Cara Ou Coroa Uma ProvocaçãO Sobre A EducaçãO Dos íNdios
1. Maria Helena Rodrigues Paes
“Cara ou coroa”:
uma provocação sobre educação para índios
Maria Helena Rodrigues Paes
Universidade do Estado do Mato Grosso, Departamento de Letras
Introdução esta questão, premente nestes tempos de atenção à
diferença.
Quando me convidaram para escrever sobre a Trago neste texto algumas reflexões nascidas de
questão da educação indígena, neste volume que oito anos de trabalho em educação com algumas co-
aborda Cultura, culturas e educação, a princípio tive munidades indígenas de Mato Grosso, na região de
sentimentos conflituosos, que flutuavam entre o en- Tangará da Serra, a noroeste deste estado. Servem-
tusiasmo e a temerosidade. Tomou-me o entusias- me também, como principais ferramentas de reflexão,
mo, tendo em vista minhas constantes discussões, as discussões que se travaram no decorrer do desen-
mesmo que informais, com amigos e pesquisadores. volvimento do Projeto Tucum – Programa de Forma-
Seria este o momento em que poderia ampliar mi- ção de Professores Índios para o Magistério, executa-
nhas considerações sobre a questão, assim como tor- do no período de 1996 a 2000 no estado de Mato
nar público algumas inquietações que poderiam tam- Grosso. Durante a execução desse projeto, minhas
bém desconstruir posições já cristalizadas sobre o constantes inquietações derivavam de uma certa re-
assunto. Mas, ao mesmo tempo, o temor invadia-me cusa da comunidade indígena Paresi de Tangará da
em função da possibilidade de considerarem minhas Serra, em relação à implantação de um modelo de
reflexões como busca de verdade ou tentativa de es- escola diferenciada1 nas aldeias. Investiguei essa ques-
tabelecer uma nova forma de olhar que deveria pre- tão em pesquisa de mestrado que resultou na disser-
valecer ao se pensar em educação para índios. Não
me proponho a isto! Não pretendo ditar aqui, quais-
quer que sejam, teorizações que sinalizem um rumo 1
Utilizo este termo para me referir a um modelo de escola
certo, um caminho para se fazer educação indígena. que pretendia a valorização dos aspectos culturais tradicionais de
Quero apenas propor algumas reflexões que venham um povo, distanciando-se do modelo padrão do sistema nacional
a provocar e ampliar cada vez mais o debate sobre de ensino.
86 Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23
2. “Cara ou coroa”
tação intitulada “Na fronteira: os atuais dilemas da do”, “dominador x dominado”, relação em que um
escola indígena em aldeias Paresi de Tangará da Ser- grupo simplesmente se sobrepõe ao outro, mesmo
ra – MT”.2 No presente trabalho, trago partes ligeira- porque esta não é minha compreensão da relação en-
mente modificadas dessa dissertação e apresento tam- tre grupos majoritários e minorias. Quero aqui deixar
bém algumas vozes de índios de comunidades do clara minha compreensão de que qualquer grupo, por
grupo Paresi, do município de Tangará da Serra – MT, menor que se configure, tem sua história cultural, e
então coletadas, para marcar e exemplificar minhas que todas as mudanças que se operam no seu interior,
reflexões. em função da inserção de novos artefatos e práticas
Não pretendo aqui retomar velhas discussões, culturais, constituem novos significados histórico-
abordando a necessidade, ou não, de as comunidades sociais, que por sua vez constituem e redimensionam
indígenas retomarem (como muitos defendem) suas a cultura. Assim, novos significados e representações
formas tradicionais de vida, numa perspectiva saudo- de mundo vão se constituindo sem que se “descarac-
sista. Muito menos desejo retomar discursos efusi- terize” o que alguns consideram a cultura tradicio-
vos, da época das comemorações dos 500 anos,3 afir- nal. O que quero aqui desenhar e refletir se refere à
mando que temos uma dívida histórica com os povos compreensão de povos no contexto atual, dinâmico e
indígenas deste solo que aprendemos a chamar “Bra- em intenso movimento, que chamamos “mundo glo-
sil”. Não nego a opressão e a humilhação destes po- balizado”.
vos que, ao longo da história, viram seus pares su- Nesta perspectiva, em se tratando de grupos in-
cumbirem à ação de armas dos colonizadores, mas dígenas, considero a escola como espaço e instru-
considero necessário entendermos o termo cultura mento ímpar na constituição de novas subjetivida-
numa perspectiva dinâmica. Por conseguinte, enten- des e significados de mundo, enquanto instituição
dermos que os grupos e as identidades vão se consti- que trabalha com regimes de verdade. Neste sentido,
tuindo a cada dia que passa, com o uso de novos ins- ela assume posição de destaque para análise e com-
trumentos culturais e novas formas de relações com, preensão dos domínios simbólicos que, ao mesmo
e entre outra(s) sociedade(s). Sendo assim, não há tempo, produzem e são produzidos pela cultura. Desta
como voltar ao passado, “resgatar” alguma coisa, forma, minhas reflexões concentram-se basicamen-
como se as identidades fossem cristalizadas e esti- te em discussões sobre a relação destes grupos com
vessem no aguardo de algum “passe de mágica” para esta instituição cultural, assim como com todos os
reaparecerem em sua forma “autêntica”. Também não elementos novos trazidos por esta.
tenho a menor intenção de trazer para este espaço a Gostaria também de deixar claro que é inconteste
velha discussão da relação “colonizador x coloniza- a necessidade de se registrar que as diversas popu-
lações indígenas, atualmente, vivem em diferentes
condições frente à comunidade não-índia. Umas já
2
A dissertação em questão foi defendida no Programa de totalmente capturadas pelos códigos simbólicos
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio ocidentalizados, inclusive pela língua portuguesa (para
Grande do Sul, na linha de Estudos Culturais em Educação, sob a muitos, não são mais consideradas indígenas); al-
orientação da Professora Rosa Maria Hessel Silveira, em 2002. gumas mantêm fortes suas expressões tradicionais
3
Refiro-me às atividades comemorativas dos 500 anos do de vida e costumes (muitas vezes, são erroneamen-
Descobrimento do Brasil, quando algumas organizações repudia- te denominadas de “índios puros”); outras ainda vi-
vam as festividades preparadas pelo governo brasileiro, expres- vem na fronteira entre essas duas caracterizações.
sando a revolta com a forma desrespeitosa e, freqüentemente, vio- Assim, entendo como imprescindível, ao se tratar
lenta com que foram tratadas as populações indígenas na época e da educação escolar nas aldeias, considerar a cons-
no decorrer dos acontecimentos históricos até hoje. trução histórica e cultural de cada povo.
Revista Brasileira de Educação 87
3. Maria Helena Rodrigues Paes
O lugar de onde falo cie humana é uma espécie cultural sem dizer que a
cultura e o próprio processo de significá-la é um ar-
Para começo de conversa, considero necessário tefato social submetido a permanentes tensões e con-
localizar o lugar de onde falo, o referencial teórico flitos de poder” (p. 40).
que reconstitui, a cada dia e a cada nova leitura, mi- Neste momento em que o mundo passa por in-
nha forma de olhar e de refletir sobre a questão da tensos processos de mudança ante os procedimentos
educação indígena; assim, fundamento-me nas linhas com tendências homogeneizadoras decorrentes da
de autores pós-estruturalistas, especificamente falan- globalização, ao lado da eclosão de conflitos étnicos
do, do campo dos Estudos Culturais. De aparecimento insuspeitados, os Estudos Culturais nos fornecem
recente na história do pensamento na academia, es- ferramentas imprescindíveis para compreensão das
ses estudos revelam-se atualmente como uma positi- (re)constituições das identidades individuais e cul-
va alternativa de compreensão da cultura, não a par- turais. Na perspectiva dos Estudos Culturais, não há
tir de um eixo centralizador, mas sim de dentro da mais como se pensar em identidades culturais
própria cultura, específica em si. Num movimento unificadas, já que a “identidade plenamente unificada,
de rompimento com as metanarrativas, este campo completa, segura e coerente é uma fantasia”, como
de estudo se propõe a não considerar a ordem mun- afirma Hall (2000, p. 61). Assim, este campo de es-
dial sob apenas uma lente de olhar, desafiando as tudos nutre-me de abordagens que permitem olhar a
certezas e posicionando-se no campo da desconfian- educação indígena a partir de perspectivas particula-
ça e da dúvida. rizadas. Não em sentido relativista, devo esclarecer,
Não há como negar a grande diversidade dos mas fornecendo-me ferramentas para refletir a partir
grupos humanos e, por conseguinte, não há como da história de uma determinada cultura sem a neces-
negar as diferenças que caracterizam cada grupo, sidade de estabelecer comparações, ou mesmo sem
muito menos se colocar em busca da homogeneiza- a necessidade de me ancorar em experiências publi-
ção de todos eles, usando argumentos que se incli- cadas e reconhecidas nacionalmente ou mesmo in-
nam à idéia de igualdade entre todos. Não há mais ternacional. Deixo bem claro, mais uma vez, que as
como desconsiderar os saberes tradicionais e expli- reflexões que aqui trago não têm desejo de verdade,
cações de mundo de cada cultura somente pelo fato mas se colocam em uma dimensão questionadora e
de se distanciarem das verdades padronizadas e acei- de desconfiança.
