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Sumário	
  
1. Introdução..............................................................................................................3
2. Objetivos................................................................................................................4
3. Justificativa............................................................................................................4
4. Metodologia...........................................................................................................4
5. Desenvolvimento...................................................................................................5
História da Kalimba e evolução descritiva do instrumento...................................5
Tradição Oral na África (lendas e histórias da Kalimba) ...................................10
Chandra Lacombe e a kalimba............................................................................15
Minha trajetória com a kalimba: Aprendizado e ensino......................................24
6. Considerações Finais...........................................................................................28
7. Referencias Bibliográficas normatizadas.............................................................29
  3	
  
INTRODUÇÃO
Este trabalho de conclusão de curso (TCC) é um estudo sobre a tradição oral e o ensino de kalimba.
Contextualizando historicamente esses dois temas, e posteriormente realizando uma reflexão sobre a
forma de transmissão do conhecimento deste instrumento, no contexto da minha experiência pessoal,
procuro registrar e validar a transmissão oral de uma nova técnica para se tocar a kalimba. Alem de relatar
o processo de aperfeiçoamento de um instrumento.
Representa, dentro da minha trajetória de desenvolvimento pessoal, o reconhecimento da autenticidade de
um parampára. Surgiu da constatação de que poderia ser uma contribuição para o universo acadêmico, ao
relatar um fenômeno arquetípico ancestral em um contexto moderno, e para os neo-tradicionalistas, ao
conferir legitimação para esse fenômeno, fazendo dessa forma uma ponte entre o meio da tradição oral e
o meio acadêmico. Além disso, o trabalho visa proporcionar uma investigação sobre os vários tipo de
lamelofones e suas particularidades, assim como os mitos e curiosidades que acompanham esses
instrumentos.
Como resultado, obtenho uma nova visão à respeito da didática, mesclando o tradicionalismo da
oralidade, suas singularidades e a valorização da intuição no processo de aprendizado com a validação da
importância da teoria musical, enquanto material de apoio, registro e perpetuação da musicalidade da
kalimba.
  4	
  
OBJETIVOS
Os objetivos dessa pesquisa são:
• Realizar um resgate da história da tradição oral e validá-la nos tempos atuais, através de minha
própria experiência de aprendizado e ensino.
• Relatar o processo de aperfeiçoamento de um instrumento musical.
• Conferir autenticidade para a transmissão oral da técnica de se tocar kalimba com os dedos
indicadores e médios, criada pelo meu professor de kalimba.
• Demonstrar que a kalimba é um instrumento que pode ser bem utilizado para musicalização.
• Estabelecer uma ordem de aprendizado progressiva entre a kalimba diatônica e a kalimba
cromática.
• Estabelecer uma relação de complementaridade entre o processo de ensino oral e escrito.
JUSTIFICATIVA
O presente trabalho se justifica pela necessidade de registrar e qualificar uma experiência singular que
envolve temas importantes dentro dos limites da licenciatura em música, como tradição oral, didática e a
utilização da kalimba para o exercício de musicalização.
METODOLOGIA
Para a realização deste trabalho utilizei a pesquisa histórica como ferramenta de contextualização do
instrumento pesquisado, descrevendo a sua evolução durante os séculos e utilizando fotografias como
recursos ilustrativos. Também foi abordado o folclore integrado à cultura do instrumento e a forma como
esta cultura se manifesta nos dias de hoje. A tradição oral também foi contextualizada através de uma
pesquisa histórica. Desenvolvi este estudo através do contato direto com outros tocadores de kalimba
mais experientes do que eu, através de pesquisa em sites especializados neste instrumento e consulta
bibliográfica.
Posteriormente utilizei-me de recursos da pesquisa qualitativa através de uma entrevista com o meu
professor de kalimba, gravando-a e depois transcrevendo-a. Da narração da minha própria experiência de
aprendizado e ensino do instrumento.
  5	
  
DESENVOLVIMENTO
História da Kalimba e evolução descritiva do instrumento
A Kalimba é um instrumento musical pertencente à família dos lamelofones, sendo da categoria dos
idiofones dedilhados. Os primeiros lamelofones surgiram no Vale de Zambeze, próximo ao atual
Zimbábue, na África Subsaariana. Eram feitos de materiais como madeira da palmeira de ráfia, bambu e
outras matérias vegetais; datam de cerca de 1000 a.C.
Posteriormente, esse instrumento se espalhou pela África, desenvolvendo-se em cada etnia de forma
diferente, isso quer dizer que cada grupo social atribuiu ao instrumento alterações ao projeto original
dando-lhe um nome próprio. Temos, a seguir, aspectos de diferenciação do instrumento: características
como quantas teclas ele possui; se é construído dentro ou sobre um corpo e qual o material deste (cabaça,
madeira de ráfia, bambu, coco, ou outros tipos de madeiras); se possui furos e a localização deles; ou
ainda se são utilizados materiais acoplados às teclas para alterar o som.
Por existirem várias designações africanas para os lamelofones, que variam conforme a língua e sua
fonética, área geográfica, tipo de instrumento, sistema de classificação local e também, o contexto social,
o mais adequado é usar a palavra lamelofone quando se trata de designar um instrumento genérico
pertencente a esta família. Uma vez que o relato deste trabalho se refere à minha experiência pessoal, com
um instrumento específico, utilizarei o termo Kalimba quando estiver me referindo ao lamelofone
moderno, descendente da antiga Mbira.
Alguns mitos da criação no vale do Zambeze contam como O Criador deu o metal para a raça humana
com a função específica de fazer mbiras, de fato, podemos dizer que a mbira remonta ao primeiro uso de
metal na África Subsaariana, entre 700 e 1000 d.C.. Entretanto, muitos estudiosos presumem que as
mbiras com teclas de metal tiveram sua origem na Europa.
A difusão da tecnologia de lamelofones do Zimbabue / Zambeze na África Central através do aumento
dos contatos comerciais ocorreu com a chegada dos exploradores portugueses à África, por volta do ano
1400. Há registros do aparecimento de lamelofones no Brasil a partir do início do século XIX.
A afinação encontrada foi na totalidade não-ocidental; haviam quintas perfeitas nas afinações, porém os
outros intervalos não se encaixavam no paradigma ainda em evolução da música ocidental. Mais tarde,
certamente no ocidente, os lamelofones ganharam a escala ocidental de notas, escalas pentatônicas foram
largamente utilizadas, escalas diatônicas e modos gregos foram difundidos no final do século XX. Os
lamelofones com escalas cromáticas são recentes e ainda muito pouco difundidos.
Usos da kalimba
Os lamelofones evoluíram para instrumentos muito complexos, altamente integrados à cultura. Estes
instrumentos são tocados em diversas situações de acordo com a cultura local. Por exemplo, para algumas
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culturas se trata de um instrumento pessoal, algo para se levar consigo, podendo ser tocado durante longas
caminhadas à pé, viagens de ônibus ou até mesmo enquanto se conduz o gado.
Tradicionalmente, esses instrumentos são utilizados em rituais religiosos e reuniões sociais. O povo
Shona, do Zimbábue, acredita que a musica desses instrumentos é capaz de romper as barreiras que
separam o mundo dos vivos do mundo dos espíritos, abrindo um canal de comunicação entre mundos. Os
tocadores experientes, ou vanagwenyambira, tocam com a intenção de despertar a mediunidade dos
membros da comunidade, de modo que, ao invocar os espíritos ancestrais pedindo proteção e orientação,
seus conselhos possam ser ouvidos.
É comum se utilizar o lamelofone pra acompanhar a voz. Também pode ser tocado junto com outros
instrumentos, como tambores e chocalhos. Cerimônias festivas como casamentos são agraciadas pelo
fluido som deste instrumento. Também é bastante comum um contador de histórias, normalmente mais
velho, utilizar um instrumento dessa natureza para transmitir seus conhecimentos para os mais novos, ao
redor de uma fogueira.
As mulheres grávidas costumavam tocar o instrumento sobre o ventre durante toda a gravidez, e, após o
nascimento, também quando a criança expressava seus sentimentos mais intensos, como uma tristeza ou
alegria mais acentuadas. Essa era uma forma de lembrar a criança dos sentimentos de conexão,
tranqüilidade e segurança intra-uterinos. Outra peculiaridade interessante é que não é um instrumento
para destros ou canhotos, mas sim um instrumento central. Dessa forma, ao tocar um lamelofone ambos
os hemisférios cerebrais, direito e esquerdo, são simultaneamente estimulados. Isto explica o porquê de,
modernamente, esses instrumentos estarem sendo tão amplamente utilizados na musicoterapia e
associados com a meditação.
Nas últimas décadas, o uso dos lamelofones diminuiu drasticamente na África, devido ao novo hábito de
se portar um rádio cassete, CD player ou até mesmo um MP3; a prática criativa de se tocar um
instrumento pessoal tem sido abandonada. De fato, hoje em dia é muito raro encontrar um lamelofone
tocado entre os jovens nas aldeias.
Descrições técnicas
Os lamelofones são de uma forma geral construídos sobre uma base de madeira que pode, em alguns
caso, ser ela mesma o corpo ressoador. As lamelas de diferentes tamanhos são colocadas sobre dois
cavaletes, inferior e superior, que servem de base de apoio. Um travessão de metal é colocado entre os
dois cavaletes e sobre as teclas, de forma a pressionar as lamelas. Este travessão pode ser preso por fios
que passam através da madeira por pequenos orifícios ou por parafusos. As lamelas são organizadas
alternadamente a partir da nota mais grave, no centro, até as mais agudas, nas extremidades.
  7	
  
Para aumentar o volume/intensidade do som, o lamelofone é acoplado dentro ou sobre um corpo
ressoador. Este pode ser uma cabaça, coco ou corpo de madeira. Também são encontrados corpos feitos
de outros materiais, como latas de metal e panelas. Podem, ainda, ser anexados à base do instrumento ou
às lamelas pequenos objetos, como missangas, caracóis, pedaços de metal, anéis, pedras, gargalos e
tampas de garrafas, etc... Esses elementos, alem de decorativos, incrementam o timbre e a duração do
som, criando padrões sonoros singulares.
Descrição da Afinação do instrumento
A afinação dos lamelofones é feita deslocando-se as lamelas paralelamente ao comprimento do corpo do
instrumento. Movendo-as, no sentido do tocador as notas ficam mais graves e movendo-as no sentido
oposto, as notas ficam mais agudas. O timbre da lamela pode variar também de acordo com a sua forma e
flexibilidade do material, alterando assim a ressonância dos harmônicos. Outro método de afinação,
utilizado em Angola, consiste na aplicação de cera de abelha negra na extremidade inferior das lamelas.
Alterando a quantidade de material na lamela, altera-se também a afinação.
(Imagem http://www.kalimba.art.br/)
  8	
  
Fotos e exemplos de diferentes tipos de lamelofones
Os lamelofones recebem muitos nomes, de acordo com a sua construção e cultura do local de origem.
Alguns deles são: karimba, mangambeu, kondi, likembe, budongo, mbila, mbira, kalimba, mucapata,
ocisanji, lungandu, sanza, thumb piano (piano de polegar), entre muitos outros nomes. Abaixo, algumas
imagens ilustrativas dos diferentes tipos de lamelofones.
Lamelofones de madeira de ráfia com teclas de bambu.
Lamelofones acoplados a cabaças.
Lamelofones com corpo de madeira.
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Alguns lamelofones modernos.
Kalimba e Array Mbira.
Breve descrição de minha trajetória com a Kalimba
Inicialmente, conheci a Kalimba feita pelo Luthier Márcio Vieira, feita em corpo de madeira, com 15
lamelas, afinada do centro para a periferia em ré maior (à esquerda na foto).
Após experimentar diferentes afinações (alguns modos gregos e pentatônicas), insatisfeito com as
limitações do instrumento, em parceria com o Luthier, desenvolvemos um protótipo de kalimba
cromática. As minhas contribuições foram em termos de afinação e organização das lamelas e ele se
encarregou da construção do instrumento. Após dois anos de experimentações, chegamos a um modelo
definitivo. É este o instrumento que toco hoje em dia (à direita na foto).
  10	
  
Tradição Oral na África (lendas e histórias da Kalimba)
Como se transmite o conhecimento.
O ensino dos lamelofones na África se dava através de tradição oral. Este instrumento era utilizado de
plano de fundo para a contação de histórias, prática que ao mesmo tempo vinculava a transferência do
conhecimento ancestral e a preservação da mitologia.
A tradição oral pode ser compreendida como um processo educativo, através do qual a comunidade pode
conhecer seu passado, construir sua identidade histórica e estabelecer os valores morais e religiosos para
seus membros. Praticamente, atua como um testemunho transmitido verbalmente através das gerações.
“Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de preservação de sabedoria dos
ancestrais, venerada no que poderíamos chamar de elocuções- chave, isto é, a tradição oral. A tradição
pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente, de uma geração para outra”
(VANSINA, 1982 apud FONSECA pag. 4936)
Quando nos referimos à tradição oral, como única forma de acessar a história e o espírito dos povos
Africanos, é inevitável que a validemos como fidedigna. Essa herança, transmitida de geração para
geração, de mestre para discípulo, de boca a ouvido, reside viva ainda hoje, na memória da última geração
de grandes depositários (ou tradicionalistas), de quem se pode dizer que são os guardiões dessa herança.
Em relação à forma de transmissão desse conhecimento, e particularmente, à educação dos jovens, pode-
se dizer que se dava de forma articulada com a prática diária. Isto quer dizer que se aprendia fazendo. Ao
participar de qualquer atividade, fosse ela produtiva, artística ou mítica, aprendia-se as técnicas, saberes e
códigos de linguagem concernentes àquela atividade. Dentre as principais áreas de conhecimentos
transmitidos encontram-se a dança, musica e escultura no campo da arte; toda a gama de afazeres
cotidianos, correlacionados aos meios de produção; e no campo mágico-religioso, toda a sistematização
do comportamento ritual. Normalmente a educação está intimamente ligada à arte, e o ato criativo, por
sua vez, está relacionado com a manutenção e com a prosperidade do grupo comunitário.
Os ritos tem um importante papel pedagógico, uma vez que atuam como modelos de mudança, exercendo
a função terapêutica de reintegrar o indivíduo à comunidade através de elementos simbólicos que
traduzem a vivência cotidiana ou extra-cotidiana do grupo.
Nas sociedades de tradição oral, a fala é reconhecida não apenas como um meio de preservação de sua
história, cultura e sabedoria ancestrais, mas atribui-se, além disso, à palavra, um caráter sagrado,
vinculado à sua origem divina. Dessa forma, onde não existe escrita, o homem está diretamente ligado à
palavra que profere, ele se torna um com os seus dizeres. Esse comprometimento entre homem e palavra
encerra o testemunho de que a coesão da sociedade se estabelece no valor e respeito atribuídos à palavra,
para além do efeito moral, considerando também seu efeito mágico-religioso.
  11	
  
