileiro por não esconder sua religiosidade, exaltando suas crenças por meio de canções. Seu primeiro disco foi datado de 1965, mas somente em 1969 em seu 4º trabalho que gravou músicas referentes ao candomblé como “Dia dois de Fevereiro” de Dorival Caymmi: “Dia dois de fevereiro/ Dia de festa no mar/ Eu quero ser o primeiro/ A saudar Iemanjá”. Dia em que milhares de devotos vão ao mar entregar “oferendas” - “O presente que eu mandei pra ela/ De cravos e rosas vingou/ Chegou, chegou, chegou/ Afinal que o dia dela chegou”. Em 1970, Bethânia gravou dois pontos - utilizados nas celebrações do candomblé, a autoria de ambas consta como domínio público adaptado pela Cantora: “Ponto de Iansã” no dialeto iorubá - “Oya, Oya, olha ê!/ Olha a Matamba de karoká zingue/ Oya, Oya, Olha ê!/ Olha a Matamba de Kakoká zingue ô.”, e “Ponto de Oxossi”: “O galo cantou/ Ta chegando a hora/ Oxalá ta me chamando/ Caçador já vai embora.”. Oxalá é, na mitologia, o criador da terra, portanto, todos os orixás lhe devem obediência, inclusive Oxossi que é caçador e senhor das matas (PRANDI, 2001). Em 1971, grava “Ponto de Oxum” composição de Toquinho e Vinícius de Moraes: “Nhem-nhem-nhem/ Nhem-nhem ô xorodô/ É o mar, é o mar/ Fé-fé xorodô/ Xangô vivia em guerra/ Conhecia toda terra/ Tinha ao seu lado Iansã pra lhe ajudar/ Oxum era rainha,/ Na mão direita tinha/ O seu espelho onde vivia/ A se mirar”. Na mitologia iorubana, que fundamenta o candomblé, bem como nas sociedades africanas antes da escravidão, era permitido ao homem possuir várias esposas, Xangô era casado com Iansã, depois se casou com Oxum, que é a orixá da beleza e da fertilidade, apresenta alto grau de vaidade se preocupando com sua beleza, por isso anda com espelho para se mirar (VERGER, 1981). Em 2009, a cantora gravou o cd “Encanteria”, dedicado a elementos da musicalidade popular, na música “Feita na Bahia” composta por Roque Ferreira, a cantora faz um apanhado de sua religiosidade: 36
  • 38. Fui feita na Bahia/ Num terreiro de Oxum/ Os tambores sagrados/ Bateram pra mim/ Me banhei com guiné, alfazema e dandá/ Defumei com quarô, benjoin/ E de pano da costa/ Batizei no Bonfim/ Um velho preto alaketo me disse/ Que foi lá de Keto que eu vim/ Eu já vim predestinada pra cantar assim/ Sou iluminada, eu sou/ Sou de Keto sim/ Sou iluminada, eu sou/ Sou de Keto sim. O termo “feita” faz alusão ao ritual de virar o santo, ou seja, se iniciar no candomblé, a música completa com os passos de purificação para estar preparada para tal evento, o “velho preto alketo” diz respeito ao “pai de santo” figura respeitada, no topo da hierarquia do território terreiro. O cantor e compositor Vinicius de Moraes se uniu com o instrumentista Baden Powell em 1966 e gravaram um disco que entrou pra história da música e nos interessa pelo fato de ter marcado a inserção da cultura africana no mercado fonográfico e, por conseguinte, no espaço profano. Com elementos de exaltação em uma genuína africanidade brasileira, o disco intitulado de “Afro-Sambas”, reúne onze músicas que em suas letras e seus ritmos fazem alusão ao candomblé e umbanda. Na música “Canto de Ossanha” contam a história do Orixá que “vivia numa guerra não declarada contra Orunmilá, procurando sempre enganá-lo, preparando armadilhas, para transtorno do velho.” (PRANDI, 2001, p. 161) O homem que diz "dou" não dá/ Porque quem dá mesmo não diz/ O homem que diz "vou" não vai/ Porque quando foi já não quis/ O homem que diz "sou" não é/ Porque quem é mesmo é "não sou"/ O homem que diz "estou" não está/ Porque ninguém está quando quer/ Coitado do homem que cai/ No canto de Ossanha, traidor/ Coitado do homem que vai/ Atrás de mandinga de amor/ Vai, vai, vai, vai, não vou/ Vai, vai, vai, vai, não