tas pela ciência. Essa perspectiva iluminista acaba
por descaracterizar a diferença, numa aceitação de Cultura: raízes culturais
padrões estéticos, políticos, religiosos, econômicos, versus exigências do global
educacionais etc., a partir das concepções dos gru-
pos que se pretendem hegemônicos. A princípio, quando pensamos ou falamos so-
Dentro deste paradigma, o conceito de “verda- bre cultura, nos parece que se trata de um conceito
de absoluta” cai por terra, surgindo novos regimes tão comum que não nos damos conta do quão difícil
de verdade em diferentes posições no globo terres- e controverso é tentar defini-lo; na verdade, ele tem
tre, em diferentes culturas. Configura-se, então, um sido tema de muita teorização e polêmicas. Porém
amplo campo de análises e estudos, reunindo diver- por mais difícil que se revele trilhar por este cami-
sas posições teóricas e políticas, mesmo divergentes nho, sinto-me impelida a buscar algumas reflexões
entre si, mas que se propõem a estabelecer análises sobre multiculturalismo e hibridismo, indicando quão
culturais partindo do interior de suas relações de po- “misturados” somos em nossa vida em sociedade,
der. Conforme indica Veiga-Neto (2000), para os de forma que estamos continuamente reorganizando
Estudos Culturais “não há sentido dizer que a espé- estruturas e valores tidos como tradicionais. O pro-
88 Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23
4. “Cara ou coroa”
cesso de globalização torna o mundo menor do que Na perspectiva dos Estudos Culturais, Costa
as nossas representações tradicionais de tempos e (2000), inspirando-se também nas palavras de Hall,
espaços. As fronteiras mostram-se mais flexíveis, opta por conceituar cultura como “o terreno real, só-
permitindo fluxos migratórios cada vez mais freqüen- lido das práticas, representações, línguas e costumes
tes e provocando um inevitável processo de misci- de qualquer sociedade histórica específica” (p. 40).
genação. Essas abordagens nos apontam um caráter dinâmico
A ciência tem desenvolvido instrumentos e téc- de cultura, indicando a fluidez de identidades que
nicas refinadas de forma acelerada, oferecendo uma são negociadas nas relações sociais, que por sua vez
série de recursos tecnológicos que produzem inúme- ressignificam o próprio mundo ao redor. Essa magia
ras transformações no mundo padronizado, idealiza- do fazer/refazer, significar/ressignificar num movi-
do pela modernidade. Por outro lado, os meios de mento contínuo configura novas formas de interpre-
comunicação de massa invadem os territórios de to- tação de mundo que vão definindo as expressões
das as nações, por menores que sejam, fragilizando culturais. Em suma, a cultura é uma construção atra-
fronteiras, miscigenando culturas. O ideal de uma vés das práticas representativas.
“cultura pura” e as verdades que se pretendiam es- Não penso em culturas “presas” a descrições
senciais e universalizadas estremecem diante das antropológicas ou presas a passados tradicionais e
novas imagens estampadas nos meios de comunica- (pré)históricos, que inscrevem seus cidadãos em uma
ção de massa e do crescente processo migratório, aos moldura de “formas características” e inertes de ser
grandes centros urbanos, de pessoas em busca de e viver. As pessoas fluem dentro de seus territórios
melhores condições de vida, levando a metamorfo- sociais e para fora deles, trocam informações, ensi-
ses culturais e sociais. As mudanças de costumes, o nam e aprendem novas formas de se expressarem e
contato com novos regimes de verdade, a introdução de significarem o mundo a seu redor, desenhando-
de formas de utilização de novos objetos e artefatos, se, assim, formas híbridas de culturas e, por conse-
de novas linguagens globalizadas, configuram a nova guinte, de identidades.
ordem mundial. Néstor Canclini, em Culturas híbridas, trata a
Stuart Hall (1997) aborda o tema cultura, afir- questão da miscigenação de culturas frente ao cres-
mando que esta é produzida através da representa- cente processo de fluxos migratórios, afirmando que
ção, em que a linguagem, um sistema de significados inúmeros elementos provocam efeitos híbridos nas
partilhados, desempenha papel central no estabele- populações, como a midiatização e o crescimento
cimento de sentido das práticas e valores culturais. populacional urbano.
Desta forma, a cultura não é dada ou herdada, mas
construída, num movimento contínuo de construção Passamos de sociedades dispersas em milhares de
e reconstrução, nas práticas rotineiras das pessoas de comunidades rurais com culturas tradicionais, locais e ho-
um determinado grupo. Nesta perspectiva, a cultura mogêneas, em algumas regiões com fortes raízes indíge-
não é finita, mas é aberta e fluida, como num movi- nas, com pouca comunicação com o resto de cada nação, a
mento das ondas do mar que se renovam a cada lam- uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de
ber nas areias da praia. A cada novo toque, ondas e uma oferta simbólica heterogênea, renovada por uma cons-
areia renovam-se e completam-se em novos signifi- tante interação do local com redes nacionais e transnacio-
cados. Nas próprias palavras de Hall, “a cultura de- nais de comunicação. (Canclini, 1997, p. 285)
pende de que seus participantes interpretem de for-
ma significativa o que esteja ocorrendo ao seu redor Não há mais como se pensar em comunidades e
e ‘entendam’ o mundo de forma geral semelhante” sociedades isoladas e puras em sua cultura, também
(idem, p. 2). aponta Sarlo, ao discutir os efeitos da mídia sobre
Revista Brasileira de Educação 89
5. Maria Helena Rodrigues Paes
culturas populares e, acrescentaria aqui, sobre as cul- Desta forma, os índios e outras minorias trans-
turas das minorias étnicas antes isoladas em comu- formam seus tradicionais meios de vida para se sen-
nidades com poucos contatos com o exterior. A au- tirem inseridos neste mundo que gira e funciona sob
tora sustenta que não há como se fechar os olhos para o eixo da informação, provocando mudanças na con-
a miscigenação de elementos culturais provocados figuração de suas identidades. Neste aspecto, ao tra-
pela disseminação da mídia. A inserção destes meios tar da questão da construção de identidades, Hall
comunicativos reconfigura as características especí- (1997) se mostra perspicaz ao observar:
ficas de culturas locais diante do acesso às imagens
de televisão, que quebram as barreiras do tempo e [...] o que denominamos de “nossas identidades” poderia
espaço: “o tempo na cidade e do espaço campestre, provavelmente ser melhor conceituado como as sedimen-
antes separados por distâncias semanalmente produ- tações através do tempo daquelas diferentes identificações
zidas pela estrada de ferro, os jornais e os livros, agora ou posições que adotamos e procuramos “viver”, como se
são tempos sincronizados”, afirma Sarlo (1997, viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas
p. 102), fazendo referência ao tempo em que os meios por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos,
de comunicação se revelavam incipientes para dar histórias e experiências única e peculiarmente nossas, como
conta da veiculação de informações em um curto sujeitos individuais. Nossas identidades são, em resumo,
espaço de tempo. formadas culturalmente. (p. 26)
A tecnologia, principalmente através do rádio,
da televisão e da Internet, oferece oportunidades a Retomando Hall (2000), que considera a globali-
grupos – por mais longínquos que se encontrem geo- zação um processo promotor da compressão espaço-
graficamente – de se posicionarem diante de eventos tempo, de forma que se perceba o mundo menor do
em outros locais e de tomarem conhecimento, a par- que realmente é, e as distâncias como praticamente
tir de uma determinada versão, de fatos ocorridos a inexistentes, pode-se afirmar que os meios de comu-
quilômetros de distância, ao mesmo tempo em que nicação de massa e a alta tecnologia investida em meios
eles ocorrem, não importando a diferença de contex- de transportes promovem a facilidade de fluxos entre
to em que se situem os telespectadores. Os meios de diferentes grupos e culturas. A sedução das metrópo-
comunicação, assim, colocam-se como instrumen- les com maior potencial de desenvolvimento, que pro-
tos de ligação entre povos de diferentes construções metem perspectivas de melhoria de “qualidade de
simbólicas e valores culturais, situando os diferentes vida”, captura populações que se encontram na peri-
sujeitos, em diferentes espaços, numa mesma condi- feria e passam a afluir aos grandes centros.