A respeito do mito, que hoje é conceituado como ficção, pode-se dizer que atua nas sociedades de
tradição oral como uma narrativa que oferece modelos de conduta humana, valores e exemplos
significativos. Para esses povos, essas histórias são verdadeiras em sua compreensão de mundo e seu
caráter é sagrado.
“Essas história que nóis conta é tudo verdadeira porque os véio da gente era muito rigoroso, num
gostava de pegá mentira em ninguém, de jeito nenhum. Eles contava nóis com a maior sinceridade, uns
contava e até chorava...” (D.Mercês)
(FONSECA pag. 4937)
Quem são os tradicionalistas
Ditado malinês: “Na África, quando morre um velho desaparece uma biblioteca”.
Os tradicionalistas, guardiões das ciências da vida e dos segredos da Gênese cósmica, geralmente são
também arquivistas de fatos passados transmitidos pela tradição, ou ainda, de fatos contemporâneos. De
fato esses personagens são dotados de uma memória excepcional, embora todo povo que vivencia a
tradição oral seja, por força da prática, possuidor de uma boa memória.
Velhos de cabelos brancos, voz cansada, às vezes rotulados de meticulosos e teimosos, os tradicionalistas,
guardiões da tradição oral, considerados em alguns estados africanos como uma espécie de “cronista
real”, guardavam na memória todos os acontecimentos importantes para a justificação do poder vigente e
para a coesão do grupo. Dessa forma, caracterizam a tradição oral, não apenas como forma de transmissão
de cultura, mas como cultura em si mesma, autêntica porque abrange todos os aspectos da vida, fixando
no tempo presente, respostas para as indagações das existências humanas. Estes representantes da
tradição, narram, descrevem, ensinam e discorrem sobre a vida, assinando com o seu caráter a veracidade
do conteúdo transmitido.
No contexto dos povos áfragos (sem escrita), existem diversos tipos de tradicionalistas. Por exemplo, as
ciência ocultas e esotéricas são privilégio dos “mestres da faca” e dos chantres dos deuses, os Doma são
os guardiões das palavras sagradas transmitidas pela cadeia de ancestrais, e por sua vez, os griots, são
responsáveis pela musica, pela poesia lírica, pelos contos recreativos e muitas vezes, também pela
história.
É comum a crença errônea entre alguns estudiosos ocidentais de que os griots são os únicos
tradicionalistas existentes, possivelmente isso se deve ao fato de que eles freqüentemente atuam como
menestréis ou andarilhos, de forma que o seu trabalho é amplamente conhecido.
Classificam-se os griots em três categorias. Podem ser eles: músicos, se tocam qualquer tipo de
instrumento, normalmente são também bons cantores e compositores, além de guardiões e transmissores
da musica antiga; podem ser cortesãos, quando responsáveis pela mediação entre grandes famílias, no
  12	
  
caso de conflitos (estão sempre ligados a famílias nobres, e às vezes, à apenas uma pessoa); e podem ser
também genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três simultaneamente), comumente viajantes e
contadores de histórias.
Analogamente a um “bobo da corte”, os griots recebem pela tradição um status especial, o qual lhes
confere o direito de serem cínicos e de gozarem de grande liberdade para falar, podem manifestar-se à
vontade, às vezes chegando a tirar sarro de assuntos sérios e sagrados, sem que isso implique em
conseqüências graves. Não têm a obrigação de serem rigorosamente comprometidos com a verdade.
Podem até mesmo chegar a contar mentiras descaradas, considerando que têm a “licença poética” para
atuar na critica artística.
O poder da palavra e autenticidade da transmissão
Segundo a tradição, a palavra encerra em si mesma os três principais poderes do universo, o de Criação, o
de Preservação e o de Destruição. Por esse motivo, a fala é considerada o grande veículo de ativação da
magia africana. Mas, para que as palavras produzam seu efeito total, devem ser pronunciadas
ritmicamente, porque, para que gerem movimento, precisa haver ritmo. Estando o ritmo fundamentado no
segredo dos números, a fala deve portando estar cadenciada para que as canções e encantamentos rituais
manifestem o seu poder de mobilizar as forças etéreas, podendo assim, agir sobre os espíritos, e, através
da harmonia gerada, desencadear as potências da ação. Através desse mesmo viés de consciência, levando
em consideração as forças ocultas contidas na palavra, assim como o seu poder, é considerado um ato de
boa conduta ser prudente com a palavra que se profere.
Por essa razão, nas sociedades de tradição oral, a mentira é considerada como um vírus, aquele que falta
com a sua palavra sofre uma morte moral, civil, religiosa e oculta, separando-se de si mesmo e da
sociedade. Morrer fisicamente é possivelmente menos ofensivo nesse sentido do que ser considerado um
mentiroso. É excepcionalmente grave para um tradicionalista, independente de seu nível, mentir (salvo a
exceção dos griots). Para essas pessoas, a mentira representa não apenas um defeito moral, mas uma
violação ritual que lhes impede de cumprir sua função honrosamente. Se acontecesse de um
tradicionalista receber a fama de mentiroso, ele não seria mais digno da confiança de ninguém e seria
destituído de seu “cargo” imediatamente.
Acima de qualquer outro, os tradicionalistas estão sujeitos à obrigação de cumprir com sua palavra, pois,
enquanto mestres iniciados, sua conduta deve ser impecável. Para além da má qualificação da mentira, o
tradicionalista pratica a disciplina da palavra, pois, como já dito, a fala é considerada como manifestação
das forças interiores, e reciprocamente, a partir da interiorização da fala, nasce a força interior. Esse olhar
nos permite conceber melhor a importância que a tradição africana concede ao autocontrole. O
aprendizado de boa educação e nobreza inclui o domínio sobre as manifestações das emoções e do
sofrimento. Falar pouco é um reflexo da habilidade de conter dentro de si as forças internas, almejando
  13	
  
atingir o grau máximo desse domínio, se tornando a semelhança do primeiro homem, que continha todas
as forças do universo, submissas e alinhadas dentro de si mesmo.
Oralidade versus Escrita
A diferenciação entre a escrita e o saber se faz necessária, a escrita é como a luz de um projetor na tela de
um cinema, reproduz aquilo que emite a luz, às vezes com precisão, porém não é a própria luz. A luz é o
saber em si mesmo, herança de tudo aquilo que os ancestrais vieram a conhecer e posteriormente,
transmitiram-nos.
Estudiosos questionam se é possível conferir à oralidade a mesma confiança, em termos de fidelidade,
que normalmente se confere à escrita no ponto de vista do testemunho de fatos passados. Entretanto, a
questão não se resume a isso, independentemente de se é oral ou escrito. No fim das contas estamos
tratando de testemunho humano, e o que vale é a integridade do homem. Não há nenhuma prova de que a
escrita resulte em um relato da realidade mais preciso ou fidedigno do que um testemunho oral.
O que se encontra por detrás do testemunho é o valor daquele que o transmite, e por trás ainda do valor do
indivíduo encontra-se o valor da cadeia de transmição da qual ele faz parte, o que inclui as técnicas de
ensino e os valores concedidos à verdade por aquela sociedade. Resumindo, a seriedade e o respeito pela
ligação entre homem e palavra.
Tudo está interligado! Tradição oral e música.
Dentro dos limites da tradição oral parte-se do reconhecimento de que, em verdade, o espiritual e o
material não estão intrinsecamente separados. Diferentemente do processo que constitui a mente
cartesiana, que separa tudo didaticamente em categorias bem definidas, na tradição oral os ramos do
conhecimento permanecem todos conectados com a própria tradição, que é ao mesmo tempo religião,
conhecimento, ciência natural, arte, história, divertimento e recreação. Ao unir todos os aspectos da vida,
a tradição oral coloca-se ao alcance do entendimento dos homens, revelando o conhecimento de acordo
com suas aptidões e trazendo a visão do todo a partir da compreensão da parte.
Dentro da arte também podemos observar esse conceito de unidade entre os conhecimentos. Os africanos
não se ocupam em separar a música e o poema: a música está ligada ao poema, eles se influenciam
mutuamente, assim como a música influencia a dança, que inspira a escultura e a pintura, que por sua vez,
tornam a se conectar com a música. Dessa forma, não podemos separar os campos artísticos, uma vez
que sua interconexão é tão profunda que não seria aceitável que eles se desenvolvessem e quiçá, que
existissem em plenitude separadamente. O olhar aqui é global, sem domínios autônomos- tudo está
interligado.
  14	
  
Para os povos africanos, a música é percebida como um dos códigos-chave de tradução simbólica da
visão de mundo daqueles que a experimentam, um meio de criação e recriação de significados. A música
traduz em si mesma a cosmovisão africana, transpondo as barreiras do tempo e participando ativamente
dos processos de transformação.
Uma característica curiosa da música encontrada nas tradições orais, mais especificamente nos povos que
tocam lamelofones, é a ausência de nota perfeita, isso significa que não existem refências precisas para se
estabelecer a afinação. Para o ocidente isso é inadmissível, pois, se não existe nota, não há música. Os
africanos se abstêm da necessidade de definir um padrão de afinação. Culturalmente isso se deve ao fato
de que, de acordo com a visão de mundo africana, não há a necessidade de haver essa perfeição toda, de
se afinar o instrumento de determinado modo para tocar uma música específica. Além disso, não existe
possibilidade de se repetir uma música do mesmo jeito. Cada músico afina o seu instrumento ao seu
próprio modo. A cultura africana aceita o diferente e suaviza dessa forma as preocupações e exigências
performáticas.
Na narrativa de Abdu Ferraz encontramos uma lenda criacionista que nos permite visualizar melhor a
questão da relação desse povo com a repetição das notas e da música (Abdu toca um lamelofone, a
kisanje, enquanto narra sua história):
“Diz uma lenda: um dia desses, Deus estando exausto, sentou-se e pôs a mão assim atrás, nessa época
não existia nada, nada, não existia terra, água, planta, nada; era apenas um vazio, preenchido por nada.
E Deus perambulava, de um lugar para o outro, quando pôs a mão na consciência, que lhe disse, por que
você não faz um instrumento? Deus fez um instrumento musical, logo surgiu a kisanje. Quando vocês se
depararem com uma kisanje, na África, vai ter uns anéis, que faz com que tenha sons, sendo que quando
você toca, nunca vai repetir o mesmo som.
Dizia a lenda que Deus fazia música (narrando Abdu toca kisanje). O Ocidente diz que um ano, aliás, mil
anos são como um dia para Deus, conforme um dos livros da Bíblia. Nós não temos essa conotação de
tempo, porque o tempo é inseparável do espaço. Com Deus tocando kisanje, passaram-se mais de 30 mil
anos, até que num momento ele cochilou um pouco e se surpreendeu com o som que saiu. Quando
dormimos ainda podemos escutar música e quando Deus cochilou saiu outro som, outra nota. No que
Deus pára, abre os olhos, bem na sua frente caiu alguma coisa: era o homem. Quando olhou em volta
tinha plantas, águas, tudo. Enquanto ele tocava, todo universo criara-se ao som da kisanje. Vendo o
homem, em frente a si, olhou para o instrumento e disse: "bom agora vou ver como ele cai de novo, pelo
menos vou tocar. Qua1 foi a nota que toquei mesmo?'. Ficou em dúvida. "Teria sido essa? Ou essa? Essa
ou essa?". Disse: "vou tocar de novo". Como Deus não poderia errar, tocou no lugar que julgara ser o
mesmo: "É essa com certeza, vou apertar de novo". Quando apertou, era outro som, não podia ser a
mesma nota, não existe a nota perfeita. Nisso surgiu a mulher e Deus viu a mulher cair no chão. Então,
pegou o instrumento e não quis tocar mais. Deu-o aos dois, "podem levar esse instrumento" e foi o
primeiro instrumento musical que recebemos das mãos de Deus e passamos a tocar a kisanje.”
(FERRAZ, 2003, pag. 219)
  15	
  
Chandra Lacombe e a kalimba
Um pouco sobre o Parampára
Um outro exemplo de tradição oral é o parampára, advindo da cultura hindu. Este permanece vivo mesmo
apos o domínio da escrita por aquele povo. Cito o parampára como referência de tradição oral pois, apesar
de não estar diretamente conectado com a kalimba, está ligado com a forma de aprendizado que se
desenvolveu entre eu e meu mestre/professor de kalimba, que se chama Chandra Lacombe. Isso se deve,
por sua vez, à condição de afeiçoamento e identificação pessoais, as quais determinam de forma intuitiva
quais nichos de linguagem são escolhidos para o entendimento desse fenômeno.
O parampára se baseia em alguns princípios semelhantes aos das tradições orais africanas. Os principais
deles são a confiabilidade da fonte do conhecimento e a confiabilidade na forma de transmissão. Para o
povo hindu, esta é a melhor forma de assegurar a idoneidade do ensinamento védico.
“A fim de aprender a ciência transcendental, devemos nos aproximar submissamente de um mestre
espiritual genuíno, proveniente da sucessão discipular e fixo na verdade absoluta”.
(Mundaka Upanishade (1.2.12) apud MORETTO, 2012, pag. 39)
O conhecimento é transmitido de mestre para discípulo sucessivamente. Sua origem é a fonte do
conhecimento revelado, também chamada de sruti. A cadeia de mestres, por sua vez é chamada de
sampradaya.
“Podemos questionar se realmente uma sucessão de mestres pode, com toda precisão, passar a
mensagem de um mestre para o seguinte, sem modificá-la ou sem lhe acrescentar nada. Mas ninguém
pode se colocar na posição de querer falar o conhecimento védico recebido em sucessão de mestres
anteriores – só se pode posicionar assim quem é o guru perfeito. O processo védico garante a pureza da
transmissão ao primar pela qualificação daquele por quem é transmitida”
(GOSVAMI, 1939, p.8 apud MORETTO, 2012, pag. 40).
Entrevista:
Como foi seu primeiro contato com a música?
O primeiro contato efetivo onde a gente possa dizer que a música me tocou, que eu entrei em empatia
com o processo da música, ou que realmente senti que me inspirou, que me instigou a me interessar, a
buscar mais, esse momento de deslumbramento, descoberta da possibilidade de usar a música foi com
uns onze, doze anos de idade. Eu vinha muito num caminho com as artes plásticas, com desenho, com a
pintura, nessa idade eu desenhava e pintava bastante, tinha uma produção muito boa, pintava muito de
uma forma, até pra extravasar, pintava bastante, tinha fim de semana que eu fazia muitos quadros, acho
que era uma maneira de eu me comunicar e me expressar, e senti que em algum momento isso ficou um
pouco limitado, por conta da tela, de ter que misturar tinta, todo um procedimento, eu não tinha técnica,
  16	
  
