O retrato real da sociedade burguesa no século XIX pela percepção do Movimen...
Machado de Assis e a cordialidade brasileira
1. Possibilidade de interdisciplinaridade: Machado de Assis e a
História brasileira
Introdução
Na condição de educadores, estamos cada vez mais percebendo a
necessidade de “religar” distintas áreas do conhecimento. A profunda especialização
específica e necessária pode inviabilizar a percepção das conexões existentes entre as
diferentes ciências, fragmentando o saber e o entendimento da realidade. Como
professor de História, procuro promover o exercício epistemológico de revelar pontos
em comum, canais de comunicação entre áreas do conhecimento nem sempre
explorados por profissionais desse componente curricular. Talvez seja essa uma das
possibilidades de tentarmos exercitar o que estamos denominando de
interdisciplinaridade.
“A exigência interdisciplinar que a educação indica reveste-se sobretudo de
aspectos pruridisciplinares e transdisciplinares que permitirão novas formas de cooperação,
principalmente o caminho de uma policompetência.” (FAZENDA, Ivani, 1998, p.12)
Nesse sentido, o texto que segue está pautado pela exploração da
potencialidade explicativa da realidade brasileira contida na obra de Machado de Assis.
Em ensaio célebre, Sérgio Buarque de Holanda sustentou que a
cordialidade possui grande relevância em nossa formação social. Para o historiador, a
valorização da personificação das relações pessoais em espaço público e a oposição
entre espaços público e privado se revestem de um profundo significado quando
explicam o homem cordial brasileiro. Esse é um produto de nossa herança ibérica,
herança cuja superação era tida pelo autor como nossa possibilidade de modernidade.
Conforme o autor, o entendimento sobre o comportamento do homem cordial possibilita
a compreensão de um processo histórico cujo desenvolvimento encaminhava-se para a
superação de uma situação de atraso. Isso porque o termo cordial, no emprego
linguístico que lhe conferimos, presta-se para um equívoco, pois o entendemos apenas
por sua conotação positiva. Ser cordial, na lógica de funcionamento da sociedade
brasileira, de forma alguma é sinônimo de ser bom. Trata-se de um conceito com duplo
significado.
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2. “Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo
formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente,
sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade,
nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do
privado.” (HOLANDA, 1987, p.107).
Característica muito peculiar do nosso agrarismo enquanto herança sócio-
cultural, a cordialidade nacional representa o predomínio do ethos do ambiente rural
sobre o ethos do ambiente urbano. A compreensão da nossa cordialidade passa, pois,
pela análise do nosso passado colonial, de raízes ibéricas. O universo das “casas-
grandes” tem muito a nos esclarecer sobre esta ética de fundo emotivo que norteia
nossas relações sociais. Retroceder a Machado de Assis nos permite trazer a discussão
para um contexto e perspectiva – a do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas e
Dom Casmurro – explicativos, na medida em que a tônica dos romances trabalhados diz
respeito ao universo familiar criado por um indivíduo muito atento às questões de seu
tempo.
“Quando, pela primeira vez em nossas letras, com Machado de Assis, a
inteligência da forma, bem como as ideias modernas comparecem livres de inadequação e
diminuição provinciana, já não é dentro do anterior espírito de missão. Por exemplo, os
excelentes recursos intelectuais vinculados a Bento Santiago não representam uma contribuição
a mais para a civilização do país, e sim, ousadamente, a cobertura cultural da opressão de classe.
Longe de ser uma solução, o refinamento intelectual da elite passa a ser uma face – com
aspectos diversos, positivos e também negativos – da configuração social que o romance
saudosamente relembra, ou desencantadamente põe a nu.” (SCHWARZ, Roberto. Duas
Meninas, p.13).
Com seu olhar voltado para o mundo auto-suficiente das classes mais
abastadas, Machado revelou as peculiaridades desse ambiente avesso à modernização. A
preservação de valores e de um modo de vida - explicitados em Dom Casmurro e Casa
Velha – revelaram um apego ao nosso agrarismo e às normas sociais decorrentes. O
tratamento verificado entre as personagens machadianas evidencia o traço
comprometedor e retrógrado da cordialidade, que direcionava e pautava os laços em
ambiente doméstico, os quais se desdobravam inapelavelmente para o universo público,
emperrando a democratização da sociedade brasileira.