ção – a de telespectadores. Ao saírem de seu locus cultural de origem, pas-
Em um mundo onde a informação se configura sam a adotar, de alguma forma, costumes, tradições
em instrumento de inserção, presença e afirmação e línguas diferentes. Salienta Hall (2000) que ocorre
de identidades, a mídia se fortalece como artefato de um movimento, ao qual chama de tradução, caracte-
subjetividades, conforme nos indica Sarlo (1997), ao rizado pelo fato de o sujeito habitar, transferir-se e
se referir às minorias étnicas que capturam as novas transportar-se entre fronteiras, vivendo na fronteira
formas de como se comportar nesse mundo globali- de duas culturas diferentes. O sujeito não “pertence”
zado, assumindo para si as ferramentas discursivas ao lugar que está habitando e nem mais pertence a
necessárias para compor um novo espaço; assim, “os seu lugar de origem, tendo que desenvolver formas
índios aprendem rapidamente que, se quiserem ser de transitar entre os dois mundos: “eles devem apren-
ouvidos na cidade, devem usar os mesmos meios der a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar
pelos quais eles ouvem o que se passa na cidade” duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre
(p. 101). elas” (p. 87-89).
90 Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23
6. “Cara ou coroa”
Canclini (2000) afirma que o reconhecimento produto desses complicados cruzamentos e misturas cultu-
da hibridação modifica o modo de se abordar, discu- rais que são cada vez mais comuns num mundo globaliza-
tir e compreender, entre outros, o conceito de identi- do. (Hall, 2000, p. 88)
dade e de cultura. Definindo hibridação como abran-
gendo “procesos socioculturales en los que estructuras Desta forma, entendo que a questão da miscige-
o práticas discretas, que existían en forma separada, nação não se configura em aspecto negativo como
se combinan para generar nuevas estructuras, obje- representações de “perdas”; ao contrário, trata-se de
tos y prática” (p. 2), afirma ainda que este processo dinâmicas de (re)construção, (re)significação de mun-
se dá até de forma improvisada, não planejada – de- do e de sujeitos, assim como de (re)posicionamentos
vido a fatores como trânsitos migratórios, viagens em tempos e espaços.
turísticas ou mesmo através do intercâmbio econô-
mico e comunicacional – mas que resulta em cons- O índio globalizado
truções criativas, individuais e coletivas. Nesse sen-
tido o autor comenta o processo de reconversão, São diferentes as configurações dos mais de
explicando que este termo se refere ao processo de duzentos grupos indígenas espalhados pelo territó-
criar estratégias de forma que os indivíduos se si- rio brasileiro, sendo que um grande número destes já
tuem e transitem em situações novas, como, por exem- vive sob forma híbrida, embora nem por isso deixem
plo, “os movimentos indígenas que reinsertan sus de- de ser legalmente índios. O processo de contato com
mandas em la política transnacional o en un discurso a sociedade não-índia inseriu novos costumes e no-
ecológico, y aprenden a comunicarlas por radio, vas formas de utilização de utensílios de uso rotinei-
televisión e Internet” (p. 3). Assim, Canclini enten- ro, assim como trouxe novos instrumentos para uso
de que os processos de hibridação é que devem ser o nas aldeias, inventados e utilizados pela sociedade
centro de esforços de estudos sistemáticos, e não a envolvente. Onde antigamente havia somente casas
hibridez em si. Nesta perspectiva, não importa o quão construídas de materiais retirados da natureza, em
híbridos sejam os sujeitos, mas sim como se consti- dias atuais é comum as casas serem construídas de
tuem desta forma. A discussão não se concentra, en- madeira ou mesmo de tijolos. Atualmente também
tão, em juízos de valores quanto a ser puros ou im- utensílios domésticos industrialmente manufaturados
puros, ou mesmo em “perdas de identidade”, mas são adquiridos no comércio das cidades e levados
em compreender os processos que (re)constroem as para as aldeias.
identidades dentro de novos contextos, novas confi- Especificamente a partir da minha experiência
gurações sociais. de convivência com a comunidade Paresi, observei
Desta forma, compreendemos que as identida- que, em se tratando da roça, que em sua forma tradi-
des são artefatos abertos e flexíveis, concordando com cional centra-se em atividades comunitárias para plan-
Hall (2000) quanto aos impactos da homogeneiza- tio e colheita de subsistência, em função do contato
ção globalizante, no sentido de que “a globalização com os não-índios os índios foram capturados pelas
tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identida- novas formas de cultivo da terra, sendo incorporados
des centradas e fechadas” (p. 87), concebendo-as à rotina da roça utensílios como enxada, pá, arado,
como plurais, mutantes e diversas. rastelo etc. Com a expansão da lavoura mecanizada
em terras vizinhas à área da reserva indígena, os ín-
Em toda parte, estão emergindo identidades culturais dios passaram também a utilizar tratores e pesados
que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, equipamentos agrícolas, às vezes por empréstimo dos
entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao fazendeiros ou mesmo por pagamento da empreita-
mesmo tempo, de diferentes tradições culturais, e que são da, para manuseio da terra, na época do preparo para
Revista Brasileira de Educação 91
7. Maria Helena Rodrigues Paes
o plantio, ou ainda na colheita. Alguns grupos já se preocupações, a visão de escola e de sujeito do co-
encontram organizados em forma de associações, o nhecimento também passa por um redimensionamen-
que lhes oportuniza a aquisição de maquinário agrí- to. Enquanto a modernidade nos acenava com a pers-
cola, como tratores e colhedeiras para manuseio de pectiva do sujeito centrado, disciplinado, e um mundo
suas roças. cuja perfeição dependia de soluções racionais par-
Outro aspecto que chama muito a atenção se re- tindo da ação humana, o pensamento pós-estrutura-
fere à inserção dos aparelhos eletrônicos no interior lista vem romper com a visão universalista da per-
das casas das aldeias. O rádio, normalmente de fre- feição e dos enquadramentos de saberes científicos e
qüência AM, é peça comum em inúmeras casas, e por disciplinados. Nesta perspectiva, a escola, de caráter
ele os índios acompanham as informações de sua re- ocidental, também sofre os abalos e os estilhaços de
gião, do país e também do mundo, além de seguir os pensadores que se dispõem a problematizar a estru-
sucessos musicais de suas preferências. A televisão tura de organização e movimentação da sociedade.
também marca presença em muitas aldeias, tanto por Em se tratando de Brasil, o contato entre índios
aquisição particular de alguns moradores como atra- e não-índios iniciou-se num período marcado pelo
vés do programa de distribuição do Kit Tecnológico;4 pensamento moderno do desenvolvimento em busca
assim, eles acompanham a programação das redes de um saber universal e de ênfase na igualdade de
nacionais e assistem a filmes locados nas cidades. Os condições, sendo a postura disciplinar – de normas
aparelhos de som, para fita K-7 e discos, também são rígidas e de controle absoluto dos comportamentos –
freqüentemente encontrados nas casas das aldeias. a tônica das trajetórias escolares implementadas por
Além do rádio amador, o sistema de telefonia missões religiosas da época e que se efetivaram ao
fixa tem se expandido também para várias aldeias longo da história. Dessa forma, o processo escolar
do país, e o telefone celular é a mais nova invenção que os índios vieram a conhecer baseia-se nesta pers-
eletrônica a desembarcar no território indígena. Es- pectiva: na crença de uma suposta superioridade de
tes mais novos componentes eletrônicos colocam os um saber verdadeiramente científico e confiável, ao
índios, nas aldeias, em situação de comunicação rá- qual mesmo muitas pessoas da comunidade não-ín-
pida com qualquer outra região. Do centro de suas dia também ainda não têm total acesso. O mundo
aldeias os índios recebem e enviam informações, que está construído em volta das aldeias é um mun-
assim como tratam de negócios e procuram resolver do moderno, baseado nos saberes da ciência e tecno-
problemas da comunidade imediatamente. Algumas logia, e é através do conhecimento escolar que se
aldeias servidas por redes de energia elétrica e de pensa e se pretende dominar esses saberes. Ao longo
telefonia acessam a Internet diariamente, comunican- de meu trabalho com as comunidades indígenas, per-
do-se com o mundo e tendo acesso às notícias dos cebi, em conversas informais, que os índios têm a
últimos acontecimentos, onde quer que ocorram. visão de que é por meio da escolarização de cunho
tradicional, com todos os seus referenciais de verda-
A questão da escolarização dos índios des, que os não-índios podem chegar a ser advoga-
dos, engenheiros agrônomos etc., que, por sua vez,
Com as intensas mudanças nos paradigmas de são títulos e posições de status valorizado, construí-
compreensão de mundo que vêm povoando nossas dos nesta sociedade de caráter capitalista. Para eles,
então, assim como para muitas pessoas da sociedade
ocidentalizada, a escola se configura como um ins-
4
Programa do MEC que distribui aparelhos de televisão,
trumento indispensável para ascensão social e pro-
videocassete, antena parabólica e codificador de sinais para esco-
fissional.