mas tinha todo um buscar e, angustiado com essa expressão, que chegou numa fruição, num limite, e eu
senti que estava esgotado aquele canal de expressão.
Paralelamente a isso , antes de encerrar completamente, eu já vinha me encantando com a percussão,
tinha uma inclinação a me interessar pela percussão, e quando eu tinha 12 anos de idade minha mãe
estava muito envolvida, nessa época, com o teatro, e eu e meu irmão assistíamos aos ensaios e depois o
diretor de teatro, que era muito amigo da família, nos convidou. A gente tinha uns amigos e a gente
começou a fazer uma espécie de sonoplastia para essa peça, tocando instrumentos de fanfarra, surdo
caixa, instrumentos de percussão e mais tarde eu vim a gostar bastante do bongô, achava aquelas duas
sonoridades do agudo e do mais grave complementares, gostava da sonoridade que saia e que eu
conseguia extrair do bongô, e meti a cabeça no bongô, mergulhei no processo com o bongô. Acho que eu
expremi até a última gota que eu podia do bongô.
Eu lembro que mais ou menos uns dez anos após isso , um pouco menos, talvez com uns dezoito,
dezenove anos, eu comecei a ouvir por conta da minha iniciação com o Osho, então como Saniasin do
Osho, como discípulo de um mestre da Índia. O Osho era muito universalista: misturava muita coisa, mas
com certeza como um mestre indiano, tinha bastante coisa da música indiana no meio daquelas fitas que
eu comecei a ter acesso, em meio a todo aquele material que estava surgindo, apareceram instrumentos
exóticos como a tabla, que me chamou muito a atenção.
Tem que achar um momento para fazer pausas no trecho a seguir, pois ele está muito comprido e sem
pontos!!! Essa sonoridade da música étnica asiática, bem única mesmo, com timbres bem únicos, e a tabla
eu percebi logo de cara que tinha uma certa complexidade, e eu queria extrair aquele som fazendo no
bongô, então virava ao contrário o bongô, ao invés de fazer da maneira africana, com a aguda na esquerda
e a grave na direita eu usava a grave na esquerda, raspando quase que o couro para tentar extrair o som
dos glissandos do duke que é a parte grave da tabla, e na aguda eu batia no canto pra tentar fazer aqueles
sons. Já era minha paixão pelas ragas, pela música indiana, pela maneira que eles brincavam com a
divisão dos ritmos, desdobravam e dividiam o ritmo, Nossa! daquela forma enlouquecedora.
Isso também chegou a um certo ponto onde senti necessidade, -nossa! Mas eu preciso de alguma coisa
melódica, porque a linguagem que eu queria transmitir no sentimento da percussão era uma coisa já indo
extrapolando para o melódico. Eu queria achar um instrumento que explorasse ao mesmo tempo a rítmica,
a tônica percussiva e ao mesmo tempo o elemento melódico.
Aí as pessoas me aconselhavam: -Toca marimba, toca xilofone, piano! que são os instrumentos
percussivos e melódicos de orquestra, os mais conhecidos. Mas tocando sobre couro, entendi que quando
eu pressionava o primeiro dedo de uma forma, e vinha com o segundo dedo pressionando e depois o
terceiro eu já extraia notas sobre o couro, tocando com diferentes pressões em diferentes posições do
couro, e isso me fez compreender que eu já devia estar querendo realmente extrapolar aquelas molduras
unicamente rítmicas, mono rítmicas, para uma coisa realmente que explorasse a esfera da combinação
com a melodia.
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O contato com a música e a tradição indiana veio mais ou menos junto?
Veio mais ou menos junto, como eu falei depois do teatro com os meus dezessete, dezoito anos, comecei
a meditar, conheci os Saniasin,s do Osho e isso de certa forma foi a ponte, a entrada para o contato com a
tradição, pessoalmente em primeiro momento, em termos de música, com a tradição da Índia.
Mais pelo exotismo, um deslumbramento, um encantamento com aquele exotismo todo, aqueles timbres
diferentes e ao mesmo tempo me puxando uma coisa de memória. Da onde vem ? Como que é essa
afinidade? Da onde ela vem ? De que plano de existência e de que dimensão da consciência isso ressoa
dentro de mim? Essa era a questão com a música indiana.
E como você conheceu a Kalimba?
Nesse momento transitório, envolvido com a arte em Brasília de maneira em geral, como percussionista,
eu conheci uma pessoa, que era um músico que tocava num bar, tocava um violão jazz e MPB nesse
barzinho que eu fui visitar com outros amigos. Terminamos depois desse bar na casa desse rapaz, o Quito.
Os pais dele eram diplomatas, então viajavam muito pelo mundo, e ele tivera também na França. E numa
dessas viagens, o pai ou a mãe, não sei quem, acabou comprando um suvenir de imigrantes africanos, em
Paris, porque a França colonizou alguns países africanos. Moçambique, se eu não estou enganado, não sei
ao certo, mas enfim, Quênia talvez.
E eu acho que esse suvenir exatamente era do Quênia, e era um instrumento absolutamente rústico que
estava como enfeite decorativo numa mesa na casa desse rapaz. E quando eu olhei esse instrumento, de
cara eu fiquei meio que - UaU! O que é isso? A minha curiosidade foi absurda, e eu cheguei a ter a cara
de pau de perguntar pra ele, depois da madrugada a dentro, explorando, tocando, sentindo o instrumento,
perguntei, você num quer me emprestar esse instrumento ?
Ele concedeu e eu fiquei com esse instrumento umas duas semanas, por aí, acho que quinze a vinte dias
na verdade, e não queria nem devolver (risos), eu já estava tocando e tentando incorporá-lo dentro do
panteão de instrumentos percussivos, por que na época, eu estava nessa pesquisa de instrumentos de
percussão latino americanos , afro latino americanos na verdade. Pra tocar dentro do contexto comum, de
percussionista, você tem que ter aquele set, que é conga, bongô, timbale, woodblocks...
E esse era um instrumento que era um fetiche que imitava no corpo dele, uma espécie de barca, e tinha
uma cabeça, era um ser humano e também um barco. Ele era meio abaloado, a madeira era escura, bem
rústico mesmo, e até frágil, podemos dizer madeira talvez de bálsamo. A estrutura que pressionava as
teclas (cavalete) era também de algum outro tipo de madeira um pouco mais dura, e as teclas em si, as
palhetas, (lamelas) eram feitas pelo que me constava, se eu não estou enganado, da parte do caule da folha
de papiro, que tem um caule comprido, a parte mais dura, que é a parte inferior.
Era um instrumento bem rústico e tinha um som que não tinha muito ataque, emanação de som, mas era
muito agradável o som, e era uma kalimba, com apenas nove ou dez teclas, e a afinação era absurdamente
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diferente, acho que era uma afinação pentatônica, não sei que tipo de afinação era aquilo, era bem único.
Era esse o instrumento que estava nas minhas mãos naquela época, era a primeira, com certeza uma
Sanza, que tinha escrito, gravado na madeira, Sanza.
Você pode falar um pouco sobre a sua técnica?
Sobre esse instrumento, logo que eu peguei o instrumento eu não tinha noção nenhuma da maneira
tradicional da forma original de como extrair o som do instrumento.
E lógico que eu tentei com os polegares, mas eu confesso a você, que de cara, eu já achei que eu devia
tocar com os dedos numa espécie de digitação, usando explorando primeiramente os dedos indicadores e
os seus vizinhos, e aí eu comecei a tocar de um jeito muito interessante, porque eu queria criar uma
divisão rítmica em contraponto, mas que tivesse um moto contínuo. Essa era a minha vontade, de extrair
um som mais contínuo e, ao mesmo tempo, com efeito staccato percussivo.
Comecei então a desenvolver essa digitação sobre o instrumento, que é uma forma que na época não era
muito explorada, talvez eu fosse a pessoa pioneira explorando esse jeito de tocar a kalimba.
Nessa época, um pouco depois disso, paralelo a esse tempo com o instrumento, eu o levei a um outro
amigo, o Marcio Vieira, e ele estava envolvido também na cena da arte de Brasília, também com teatro e
apresentações musicais. Tinha um grupo que fazia muitas trilhas sonoras, um grupo muito polivalente.
Eles tinham uma atuação e um desdobramento corporal no palco, e ao mesmo tempo uma sonoplastia
viva, executavam a música enquanto faziam suas performances, e eram como um grupo mineiro, o Uakti,
eles mesmos fabricavam a maioria dos seus instrumentos, que exploravam timbres incomuns, bem
originais.
O Marcio já estava construindo instrumentos com base nos instrumentos africanos, como aquele Ocdong,
que é uma espécie de baixo, uma caixa, com um cabo e uma corda amarrada nessa caixa, e ai você vai
fazendo diferentes sons conforme você vai tencionando a corda , movendo o cabo, no caso, um cabo de
vassoura.
Eu lembro também que estavam criando alguns instrumentos de sopro como o saxofone de bambu
(charamela), coisas bem diferentes, xilofones de ladrilhos, explorando sonoridades diferentes, cabaça
sobre água, com sons diferentes, era bem interessante o trabalho desse grupo. E o Marcio era um dos
cabeças, uma das peças chaves desse grupo, e fui estreitando a comunicação com ele, cheguei a levar essa
Sanza, apresentei para ele, e ele se interessou muito, e imediatamente começamos a fazer pesquisas em
livros e enciclopédias atrás de outros modelos de Kalimba.
E eu pedi : - Você pode fazer uma Kalimba assim, pra eu poder tocar desse jeito?
Ou seja, cujo intervalo entre uma tecla e outra facilite que eu possa fazer esses desenhos, esses
desdobramentos, pra que eu possa ir digitalizando no instrumento com os dedos, e não só limitado para
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tocar com o polegar. Dito e feito, depois de um mês e pouco ele me apresenta a primeira Kalimba, que ele
tinha manufaturado, feito a mão.
E essa Kalimba existe ainda?
Infelizmente não existe mais esse instrumento. Ele rendeu comigo uns 5 anos, mas eu toquei muito,
praticamente eu furei esse instrumento de tanto tocar (risos), e como a pressão no cavalete, ele ainda não
a tinha desenvolvido, estava só aprimorando, não tinha ainda uma pressão boa, então as teclas muito cedo
abaixaram, e ela perdeu bastante a tensão, e lógico o som ficou com um impacto muito pequeno. Então
essa foi um pouco da história do surgimento da kalimba em Brasília. Esse período entre os meus dezoito e
vinte e poucos anos.
E como foi o processo de aprendizado para tocar o instrumento?
Isso é curioso, eu não tinha, como eu falei, nenhuma noção, nenhuma informação prévia, nenhuma pista
que seja, de como tocar o instrumento, então como eu sempre fui uma pessoa muito esforçada e
autodidata, em todo o processo com a música principalmente. Esse autodidatismo foi apoiado por
algumas pessoas que perceberam essa história, então de certa forma eu ousei trazer para a kalimba essa
minha curiosidade, esse meu autodidatismo no processo de como desenvolver um jeito de tocar onde eu
desse prosseguimento, porque a minha meta era extrair esse som, moto contínuo, que eu, na realidade,
queria reproduzir o som da água.
Eu lembro que nessas viagens com o Thomas, nos primórdios da formação da banda Udiyana Bandha,
viajávamos muito pelas comunidades alternativas, por Goiás, conheci muito a natureza ao redor de
Brasília, que aliás é um lugar muito especial, muito inspirador, os rios de águas geladas, as pedras, rios de
pedras, e eu costumava meditar à beira do rio, ouvindo o rio, e eu acho que esse foi o meu único professor
(risos). Eu ouvia as águas do rio e eu sentia uma inspiração tomando o meu ser, e queria reproduzir aquilo
no instrumento, no caso a kalimba, que era o instrumento que eu estava adotando. A kalimba passou a ser
uma companheira inseparável, aonde eu ia eu estava com a minha kalimba. Quando eu sentia assim a
inspiração chegar, era fácil, ela estava sempre à mão. E foi muito tempo assim, aonde uma espécie de
transe se desenvolvia, eu às vezes até tinha que me afastar de tudo e de todos, ficar eu e o instrumento
junto à natureza ou a algum lugar mais isolado, e ficava, eu me lembro, que por muito tempo, às vezes
horas, às vezes uma hora e meia, duas horas, sentado na mesma posição com o instrumento no colo,
tocando. Eu realmente posso dizer que foi um raio divino, uma intuição que chegou pra mim. Eu não
tinha ,como eu falei, nenhum tipo de pista, e nem ninguém que pudesse me orientar, Ah, como fazer?
Não, faça assim, tal... Depois eu fui explorando foi a afinação, eu fui entendendo que uma afinação modal
no instrumento poderia ser interessante, pra acompanhar outros instrumentos melódicos, então eu fui
mudando posições de teclas, explorando posições ideais pra desenvolver essa técnica de digitação sobre o
instrumento.
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Depois isso se desenvolveu para usar a kalimba enquanto instrumento de acompanhamento para as
suas canções.
O que eu posso dizer, é que depois de um tempo nesses transes de criar mandalas rítmicas e no moto
contínuo, onde eu reproduzia uma espécie de corredeira de águas, isso foi se desenvolvendo, ficando mais
sofisticado, e entendi que o instrumento poderia ser também um instrumento de acompanhamento de
harmonia, que seria no caso o meu “violão”, que é um instrumento de harmonia pra poder compor, aí
nasceu as composições que hoje estão consagradas, composições com melodia, letra e harmonia.
Como foi para você passar desse estágio do transe, do moto contínuo, para você chegar nos
acordes?
Isso foi a necessidade mesmo, de sistematizar o que já estava acontecendo intuitivamente, de ouvido.
Tentando acompanhar outras pessoas tocando instrumentos de corda, como no caso, o violão, também a
flauta, aí eu fui então entendendo aos poucos, que se eu tocasse, a posição do dedo da direita em
determinada tecla, e o outro, do outro lado, tocando outras duas teclas, aqui eu teria um acorde, fui então
explorando isso, no início bastante intuitivamente, e depois, com a ajuda de outros músicos que já sabiam
a linguagem de cifras, eu fui ligando as coisas, -ta, então se eu tenho essa nota que soa junto com o sol do
violão, então nós vamos codificar esse acorde como um acorde de sol.
E o que você sabia de teoria musical?
Absolutamente nada! Confesso a você. Absolutamente nada! (risos) E eu até me cobrava, sentia que isso
podia ser uma deficiência em algum momento, e realmente, e sinto que em alguns momentos torna-se
uma deficiência, se eu não tenho um gravador na mão, se esse aparelho não existisse, como eu iria
registrar por exemplo, uma inspiração que vem, e que eu já to conseguindo reproduzir no instrumento, aí
é claro, que se eu soubesse um pouco de tablatura, e dominasse um pouco mais da cifragem e da
matemática musical, eu estaria com um recurso a mais. Mas eu nunca me preocupei na verdade com isso,
e confiei no processo puramente intuitivo mesmo.
Por favor, comente um pouco sobre o caráter da sua música, que inclui os mantras que vêm da
tradição indiana, mas que também tem a temática devocional e de auto-conhecimento.
Eu estava lembrando, que o som da kalimba, em questão de timbre, ele remete à água, como se fossem
gotas, por causa dos harmônicos, e lembrei que em algum momento eu busquei por um conceito, não
exatamente pro estilo de música, mas enfim, um conceito que pudesse definir, caracterizar, dar uma
identidade pra esse tipo de trabalho que tava surgindo, e lembro que eu gravei uma fita cassete e nomeei a
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fita com esse conceito que eu tava querendo criar, chama Aquântico. Que tinha a ver com o que eu estava
entrando em contato, que já existia há alguns anos, a teoria da física quântica, do salto quântico de
consciência, e o som da kalimba que remetia à água. Eu estava tentando criar um conceito, justamente pra
dar um nome, uma cara, não exatamente pra rotular, mas dar uma cara original onde eu conseguisse
transmitir essa percepção, da onde minha música podia chegar, em termos de efeitos, do que acontecia e
de como ela já estava trabalhando em termos terapêuticos.
Como você mencionou anteriormente, sobre o uso da kalimba estar vinculado com cura, eu acredito nisso
também, concordo com você, há um processo voltado à busca da essência, ao processo terapêutico,
realmente tem a ver, até por conta da maneira como a kalimba surgiu. Mas eu sinto que independente da
kalimba enquanto instrumento, e de seu timbre, eu estava com essa vontade de dar esse nome Aquântico.
Então eu queria fazer essa ponte do efeito terapêutico sobre a evocação de emoções, como a água é ligada
simbolicamente às emoções, e eu lembro que era exatamente isso que eu ouvia das pessoas de feedback, e
era isso que eu percebia que a música tava fazendo, ela evocava mesmo, a pessoa entrava em contato de
uma maneira não muito explícita, de uma maneira, sutil, indireta, com as emoções.
A kalimba também por sua qualidade timbrística evoca uma reconexão com esses sentimentos e emoções
mais primais, então isso estaria fazendo uma ponte com a minha música, quando ela não está voltada a
essa pesquisa com a cultura indiana, devido à minha própria identificação filosófica, e à pesquisa dos
yogas, aonde a gente chega no Nada Bhakti Yoga, que é o yoga da devoção através do som, aí entram os
bhajans e os mantrans, aí o conceito de mantra eu poderia até me dar ao trabalho de explicar, mas não
agora. Enfim, quando a minha música não estava voltada para esse aspecto, ou seja, quando ela possui
mensagem, ou lirismo, ela geralmente tem este selo, esta característica, de poder inspirar as pessoas a
uma reflexão profunda, a resgatar valores mais internos, e, de uma certa forma, ela tem uma missão
visionária, iniciática, inspirando as pessoas a um despertar de consciência, por isso o quântico.