vou/ Que eu não sou ninguém de ir/ Em conversa de esquecer/ A tristeza de um amor que passou/ Não, eu só vou se for pra ver/ Uma estrela aparecer/ Na manhã de um novo amor/ Amigo sinhô Saravá/ Xangô me mandou lhe dizer/ Se é canto de Ossanha, não vá/ Que muito vai se arrepender/ Pergunte pro seu Orixá/ Amor só é bom se doer (...) Na música “Canto para Xangô” do mesmo disco, percebemos a importância dada a Xangô, o filho direto de Oxalá, orixá da Justiça, que carrega consigo um machado de duas lâminas, possuidor do Axé: Eu vim de bem longe/ Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim/ Sou filho de Rei/ Muito lutei pra ser o que eu sou/ Eu sou negro de cor/ Mas tudo é só amor em mim/ Tudo é só amor para mim/ Xangô Agodô/ Hoje é tempo de amor/ Hoje é tempo de dor, em mim Xangô Agodô/ Salve, Xangô, meu Rei Senhor Salve, meu orixá/ Tem sete cores sua cor/ Sete dias para a gente amar (...) 37
  • 39. A cor deste orixá é o branco, por isso a designação “tem sete cores sua cor”, seu dia da semana é sexta-feira, em que todos os devotos devem se privar de bebidas alcoólicas, sexo, e por obrigação devem usar indumentária branca em respeito ao “Rei”. No contexto da exaltação da cultura afro-brasileira está a cantora Clara Nunes, que, durante sua vida foi devota fervorosa da umbanda e a maioria de seus trabalhos continham alusão à religiosidade iorubana: Clara Nunes surgiu como uma espécie de “reedição” da baiana de Carmen Miranda, imprimindo-lhe um conteúdo religioso mais evidente. Apresentava-se, freqüentemente, descalça e vestida de “filha-de-santo” estilizada, usando saia rodada de renda branca, colares e figas, pulseiras e, na cabeça, diademas de conchas, palhas e flores. (AMARAL; SILVA, 2006, p. 210) Na música “Guerreira”, composta por João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, gravada pela cantora no disco “Guerreira” em 1978, os autores fazem um apanhado da vida da artista, mostrando sua religiosidade, dizendo ser: “Filha de Angola, de Ketu e Nagô”, afirmando ainda na canção: “Não sou de brincadeira/ Canto pelos sete cantos/ Não temo quebrantos/ Porque eu sou guerreira/ Dentro do samba eu nasci,/ Me criei, me converti/ E ninguém vai tombar a minha bandeira (...) Eu sambo pela noite inteira/ Até amanhã de manhã/ Sou a mineira guerreira/ Filha de Ogum com Iansã.” Encontramos neste trecho a afirmação de sua africanidade e, sobretudo, um orgulho de ser partícipe desta cultura, expondo o nome de seus “pais” no candomblé. As religiões africanas são cerceadas por superstições que auxiliam o bom andamento da vida de seus adeptos, a música “Banho de manjericão”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, gravada no disco “Esperança” em 1979 “mostra uma síntese das mais conhecidas maneiras de se livrar do mal e obter proteção” (AMARAL. SILVA, 2006, p. 210) Como observamos: Eu vou me banhar / De manjericão / Vou sacudir a poeira do corpo batendo com a mão / E vou voltar lá pro meu congado / Pra pedir pro santo pra rezar quebranto e cortar mau-olhado / Eu vou bater na madeira três vezes com o dedo cruzado / Vou pendurar uma figa no aço do meu cordão / Em casa um galho de arruda é que corta / Um copo d’água no canto da porta / A vela acesa e uma pimenteira no portão / E com vovó Maria que tem simpatia pra corpo fechado / É com Pai Benedito que benze os aflitos com o toque de mão / E Pai Antônio cura desengano(...) A cantora e compositora Rita Ribeiro gravou em 2006 o cd “Tecnomacumba” que consiste na união entre músicas com influência do candomblé e da umbanda com elementos da música técno - eletrônica. Re-significando toda a sonoridade das músicas, proporcionando um toque contemporâneo à religiosidade afro-brasileira. Na música que 38