las com mais de 50 alunos.
Em contraposição, atualmente muitos são os mo-
92 Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23
8. “Cara ou coroa”
vimentos, tanto nacionais quanto internacionais, que configurações escolares em aldeias indígenas, como
trabalham na defesa das especificidades das culturas elemento essencial na manutenção e valorização dos
indígenas. São movimentos que buscam assegurar a aspectos culturais de cada povo.
valorização da pluralidade e o direito de cada cultu- É comum se encontrar nas comunidades indíge-
ra no sentido de possibilitar a sobrevivência de suas nas muitas pessoas opinando que a escola da aldeia
características próprias, sendo a escolarização um dos tem que ensinar às crianças “as coisas do branco,
processos mais questionados. Dessa forma, já nos pois as coisas de índio eles aprendem com a família
anos de 1970 surgiram movimentos de professores e a comunidade”.5 Dessa forma, há bastante discor-
indígenas que produziram documentos escritos – o dância a respeito de como encaminhar as atividades
mesmo instrumento utilizado pela sociedade civil na escola da aldeia, principalmente considerando as
organizada – para garantir o direito de uma educa- últimas discussões e publicações e projetos sobre
ção específica às suas realidades. Como resultado educação indígena que buscam privilegiar e valori-
desses debates, em nível nacional, a Constituição Fe- zar o saber e práticas pedagógicas da cultura tradi-
deral de 1988 rompe radicalmente com o paradigma cional local.
integracionista e, através dos arts. 210, 215, 231 e
232, assegura às comunidades indígenas o direito à O que é a escola para os índios?
diferença e à autonomia, delegando ao Estado a sal-
vaguarda desses direitos. Em meu trabalho de acompanhamento às esco-
Com a referida Constituição, então, novas dis- las nas aldeias, fui percebendo que a escola possui
cussões se desencadearam, de forma que decretos e uma tarefa muito particular para os habitantes da-
portarias foram sendo incorporados à lei maior, ga- quelas comunidades e que meu referencial de “boa
rantindo e regulamentando as ações de Educação escola” não coincidia com o referencial construído
Escolar Indígena, em todo o Brasil, destacando-se as por aquela população.
Diretrizes e Bases para a Política Nacional de Edu- Há que se lembrar que a perspectiva e a proposta
cação Escolar Indígena. Em 1988, o Ministério de que temos hoje de escola do sistema de educação na-
Educação publicou o Referencial Curricular Nacio- cional e suas funções, quanto à formação de cidadãos
nal para as Escolas Indígenas (RCNEI). Estes no- críticos, políticos e conscientes – discurso mais cor-
vos fundamentos pretendem assegurar a implanta- rente de norte a sul em nosso país – vêm sendo cons-
ção de estruturas escolares em consonância com as truídas em nossas sociedades através de muitas dis-
características de cada povo, no sentido de valorizar cussões nas últimas três décadas, sem, no entanto, dar
os aspectos da comunidade na concepção de currí- conta, ainda, de cobrir todas as ações em todas as es-
culos específicos, bem como a “liberdade de decisão feras da comunidade escolar nacional, no sentido de
quanto ao calendário escolar, à pedagogia, aos obje- provocar mudanças efetivas. Por mais que os educa-
tivos, aos conteúdos, aos espaços e momentos utili- dores discutam e formulem propostas “inovadoras”, é
zados para a educação escolarizada” (Brasil, MEC, comum ainda percorrermos inúmeras escolas e encon-
1998, p. 24). trarmos metodologias e currículos de cunho bachare-
A nova concepção de escola indígena inscrita lesco, preocupados com acúmulos e repetição de con-
no RCNEI traz a “interculturalidade” como aspecto teúdos dentro de um modelo tradicional.
de relevância na rotina pedagógica, no sentido de Considere-se que os índios tiveram que desen-
respeitar a diversidade cultural de forma a não so- volver novas e diferentes tecnologias para os conta-
brepor uma cultura à outra, mas sim valorizar as tro-
cas de experiências interculturais. Neste sentido, a
língua materna assume importância ímpar nas novas 5
Retirado de meus registros de caderno de campo.
Revista Brasileira de Educação 93
9. Maria Helena Rodrigues Paes
tos junto aos não-índios que traziam inúmeras novi- mitir os códigos simbólicos da sociedade envolvente,
dades, entre elas, a representação gráfica do que se com a qual as relações se tornam cada vez mais es-
falava. Foram aos poucos conhecendo a “magia” das treitas, não querendo o índio estar alheio à realidade
letras impressas no papel e descobrindo sua necessi- nacional. Ele quer e precisa participar da dinâmica da
dade diante da nova realidade, junto aos homens de sociedade brasileira; desta forma, a escola “adquiriu
outros e diferentes costumes. Lembra-nos Bandeira um importante valor instrumental: ir à escola facilita
(1997) que “assim aprendem a escrita como uma entre a aprendizagem de novas habilidades e conhecimen-
outras tecnologias da cultura envolvente, mas com tos sobre o mundo exterior, necessários para a sobre-
interesse especial de aplicações no adentramento da vivência” (Arellanos & Freedson-Gonzáles, 1998,
organização jurídico-burocrática da sociedade envol- p. 92, tradução minha).
vente (p. 40). Compreendo que os índios esperam que a esco-
Bonin (1998) afirma que “o conhecimento ‘de la cumpra a função de trazer informações sobre a
fora’ assume, no contexto do contato, um caráter dinâmica da sociedade envolvente, assim como so-
novo: é algo que precisa ser procurado, cercado e bre os códigos dos instrumentos ocidentais que, ago-
dominado” (p. 140). Desta forma, a condição de com- ra, fazem parte das dinâmicas de suas comunidades.
preensão dos códigos ocidentais foi se efetivando Considerando inevitáveis as relações com o mundo
como componente necessário à sobrevivência dos ocidentalizado, há que se ressignificar as rotinas de
índios, que foram sendo capturados pelo discurso da forma a compreender e lidar com os novos instru-
“escola necessária”, de que a escola se instituía como mentos, utilizar as mesmas tecnologias do mundo
único (ou mais importante) instrumento de possibi- ocidental para negociar suas necessidades de sobre-
lidades de adentrar este mundo novo. vivência. Participar da sociedade envolvente, parti-
cipar do mundo gestado e mantido hoje pela escrita
Não vamos levar a vida assim como agora, cada vez e pela tecnologia reconstrói e ressignifica o ser ín-
nós estamos... assim... ficando mais próximos do branco... dio, que não quer e não pode estar alheio e margina-
E o branco mais próximo de nós, apertando mais ainda, lizado neste novo movimento. Como outras popula-
então a gente pode levar os alunos, a criançada a aprender ções isoladas e minoritárias que tomam contato com
mais, conhecer mais a escrita... como podem se defender... a cultura ocidentalizada, também querem estar inse-
como levar as pessoas mais velhas que não sabem ler, aju- ridos nesta dinâmica de sociedade global. Não há
dando elas na cidade, como redigir os documentos... como estar inserido em um contexto sem conhecê-
(Pai de aluno) lo, assim como não há como participar de uma dinâ-
mica social sem conhecer os códigos que a regem.