Acho inclusive que isso tem a ver com esse salto quântico, daí surgiu a palavra aquântico, que eu lembrei
quando você perguntou e que já foi nome de um dos meus trabalhos, que saiu só em cassete, acho que é
isso, uma tentativa de dar uma cara pra essa música, vai além disso, mas o termo aquântico, ou música
aquântica, que soma o quântico com o processo de burilamento das emoções, acho que define bem.
Agora, como acabei de dizer, minha música sempre esteve comprometida de alguma maneira, com a
espiritualidade, e andou sempre em paralelo com a minha própria busca e desenvolvimento espiritual. É
muito difícil desassociar, o link que existe é muito orgânico e sempre esteve presente, é uma coisa muito
intrínseca. Acredito que minha música muitas vezes nasce dessas experiências, desses desdobramentos,
da minha própria auto-descoberta, nesse ambiente, nessa esfera da espiritualidade, então uma coisa e a
outra estão realmente intrinsecamente conectadas. Acredito que não existe uma classificação ainda pra
esse estilo de música, a new age tentou, mas a new age é muito abrangente e cai acho que talvez num
termo um pouco pejorativo, a new age acho que não serviria, por isso a tentativa mesmo que houve nessa
época de tentar definir esse estilo ou essa tendência, essa aquarela específica que a gente está trazendo
através da kalimba, e desse tipo de música mais visionária, que se predispõe a facilitar de alguma maneira
um mergulho mais profundo numa esfera espiritual e, por fim, no trabalho de expansão da consciência.
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Você poderia falar um pouco sobre o parampára, sobre essa relação que acabou se desenvolvendo
entre nós?
Esse é um termo que vem do hinduísmo, da cultura devocional indiana, da relação guru-discípulo, mestre-
discípulo. O que eu entendo como parampára é justamente uma transmissão que está além do formal,
conceitual, estrutural, em cima de conceitos. É uma transmissão intuitiva e oral e às vezes nem mesmo
oral, é uma transmissão sinestésica, sutil, que pode acontecer de várias maneiras, geralmente através da
presença. Aquela pessoa que está desenvolvendo aquilo, que chegou a dominar um certo conhecimento,
que chegou a iluminar a sua percepção sobre determinada técnica ou a alguma coisa, ela chegou a esta
fruição e desenvolveu até um certo patamar, ela sente a necessidade de transmitir isso, pra dar uma
continuidade nesse conhecimento, para que ele não morra junto com a vida daquela pessoa, para que ele
possa ser perpetuado, propagado, pra frente, então é aí que eu sinto que entra essa história mesmo, que eu,
como um professor de kalimba, acho que sou um grande focalizador de meditação (risos). Eu não tive
muita paciência e muita sistematização pra querer criar uma metodologia de ensino, isso eu deixo pra
você (risos). Mas acredito nisso, acho que é um processo de transmissão bastante intuitivo, e que prova
que antes da escrita e antes de outros sistemas de registro, era assim que funcionava, oralmente, o
exemplo vivo.
E sobre essa transferência do conhecimento, você diria que ela acontece de forma conscientemente,
intencional?
Como eu falo, tem várias maneiras de isso acontecer, eu sinto que é uma transmissão que às vezes se vale
de uma espécie de abertura, vulnerabilidade e relaxamento da pessoa que está recebendo isso, então é
uma transmissão por via de empatia vibracional, pode acontecer assim, entende? É quase como se a
pessoa tivesse uma parte que é consciente, que se utiliza da vontade. Mas tem outra parte que eu sinto que
é muito amórfica, você não tem como explicar isso, é um processo bem difícil até de se explicar em
palavras, extremamente intuitivo. Na Índia dizem que é uma espécie de benção, o darsham tem esse
significado, é a transmissão de uma benção, de uma energia que apóia aquele movimento de despertar do
devoto, do buscador, do aluno, que está começando a beber daquela fonte, então isso se faz para além
mesmo da forma, para além das palavras, porque é um processo digamos, é muito difícil de explicar, é um
processo imaterial.
(Chandra espontaneamente conta algumas curiosidade sobra a kalimba)
Esse é um fato curioso sobre a kalimba, que no sul da África, em meados da colonização inglesa, uma
tribo africana nômade, que caminhava entre os estados africanos, eles tinham a kalimba justamente como
entretenimento, porque as caminhadas eram longas, eles iam tocando e cantando histórias, a kalimba era
uma trilha sonora para uma história que o cara ia cantando, tocando o instrumento e contando histórias.
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Só que eles faziam os instrumentos usando uma parte dos postes de luz que conduziam energia, que acho
que era uma parte que segurava os fios antes dos fios seguirem, então eles tinham que cortar... (risos).
Deram muito trabalho pros ingleses. Foi uma dor de cabeça, por que eles cortavam os fios e pegavam o
material pra fazer kalimba, pegavam lá os conduítes, fios, que eram usados no sistema, entende? E faziam
kalimbas.
Você sabe, né, para atrair a alma que iria encarnar, então tocava-se a kalimba que tem o formato de uma
seta para baixo, e a bolinha no centro seria o útero, então começavam a tocar as melodias pra atrair, pra
convidar o espírito pra habitar o ventre, no início da gravidez.
Observações:
É interessante observar, que, durante sua caminhada com o instrumento, Chandra experienciou alguns
arquétipos intrínsecos à cultura da kalimba. Exemplificando isso encontra-se o fato de sua música ter um
sentido espiritual e terapêutico, alem do fato de usá-la como um instrumento pessoal, levando-a em suas
caminhadas. Também é curioso perceber que antes de chegar na música, Chandra passou por outros
ramos da arte, como pintura e teatro. Isso delineia uma relação com o aprendizado de tradição oral, para o
qual os ramos artísticos estão interligados.
Minha trajetória com a kalimba: Aprendizado e ensino
Tradicionalmente o lamelofone, chamado nesse trabalho de kalimba, é tocado com os polegares.
Particularmente, utilizo a técnica criada e desenvolvida pelo meu mestre de kalimba, Chandra Lacombe,
que utiliza os dedos indicadores e médios para manipular o instrumento. Isto possibilita a sua utilização,
que originalmente é percussivo-melódica, de forma a produzir acompanhamento harmônico e/ou
melodias acompanhadas.
A escolha do instrumento
Iniciei os meus estudos de música tocando violão. Fiz cerca de oito meses de aula, e depois segui com o
meu aprendizado de uma forma mais ou menos autodidata. Pesquisava muito na internet, principalmente
sobre teoria musical, que era o assunto que me interessava mais. Após algum tempo, retornei a fazer aulas
de violão erudito. Quando conheci a kalimba e o trabalho do Chandra, fiquei absorvido por sua
musicalidade e comecei a tirar suas músicas “de ouvido”, tocando melodias acompanhadas no violão.
No início de 2004 ganhei uma kalimba de minha irmã. Era uma kalimba feita em uma cabaça, com
apenas sete lamelas. Fiquei até o final do ano com esse instrumento, explorando tudo o que pude, até que
no final do ano encomendei uma kalimba diatônica, com quinze lamelas, feita pelo Márcio.
Passei então a tocar na kalimba as música s que eu já dominava no violão, já possuindo um conhecimento
teórico básico, de formação de acordes, campo harmônico e de leitura musical (embora sem fluência),
percebia claramente as limitações do instrumento, porém, ele era adequado para o estilo de música que eu
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estava aprendendo, que era modal. Continuei simultaneamente tocando os dois instrumentos, porém me
aprofundei nos estudos cursando violão erudito no conservatório de Tatuí, durante o período de dois anos.
No decorrer desses estudos fui sentindo cada vez mais afinidade com a kalimba e com a filosofia do nada
bhakti yoga (o yoga da música devocional), transmitida pelas música s tocadas na kalimba por Chandra
Lacombe. Finalmente, optei por me dedicar exclusivamente a este instrumento.
O aprendizado oral no contexto acadêmico
Quando realizei o vestibular da Unicamp, fiz a prova de proficiência tocando a kalimba, atingindo a nota
máxima, o que me confirmou que estava dominando o instrumento. Apesar de minha proficiência, no
primeiro semestre do curso percebi que o instrumento era insuficiente para atingir as exigências do
conhecimento que estava adquirindo.
Permaneci os três primeiros anos do curso de música apenas com a kalimba diatônica, e, por força da
necessidade de um instrumento que desse suporte aos conteúdos dos estudos acadêmicos, em termos de
harmonia, em relação às modulações e harmonias mais sofisticadas, procurei o luthier Márcio Vieira, que
fez a minha primeira kalimba, para estudar a possibilidade de confeccionar uma kalimba cromática.
Haviam algumas dificuldades existentes para a realização desse projeto. A primeira delas era o cavalete,
que precisaria ser duplo para criar a diferença de altura entre o jogo de lamelas superior e o inferior. A
segunda questão era qual escala seria usada no jogo de lamelas inferior. Pensamos em três possibilidades,
que eram dó maior, ré maior e ré dórico, levando em consideração os aspectos físicos, a didática e a
tessitura do repertório para o instrumento. A terceira questão era a organização das lamelas superiores,
que, por conta da kalimba ter a sua escala (do grave para o agudo) organizada do centro para a periferia,
alternadamente, então a lamela que corresponde, por exemplo, ao lá sustenido (ou si bemol),
necessariamente fica, ou logo apos o lá, ou do lado oposto, anterior ao si.
Elaboramos a partir dessa pesquisa um modelo experimental, no qual eu permaneci explorando diferentes
possibilidades para o arranjo das lamelas, até que encontrei uma forma de organização satisfatória para os
meus objetivos. A escala do instrumento ficou em ré maior nas lamelas inferiores e as lamelas superiores
ficaram dispostas alternadamente à nota alterada com sustenido. Fiquei com este instrumento por cerca de
um ano. Devido ao desgaste da madeira, a caixa não suportou a pressão do cavalete, e rachou. Na
seqüência, encomendei uma nova kalimba cromáica, que foi aprimorada pelo luthier, que resolveu a
questão do cavalete duplo, alterando o formato das lamelas superiores, reduziu o tamanho da caixa e fez
um trabalho primoroso de afinação dos primeiros harmônicos superiores, chegando assim, a um modelo
definitivo.
Inevitavelmente algumas tonalidades mantiveram uma digitação mais simples e algumas adquiriram uma
digitação mais elaborada, encaro isso como um desafio técnico inerente ao instrumento, visto que a sua
solução não seria possível sem alterar drasticamente o projeto original, o que resultaria na transformação
de algumas características básicas, como tamanho e formato da caixa de ressonância, implicando em
alterações de timbre, efeitos e na técnica para se tocar, tornando essa possibilidade não plausível para os
meus objetivos.
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Assim que adquiri essa kalimba cromática, passei a tentar aplicar o conhecimento teórico que estava
aprendendo na universidade, no instrumento, procurando escrever músicas e registrar o processo de
aprendizado, com o fim de tornar, em algum momento, o instrumento mais acessível e didático. Por conta
do meu próprio processo de aprendizado e da minha fluência de digitação, optei por não escrever
literalmente o que tocava (salvo algumas exceções, dependendo do grau de complexidade do arranjo ou
às vezes por exigência do próprio curso), preferindo uma linguagem mista de melodia escrita na partitura
e acompanhamento harmônico escrito por cifras. Essa seria a linguagem que permitiria ao mesmo tempo
uma maior liberdade de interpretação e um registro suficientemente preciso para a minha própria
compreensão. Incluí nesse exercício o aprendizado rítmico, de polirritmia e compassos compostos, assim
como modulações harmônicas, compondo música s que contivessem esses elementos.
Experiência didática própria
No início, enquanto tocava a kalimba diatônica, pela minha própria necessidade de compreender melhor o
instrumento, comecei a fazer algumas sistematizações, que depois vieram a se revelar como estratégias
didáticas. Por exemplo, observei que, pelo fato das terças ficarem lado à lado, era mais fácil compreender,
visualizar e executar os acordes. Já haviam algumas pessoas que reconheciam a minha competência e se
interessavam por aprender kalimba.
Então passei a aceitar esses alunos, no início de uma maneira muito informal e depois transformando isso
em um exercício profissional. Lecionar me levou a aprender muito. O ensino da kalimba tem algumas
particularidades bem interessantes: pelo fato da escala ser alternada, estimula-se os dois hemisférios
cerebrais, e isso permite que o aprendiz organize a informação de uma forma racional, intelectual, e
intuitivo ao mesmo tempo (mesmo isso sendo observável no ensino de qualquer instrumento; no caso da
kalimba, é acentuado).
Comecei a perceber, conforme dava aulas, que, quando passava para o aluno os conceitos prontos, por
exemplo, mostrava aonde ficavam os acordes, que os alunos custavam a memorizar a informação, porque
tornavam o processo mecânico, sempre necessitando de uma referência visual. E quando partia do
princípio de ensinar a mecânica e a sistemática da formação dos acordes (mesmo que simplificada), antes
de mostrar o acorde visualmente e, “desafiava” o aluno a montar o acorde por ele mesmo, ainda que isso
custasse um pouco mais de tempo e esforço iniciais, que o resultado era a memorização e fluência mais
rápidas.
Da mesma forma, segui esse raciocínio em relação à digitação. Por causa da tessitura ser de apenas duas
oitavas, alguns acordes são tocados invertidos para maior mobilidade, e se dispõe de maneira pouco
visual, isso não resulta em dissonância pelo fato da projeção das notas agudas ser muito maior do que das
graves, porém, implica em uma digitação irregular. Então, ao invés de simplesmente mostrar a solução
que eu encontrei para essa situação, passei a estimular que os alunos encontrassem soluções criativas e
desenvolvessem o seu próprio jeito de lidar com essa característica do instrumento, o que resultava em
uma maior autonomia, inclusive para lidar com outros desdobramentos dessa mesma questão.
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Seguindo esse procedimento, os alunos se tornavam mais intuitivos e confiantes, e desenvolviam, a partir
dessa condição, um colorido específico que refletia a sua individualidade e o seu senso de identidade, na
sua forma de tocar o instrumento. Enquanto professor, eu acabei reproduzindo, de forma inconsciente,
uma característica da tradição oral africana, que cito anteriormente, que é o fato dos africanos aceitarem o
diferente, as diferentes formas de se tocar, no caso. É claro que eu não levo isso para o sistema de
afinação, optando por usar uma afinação padronizada (com o lá em 440Hz e o temperamento igual),
justificada pelo desejo de se tocar em harmonia com o contexto da música ocidental.
No início do aprendizado, não era tão importante diferenciar os intervalos de forma muito específica,
considerando que o instrumento já estava afinado no modo Jônio. Não me preocupava em diferenciar
terça maior de terça menor, apenas me ocupava em dizer que os acordes eram formados por tônica, terça
e quinta. No entanto, no momento em que passávamos a estudar afinações em modos diferentes, essa
diferenciação se fazia necessária. A partir desse ponto passava a ensinar também o conceito de campo
harmônico e funções dos acordes. Quando se muda a afinação da kalimba, modalmente, o resultado é
muito curioso, os acordes permanecem todos nas mesmas posições, porém eles mudam de função. Nesse
estágio, a compreensão teórica é muito bem vinda para o aluno.
Utilizo durante o processo de ensino, algum material escrito, tendendo a me adaptar à uma linguagem que
seja compreensiva para cada aluno, ainda não cheguei a sistematizar plenamente esse material de apoio,
principalmente por me adequar à necessidade do aluno. De forma que pra alguns deles conduzo um
estudo utilizando partituras, e para outros me atenho mais à forma oral de transmissão. Isso ocorre
dependendo da capacidade de visualização, memória, e afinidade de cada um. Tenho preferência por
estimular o pensamento intuitivo e a capacidade de improvisação, por mais que algumas pessoas tenham
facilidade para a leitura de partituras, não acredito que é interessante que os alunos se tornem dependentes
da leitura. Primando pela autonomia e pela criatividade, opto por utilizar a partitura como material de
apoio e não como único caminho.
Sistemática simplificada
Dentro da sistemática de ensino que acabei desenvolvendo existem alguns passos que considerei
importantes dentro do processo de aprendizado, para que o aluno adquira autonomia suficiente para
explorar o instrumento de forma mais ou menos independente.
Para que o aluno crie um sentimento de conexão direta com o instrumento, acredito que o primeiro
contato deva ser sem a intervenção do professor. Posteriormente o facilitador entra como um ajudante no
processo de aprendizado.
O primeiro passo consiste em ensinar o aluno a segurar a kalimba e iniciar a digitação com os dedos
indicadores e médios alternadamente, utilizo para isto um exercício de digitação com uma escala
ascendente de terças (exercício muito visual na kalimba). É importante não criar o vício de se utilizar
apenas os dedos indicadores, ou apenas os médios, mas alterná-los. Dependendo da velocidade de
  27	
  