“Todos nós éramos amigos, e não é preciso dizer que no mau sentido, no sentido
de velho e acabado.” (MACHADO DE ASSIS, 1981, p.147).
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3. Bentinho ou o homem cordial nas ante-salas machadianas
O objetivo dessa análise é salientar que a auto-suficiência do ambiente
familiar do século XIX criava uma lógica de relacionamento que obstaculizava a
necessária racionalidade e impessoalidade do tratamento em nosso país, ou seja, no
limite, impedia a democratização da nossa sociedade. A predominância do
comportamento cordial na sociedade brasileira é um obstáculo e não um dado positivo,
digno de valorização, como até hoje muitos argumentam. Nosso objetivo, ao
analisarmos a cordialidade a partir do seu conteúdo sociológico, é garantir direitos,
promover a democracia, que significa priorizar princípios universalizantes em nossa
vida social, a igualdade no tratamento, a eliminação dos privilégios. Ao contrário, o
tratamento cordial valoriza o aspecto pessoal, individual, abrindo brechas para o
privilégio, a desigualdade; algo tão corriqueiro em nossa vida social.
Circunscritas ao espaço doméstico, as criações literárias de Bento (Dom
Casmurro) e Félix (Casa Velha) revelam incapacidades para a resolução de
enfrentamentos em complexas situações do cotidiano. Afastados do contato com os
“pedagogos” do espaço público, ambos ficam à margem de um saber que lhes seria útil.
Kátia Muricy assinala na obra machadiana a necessidade do aprendizado além do
universo familiar. Segundo a autora, na denominada segunda fase do escritor
fluminense verifica-se uma forte mudança a respeito da sua visão da sociedade
brasileira em transformação.
“Celibatários, libertinos e mundanas não são mais o anormal do santo pai e da
santa mãe de família. São, antes, os pedagogos que ensinam a essência das relações humanas na
nova ordem. Nesse sentido, um personagem como o Conselheiro Aires, celibatário por vocação,
é veículo da crítica das relações humanas na nova ordem.” (MURICY, 1988, p.19).
Bento - que “conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar, tinha
orgias do latim e era virgem de mulheres" (op. cit, 1981, p.22) – custara a aprender a
andar a cavalo, um conhecimento importante para o ambiente em que vivia;
desconhecia a arte da dissimulação e, cotidianamente, compunha análises precipitadas,
com decisões imediatistas. Seu maior defeito era a impossibilidade de controlar seus
3
4. sentimentos. “Eis aqui um que não fará grande carreira no mundo, por menos que as emoções
o dominem.”
Também de fundo emotivo é a relação de Dona Glória (mãe de Bento) com
os pais de Capitu. Não obstante, essa senhora não abre mão da atitude racional e
metódica para assegurar o poder de sua classe social. Quando ajudou o casal vizinho (de
menores posses), Dona Glória não almejou nenhum retorno em nível material. Antes
estava preocupada em prestar um favor ao vizinho Pádua (pai de Capitu). O favor, para
a nossa análise, constitui-se em um aspecto fundamental da lógica das relações na
realidade nacional. De acordo com Roberto Schwarz, na sociedade brasileira, a prática
do favor não possui como objetivo precípuo a obtenção de uma contraprestação
material. É uma forma de “contrato”, através do qual se realiza a afirmação de uma
hierarquia social, a qual possui a virtualidade de se converter em dominação.
A expressão utilizada por Machado para demonstrar o poder de Dona Glória
a Pádua é emblemática. A matriarca de Matacavalos manda seu Pádua “viver”, como
que caricaturizando o poder que de fato teria: o poder de decidir sobre a existência de
um vizinho de classe social inferior que, por decorrência daquela “ordem”, passa a lhe
dever obediência.
A intimação de Dona Glória à manutenção da vida do pai de Capitu
representou um favor duradouro, dada sua relevância. Trata-se da recorrente “dívida”
que alguns segmentos da nossa sociedade imaginam ter com aqueles de maiores
riquezas. Muitos votos são conferidos repetidamente a certos políticos, devido a
“serviços prestados”, ou seja, favores concedidos. Por sua vez, o momento de ajuda
financeira da mãe de Bento sequer é descrito pelo nosso autor, ao contrário do instante
do imperioso “convite à vida”. A ascendência da matriarca sobre a família da futura
nora é decisiva, exigindo da adolescente Capitu um profundo entendimento sobre os
princípios de convivência com uma classe superior e a possibilidade de ascensão social
através do vínculo afetivo racionalmente arquitetado.