Nesta perspectiva, conhecer e dominar elemen- O índio sente-se ameaçado diante de tantas mu-
tos da dinâmica do mundo ocidental apresenta-se danças, construindo um significado de que a forma-
como importante ferramenta para manutenção e so- ção acadêmica e a profissionalização de pessoas da
brevivência da comunidade e, como afirma Bonin comunidade se colocam como imprescindíveis para
(1998), a escola deve configurar-se “como uma pos- seu posicionamento diante dos códigos que regem a
sibilidade neste processo de apropriação do conheci- sociedade envolvente. Não conhecendo e compreen-
mento ‘de fora’. Apropriar-se de novos saberes não dendo os códigos normativos e legislativos, estarão
significa sobrepô-los ao saber tradicional, mas sempre na dependência de “outros” para a garantia
transformá-los em ‘caixas de ferramenta’ ” (p. 141). de seus direitos, para terem a certeza de não serem
A escola, então, como instrumento de acesso aos sa- enganados. Nesse sentido, justifica-se a construção
beres ocidentalizados, apresenta-se como essencial no da representação de que um advogado ou um juiz de
interior destas comunidades, com objetivo de trans- direito do próprio povo reverteria esta situação. A
94 Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23
10. “Cara ou coroa”
representação da escola se constitui como instrumen- lações sociais. Admitir a escola na aldeia, com todos
to de defesa, na perspectiva de compreender os códi- os seus rituais de saberes e valores ocidentalizados,
gos da sociedade do “outro”, para estabelecer rela- pode não significar a submissão e rendição à homo-
ções com esta, usando seus instrumentais legítimos geneização cultural destes grupos; ao contrário, pode
com objetivo de se “proteger” de possíveis “enga- representar uma ação de resistência a este processo,
nos”. Com o domínio destes instrumentos eles en- como nos alerta Silva (2000), que entende a escola-
tendem que podem garantir sua sobrevivência, sem rização para as comunidades indígenas como instru-
risco de que as organizações governamentais, atra- mento e forma de decifrar a realidade frente à situa-
vés de instrumentos jurídicos legais, provoquem a ção de contato, e afirma que este ato, “longe de ser
perda de suas reservas, por exemplo. uma ‘adesão’ (simples) a nosso modelo, é, nesse sen-
tido, uma estratégia de resistência” (p. 65). Esta pos-
Escola: a estrangeira tura também é compartilhada por Bonin (1998): “De-
cifrar este mundo e as regras nas quais se estrutura o
Em meu contato com índios percebo que estes sistema de dominação é, então, estratégia de resis-
colocam a relação índio x não-índios numa perspec- tência. O conhecimento nestes termos é instrumento
tiva dicotômica, localizando a escola como perten- para os povos indígenas na luta para a mudança nas
cente ao civilizado. Essa dicotomia fica evidente nas relações com a sociedade envolvente” (p. 140).
expressões usadas por uma pessoa entrevistada, con- A escola como instrumento para “defesa da co-
trapondo sabedoria tradicional – “sabedoria nossa, é munidade” teria uma função, sobretudo, de resistên-
a questão tradicional” – ao saber circulante na esco- cia, no sentido de que, compreendendo os códigos
la, o saber do civilizado, deixando claro que a escola da cultura envolvente, não só a comunidade indíge-
da aldeia não é escola indígena. Nesse sentido, a es- na conseguiria transitar nesta realidade como tam-
cola tem a função e deve se estruturar como instru- bém negociaria com os mesmos instrumentos e di-
mento de transmissão dos códigos simbólicos do nâmicas, marcando sua forma diferente de viver numa
mundo civilizado. sociedade multicultural, mas que se revela homoge-
Na perspectiva do que abordei nos parágrafos neizante sob a perspectiva da oferta de oportunida-
anteriores, apontando a participação e os significa- des. Conhecer e compreender os códigos que regem
dos dos movimentos indígenas, Bonin (1998) nos fala a sociedade envolvente não significaria simplesmente
sobre a aquisição do conhecimento formalizado en- render-se a eles (embora, em longo prazo, eles vies-
quanto poder do não-índio, localizando-o como ins- sem a ser naturalizados também em tais comunida-
trumento de luta: des), mas seria imprescindível entender os mecanis-
mos de sua dinâmica, com o propósito de lidar com
É necessário compreender a estrutura, decifrar as re- os mesmos, de forma que passem a ser seus estes
gras da sociedade dominante, conhecer os mecanismos le- mesmos instrumentos de negociações. Incluídos, pre-
gais de garantia dos direitos, compreender a política oficial sentes na história da sociedade nacional sem, no en-
para os povos indígenas, ter acesso às informações, enfim, tanto, deixar os costumes tradicionais, ou ao menos
apropriar-se de um instrumental que lhes assegure a auto- alguns, os índios se fariam respeitar pela diferença,
nomia. (p. 139) utilizando os mesmos instrumentos característicos da
sociedade ocidentalizada: a palavra escrita, organi-
Para participar das dinâmicas construídas pela zações jurídicas, o poder do conhecimento univer-
sociedade nacional, as minorias reestruturam-se e salmente reconhecido etc.
ressignificam-se, com instrumentos próprios e adqui- Compreendo que os índios vêm claramente as
ridos, negociando sua posição rotineiramente nas re- novas instrumentalizações de que necessitam para
Revista Brasileira de Educação 95
11. Maria Helena Rodrigues Paes
negociar seu trânsito e permanência nas dinâmicas provimento de água mais próximo às casas, bem-es-
da realidade da sociedade envolvente. É necessário tar de direito de qualquer cidadão brasileiro, e eles
preparar-se para adentrar estas dinâmicas, caso con- necessitam de encaminhamento burocrático para sua
trário, danos serão sentidos pela comunidade como aprovação e implantação. Nas instâncias de órgãos
um todo. A sociedade ocidentalizada se organiza le- oficiais de financiamento para a concretização destes
galmente através de registros e documentos oficiais, direitos, a oralidade ou a escrita não-normatizada não
e, com o intenso contato e estabelecimento de rela- tem valor jurídico reconhecido para sua obtenção,
ções comerciais com esta sociedade, os índios deve- mesmo que conste em lei que essa obtenção é direito
riam apreender estes códigos, que se fazem necessá- de todos
rios diante das novas exigências. Para o acesso a estes bens de direito, atualmente
as comunidades, através de seus líderes, contam com
Bom... eu acho que futuramente a escola pode... Pode a intermediação de funcionários de órgãos oficiais,
ajudar, né? Porque... Por isso a criança tem que passar na ainda dependendo de serviços prestados por estes.
escola ainda... Pra estar conhecendo primeiro a escrita, como Insatisfeitos com tal dependência e desejando assu-
tem que fazer, e... Conhecendo o papel, o seu papel que mir o direcionamento de ações relacionadas a seu
está fazendo, que está assumindo, né? Se não conhecer o povo, eles percebem a urgência da necessidade de
papel que está fazendo, aí fica muito difícil, porque a... As informações, precisando instrumentalizarem-se tec-
lideranças todas as vezes que fazem reunião com as organi- nicamente, através da leitura e escrita, para conduzir
zações, eles não têm nenhuma documentação, nenhum re- seus próprios processos de construção do bem-estar
latório pra estar... cobrando. Daqui mais algum tempo, né? de suas comunidades.
Então isso é uma grande dificuldade das lideranças. (Pro- É fato o descontentamento de um povo que, des-
fessor índio de escola da aldeia) de o contato com o não-índio, esteve subjugado his-
toricamente a restrições e determinações oficiais que
A gente vem preocupando com a comunidade e o fu- o levaram a uma situação de dependência, principal-
turo das comunidades porque, como hoje, no tempo pre- mente por não disporem de instrumentos técnicos para
sente tem muitos dirigentes das aldeias, que tem, assim, compreensão e subseqüente negociação da constru-
muita dificuldade de procurar seus direitos, de agir na fren- ção de suas próprias trajetórias, segundo seus desejos
te das autoridades e procurar uma alternativa de melhoria e anseios. Nesta perspectiva, a escola constitui-se como
de sua comunidade. Tem tudo isso, né? Então a gente vem fonte principal de instrumentalização técnica da lei-
preocupando com as demais coisas ainda. (Professor índio tura e escrita que lhe acenará com as possibilidades
de escola da aldeia) de acesso aos conhecimentos.