assimilação do aluno, é possível transmitir algumas variações desse mesmo exercício.
Em um segundo momento, a partir das teoria de formação de acordes, explicada de forma simplificada (é
importante que o aluno saiba que a teoria está reduzida), ensino-o a encontrar os acordes e lhe dou a
tarefa de encontrar os sete acordes básicos do modo jônio (tônica, subdominante e dominante maiores,
suas relativas menores e o sétimo grau meio diminuto). Associando este passo à leitura das cifras
correspondentes, já é possível aprender uma primeira música.
O terceiro passo corresponde ao aprendizado de alguns ostinatos básicos utilizados como
acompanhamento harmônico de outras música s. Também nesta etapa transmito mais alguns exercícios
técnicos para facilitar a digitação.
Neste momento, é importante que o aluno compreenda que é possível tecer pequenas frases melódicas
entremeando as frases harmônicas, pequenos floreios que enriquecem a forma de se tocar e preparam o
campo para o ensino de melodias acompanhadas.
Por fim, ensino as mudanças de afinação, mudando apenas as notas correspondentes aos acidentes, porém
mantendo a tessitura da escala, o que desemboca em modos gregos, e finalizo o estudo da teoria básica de
campo harmônico e intervalos.
Neste estágio, o aluno está praticamente dominando a técnica do instrumento, compreendendo as
possibilidades e limitações harmônicas e com uma noção básica de teoria musical.
  28	
  
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A kalimba é um instrumento de fácil compreensão intelectual e ao mesmo tempo muito intuitivo. Por ter
as teclas alternadas acontece um trabalho entre os hemisférios cerebrais, direito e esquerdo, intuitivo e
racional, promovido pelo estímulo simétrico das lateralidades. É interessante observar que isso se revela
também na pauta. Todas as teclas que estão no lado direito do instrumento são grafadas nos espaços da
pauta, e todas as teclas que estão do lado esquerdo da kalimba são grafadas nas linhas do pentagrama,
facilitando a leitura.
Devido a essa característica, acredito que a kalimba pode ser um excelente instrumento para a
musicalização. Além disso, o timbre e a escala utilizados fazem com que a sua sonoridade seja muito
agradável, o que facilita no processo de aprendizagem servindo como um estímulo, fazendo com que o
iniciante não desista rapidamente, ajudando também a desenvolver a autoconfiança.
Em se tratando do ensino, a kalimba diatônica deve vir primeiro, introduzindo a técnica de digitação e o
desenvolvimento psicomotor, para que posteriormente possa acontecer o aprendizado da kalimba
cromática, que exige mais habilidade devido à disposição das lamelas, alem de exigir uma base teórica
mais sólida.
Revendo minha trajetória, que passa pelo aprendizado de uma técnica inovadora, transmitida oralmente
sem nenhum embasamento teórico-musical, e a forma que sistematizei e transmiti o que aprendi, acredito
que a melhor forma de se ensinar a tocar a kalimba envolve um ensino misto, entre a transferência do
conhecimento de forma oral e o registro apoiado pela escrita.
  29	
  
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HOLDAWAY, M. PhD. The Kalimba, its African History, and Black Pride. Tucson AZ. Disponível em
<http://www.kalimba.art.br/>. Acesso em: 06 mar. 2013.
FONSECA, MARIANA BRACKS. Educação pelos tambores: A transmissão da tradição oral no
camdombe do açúde. Universidade Federal de Minas Gerais.
Brito, J. P. Na ponta dos dedos: lamelofones do Museu Nacional de Etnologia. Texto de apoio à
exposição. Serviço educativo do MNE.
JENKINS, L. Manual Ilustrado Dos Instrumentos Musicais: O Guia completo - como escolher e usar
instrumentos eletrônicos, acústicos e digitais. São Paulo: Irmãos Vitale, 2009. 416 p.
MORETTO, MARCO NETO. A tradição Hindu e as práticas contemporâneas de Yoga. Faculdades
Metropolotanas Unidas – FMU. São Caetano do Sul. 2012.
VALDIVIA, ESTEBAN ALEJANDRO. Los sonidos del nañaveral: Flautas rituales. Universidad
Nacional de Villa María.
FERRAZ, A. Contos e tradições orais em culturas Africana. [Maio, 2003]. São Paulo: Proj. História.
Entrevista concedida a Alexandre Souza Amaral. et Al.
Hampâté Bâ, A. Capítulo 8: A tradição viva. In: KI‑ZERBO, J. Ed. Metodologia e pré-história da África.
Brasília: UNESCO, 2010. p. 167-212.
http://www.kalimba.art.br/
http://www.kalimbamagic.com

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Um estudo sobre o ensino da kalimba

  • 1. Universidade  Estadual  de  Campinas   Instituto  de  Artes     PROJETO  FINAL  DE  GRADUAÇÃO  -­‐  MU999     UM  ESTUDO  SOBRE   O  ENSINO  DA  KALIMBA         Ariel  Leite  de  Hollanda   RA:  080737   Curso:  Musica  -­‐  Licenciatura     ORIENTAÇÃO:  Profa. Dra. Adriana N. A. Mendes           Cidade  Universitária  “Zeferino  Vaz”   Campinas  –  SP     Junho,  2013
  • 2.   2   Sumário   1. Introdução..............................................................................................................3 2. Objetivos................................................................................................................4 3. Justificativa............................................................................................................4 4. Metodologia...........................................................................................................4 5. Desenvolvimento...................................................................................................5 História da Kalimba e evolução descritiva do instrumento...................................5 Tradição Oral na África (lendas e histórias da Kalimba) ...................................10 Chandra Lacombe e a kalimba............................................................................15 Minha trajetória com a kalimba: Aprendizado e ensino......................................24 6. Considerações Finais...........................................................................................28 7. Referencias Bibliográficas normatizadas.............................................................29
  • 3.   3   INTRODUÇÃO Este trabalho de conclusão de curso (TCC) é um estudo sobre a tradição oral e o ensino de kalimba. Contextualizando historicamente esses dois temas, e posteriormente realizando uma reflexão sobre a forma de transmissão do conhecimento deste instrumento, no contexto da minha experiência pessoal, procuro registrar e validar a transmissão oral de uma nova técnica para se tocar a kalimba. Alem de relatar o processo de aperfeiçoamento de um instrumento. Representa, dentro da minha trajetória de desenvolvimento pessoal, o reconhecimento da autenticidade de um parampára. Surgiu da constatação de que poderia ser uma contribuição para o universo acadêmico, ao relatar um fenômeno arquetípico ancestral em um contexto moderno, e para os neo-tradicionalistas, ao conferir legitimação para esse fenômeno, fazendo dessa forma uma ponte entre o meio da tradição oral e o meio acadêmico. Além disso, o trabalho visa proporcionar uma investigação sobre os vários tipo de lamelofones e suas particularidades, assim como os mitos e curiosidades que acompanham esses instrumentos. Como resultado, obtenho uma nova visão à respeito da didática, mesclando o tradicionalismo da oralidade, suas singularidades e a valorização da intuição no processo de aprendizado com a validação da importância da teoria musical, enquanto material de apoio, registro e perpetuação da musicalidade da kalimba.
  • 4.   4   OBJETIVOS Os objetivos dessa pesquisa são: • Realizar um resgate da história da tradição oral e validá-la nos tempos atuais, através de minha própria experiência de aprendizado e ensino. • Relatar o processo de aperfeiçoamento de um instrumento musical. • Conferir autenticidade para a transmissão oral da técnica de se tocar kalimba com os dedos indicadores e médios, criada pelo meu professor de kalimba. • Demonstrar que a kalimba é um instrumento que pode ser bem utilizado para musicalização. • Estabelecer uma ordem de aprendizado progressiva entre a kalimba diatônica e a kalimba cromática. • Estabelecer uma relação de complementaridade entre o processo de ensino oral e escrito. JUSTIFICATIVA O presente trabalho se justifica pela necessidade de registrar e qualificar uma experiência singular que envolve temas importantes dentro dos limites da licenciatura em música, como tradição oral, didática e a utilização da kalimba para o exercício de musicalização. METODOLOGIA Para a realização deste trabalho utilizei a pesquisa histórica como ferramenta de contextualização do instrumento pesquisado, descrevendo a sua evolução durante os séculos e utilizando fotografias como recursos ilustrativos. Também foi abordado o folclore integrado à cultura do instrumento e a forma como esta cultura se manifesta nos dias de hoje. A tradição oral também foi contextualizada através de uma pesquisa histórica. Desenvolvi este estudo através do contato direto com outros tocadores de kalimba mais experientes do que eu, através de pesquisa em sites especializados neste instrumento e consulta bibliográfica. Posteriormente utilizei-me de recursos da pesquisa qualitativa através de uma entrevista com o meu professor de kalimba, gravando-a e depois transcrevendo-a. Da narração da minha própria experiência de aprendizado e ensino do instrumento.
  • 5.   5   DESENVOLVIMENTO História da Kalimba e evolução descritiva do instrumento A Kalimba é um instrumento musical pertencente à família dos lamelofones, sendo da categoria dos idiofones dedilhados. Os primeiros lamelofones surgiram no Vale de Zambeze, próximo ao atual Zimbábue, na África Subsaariana. Eram feitos de materiais como madeira da palmeira de ráfia, bambu e outras matérias vegetais; datam de cerca de 1000 a.C. Posteriormente, esse instrumento se espalhou pela África, desenvolvendo-se em cada etnia de forma diferente, isso quer dizer que cada grupo social atribuiu ao instrumento alterações ao projeto original dando-lhe um nome próprio. Temos, a seguir, aspectos de diferenciação do instrumento: características como quantas teclas ele possui; se é construído dentro ou sobre um corpo e qual o material deste (cabaça, madeira de ráfia, bambu, coco, ou outros tipos de madeiras); se possui furos e a localização deles; ou ainda se são utilizados materiais acoplados às teclas para alterar o som. Por existirem várias designações africanas para os lamelofones, que variam conforme a língua e sua fonética, área geográfica, tipo de instrumento, sistema de classificação local e também, o contexto social, o mais adequado é usar a palavra lamelofone quando se trata de designar um instrumento genérico pertencente a esta família. Uma vez que o relato deste trabalho se refere à minha experiência pessoal, com um instrumento específico, utilizarei o termo Kalimba quando estiver me referindo ao lamelofone moderno, descendente da antiga Mbira. Alguns mitos da criação no vale do Zambeze contam como O Criador deu o metal para a raça humana com a função específica de fazer mbiras, de fato, podemos dizer que a mbira remonta ao primeiro uso de metal na África Subsaariana, entre 700 e 1000 d.C.. Entretanto, muitos estudiosos presumem que as mbiras com teclas de metal tiveram sua origem na Europa. A difusão da tecnologia de lamelofones do Zimbabue / Zambeze na África Central através do aumento dos contatos comerciais ocorreu com a chegada dos exploradores portugueses à África, por volta do ano 1400. Há registros do aparecimento de lamelofones no Brasil a partir do início do século XIX. A afinação encontrada foi na totalidade não-ocidental; haviam quintas perfeitas nas afinações, porém os outros intervalos não se encaixavam no paradigma ainda em evolução da música ocidental. Mais tarde, certamente no ocidente, os lamelofones ganharam a escala ocidental de notas, escalas pentatônicas foram largamente utilizadas, escalas diatônicas e modos gregos foram difundidos no final do século XX. Os lamelofones com escalas cromáticas são recentes e ainda muito pouco difundidos. Usos da kalimba Os lamelofones evoluíram para instrumentos muito complexos, altamente integrados à cultura. Estes instrumentos são tocados em diversas situações de acordo com a cultura local. Por exemplo, para algumas
  • 6.   6   culturas se trata de um instrumento pessoal, algo para se levar consigo, podendo ser tocado durante longas caminhadas à pé, viagens de ônibus ou até mesmo enquanto se conduz o gado. Tradicionalmente, esses instrumentos são utilizados em rituais religiosos e reuniões sociais. O povo Shona, do Zimbábue, acredita que a musica desses instrumentos é capaz de romper as barreiras que separam o mundo dos vivos do mundo dos espíritos, abrindo um canal de comunicação entre mundos. Os tocadores experientes, ou vanagwenyambira, tocam com a intenção de despertar a mediunidade dos membros da comunidade, de modo que, ao invocar os espíritos ancestrais pedindo proteção e orientação, seus conselhos possam ser ouvidos. É comum se utilizar o lamelofone pra acompanhar a voz. Também pode ser tocado junto com outros instrumentos, como tambores e chocalhos. Cerimônias festivas como casamentos são agraciadas pelo fluido som deste instrumento. Também é bastante comum um contador de histórias, normalmente mais velho, utilizar um instrumento dessa natureza para transmitir seus conhecimentos para os mais novos, ao redor de uma fogueira. As mulheres grávidas costumavam tocar o instrumento sobre o ventre durante toda a gravidez, e, após o nascimento, também quando a criança expressava seus sentimentos mais intensos, como uma tristeza ou alegria mais acentuadas. Essa era uma forma de lembrar a criança dos sentimentos de conexão, tranqüilidade e segurança intra-uterinos. Outra peculiaridade interessante é que não é um instrumento para destros ou canhotos, mas sim um instrumento central. Dessa forma, ao tocar um lamelofone ambos os hemisférios cerebrais, direito e esquerdo, são simultaneamente estimulados. Isto explica o porquê de, modernamente, esses instrumentos estarem sendo tão amplamente utilizados na musicoterapia e associados com a meditação. Nas últimas décadas, o uso dos lamelofones diminuiu drasticamente na África, devido ao novo hábito de se portar um rádio cassete, CD player ou até mesmo um MP3; a prática criativa de se tocar um instrumento pessoal tem sido abandonada. De fato, hoje em dia é muito raro encontrar um lamelofone tocado entre os jovens nas aldeias. Descrições técnicas Os lamelofones são de uma forma geral construídos sobre uma base de madeira que pode, em alguns caso, ser ela mesma o corpo ressoador. As lamelas de diferentes tamanhos são colocadas sobre dois cavaletes, inferior e superior, que servem de base de apoio. Um travessão de metal é colocado entre os dois cavaletes e sobre as teclas, de forma a pressionar as lamelas. Este travessão pode ser preso por fios que passam através da madeira por pequenos orifícios ou por parafusos. As lamelas são organizadas alternadamente a partir da nota mais grave, no centro, até as mais agudas, nas extremidades.
  • 7.   7   Para aumentar o volume/intensidade do som, o lamelofone é acoplado dentro ou sobre um corpo ressoador. Este pode ser uma cabaça, coco ou corpo de madeira. Também são encontrados corpos feitos de outros materiais, como latas de metal e panelas. Podem, ainda, ser anexados à base do instrumento ou às lamelas pequenos objetos, como missangas, caracóis, pedaços de metal, anéis, pedras, gargalos e tampas de garrafas, etc... Esses elementos, alem de decorativos, incrementam o timbre e a duração do som, criando padrões sonoros singulares. Descrição da Afinação do instrumento A afinação dos lamelofones é feita deslocando-se as lamelas paralelamente ao comprimento do corpo do instrumento. Movendo-as, no sentido do tocador as notas ficam mais graves e movendo-as no sentido oposto, as notas ficam mais agudas. O timbre da lamela pode variar também de acordo com a sua forma e flexibilidade do material, alterando assim a ressonância dos harmônicos. Outro método de afinação, utilizado em Angola, consiste na aplicação de cera de abelha negra na extremidade inferior das lamelas. Alterando a quantidade de material na lamela, altera-se também a afinação. (Imagem http://www.kalimba.art.br/)
  • 8.   8   Fotos e exemplos de diferentes tipos de lamelofones Os lamelofones recebem muitos nomes, de acordo com a sua construção e cultura do local de origem. Alguns deles são: karimba, mangambeu, kondi, likembe, budongo, mbila, mbira, kalimba, mucapata, ocisanji, lungandu, sanza, thumb piano (piano de polegar), entre muitos outros nomes. Abaixo, algumas imagens ilustrativas dos diferentes tipos de lamelofones. Lamelofones de madeira de ráfia com teclas de bambu. Lamelofones acoplados a cabaças. Lamelofones com corpo de madeira.
  • 9.   9   Alguns lamelofones modernos. Kalimba e Array Mbira. Breve descrição de minha trajetória com a Kalimba Inicialmente, conheci a Kalimba feita pelo Luthier Márcio Vieira, feita em corpo de madeira, com 15 lamelas, afinada do centro para a periferia em ré maior (à esquerda na foto). Após experimentar diferentes afinações (alguns modos gregos e pentatônicas), insatisfeito com as limitações do instrumento, em parceria com o Luthier, desenvolvemos um protótipo de kalimba cromática. As minhas contribuições foram em termos de afinação e organização das lamelas e ele se encarregou da construção do instrumento. Após dois anos de experimentações, chegamos a um modelo definitivo. É este o instrumento que toco hoje em dia (à direita na foto).
  • 10.   10   Tradição Oral na África (lendas e histórias da Kalimba) Como se transmite o conhecimento. O ensino dos lamelofones na África se dava através de tradição oral. Este instrumento era utilizado de plano de fundo para a contação de histórias, prática que ao mesmo tempo vinculava a transferência do conhecimento ancestral e a preservação da mitologia. A tradição oral pode ser compreendida como um processo educativo, através do qual a comunidade pode conhecer seu passado, construir sua identidade histórica e estabelecer os valores morais e religiosos para seus membros. Praticamente, atua como um testemunho transmitido verbalmente através das gerações. “Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de preservação de sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar de elocuções- chave, isto é, a tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente, de uma geração para outra” (VANSINA, 1982 apud FONSECA pag. 4936) Quando nos referimos à tradição oral, como única forma de acessar a história e o espírito dos povos Africanos, é inevitável que a validemos como fidedigna. Essa herança, transmitida de geração para geração, de mestre para discípulo, de boca a ouvido, reside viva ainda hoje, na memória da última geração de grandes depositários (ou tradicionalistas), de quem se pode dizer que são os guardiões dessa herança. Em relação à forma de transmissão desse conhecimento, e particularmente, à educação dos jovens, pode- se dizer que se dava de forma articulada com a prática diária. Isto quer dizer que se aprendia fazendo. Ao participar de qualquer atividade, fosse ela produtiva, artística ou mítica, aprendia-se as técnicas, saberes e códigos de linguagem concernentes àquela atividade. Dentre as principais áreas de conhecimentos transmitidos encontram-se a dança, musica e escultura no campo da arte; toda a gama de afazeres cotidianos, correlacionados aos meios de produção; e no campo mágico-religioso, toda a sistematização do comportamento ritual. Normalmente a educação está intimamente ligada à arte, e o ato criativo, por sua vez, está relacionado com a manutenção e com a prosperidade do grupo comunitário. Os ritos tem um importante papel pedagógico, uma vez que atuam como modelos de mudança, exercendo a função terapêutica de reintegrar o indivíduo à comunidade através de elementos simbólicos que traduzem a vivência cotidiana ou extra-cotidiana do grupo. Nas sociedades de tradição oral, a fala é reconhecida não apenas como um meio de preservação de sua história, cultura e sabedoria ancestrais, mas atribui-se, além disso, à palavra, um caráter sagrado, vinculado à sua origem divina. Dessa forma, onde não existe escrita, o homem está diretamente ligado à palavra que profere, ele se torna um com os seus dizeres. Esse comprometimento entre homem e palavra encerra o testemunho de que a coesão da sociedade se estabelece no valor e respeito atribuídos à palavra, para além do efeito moral, considerando também seu efeito mágico-religioso.
  • 11.   11   A respeito do mito, que hoje é conceituado como ficção, pode-se dizer que atua nas sociedades de tradição oral como uma narrativa que oferece modelos de conduta humana, valores e exemplos significativos. Para esses povos, essas histórias são verdadeiras em sua compreensão de mundo e seu caráter é sagrado. “Essas história que nóis conta é tudo verdadeira porque os véio da gente era muito rigoroso, num gostava de pegá mentira em ninguém, de jeito nenhum. Eles contava nóis com a maior sinceridade, uns contava e até chorava...” (D.Mercês) (FONSECA pag. 4937) Quem são os tradicionalistas Ditado malinês: “Na África, quando morre um velho desaparece uma biblioteca”. Os tradicionalistas, guardiões das ciências da vida e dos segredos da Gênese cósmica, geralmente são também arquivistas de fatos passados transmitidos pela tradição, ou ainda, de fatos contemporâneos. De fato esses personagens são dotados de uma memória excepcional, embora todo povo que vivencia a tradição oral seja, por força da prática, possuidor de uma boa memória. Velhos de cabelos brancos, voz cansada, às vezes rotulados de meticulosos e teimosos, os tradicionalistas, guardiões da tradição oral, considerados em alguns estados africanos como uma espécie de “cronista real”, guardavam na memória todos os acontecimentos importantes para a justificação do poder vigente e para a coesão do grupo. Dessa forma, caracterizam a tradição oral, não apenas como forma de transmissão de cultura, mas como cultura em si mesma, autêntica porque abrange todos os aspectos da vida, fixando no tempo presente, respostas para as indagações das existências humanas. Estes representantes da tradição, narram, descrevem, ensinam e discorrem sobre a vida, assinando com o seu caráter a veracidade do conteúdo transmitido. No contexto dos povos áfragos (sem escrita), existem diversos tipos de tradicionalistas. Por exemplo, as ciência ocultas e esotéricas são privilégio dos “mestres da faca” e dos chantres dos deuses, os Doma são os guardiões das palavras sagradas transmitidas pela cadeia de ancestrais, e por sua vez, os griots, são responsáveis pela musica, pela poesia lírica, pelos contos recreativos e muitas vezes, também pela história. É comum a crença errônea entre alguns estudiosos ocidentais de que os griots são os únicos tradicionalistas existentes, possivelmente isso se deve ao fato de que eles freqüentemente atuam como menestréis ou andarilhos, de forma que o seu trabalho é amplamente conhecido. Classificam-se os griots em três categorias. Podem ser eles: músicos, se tocam qualquer tipo de instrumento, normalmente são também bons cantores e compositores, além de guardiões e transmissores da musica antiga; podem ser cortesãos, quando responsáveis pela mediação entre grandes famílias, no
  • 12.   12   caso de conflitos (estão sempre ligados a famílias nobres, e às vezes, à apenas uma pessoa); e podem ser também genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três simultaneamente), comumente viajantes e contadores de histórias. Analogamente a um “bobo da corte”, os griots recebem pela tradição um status especial, o qual lhes confere o direito de serem cínicos e de gozarem de grande liberdade para falar, podem manifestar-se à vontade, às vezes chegando a tirar sarro de assuntos sérios e sagrados, sem que isso implique em conseqüências graves. Não têm a obrigação de serem rigorosamente comprometidos com a verdade. Podem até mesmo chegar a contar mentiras descaradas, considerando que têm a “licença poética” para atuar na critica artística. O poder da palavra e autenticidade da transmissão Segundo a tradição, a palavra encerra em si mesma os três principais poderes do universo, o de Criação, o de Preservação e o de Destruição. Por esse motivo, a fala é considerada o grande veículo de ativação da magia africana. Mas, para que as palavras produzam seu efeito total, devem ser pronunciadas ritmicamente, porque, para que gerem movimento, precisa haver ritmo. Estando o ritmo fundamentado no segredo dos números, a fala deve portando estar cadenciada para que as canções e encantamentos rituais manifestem o seu poder de mobilizar as forças etéreas, podendo assim, agir sobre os espíritos, e, através da harmonia gerada, desencadear as potências da ação. Através desse mesmo viés de consciência, levando em consideração as forças ocultas contidas na palavra, assim como o seu poder, é considerado um ato de boa conduta ser prudente com a palavra que se profere. Por essa razão, nas sociedades de tradição oral, a mentira é considerada como um vírus, aquele que falta com a sua palavra sofre uma morte moral, civil, religiosa e oculta, separando-se de si mesmo e da sociedade. Morrer fisicamente é possivelmente menos ofensivo nesse sentido do que ser considerado um mentiroso. É excepcionalmente grave para um tradicionalista, independente de seu nível, mentir (salvo a exceção dos griots). Para essas pessoas, a mentira representa não apenas um defeito moral, mas uma violação ritual que lhes impede de cumprir sua função honrosamente. Se acontecesse de um tradicionalista receber a fama de mentiroso, ele não seria mais digno da confiança de ninguém e seria destituído de seu “cargo” imediatamente. Acima de qualquer outro, os tradicionalistas estão sujeitos à obrigação de cumprir com sua palavra, pois, enquanto mestres iniciados, sua conduta deve ser impecável. Para além da má qualificação da mentira, o tradicionalista pratica a disciplina da palavra, pois, como já dito, a fala é considerada como manifestação das forças interiores, e reciprocamente, a partir da interiorização da fala, nasce a força interior. Esse olhar nos permite conceber melhor a importância que a tradição africana concede ao autocontrole. O aprendizado de boa educação e nobreza inclui o domínio sobre as manifestações das emoções e do sofrimento. Falar pouco é um reflexo da habilidade de conter dentro de si as forças internas, almejando