As dinâmicas políticas, sociais, econômicas da A disciplina e rotina escolares
sociedade ocidentalizada organizam-se num sistema
de escrita que marca o que é legítimo e o que não é. Os grupos indígenas brasileiros tiveram contato
As lideranças das comunidades já não mais negociam com uma instituição escolar de princípios iluministas,
à base de lutas corporais, conflitos interétnicos; em com objetivos assimilacionistas no sentido de “torná-
função de as atividades, cada vez mais ocidentalizadas, los civilizados” para o bom convívio com a sociedade
inserirem-se nas rotinas diárias, faz-se presente a ne- ocidentalizada; para tal, o controle disciplinar sobre o
cessidade de diálogos e negociações com a sociedade corpo, a docilização deste, fazia-se imprescindível. A
envolvente. Projetos devem ser elaborados para aqui- proposta de uma “escola específica e diferenciada”,
sição de maquinários agrícolas, medicamentos e equi- que se apresente minimamente coercitiva, propondo
pamentos de saúde, ações de saneamento das aldeias, respeitar e valorizar a cultura tradicional e saberes lo-
96 Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23
12. “Cara ou coroa”
cais, é uma construção processual recente entre estes o para o convívio com a sociedade envolvente. Tra-
povos, ainda em construção de significados. tando da escola enquanto produtora de sujeitos disci-
Ao falarem da situação de escolarização atual, plinados, Veiga-Neto (2001) se vale das palavras de
os índios deixam claro que não acreditam que a es- Kant para afirmar que “disciplinar quer dizer: procu-
cola venha cumprindo seu papel enquanto produtora rar impedir que a animalidade prejudique o caráter
de saberes que os leve à situação de igualdade em humano, tanto no indivíduo como na sociedade. Por-
relação aos não-índios, e apontam a falta de interes- tanto, a disciplina consiste em domar a selvageria”
se das crianças pelas atividades escolares como um (p. 11). Posso ainda me utilizar de Foucault (2000),
dos fatores causais deste fenômeno. Neste sentido, que trata a disciplina como abrangendo os “métodos
recorrem à ineficiência do dispositivo disciplinar que, que permitem o controle minucioso das operações do
embora coercitivo e punitivo, estaria deixando de con- corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças
trolar “adequadamente” o comportamento dos alu- e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”
nos em sala de aula. (p. 118). Na perspectiva aqui discutida, os índios en-
A representação da construção do saber com base trevistados foram interpelados pelo discurso da “or-
na disciplinarização dos corpos parece-me clara nas dem do mundo”, no qual a escola se fundamenta com
falas das pessoas que entrevistei. Nessa perspectiva, princípios e ações disciplinares, capturando o sujeito
estabelecem comparação, numa relação temporal – de modo a produzi-lo segundo a perspectiva normativa
antigamente/atualmente – referindo-se à configura- da sociedade hegemônica, e assim se sentir perten-
ção da escola de princípios modernos que, através de cente a ela.
procedimentos disciplinares, controlava e assegura- Considerando que a maioria dos índios brasilei-
va a permanência do aluno nas atividades escolares, ros estão numa condição de minoria étnica, mas cons-
enquanto que nos dias atuais esse procedimento não tantemente interpelados por discursos da sociedade
viria se efetivando: majoritária, que, por sua vez, conferem valor e status
social ao indivíduo que cumpre com os requisitos de
Mas hoje em dia a gente está tentando com essas crian- uma norma, construída culturalmente, a “disciplina”,
ças, quase que eles não aprendem porque eles não ficam para este povo, passa a representar uma das ferramen-
prestando atenção, quando a gente fala, quando a gente tas que permitirá ascender socialmente nesta socie-
conversa com eles, eles abaixam a cabeça, ficam só dese- dade. Portanto, entendem que a escola deve trabalhar
nhando, não escutam nada... e quando a gente fala com os no sentido de produzir comportamentos disciplina-
alunos eles não prestam atenção, pegam o estilingue vão res, aceitáveis, que conduzirão futuramente os alunos
pra fora, ficam brincando atrás de passarinho, pegam fle- à condição de cidadãos “civilizados”: cidadãos da
cha, brincando, por isso não aprendem. (Professor índio de sociedade nacional, que cumprem rigorosamente as
escola da aldeia) normativas sem serem considerados marginais.
Para cumprir a função de “inserção” e “pertenci-
Observei que o Paresi acredita na relação causa/ mento” ao mundo ocidentalizado através do processo
conseqüência do binômio “disciplinarização x aprendi- de escolarização de postura moderna, seria necessário
zagem”, conforme preconizavam os ideais iluminis- que as crianças fossem capturadas pelos códigos nor-
tas de educação, que implicavam produzir um sujeito mativos deste, se construíssem como sujeitos discipli-
organizado, disciplinado para estabelecer relações num nados e autogovernáveis, de forma que a docilização
mundo, também organizado, de bases normativas. de seus corpos se tornasse imprescindível para circula-
Assim, a escola teria a função de disciplinar, organi- ção na sociedade envolvente urbana, que tem suas re-
zar a sociedade diante das novas relações, tirando do gras e normas bem estabelecidas. Aos que não as cum-
aluno o estado “puro”, “natural”, instrumentalizando- prem restaria a punição, a desvalorização ou mesmo a
Revista Brasileira de Educação 97
13. Maria Helena Rodrigues Paes
exclusão do grupo. Nesta perspectiva, volto a apode- iluministas, apesar de todas as discussões que têm sido
rar-me da reflexão antes construída, em que situo a empreendidas nos últimos anos para a construção de
escola como elemento “estrangeiro” à comunidade in- uma escola diferenciada, que respeite e valorize os
dígena, que tem como função principal a transmissão aspectos culturais do grupo. Na perspectiva dessa for-
dos instrumentos e códigos simbólicos do mundo oci- ma de “desejar” a escola de expressão moderna, na
dental. Entre estes códigos, a disciplinarização desponta qual os aprendizes ocupam lugares, espaços determi-
como importante ferramenta para compreensão e nados, dentro de uma organização temporal, segundo
apreensão da organização espaço-temporal da socie- uma hierarquia de saberes a serem construídos, o Pa-
dade envolvente. Neste aspecto, Veiga-Neto (2001) bem resi expressa seu descontentamento pela desorgani-
coloca a importância desta ferramenta para o mundo zação dos alunos no ambiente escolar, ao falar da ine-
moderno, localizando a escola como instrumento de ficiência no aprendizado na escola da aldeia, como
produção deste dispositivo: “Assim, se para vivermos aparece nos depoimentos abaixo:
civilizadamente no mundo moderno é mesmo neces-
sário um mínimo de disciplinamento, então as crian- [...] eles não sentam! Eles saem toda hora lá fora... eles...
ças ainda devem ir à escola” (p. 9). É desta forma, vão na carteira do coleguinha, eles ficam fazendo bagunça.
apreendendo os modos de vida e capturados pelas roti- (Professor índio de escola da aldeia)
nas e códigos disciplinares, lhes conferindo o pertenci-
mento e aceitação na sociedade envolvente, que o ín- [...] Porque a criança faz muita bagunça na sala, né, e o
dio compreende sua condição de agente de sua própria professor fica assim no quadro explicando para eles... o
história. Somente dominando os códigos disciplinares professor escreve no quadro e eles não prestam atenção.
da sociedade envolvente pode estabelecer negociações (Pai de aluno)
que (re)dimensionem sua identidade e sociedade.
Fica claro, nas vozes abaixo, que o Paresi enten- Este aspecto da importância de a criança ocupar
de que, sem o estabelecimento do comportamento dis- “seu espaço específico”, previamente determinado
ciplinar adequado, a criança não conseguirá construir pelo professor e pela instituição, para desenvolver sua
os novos saberes, tão necessários para o convívio e aprendizagem, está bem tratado por Foucault (2000)
negociações com a sociedade envolvente: ao analisar os dispositivos que sustentam a discipli-
narização de corpos e afirmar que “importa estabele-
Atrapalha porque, se eles tiverem andando muito, às cer as presenças e as ausências, saber onde e como
vezes eu estou explicando no quadro e eles não estão pres- encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações
tando atenção, aí isso dificulta muito a aprendizagem deles úteis, interromper as outras, poder a cada instante vi-
porque se eles não prestam atenção como é que eles vão giar o comportamento de cada um, apreciá-lo,
aprender? (Professor índio de escola da aldeia) sancioná-lo, medir as qualidades ou méritos” (p. 123).