  • 13.   13   atingir o grau máximo desse domínio, se tornando a semelhança do primeiro homem, que continha todas as forças do universo, submissas e alinhadas dentro de si mesmo. Oralidade versus Escrita A diferenciação entre a escrita e o saber se faz necessária, a escrita é como a luz de um projetor na tela de um cinema, reproduz aquilo que emite a luz, às vezes com precisão, porém não é a própria luz. A luz é o saber em si mesmo, herança de tudo aquilo que os ancestrais vieram a conhecer e posteriormente, transmitiram-nos. Estudiosos questionam se é possível conferir à oralidade a mesma confiança, em termos de fidelidade, que normalmente se confere à escrita no ponto de vista do testemunho de fatos passados. Entretanto, a questão não se resume a isso, independentemente de se é oral ou escrito. No fim das contas estamos tratando de testemunho humano, e o que vale é a integridade do homem. Não há nenhuma prova de que a escrita resulte em um relato da realidade mais preciso ou fidedigno do que um testemunho oral. O que se encontra por detrás do testemunho é o valor daquele que o transmite, e por trás ainda do valor do indivíduo encontra-se o valor da cadeia de transmição da qual ele faz parte, o que inclui as técnicas de ensino e os valores concedidos à verdade por aquela sociedade. Resumindo, a seriedade e o respeito pela ligação entre homem e palavra. Tudo está interligado! Tradição oral e música. Dentro dos limites da tradição oral parte-se do reconhecimento de que, em verdade, o espiritual e o material não estão intrinsecamente separados. Diferentemente do processo que constitui a mente cartesiana, que separa tudo didaticamente em categorias bem definidas, na tradição oral os ramos do conhecimento permanecem todos conectados com a própria tradição, que é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, arte, história, divertimento e recreação. Ao unir todos os aspectos da vida, a tradição oral coloca-se ao alcance do entendimento dos homens, revelando o conhecimento de acordo com suas aptidões e trazendo a visão do todo a partir da compreensão da parte. Dentro da arte também podemos observar esse conceito de unidade entre os conhecimentos. Os africanos não se ocupam em separar a música e o poema: a música está ligada ao poema, eles se influenciam mutuamente, assim como a música influencia a dança, que inspira a escultura e a pintura, que por sua vez, tornam a se conectar com a música. Dessa forma, não podemos separar os campos artísticos, uma vez que sua interconexão é tão profunda que não seria aceitável que eles se desenvolvessem e quiçá, que existissem em plenitude separadamente. O olhar aqui é global, sem domínios autônomos- tudo está interligado.
  • 14.   14   Para os povos africanos, a música é percebida como um dos códigos-chave de tradução simbólica da visão de mundo daqueles que a experimentam, um meio de criação e recriação de significados. A música traduz em si mesma a cosmovisão africana, transpondo as barreiras do tempo e participando ativamente dos processos de transformação. Uma característica curiosa da música encontrada nas tradições orais, mais especificamente nos povos que tocam lamelofones, é a ausência de nota perfeita, isso significa que não existem refências precisas para se estabelecer a afinação. Para o ocidente isso é inadmissível, pois, se não existe nota, não há música. Os africanos se abstêm da necessidade de definir um padrão de afinação. Culturalmente isso se deve ao fato de que, de acordo com a visão de mundo africana, não há a necessidade de haver essa perfeição toda, de se afinar o instrumento de determinado modo para tocar uma música específica. Além disso, não existe possibilidade de se repetir uma música do mesmo jeito. Cada músico afina o seu instrumento ao seu próprio modo. A cultura africana aceita o diferente e suaviza dessa forma as preocupações e exigências performáticas. Na narrativa de Abdu Ferraz encontramos uma lenda criacionista que nos permite visualizar melhor a questão da relação desse povo com a repetição das notas e da música (Abdu toca um lamelofone, a kisanje, enquanto narra sua história): “Diz uma lenda: um dia desses, Deus estando exausto, sentou-se e pôs a mão assim atrás, nessa época não existia nada, nada, não existia terra, água, planta, nada; era apenas um vazio, preenchido por nada. E Deus perambulava, de um lugar para o outro, quando pôs a mão na consciência, que lhe disse, por que você não faz um instrumento? Deus fez um instrumento musical, logo surgiu a kisanje. Quando vocês se depararem com uma kisanje, na África, vai ter uns anéis, que faz com que tenha sons, sendo que quando você toca, nunca vai repetir o mesmo som. Dizia a lenda que Deus fazia música (narrando Abdu toca kisanje). O Ocidente diz que um ano, aliás, mil anos são como um dia para Deus, conforme um dos livros da Bíblia. Nós não temos essa conotação de tempo, porque o tempo é inseparável do espaço. Com Deus tocando kisanje, passaram-se mais de 30 mil anos, até que num momento ele cochilou um pouco e se surpreendeu com o som que saiu. Quando dormimos ainda podemos escutar música e quando Deus cochilou saiu outro som, outra nota. No que Deus pára, abre os olhos, bem na sua frente caiu alguma coisa: era o homem. Quando olhou em volta tinha plantas, águas, tudo. Enquanto ele tocava, todo universo criara-se ao som da kisanje. Vendo o homem, em frente a si, olhou para o instrumento e disse: "bom agora vou ver como ele cai de novo, pelo menos vou tocar. Qua1 foi a nota que toquei mesmo?'. Ficou em dúvida. "Teria sido essa? Ou essa? Essa ou essa?". Disse: "vou tocar de novo". Como Deus não poderia errar, tocou no lugar que julgara ser o mesmo: "É essa com certeza, vou apertar de novo". Quando apertou, era outro som, não podia ser a mesma nota, não existe a nota perfeita. Nisso surgiu a mulher e Deus viu a mulher cair no chão. Então, pegou o instrumento e não quis tocar mais. Deu-o aos dois, "podem levar esse instrumento" e foi o primeiro instrumento musical que recebemos das mãos de Deus e passamos a tocar a kisanje.” (FERRAZ, 2003, pag. 219)
  • 15.   15   Chandra Lacombe e a kalimba Um pouco sobre o Parampára Um outro exemplo de tradição oral é o parampára, advindo da cultura hindu. Este permanece vivo mesmo apos o domínio da escrita por aquele povo. Cito o parampára como referência de tradição oral pois, apesar de não estar diretamente conectado com a kalimba, está ligado com a forma de aprendizado que se desenvolveu entre eu e meu mestre/professor de kalimba, que se chama Chandra Lacombe. Isso se deve, por sua vez, à condição de afeiçoamento e identificação pessoais, as quais determinam de forma intuitiva quais nichos de linguagem são escolhidos para o entendimento desse fenômeno. O parampára se baseia em alguns princípios semelhantes aos das tradições orais africanas. Os principais deles são a confiabilidade da fonte do conhecimento e a confiabilidade na forma de transmissão. Para o povo hindu, esta é a melhor forma de assegurar a idoneidade do ensinamento védico. “A fim de aprender a ciência transcendental, devemos nos aproximar submissamente de um mestre espiritual genuíno, proveniente da sucessão discipular e fixo na verdade absoluta”. (Mundaka Upanishade (1.2.12) apud MORETTO, 2012, pag. 39) O conhecimento é transmitido de mestre para discípulo sucessivamente. Sua origem é a fonte do conhecimento revelado, também chamada de sruti. A cadeia de mestres, por sua vez é chamada de sampradaya. “Podemos questionar se realmente uma sucessão de mestres pode, com toda precisão, passar a mensagem de um mestre para o seguinte, sem modificá-la ou sem lhe acrescentar nada. Mas ninguém pode se colocar na posição de querer falar o conhecimento védico recebido em sucessão de mestres anteriores – só se pode posicionar assim quem é o guru perfeito. O processo védico garante a pureza da transmissão ao primar pela qualificação daquele por quem é transmitida” (GOSVAMI, 1939, p.8 apud MORETTO, 2012, pag. 40). Entrevista: Como foi seu primeiro contato com a música? O primeiro contato efetivo onde a gente possa dizer que a música me tocou, que eu entrei em empatia com o processo da música, ou que realmente senti que me inspirou, que me instigou a me interessar, a buscar mais, esse momento de deslumbramento, descoberta da possibilidade de usar a música foi com uns onze, doze anos de idade. Eu vinha muito num caminho com as artes plásticas, com desenho, com a pintura, nessa idade eu desenhava e pintava bastante, tinha uma produção muito boa, pintava muito de uma forma, até pra extravasar, pintava bastante, tinha fim de semana que eu fazia muitos quadros, acho que era uma maneira de eu me comunicar e me expressar, e senti que em algum momento isso ficou um pouco limitado, por conta da tela, de ter que misturar tinta, todo um procedimento, eu não tinha técnica,
  • 16.   16   mas tinha todo um buscar e, angustiado com essa expressão, que chegou numa fruição, num limite, e eu senti que estava esgotado aquele canal de expressão. Paralelamente a isso , antes de encerrar completamente, eu já vinha me encantando com a percussão, tinha uma inclinação a me interessar pela percussão, e quando eu tinha 12 anos de idade minha mãe estava muito envolvida, nessa época, com o teatro, e eu e meu irmão assistíamos aos ensaios e depois o diretor de teatro, que era muito amigo da família, nos convidou. A gente tinha uns amigos e a gente começou a fazer uma espécie de sonoplastia para essa peça, tocando instrumentos de fanfarra, surdo caixa, instrumentos de percussão e mais tarde eu vim a gostar bastante do bongô, achava aquelas duas sonoridades do agudo e do mais grave complementares, gostava da sonoridade que saia e que eu conseguia extrair do bongô, e meti a cabeça no bongô, mergulhei no processo com o bongô. Acho que eu expremi até a última gota que eu podia do bongô. Eu lembro que mais ou menos uns dez anos após isso , um pouco menos, talvez com uns dezoito, dezenove anos, eu comecei a ouvir por conta da minha iniciação com o Osho, então como Saniasin do Osho, como discípulo de um mestre da Índia. O Osho era muito universalista: misturava muita coisa, mas com certeza como um mestre indiano, tinha bastante coisa da música indiana no meio daquelas fitas que eu comecei a ter acesso, em meio a todo aquele material que estava surgindo, apareceram instrumentos exóticos como a tabla, que me chamou muito a atenção. Tem que achar um momento para fazer pausas no trecho a seguir, pois ele está muito comprido e sem pontos!!! Essa sonoridade da música étnica asiática, bem única mesmo, com timbres bem únicos, e a tabla eu percebi logo de cara que tinha uma certa complexidade, e eu queria extrair aquele som fazendo no bongô, então virava ao contrário o bongô, ao invés de fazer da maneira africana, com a aguda na esquerda e a grave na direita eu usava a grave na esquerda, raspando quase que o couro para tentar extrair o som dos glissandos do duke que é a parte grave da tabla, e na aguda eu batia no canto pra tentar fazer aqueles sons. Já era minha paixão pelas ragas, pela música indiana, pela maneira que eles brincavam com a divisão dos ritmos, desdobravam e dividiam o ritmo, Nossa! daquela forma enlouquecedora. Isso também chegou a um certo ponto onde senti necessidade, -nossa! Mas eu preciso de alguma coisa melódica, porque a linguagem que eu queria transmitir no sentimento da percussão era uma coisa já indo extrapolando para o melódico. Eu queria achar um instrumento que explorasse ao mesmo tempo a rítmica, a tônica percussiva e ao mesmo tempo o elemento melódico. Aí as pessoas me aconselhavam: -Toca marimba, toca xilofone, piano! que são os instrumentos percussivos e melódicos de orquestra, os mais conhecidos. Mas tocando sobre couro, entendi que quando eu pressionava o primeiro dedo de uma forma, e vinha com o segundo dedo pressionando e depois o terceiro eu já extraia notas sobre o couro, tocando com diferentes pressões em diferentes posições do couro, e isso me fez compreender que eu já devia estar querendo realmente extrapolar aquelas molduras unicamente rítmicas, mono rítmicas, para uma coisa realmente que explorasse a esfera da combinação com a melodia.
  • 17.   17   O contato com a música e a tradição indiana veio mais ou menos junto? Veio mais ou menos junto, como eu falei depois do teatro com os meus dezessete, dezoito anos, comecei a meditar, conheci os Saniasin,s do Osho e isso de certa forma foi a ponte, a entrada para o contato com a tradição, pessoalmente em primeiro momento, em termos de música, com a tradição da Índia. Mais pelo exotismo, um deslumbramento, um encantamento com aquele exotismo todo, aqueles timbres diferentes e ao mesmo tempo me puxando uma coisa de memória. Da onde vem ? Como que é essa afinidade? Da onde ela vem ? De que plano de existência e de que dimensão da consciência isso ressoa dentro de mim? Essa era a questão com a música indiana. E como você conheceu a Kalimba? Nesse momento transitório, envolvido com a arte em Brasília de maneira em geral, como percussionista, eu conheci uma pessoa, que era um músico que tocava num bar, tocava um violão jazz e MPB nesse barzinho que eu fui visitar com outros amigos. Terminamos depois desse bar na casa desse rapaz, o Quito. Os pais dele eram diplomatas, então viajavam muito pelo mundo, e ele tivera também na França. E numa dessas viagens, o pai ou a mãe, não sei quem, acabou comprando um suvenir de imigrantes africanos, em Paris, porque a França colonizou alguns países africanos. Moçambique, se eu não estou enganado, não sei ao certo, mas enfim, Quênia talvez. E eu acho que esse suvenir exatamente era do Quênia, e era um instrumento absolutamente rústico que estava como enfeite decorativo numa mesa na casa desse rapaz. E quando eu olhei esse instrumento, de cara eu fiquei meio que - UaU! O que é isso? A minha curiosidade foi absurda, e eu cheguei a ter a cara de pau de perguntar pra ele, depois da madrugada a dentro, explorando, tocando, sentindo o instrumento, perguntei, você num quer me emprestar esse instrumento ? Ele concedeu e eu fiquei com esse instrumento umas duas semanas, por aí, acho que quinze a vinte dias na verdade, e não queria nem devolver (risos), eu já estava tocando e tentando incorporá-lo dentro do panteão de instrumentos percussivos, por que na época, eu estava nessa pesquisa de instrumentos de percussão latino americanos , afro latino americanos na verdade. Pra tocar dentro do contexto comum, de percussionista, você tem que ter aquele set, que é conga, bongô, timbale, woodblocks... E esse era um instrumento que era um fetiche que imitava no corpo dele, uma espécie de barca, e tinha uma cabeça, era um ser humano e também um barco. Ele era meio abaloado, a madeira era escura, bem rústico mesmo, e até frágil, podemos dizer madeira talvez de bálsamo. A estrutura que pressionava as teclas (cavalete) era também de algum outro tipo de madeira um pouco mais dura, e as teclas em si, as palhetas, (lamelas) eram feitas pelo que me constava, se eu não estou enganado, da parte do caule da folha de papiro, que tem um caule comprido, a parte mais dura, que é a parte inferior. Era um instrumento bem rústico e tinha um som que não tinha muito ataque, emanação de som, mas era muito agradável o som, e era uma kalimba, com apenas nove ou dez teclas, e a afinação era absurdamente
  • 18.   18   diferente, acho que era uma afinação pentatônica, não sei que tipo de afinação era aquilo, era bem único. Era esse o instrumento que estava nas minhas mãos naquela época, era a primeira, com certeza uma Sanza, que tinha escrito, gravado na madeira, Sanza. Você pode falar um pouco sobre a sua técnica? Sobre esse instrumento, logo que eu peguei o instrumento eu não tinha noção nenhuma da maneira tradicional da forma original de como extrair o som do instrumento. E lógico que eu tentei com os polegares, mas eu confesso a você, que de cara, eu já achei que eu devia tocar com os dedos numa espécie de digitação, usando explorando primeiramente os dedos indicadores e os seus vizinhos, e aí eu comecei a tocar de um jeito muito interessante, porque eu queria criar uma divisão rítmica em contraponto, mas que tivesse um moto contínuo. Essa era a minha vontade, de extrair um som mais contínuo e, ao mesmo tempo, com efeito staccato percussivo. Comecei então a desenvolver essa digitação sobre o instrumento, que é uma forma que na época não era muito explorada, talvez eu fosse a pessoa pioneira explorando esse jeito de tocar a kalimba. Nessa época, um pouco depois disso, paralelo a esse tempo com o instrumento, eu o levei a um outro amigo, o Marcio Vieira, e ele estava envolvido também na cena da arte de Brasília, também com teatro e apresentações musicais. Tinha um grupo que fazia muitas trilhas sonoras, um grupo muito polivalente. Eles tinham uma atuação e um desdobramento corporal no palco, e ao mesmo tempo uma sonoplastia viva, executavam a música enquanto faziam suas performances, e eram como um grupo mineiro, o Uakti, eles mesmos fabricavam a maioria dos seus instrumentos, que exploravam timbres incomuns, bem originais. O Marcio já estava construindo instrumentos com base nos instrumentos africanos, como aquele Ocdong, que é uma espécie de baixo, uma caixa, com um cabo e uma corda amarrada nessa caixa, e ai você vai fazendo diferentes sons conforme você vai tencionando a corda , movendo o cabo, no caso, um cabo de vassoura. Eu lembro também que estavam criando alguns instrumentos de sopro como o saxofone de bambu (charamela), coisas bem diferentes, xilofones de ladrilhos, explorando sonoridades diferentes, cabaça sobre água, com sons diferentes, era bem interessante o trabalho desse grupo. E o Marcio era um dos cabeças, uma das peças chaves desse grupo, e fui estreitando a comunicação com ele, cheguei a levar essa Sanza, apresentei para ele, e ele se interessou muito, e imediatamente começamos a fazer pesquisas em livros e enciclopédias atrás de outros modelos de Kalimba. E eu pedi : - Você pode fazer uma Kalimba assim, pra eu poder tocar desse jeito? Ou seja, cujo intervalo entre uma tecla e outra facilite que eu possa fazer esses desenhos, esses desdobramentos, pra que eu possa ir digitalizando no instrumento com os dedos, e não só limitado para
  • 19.   19   tocar com o polegar. Dito e feito, depois de um mês e pouco ele me apresenta a primeira Kalimba, que ele tinha manufaturado, feito a mão. E essa Kalimba existe ainda? Infelizmente não existe mais esse instrumento. Ele rendeu comigo uns 5 anos, mas eu toquei muito, praticamente eu furei esse instrumento de tanto tocar (risos), e como a pressão no cavalete, ele ainda não a tinha desenvolvido, estava só aprimorando, não tinha ainda uma pressão boa, então as teclas muito cedo abaixaram, e ela perdeu bastante a tensão, e lógico o som ficou com um impacto muito pequeno. Então essa foi um pouco da história do surgimento da kalimba em Brasília. Esse período entre os meus dezoito e vinte e poucos anos. E como foi o processo de aprendizado para tocar o instrumento? Isso é curioso, eu não tinha, como eu falei, nenhuma noção, nenhuma informação prévia, nenhuma pista que seja, de como tocar o instrumento, então como eu sempre fui uma pessoa muito esforçada e autodidata, em todo o processo com a música principalmente. Esse autodidatismo foi apoiado por algumas pessoas que perceberam essa história, então de certa forma eu ousei trazer para a kalimba essa minha curiosidade, esse meu autodidatismo no processo de como desenvolver um jeito de tocar onde eu desse prosseguimento, porque a minha meta era extrair esse som, moto contínuo, que eu, na realidade, queria reproduzir o som da água. Eu lembro que nessas viagens com o Thomas, nos primórdios da formação da banda Udiyana Bandha, viajávamos muito pelas comunidades alternativas, por Goiás, conheci muito a natureza ao redor de Brasília, que aliás é um lugar muito especial, muito inspirador, os rios de águas geladas, as pedras, rios de pedras, e eu costumava meditar à beira do rio, ouvindo o rio, e eu acho que esse foi o meu único professor (risos). Eu ouvia as águas do rio e eu sentia uma inspiração tomando o meu ser, e queria reproduzir aquilo no instrumento, no caso a kalimba, que era o instrumento que eu estava adotando. A kalimba passou a ser uma companheira inseparável, aonde eu ia eu estava com a minha kalimba. Quando eu sentia assim a inspiração chegar, era fácil, ela estava sempre à mão. E foi muito tempo assim, aonde uma espécie de transe se desenvolvia, eu às vezes até tinha que me afastar de tudo e de todos, ficar eu e o instrumento junto à natureza ou a algum lugar mais isolado, e ficava, eu me lembro, que por muito tempo, às vezes horas, às vezes uma hora e meia, duas horas, sentado na mesma posição com o instrumento no colo, tocando. Eu realmente posso dizer que foi um raio divino, uma intuição que chegou pra mim. Eu não tinha ,como eu falei, nenhum tipo de pista, e nem ninguém que pudesse me orientar, Ah, como fazer? Não, faça assim, tal... Depois eu fui explorando foi a afinação, eu fui entendendo que uma afinação modal no instrumento poderia ser interessante, pra acompanhar outros instrumentos melódicos, então eu fui mudando posições de teclas, explorando posições ideais pra desenvolver essa técnica de digitação sobre o instrumento.
  • 20.   20   Depois isso se desenvolveu para usar a kalimba enquanto instrumento de acompanhamento para as suas canções. O que eu posso dizer, é que depois de um tempo nesses transes de criar mandalas rítmicas e no moto contínuo, onde eu reproduzia uma espécie de corredeira de águas, isso foi se desenvolvendo, ficando mais sofisticado, e entendi que o instrumento poderia ser também um instrumento de acompanhamento de harmonia, que seria no caso o meu “violão”, que é um instrumento de harmonia pra poder compor, aí nasceu as composições que hoje estão consagradas, composições com melodia, letra e harmonia. Como foi para você passar desse estágio do transe, do moto contínuo, para você chegar nos acordes? Isso foi a necessidade mesmo, de sistematizar o que já estava acontecendo intuitivamente, de ouvido. Tentando acompanhar outras pessoas tocando instrumentos de corda, como no caso, o violão, também a flauta, aí eu fui então entendendo aos poucos, que se eu tocasse, a posição do dedo da direita em determinada tecla, e o outro, do outro lado, tocando outras duas teclas, aqui eu teria um acorde, fui então explorando isso, no início bastante intuitivamente, e depois, com a ajuda de outros músicos que já sabiam a linguagem de cifras, eu fui ligando as coisas, -ta, então se eu tenho essa nota que soa junto com o sol do violão, então nós vamos codificar esse acorde como um acorde de sol. E o que você sabia de teoria musical? Absolutamente nada! Confesso a você. Absolutamente nada! (risos) E eu até me cobrava, sentia que isso podia ser uma deficiência em algum momento, e realmente, e sinto que em alguns momentos torna-se uma deficiência, se eu não tenho um gravador na mão, se esse aparelho não existisse, como eu iria registrar por exemplo, uma inspiração que vem, e que eu já to conseguindo reproduzir no instrumento, aí é claro, que se eu soubesse um pouco de tablatura, e dominasse um pouco mais da cifragem e da matemática musical, eu estaria com um recurso a mais. Mas eu nunca me preocupei na verdade com isso, e confiei no processo puramente intuitivo mesmo. Por favor, comente um pouco sobre o caráter da sua música, que inclui os mantras que vêm da tradição indiana, mas que também tem a temática devocional e de auto-conhecimento. Eu estava lembrando, que o som da kalimba, em questão de timbre, ele remete à água, como se fossem gotas, por causa dos harmônicos, e lembrei que em algum momento eu busquei por um conceito, não exatamente pro estilo de música, mas enfim, um conceito que pudesse definir, caracterizar, dar uma identidade pra esse tipo de trabalho que tava surgindo, e lembro que eu gravei uma fita cassete e nomeei a
  • 21.   21   fita com esse conceito que eu tava querendo criar, chama Aquântico. Que tinha a ver com o que eu estava entrando em contato, que já existia há alguns anos, a teoria da física quântica, do salto quântico de consciência, e o som da kalimba que remetia à água. Eu estava tentando criar um conceito, justamente pra dar um nome, uma cara, não exatamente pra rotular, mas dar uma cara original onde eu conseguisse transmitir essa percepção, da onde minha música podia chegar, em termos de efeitos, do que acontecia e de como ela já estava trabalhando em termos terapêuticos. Como você mencionou anteriormente, sobre o uso da kalimba estar vinculado com cura, eu acredito nisso também, concordo com você, há um processo voltado à busca da essência, ao processo terapêutico, realmente tem a ver, até por conta da maneira como a kalimba surgiu. Mas eu sinto que independente da kalimba enquanto instrumento, e de seu timbre, eu estava com essa vontade de dar esse nome Aquântico. Então eu queria fazer essa ponte do efeito terapêutico sobre a evocação de emoções, como a água é ligada simbolicamente às emoções, e eu lembro que era exatamente isso que eu ouvia das pessoas de feedback, e era isso que eu percebia que a música tava fazendo, ela evocava mesmo, a pessoa entrava em contato de uma maneira não muito explícita, de uma maneira, sutil, indireta, com as emoções. A kalimba também por sua qualidade timbrística evoca uma reconexão com esses sentimentos e emoções mais primais, então isso estaria fazendo uma ponte com a minha música, quando ela não está voltada a essa pesquisa com a cultura indiana, devido à minha própria identificação filosófica, e à pesquisa dos yogas, aonde a gente chega no Nada Bhakti Yoga, que é o yoga da devoção através do som, aí entram os bhajans e os mantrans, aí o conceito de mantra eu poderia até me dar ao trabalho de explicar, mas não agora. Enfim, quando a minha música não estava voltada para esse aspecto, ou seja, quando ela possui mensagem, ou lirismo, ela geralmente tem este selo, esta característica, de poder inspirar as pessoas a uma reflexão profunda, a resgatar valores mais internos, e, de uma certa forma, ela tem uma missão visionária, iniciática, inspirando as pessoas a um despertar de consciência, por isso o quântico. Acho inclusive que isso tem a ver com esse salto quântico, daí surgiu a palavra aquântico, que eu lembrei quando você perguntou e que já foi nome de um dos meus trabalhos, que saiu só em cassete, acho que é isso, uma tentativa de dar uma cara pra essa música, vai além disso, mas o termo aquântico, ou música aquântica, que soma o quântico com o processo de burilamento das emoções, acho que define bem. Agora, como acabei de dizer, minha música sempre esteve comprometida de alguma maneira, com a espiritualidade, e andou sempre em paralelo com a minha própria busca e desenvolvimento espiritual. É muito difícil desassociar, o link que existe é muito orgânico e sempre esteve presente, é uma coisa muito intrínseca. Acredito que minha música muitas vezes nasce dessas experiências, desses desdobramentos, da minha própria auto-descoberta, nesse ambiente, nessa esfera da espiritualidade, então uma coisa e a outra estão realmente intrinsecamente conectadas. Acredito que não existe uma classificação ainda pra esse estilo de música, a new age tentou, mas a new age é muito abrangente e cai acho que talvez num termo um pouco pejorativo, a new age acho que não serviria, por isso a tentativa mesmo que houve nessa época de tentar definir esse estilo ou essa tendência, essa aquarela específica que a gente está trazendo através da kalimba, e desse tipo de música mais visionária, que se predispõe a facilitar de alguma maneira um mergulho mais profundo numa esfera espiritual e, por fim, no trabalho de expansão da consciência.
  • 22.   22   Você poderia falar um pouco sobre o parampára, sobre essa relação que acabou se desenvolvendo entre nós? Esse é um termo que vem do hinduísmo, da cultura devocional indiana, da relação guru-discípulo, mestre- discípulo. O que eu entendo como parampára é justamente uma transmissão que está além do formal, conceitual, estrutural, em cima de conceitos. É uma transmissão intuitiva e oral e às vezes nem mesmo oral, é uma transmissão sinestésica, sutil, que pode acontecer de várias maneiras, geralmente através da presença. Aquela pessoa que está desenvolvendo aquilo, que chegou a dominar um certo conhecimento, que chegou a iluminar a sua percepção sobre determinada técnica ou a alguma coisa, ela chegou a esta fruição e desenvolveu até um certo patamar, ela sente a necessidade de transmitir isso, pra dar uma continuidade nesse conhecimento, para que ele não morra junto com a vida daquela pessoa, para que ele possa ser perpetuado, propagado, pra frente, então é aí que eu sinto que entra essa história mesmo, que eu, como um professor de kalimba, acho que sou um grande focalizador de meditação (risos). Eu não tive muita paciência e muita sistematização pra querer criar uma metodologia de ensino, isso eu deixo pra você (risos). Mas acredito nisso, acho que é um processo de transmissão bastante intuitivo, e que prova que antes da escrita e antes de outros sistemas de registro, era assim que funcionava, oralmente, o exemplo vivo. E sobre essa transferência do conhecimento, você diria que ela acontece de forma conscientemente, intencional? Como eu falo, tem várias maneiras de isso acontecer, eu sinto que é uma transmissão que às vezes se vale de uma espécie de abertura, vulnerabilidade e relaxamento da pessoa que está recebendo isso, então é uma transmissão por via de empatia vibracional, pode acontecer assim, entende? É quase como se a pessoa tivesse uma parte que é consciente, que se utiliza da vontade. Mas tem outra parte que eu sinto que é muito amórfica, você não tem como explicar isso, é um processo bem difícil até de se explicar em palavras, extremamente intuitivo. Na Índia dizem que é uma espécie de benção, o darsham tem esse significado, é a transmissão de uma benção, de uma energia que apóia aquele movimento de despertar do devoto, do buscador, do aluno, que está começando a beber daquela fonte, então isso se faz para além mesmo da forma, para além das palavras, porque é um processo digamos, é muito difícil de explicar, é um processo imaterial. (Chandra espontaneamente conta algumas curiosidade sobra a kalimba) Esse é um fato curioso sobre a kalimba, que no sul da África, em meados da colonização inglesa, uma tribo africana nômade, que caminhava entre os estados africanos, eles tinham a kalimba justamente como entretenimento, porque as caminhadas eram longas, eles iam tocando e cantando histórias, a kalimba era uma trilha sonora para uma história que o cara ia cantando, tocando o instrumento e contando histórias.
  • 23.   23   Só que eles faziam os instrumentos usando uma parte dos postes de luz que conduziam energia, que acho que era uma parte que segurava os fios antes dos fios seguirem, então eles tinham que cortar... (risos). Deram muito trabalho pros ingleses. Foi uma dor de cabeça, por que eles cortavam os fios e pegavam o material pra fazer kalimba, pegavam lá os conduítes, fios, que eram usados no sistema, entende? E faziam kalimbas. Você sabe, né, para atrair a alma que iria encarnar, então tocava-se a kalimba que tem o formato de uma seta para baixo, e a bolinha no centro seria o útero, então começavam a tocar as melodias pra atrair, pra convidar o espírito pra habitar o ventre, no início da gravidez. Observações: É interessante observar, que, durante sua caminhada com o instrumento, Chandra experienciou alguns arquétipos intrínsecos à cultura da kalimba. Exemplificando isso encontra-se o fato de sua música ter um sentido espiritual e terapêutico, alem do fato de usá-la como um instrumento pessoal, levando-a em suas caminhadas. Também é curioso perceber que antes de chegar na música, Chandra passou por outros ramos da arte, como pintura e teatro. Isso delineia uma relação com o aprendizado de tradição oral, para o qual os ramos artísticos estão interligados. Minha trajetória com a kalimba: Aprendizado e ensino Tradicionalmente o lamelofone, chamado nesse trabalho de kalimba, é tocado com os polegares. Particularmente, utilizo a técnica criada e desenvolvida pelo meu mestre de kalimba, Chandra Lacombe, que utiliza os dedos indicadores e médios para manipular o instrumento. Isto possibilita a sua utilização, que originalmente é percussivo-melódica, de forma a produzir acompanhamento harmônico e/ou melodias acompanhadas. A escolha do instrumento Iniciei os meus estudos de música tocando violão. Fiz cerca de oito meses de aula, e depois segui com o meu aprendizado de uma forma mais ou menos autodidata. Pesquisava muito na internet, principalmente sobre teoria musical, que era o assunto que me interessava mais. Após algum tempo, retornei a fazer aulas de violão erudito. Quando conheci a kalimba e o trabalho do Chandra, fiquei absorvido por sua musicalidade e comecei a tirar suas músicas “de ouvido”, tocando melodias acompanhadas no violão. No início de 2004 ganhei uma kalimba de minha irmã. Era uma kalimba feita em uma cabaça, com apenas sete lamelas. Fiquei até o final do ano com esse instrumento, explorando tudo o que pude, até que no final do ano encomendei uma kalimba diatônica, com quinze lamelas, feita pelo Márcio. Passei então a tocar na kalimba as música s que eu já dominava no violão, já possuindo um conhecimento teórico básico, de formação de acordes, campo harmônico e de leitura musical (embora sem fluência), percebia claramente as limitações do instrumento, porém, ele era adequado para o estilo de música que eu
  • 24.   24   estava aprendendo, que era modal. Continuei simultaneamente tocando os dois instrumentos, porém me aprofundei nos estudos cursando violão erudito no conservatório de Tatuí, durante o período de dois anos. No decorrer desses estudos fui sentindo cada vez mais afinidade com a kalimba e com a filosofia do nada bhakti yoga (o yoga da música devocional), transmitida pelas música s tocadas na kalimba por Chandra Lacombe. Finalmente, optei por me dedicar exclusivamente a este instrumento. O aprendizado oral no contexto acadêmico Quando realizei o vestibular da Unicamp, fiz a prova de proficiência tocando a kalimba, atingindo a nota máxima, o que me confirmou que estava dominando o instrumento. Apesar de minha proficiência, no primeiro semestre do curso percebi que o instrumento era insuficiente para atingir as exigências do conhecimento que estava adquirindo. Permaneci os três primeiros anos do curso de música apenas com a kalimba diatônica, e, por força da necessidade de um instrumento que desse suporte aos conteúdos dos estudos acadêmicos, em termos de harmonia, em relação às modulações e harmonias mais sofisticadas, procurei o luthier Márcio Vieira, que fez a minha primeira kalimba, para estudar a possibilidade de confeccionar uma kalimba cromática. Haviam algumas dificuldades existentes para a realização desse projeto. A primeira delas era o cavalete, que precisaria ser duplo para criar a diferença de altura entre o jogo de lamelas superior e o inferior. A segunda questão era qual escala seria usada no jogo de lamelas inferior. Pensamos em três possibilidades, que eram dó maior, ré maior e ré dórico, levando em consideração os aspectos físicos, a didática e a tessitura do repertório para o instrumento. A terceira questão era a organização das lamelas superiores, que, por conta da kalimba ter a sua escala (do grave para o agudo) organizada do centro para a periferia, alternadamente, então a lamela que corresponde, por exemplo, ao lá sustenido (ou si bemol), necessariamente fica, ou logo apos o lá, ou do lado oposto, anterior ao si. Elaboramos a partir dessa pesquisa um modelo experimental, no qual eu permaneci explorando diferentes possibilidades para o arranjo das lamelas, até que encontrei uma forma de organização satisfatória para os meus objetivos. A escala do instrumento ficou em ré maior nas lamelas inferiores e as lamelas superiores ficaram dispostas alternadamente à nota alterada com sustenido. Fiquei com este instrumento por cerca de um ano. Devido ao desgaste da madeira, a caixa não suportou a pressão do cavalete, e rachou. Na seqüência, encomendei uma nova kalimba cromáica, que foi aprimorada pelo luthier, que resolveu a questão do cavalete duplo, alterando o formato das lamelas superiores, reduziu o tamanho da caixa e fez um trabalho primoroso de afinação dos primeiros harmônicos superiores, chegando assim, a um modelo definitivo. Inevitavelmente algumas tonalidades mantiveram uma digitação mais simples e algumas adquiriram uma digitação mais elaborada, encaro isso como um desafio técnico inerente ao instrumento, visto que a sua solução não seria possível sem alterar drasticamente o projeto original, o que resultaria na transformação de algumas características básicas, como tamanho e formato da caixa de ressonância, implicando em alterações de timbre, efeitos e na técnica para se tocar, tornando essa possibilidade não plausível para os meus objetivos.
  • 25.   25   Assim que adquiri essa kalimba cromática, passei a tentar aplicar o conhecimento teórico que estava aprendendo na universidade, no instrumento, procurando escrever músicas e registrar o processo de aprendizado, com o fim de tornar, em algum momento, o instrumento mais acessível e didático. Por conta do meu próprio processo de aprendizado e da minha fluência de digitação, optei por não escrever literalmente o que tocava (salvo algumas exceções, dependendo do grau de complexidade do arranjo ou às vezes por exigência do próprio curso), preferindo uma linguagem mista de melodia escrita na partitura e acompanhamento harmônico escrito por cifras. Essa seria a linguagem que permitiria ao mesmo tempo uma maior liberdade de interpretação e um registro suficientemente preciso para a minha própria compreensão. Incluí nesse exercício o aprendizado rítmico, de polirritmia e compassos compostos, assim como modulações harmônicas, compondo música s que contivessem esses elementos. Experiência didática própria No início, enquanto tocava a kalimba diatônica, pela minha própria necessidade de compreender melhor o instrumento, comecei a fazer algumas sistematizações, que depois vieram a se revelar como estratégias didáticas. Por exemplo, observei que, pelo fato das terças ficarem lado à lado, era mais fácil compreender, visualizar e executar os acordes. Já haviam algumas pessoas que reconheciam a minha competência e se interessavam por aprender kalimba. Então passei a aceitar esses alunos, no início de uma maneira muito informal e depois transformando isso em um exercício profissional. Lecionar me levou a aprender muito. O ensino da kalimba tem algumas particularidades bem interessantes: pelo fato da escala ser alternada, estimula-se os dois hemisférios cerebrais, e isso permite que o aprendiz organize a informação de uma forma racional, intelectual, e intuitivo ao mesmo tempo (mesmo isso sendo observável no ensino de qualquer instrumento; no caso da kalimba, é acentuado). Comecei a perceber, conforme dava aulas, que, quando passava para o aluno os conceitos prontos, por exemplo, mostrava aonde ficavam os acordes, que os alunos custavam a memorizar a informação, porque tornavam o processo mecânico, sempre necessitando de uma referência visual. E quando partia do princípio de ensinar a mecânica e a sistemática da formação dos acordes (mesmo que simplificada), antes de mostrar o acorde visualmente e, “desafiava” o aluno a montar o acorde por ele mesmo, ainda que isso custasse um pouco mais de tempo e esforço iniciais, que o resultado era a memorização e fluência mais rápidas. Da mesma forma, segui esse raciocínio em relação à digitação. Por causa da tessitura ser de apenas duas oitavas, alguns acordes são tocados invertidos para maior mobilidade, e se dispõe de maneira pouco visual, isso não resulta em dissonância pelo fato da projeção das notas agudas ser muito maior do que das graves, porém, implica em uma digitação irregular. Então, ao invés de simplesmente mostrar a solução que eu encontrei para essa situação, passei a estimular que os alunos encontrassem soluções criativas e desenvolvessem o seu próprio jeito de lidar com essa característica do instrumento, o que resultava em uma maior autonomia, inclusive para lidar com outros desdobramentos dessa mesma questão.
  • 26.   26   Seguindo esse procedimento, os alunos se tornavam mais intuitivos e confiantes, e desenvolviam, a partir dessa condição, um colorido específico que refletia a sua individualidade e o seu senso de identidade, na sua forma de tocar o instrumento. Enquanto professor, eu acabei reproduzindo, de forma inconsciente, uma característica da tradição oral africana, que cito anteriormente, que é o fato dos africanos aceitarem o diferente, as diferentes formas de se tocar, no caso. É claro que eu não levo isso para o sistema de afinação, optando por usar uma afinação padronizada (com o lá em 440Hz e o temperamento igual), justificada pelo desejo de se tocar em harmonia com o contexto da música ocidental. No início do aprendizado, não era tão importante diferenciar os intervalos de forma muito específica, considerando que o instrumento já estava afinado no modo Jônio. Não me preocupava em diferenciar terça maior de terça menor, apenas me ocupava em dizer que os acordes eram formados por tônica, terça e quinta. No entanto, no momento em que passávamos a estudar afinações em modos diferentes, essa diferenciação se fazia necessária. A partir desse ponto passava a ensinar também o conceito de campo harmônico e funções dos acordes. Quando se muda a afinação da kalimba, modalmente, o resultado é muito curioso, os acordes permanecem todos nas mesmas posições, porém eles mudam de função. Nesse estágio, a compreensão teórica é muito bem vinda para o aluno. Utilizo durante o processo de ensino, algum material escrito, tendendo a me adaptar à uma linguagem que seja compreensiva para cada aluno, ainda não cheguei a sistematizar plenamente esse material de apoio, principalmente por me adequar à necessidade do aluno. De forma que pra alguns deles conduzo um estudo utilizando partituras, e para outros me atenho mais à forma oral de transmissão. Isso ocorre dependendo da capacidade de visualização, memória, e afinidade de cada um. Tenho preferência por estimular o pensamento intuitivo e a capacidade de improvisação, por mais que algumas pessoas tenham facilidade para a leitura de partituras, não acredito que é interessante que os alunos se tornem dependentes da leitura. Primando pela autonomia e pela criatividade, opto por utilizar a partitura como material de apoio e não como único caminho. Sistemática simplificada Dentro da sistemática de ensino que acabei desenvolvendo existem alguns passos que considerei importantes dentro do processo de aprendizado, para que o aluno adquira autonomia suficiente para explorar o instrumento de forma mais ou menos independente. Para que o aluno crie um sentimento de conexão direta com o instrumento, acredito que o primeiro contato deva ser sem a intervenção do professor. Posteriormente o facilitador entra como um ajudante no processo de aprendizado. O primeiro passo consiste em ensinar o aluno a segurar a kalimba e iniciar a digitação com os dedos indicadores e médios alternadamente, utilizo para isto um exercício de digitação com uma escala ascendente de terças (exercício muito visual na kalimba). É importante não criar o vício de se utilizar apenas os dedos indicadores, ou apenas os médios, mas alterná-los. Dependendo da velocidade de
  • 27.   27   assimilação do aluno, é possível transmitir algumas variações desse mesmo exercício. Em um segundo momento, a partir das teoria de formação de acordes, explicada de forma simplificada (é importante que o aluno saiba que a teoria está reduzida), ensino-o a encontrar os acordes e lhe dou a tarefa de encontrar os sete acordes básicos do modo jônio (tônica, subdominante e dominante maiores, suas relativas menores e o sétimo grau meio diminuto). Associando este passo à leitura das cifras correspondentes, já é possível aprender uma primeira música. O terceiro passo corresponde ao aprendizado de alguns ostinatos básicos utilizados como acompanhamento harmônico de outras música s. Também nesta etapa transmito mais alguns exercícios técnicos para facilitar a digitação. Neste momento, é importante que o aluno compreenda que é possível tecer pequenas frases melódicas entremeando as frases harmônicas, pequenos floreios que enriquecem a forma de se tocar e preparam o campo para o ensino de melodias acompanhadas. Por fim, ensino as mudanças de afinação, mudando apenas as notas correspondentes aos acidentes, porém mantendo a tessitura da escala, o que desemboca em modos gregos, e finalizo o estudo da teoria básica de campo harmônico e intervalos. Neste estágio, o aluno está praticamente dominando a técnica do instrumento, compreendendo as possibilidades e limitações harmônicas e com uma noção básica de teoria musical.
  • 28.   28   CONSIDERAÇÕES FINAIS A kalimba é um instrumento de fácil compreensão intelectual e ao mesmo tempo muito intuitivo. Por ter as teclas alternadas acontece um trabalho entre os hemisférios cerebrais, direito e esquerdo, intuitivo e racional, promovido pelo estímulo simétrico das lateralidades. É interessante observar que isso se revela também na pauta. Todas as teclas que estão no lado direito do instrumento são grafadas nos espaços da pauta, e todas as teclas que estão do lado esquerdo da kalimba são grafadas nas linhas do pentagrama, facilitando a leitura. Devido a essa característica, acredito que a kalimba pode ser um excelente instrumento para a musicalização. Além disso, o timbre e a escala utilizados fazem com que a sua sonoridade seja muito agradável, o que facilita no processo de aprendizagem servindo como um estímulo, fazendo com que o iniciante não desista rapidamente, ajudando também a desenvolver a autoconfiança. Em se tratando do ensino, a kalimba diatônica deve vir primeiro, introduzindo a técnica de digitação e o desenvolvimento psicomotor, para que posteriormente possa acontecer o aprendizado da kalimba cromática, que exige mais habilidade devido à disposição das lamelas, alem de exigir uma base teórica mais sólida. Revendo minha trajetória, que passa pelo aprendizado de uma técnica inovadora, transmitida oralmente sem nenhum embasamento teórico-musical, e a forma que sistematizei e transmiti o que aprendi, acredito que a melhor forma de se ensinar a tocar a kalimba envolve um ensino misto, entre a transferência do conhecimento de forma oral e o registro apoiado pela escrita.
  • 29.   29   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HOLDAWAY, M. PhD. The Kalimba, its African History, and Black Pride. Tucson AZ. Disponível em <http://www.kalimba.art.br/>. Acesso em: 06 mar. 2013. FONSECA, MARIANA BRACKS. Educação pelos tambores: A transmissão da tradição oral no camdombe do açúde. Universidade Federal de Minas Gerais. Brito, J. P. Na ponta dos dedos: lamelofones do Museu Nacional de Etnologia. Texto de apoio à exposição. Serviço educativo do MNE. JENKINS, L. Manual Ilustrado Dos Instrumentos Musicais: O Guia completo - como escolher e usar instrumentos eletrônicos, acústicos e digitais. São Paulo: Irmãos Vitale, 2009. 416 p. MORETTO, MARCO NETO. A tradição Hindu e as práticas contemporâneas de Yoga. Faculdades Metropolotanas Unidas – FMU. São Caetano do Sul. 2012. VALDIVIA, ESTEBAN ALEJANDRO. Los sonidos del nañaveral: Flautas rituales. Universidad Nacional de Villa María. FERRAZ, A. Contos e tradições orais em culturas Africana. [Maio, 2003]. São Paulo: Proj. História. Entrevista concedida a Alexandre Souza Amaral. et Al. Hampâté Bâ, A. Capítulo 8: A tradição viva. In: KI‑ZERBO, J. Ed. Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 167-212. http://www.kalimba.art.br/ http://www.kalimbamagic.com