Não se estabelecendo esta ordem disciplinar, não “lo-
Agora o professor, por exemplo, o professor da al- calizando” e controlando o corpo, o domínio sobre
deia passa tarefa no quadro e os alunos ficam lá conversan- este não se configura; logo, o professor “perde” o
do com outro, não presta atenção no quadro, então nesses controle do aprendiz e, por conseguinte, não estabe-
casos aí os aluno não aprende, aí o aluno não aprende mes- lece a relação de controle de sua aprendizagem.
mo porque ele não presta atenção no quadro, presta só na Esta questão da organização espacial, enquanto
conversa deles. (Pai de aluno) dispositivo de manutenção da ordem disciplinar, apa-
rece como fator complicador, tendo em vista que o
Nesse sentido, compreendo que o Paresi está funcionamento da escola nas aldeias se caracteriza
subjetivado pela perspectiva da escola de princípios por salas multisseriadas, devido ao baixo número de
98 Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23
14. “Cara ou coroa”
alunos matriculados por série, nas quais alunos de estejamos a continuar um processo de padronização,
diferentes idades se misturam na rotina escolar. Nes- de homogeneização do que se entende que seja a edu-
se aspecto encontramos também mais um elemento cação indígena e a que ela se presta.
valorizado pela concepção moderna de escola, em que Insistimos em nosso discurso sobre escola dife-
a organização e a distribuição dos alunos no espaço renciada, valorização da língua materna, valoriza-
escolar revelam-se dispositivos imprescindíveis na ção dos aspectos culturais tradicionais para as esco-
construção e transmissão de saberes. las das aldeias. Não discuto, muito menos discordo,
que seja necessária uma escola que atenda às necessi-
A provocação dades das comunidades; proponho, sim, que seja ne-
cessário compreender que condições produziram as
Neste ponto quero me posicionar de forma a in- atuais configurações de um determinado grupo que,
citar os leitores ao debate. Proponho-me a ser “advo- por conseguinte, tem perspectivas e desejos específi-
gado do diabo”, mexendo com as certezas e a tran- cos para suas comunidades. É compreendendo as con-
qüilidade de quem discute e propõe ações em educação dições que possibilitaram a constituição de um grupo
para índios. que se pode entender a real necessidade da comuni-
Há anos, em nossa sociedade, vimos discutindo dade, e não discursar sobre um modelo que, para a
o modelo de escola importado de outros países e em sociedade ocidentalizada, tem-se representado como
oferta para a população nacional, entendendo que a necessário. Ora: os valores simbólicos, o que é “bom”
escola deve trabalhar e privilegiar as experiências do ou “ruim” para a sociedade ocidentalizada, vem sen-
alunado. São anos de discussões e, também em nossa do construído ao longo dos anos, num contínuo pro-
cultura ocidentalizada, ainda não conseguimos deli- cesso de ressignificações. As mudanças não ocorrem
mitar e desenhar o modelo de escola que queremos e simplesmente por decreto-lei, não são ensinadas; são
precisamos, de forma que ainda repetimos, de uma construídas num processo mais amplo e nunca são
forma geral, o modelo tradicional de educação esco- definitivas.
lar. As comunidades indígenas contam com a escola
O aspecto que primeiramente quero considerar como instrumento de transmissão do que não é natu-
se refere às diferentes configurações dos diversos gru- ralmente construído no seio de sua cultura tradicional.
pos indígenas de nosso país. Nesta perspectiva, ao se A escola, assim, deveria fornecer-lhes as ferramentas
tratar da educação indígena e propor modelos para fun- necessárias para o trânsito, sem discriminações, na
cionamento das escolas nas aldeias, há que se caracte- cultura ocidentalizada. Nesse sentido, a escola é “es-
rizar a condição de vivência de cada grupo. Não basta trangeira” e deveria trabalhar com os códigos simbó-
utilizar modelos de outros grupos que tiveram suces- licos do “estrangeiro”. Sendo a escola um instrumen-
so na implantação de novos modelos educacionais. to do ocidental, inserido nas suas aldeias, as coisas de
Cada grupo tem sua história e suas necessidades ante índio não deveriam ser “ensinadas” na escola, princi-
a situação de contato com a sociedade ocidentalizada. palmente para as culturas que ainda mantêm seus as-
Com nossos valores do que entendemos de “escola pectos culturais tradicionais vivos. Quando o sistema
necessária” para índios, considerando o “resgate das escolar se propõe a trabalhar os aspectos culturais dos
culturas tradicionais”, podemos estar repetindo o mo- grupos indígenas, como artesanato e mitos, a escola
delo iluminista, invertendo porém valores do que é poderia estar reconhecendo e aceitando a incapacida-
considerado “bom” e “necessário”. Passamos da va- de do grupo em cumprir com uma função que é so-
lorização do padrão ocidental do conhecimento cien- mente sua: a de trabalhar com seus aspectos muito
tífico para a valorização exacerbada dos saberes tradi- particulares. Nesse sentido, poderia não estar reco-
cionais. Na tentativa de valorizar as diferenças, talvez nhecendo a sabedoria, a valorização e a capacidade
Revista Brasileira de Educação 99
15. Maria Helena Rodrigues Paes
dos mais velhos, a quem é de direito a transmissão dendo ao que entendemos de necessário para cons-
dos aspectos da cultura tradicional, de tal forma a fe- trução de uma realidade mais equilibrada socialmen-
rir o orgulho e a vaidade das identidades culturais. te; mas esta é a nossa história, e não a das comunida-
Em se tratando da metodologia a ser trabalhada des indígenas.
na escola da aldeia, é corrente nos projetos de im- As comunidades indígenas têm visto, freqüente-
plantação de modelos de escolarização a afirmação mente, que a maioria das pessoas de sucesso também
de valorização da pedagogia indígena. Em conversas teve uma história escolar construída sob a perspecti-
com diversos grupos indígenas, verificamos que a va de um currículo de conteúdos cobrados rigorosa-
criança aprende a ser índio na execução de suas tare- mente. Os concursos públicos, os vestibulares, por
fas e observando os mais velhos. Nesse sentido, sim, exemplo, ainda continuam selecionando candidatos
a escola deveria propor uma metodologia centrada na em função de um determinado conhecimento acumu-
atividade. Por outro lado, também devemos compreen- lado. Não devemos esquecer que os índios não fica-
der que a repetição é uma atitude natural e cultural rão “cercados” em suas aldeias eternamente; aliás, já
dos grupos indígenas. Para se transmitir os mitos, o assinalei anteriormente a questão dos fluxos migra-
mais velho repete para os mais novos, inúmeras ve- tórios e as novas exigências em função destes. Tam-
zes, seguidamente, uma mesma história, como fazem bém é inegável que, diante das novas condições de
os velhos Paresi. Nesta perspectiva, um modelo de contato com a sociedade ocidentalizada, novas ne-
escola centrada em metodologias flexíveis não esta- cessidades aparecem para as comunidades indígenas
ria contemplando o que entendemos por respeito às que com maior freqüência se inserem no mercado de
pedagogias próprias de cada grupo. Talvez este as- trabalho nas cidades, até mesmo para a própria so-
pecto viria a explicar o fato de, apesar das discussões brevivência.
sobre metodologias diferenciadas, ainda os professo- A mídia não se cansa de mostrar inúmeros progra-
res das escolas das aldeias continuarem em práticas mas de atendimento à população analfabeta, buscando
tradicionais de repetições dos exercícios, como veri- fórmulas de combate aos altos índices de analfabetis-
fiquei em minha investigação. mo, deixando claro que o processo de escolarização é
Durante o desenvolvimento do Projeto Tucum, imprescindível na atual sociedade. Os governos têm
já referido anteriormente neste texto, encontramos implementado numerosos programas que incentivam
muitas famílias das comunidades indígenas que não e permitem o acesso do maior número possível de
acreditam numa escola diferenciada, que valorize os pessoas aos processos de escolarização. As oportuni-
aspectos culturais como conteúdos curriculares das dades e oferta de emprego têm privilegiado pessoas
escolas da aldeia. Para estas famílias, a configuração portadoras de certificado de conclusão de ensino fun-
de escola diferenciada não atende ao necessário para damental e médio. Quanto mais qualificado o servi-
a criança sobreviver no atual contexto de mundo ex- ço, maior a exigência do conhecimento escolar. Nos-
terior à aldeia. A representação de escola, construída sa sociedade deixa clara e pública a valorização do
no interior destas comunidades, refere-se a uma escola conhecimento escolar para a população; na verdade,
que discipline e que ensine rigorosamente os conteú- poderíamos falar de um certo “acúmulo de conheci-
dos que lhes permitirão acesso, em iguais condições mentos escolares” para se ter acesso a uma série de
aos demais cidadãos brasileiros, a todos os sistemas bens de direito, como um emprego, por exemplo. Mas
valorizados ocidentalmente. Claro que para nossa so- o que preconizamos para os índios? Dizemos a eles
ciedade o modelo atual de escola, ainda centrado em que o acúmulo de conteúdos não é significativo! Cla-
conteúdos, a princípio desnecessários para o uso roti- ro que eles nos olham e nos ouvem com desconfian-
neiro, a despeito de esforços repetidos de mudança ça, pois compreendem que a maioria das escolas do
de metodologias e concepções, também não está aten- sistema nacional ainda valoriza o “acúmulo de sabe-
100 Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23
16. “Cara ou coroa”
res escolares”. Talvez eles considerem que estão, mais de valores. Falar de diferença é compreender as ca-
uma vez, sendo enganados pelos brancos. Se a escola racterísticas dos sujeitos e dos diversos grupos. Tal-
específica e diferenciada é tão boa assim, por que esta vez fosse melhor não falar da diferença, mas deixar a
configuração de escola não estaria presente, de forma diferença falar. Não estaríamos assinando um contra-
expressiva, em nossa sociedade ocidentalizada? to psicológico de que temos que falar da diferença, e
Não quero aqui propagar ou mesmo comparti- por ela, porque construímos uma representação de que
lhar da idéia da padronização dos modelos escolares, ela não consegue falar? É incapaz? Neste sentido, há
sob a perspectiva ocidental; ao contrário, quero dei- que se posicionar desconfiante com o que imagina-
xar clara a necessidade de se compreender a constru- mos e informamos ser o “certo” para uma determina-
ção cultural de cada grupo ao se propor a educação da cultura, mesmo porque “nós” é que estamos falan-
escolar para índios. A inserção da escola nas comuni- do, e não as pessoas da cultura da qual falamos. Assim,
dades indígenas deu-se a partir de sua representação ainda usamos o jogo do poder, mesmo que pelo dis-
como instituição responsável para transformação do curso das especificidades e da diferença: continua-
índio em “homem civilizado”, como um instrumento mos a estabelecer verdades, mesmo que em um outro
de inserção deste “selvagem” no mundo ocidental. A olhar.
idéia da escola enquanto instrumento de inserção e
assimilação foi sendo construída ao longo dos anos e MARIA HELENA RODRIGUES PAES, mestre em educa-
não se apaga num piscar de olhos! Como já apontei ção pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, é
anteriormente, as mudanças ocorrem em um proces- docente do Departamento de Letras da Universidade do Estado de
so de longo prazo, e não por simples decreto-lei; elas Mato Grosso – UNEMAT, Campus de Tangará da Serra. Atual-
são construídas no dia-a-dia de uma sociedade, ainda mente integra um grupo de pesquisa da Faculdade de Educação
que não as notemos. Talvez somente as gerações fu- dessa universidade que investiga o tema “Artefatos culturais e
turas possam perceber como se deram. sociedade contemporânea: estudos sobre discursos como territó-
Como vim apontando neste texto, a escola na al- rios de produção de significados e de constituição de subjetivida-
deia é um instrumento do outro, com uma função es- des”. Neste projeto, é responsável pela investigação intitulada
pecífica: a de informar sobre a dinâmica da socieda- “Análise dos discursos de professores e pessoal administrativo
de deste outro. Dessa forma, penso ser necessário das escolas públicas do ensino regular sobre alunos índios egres-
discutir-se mais profunda e amplamente com as pes- sos de escolas das aldeias Paresi de Tangará da Serra – MT”. Pu-
soas das comunidades indígenas, não só com líderes blicou vários textos inspirados na investigação que realizou du-
ou representantes, a formatação de escola e currículo rante o mestrado, entre os quais se destacam: A questão da língua
de que necessitam. Quando levamos às comunidades nos atuais dilemas da escola indígena em Aldeias Paresi de Tangará
indígenas nossa visão de escola necessária não esta- da Serra (Revista Brasileira de Educação n° 21, set.-dez. 2002,
ríamos continuando a nos sobrepor à vontade e ne- p. 52-60); A escolarização: um processo de produção de identida-
cessidade deles? Apesar de nosso discurso de respei- des híbridas (Anais do XI ENDIPE – Encontro Nacional de Didá-
to às características tradicionais de cada povo, não tica e Prática de Ensino: Igualdade e Diversidade na Educação,
estaríamos ainda “ditando” o que é “bom ou ruim” 2001. E-mail : mhninha@terra.com.br
para eles? Praticamos o jogo do poder do discurso e
da construção de significados de mundo. Em certo Referências bibliográficas
sentido, trocamos os elementos, as palavras, mas con-
tinuamos a estabelecer uma relação de soberania, dei-
ARELLANOS, Vilma Duque, FREEDSON-GONZÁLES,
xando claro que “nós” podemos dizer o que é certo e
Margaret, (1998). Hacia un diagnóstico de la realidad educati-
o que não é. Falar de diferença é considerar o que
va de los pueblos indígenas de la región mesoamericana: el
pensam, o que significam do mundo, o que constroem
caso de los Altos Chiapas, México. In: CONFERÊNCIA
Revista Brasileira de Educação 101
17. Maria Helena Rodrigues Paes
AMERÍNDIA DE EDUCAÇÃO. CONGRESSO DE PROFES- FOUCAULT, Michel, (2000). Vigiar e punir : nascimento da pri-
SORES INDÍGENAS DO BRASIL. Anais... Cuiabá: Secreta- são. 22a ed. Petrópolis: Vozes. Tradução de Raquel Ramalhete.
ria de Estado de Educação/Conselho de Educação Escolar In- HALL, Stuart, (1997). A centralidade da cultura: notas sobre as
dígena de Mato Grosso, p. 79. revoluções de nosso tempo. Educação e Realidade, Porto Ale-
BANDEIRA, Maria de Lourdes, (1997). Formação de professo- gre: UFRGS, v. 22, n° 22, p. 15-46.
res índios: limites e possibilidades. In: SECCHI, Darci, (org.)
, (2000). A identidade cultural na pós-modernidade.
Urucum, jenipapo e giz. Cuiabá: Entrelinhas, p. 35.
4a ed. Rio de Janeiro: DP&A. Tradução de Tomaz Tadeu da
BONIN, Iara Tatiana, (1998). Professores indígenas: resistência em Silva e Guacira Lopes Louro.
movimento. In: CONFERÊNCIA AMERÍNDIA DE EDUCA-
SARLO, Beatriz, (1997). Cenas da vida pós-moderna: intelectuais,
ÇÃO. CONGRESSO DE PROFESSORES INDÍGENAS DO
arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
BRASIL. Anais... Cuiabá: Secretaria de Estado de Educação/
SILVA, Rosa Helena Dias da, (2000). A autonomia como valor e
Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso, p. 131.
articulação de possibilidades: o movimento dos professores
BRASIL, MEC, (1998). Referencial curricular nacional para as esco- indígenas do Amazonas, de Roraima e do Acre e a construção
las indígenas. Brasília: MEC / SEF. de uma política de educação escolar indígena. Cadernos CE-
CANCLINI, Néstor G. (1997). Culturas híbridas. Estratégias para DES, nº 49, Campinas, CEDES, p. 62-75.
entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP. Tradução de
VEIGA-NETO, Alfredo José, (2000). Michel Foucault e os estudos
Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão.
culturais. In: COSTA, Marisa Vorraber, (org.) Estudos culturais
, (2000). Notícias recientes sobre la hibridación. Dis- em educação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 37-69.
ponível em: <www://acd.ufrj.br/pacc/artelatina/nestor.html>
, (2001). Espaços, tempos e disciplinas: as crianças
Acesso em: 14 dez. 2000.
ainda devem ir à escola? In: CANDAU, Vera Maria, (org.) Lin-
COSTA, Marisa Vorraber, (2000). Estudos culturais – para além guagens, espaços e tempos no ensinar e aprender. 2a ed. Rio
das fronteiras disciplinares. In: , (org.). Estudos cultu- de Janeiro: DP&A.
rais em educação. Mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, li- Recebido em fevereiro de 2003
teratura, cinema. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 13-36. Aprovado em março de 2003
102 Maio/Jun/Jul/Ago 2003 Nº 23