“Capitu dirige a campanha do casalzinho com esplêndida clareza mental,
compreensão dos obstáculos, firmeza – qualidades que faltam inteiramente a seu amigo. As
manobras terminam bem, pelo triunfo do amor e pelo casamento, que se sobrepõem às posições
de classe.” (SCHWARZ, 1997, p.14).
Ao contrário da hábil Capitu (segundo a visão de Bentinho, autor-
personagem), Bento é um fracasso nas relações; revela em sua trajetória a dificuldade
4
5. em ultrapassar os limites da lógica de tratamento doméstico. Representante das camadas
proprietárias, Bento não demonstra o entendimento da necessidade de agir conforme as
regras dos espaços em que atua. Dessa indistinção de classe podemos traçar um paralelo
da apropriação do Estado pelas elites dirigentes. Sem elaborar a transição das lógicas de
operacionalidade nos espaços privado e público, Bento é o emblema do rico proprietário
que projeta o mando de suas propriedades sobre o domínio do espaço governamental. A
proposta de Sérgio Buarque de Holanda é fazermos, em vida pública, o rompimento
com a ordem doméstica, pois são espaços distintos que exigem comportamentos e
expectativas diferenciadas.
“Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado
e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e
responsável, ante as leis da cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular,
do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo (...). A ordem familiar, em
sua forma pura, é abolida por uma transcendência.” (HOLANDA, 1987, p.101).
Público e privado: uma indistinção em nossa sociedade
Em estudo da década 1980, o antropólogo Roberto DaMatta, retomando
argumentação de Sérgio Buarque de Holanda, reafirmou a indistinção entre espaço
público e privado na lógica de funcionamento da sociedade brasileira. Entre ambos
existe uma oposição. Muito frequentemente, o âmbito da casa é lembrado na rua, para
que o brasileiro possa obter algum privilégio. (DaMATTA, 1985).
O fato de nos reportarmos à lógica de tratamento do universo familiar em
situação de conflito no espaço público se constitui em um grave impedimento para a
cidadania (muito corriqueiro o dito: “Sabe com quem está falando?”). Ao contrário do
que almeja o homem cordial, ser cidadão implica não em almejar o desfrute do princípio
de superioridade social, até porque isso se configura em privilégio, discriminação do
outro. O princípio da cidadania seria a igualdade, não o privilégio. Entretanto, ser
tratado diferencialmente é uma meta recorrentemente presente em nossa cotidianidade.
Isso porque o objetivo da cordialidade é atingir vantagens pessoais, em detrimento do
tratamento igualitário.
“Na verdade, Sérgio está fazendo uma crítica, e não o endeusamento das
‘virtudes brasileiras’, porque o homem cordial, para ele, é o homem do coração, que se
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6. opõe ao homem da razão. E cordial não quer dizer ‘bom’, quer dizer da ‘emoção’. E a
emoção perturba o estabelecimento das regras gerais, formais democráticas. A leitura do
homem cordial como homem afável é equivocada. Com o conceito, Sérgio Buarque está
mostrando outra coisa, está mostrando que esta ‘cordialidade’, na verdade, é uma
maneira de reter vantagens individuais.” (CARDOSO, 1993, p.28-29).
As trajetórias desses dois romances de Machado de Assis – Casa Velha e
Dom Casmurro – nos apontavam as dificuldades de superação da conduta firmada pelo
universo familiar: a cordialidade. A família era o centro das tramas e responsável pelo
destino das personagens. Ao pé da mãe, Bento cresceu e tomou decisões que iriam
muito negativamente marcar sua vida. Escolheu para constituir família uma moça de
classe baixa, com a qual se criara. Vivia na auto-suficiência de um universo de posses:
no pátio ao lado, a futura esposa; os professores que necessitava vinham à sua casa;
criados submissos à disposição e certo “orientador interessado” aconselhava-o
constantemente (o “homem livre” José Dias).
Quando saía para os espaços distantes da sua casa, contava com a
companhia do valoroso José Dias, o qual fazia às vezes de - na condição de pajem
“instruído” “Era lido, posto que de atropelo.” (op. cit. 1981 p.11) -, conselheiro, pois lhe
ensinava como portar-se em público e como escolher suas companhias. No Passeio
Público, desenvolveram diálogo interessante.
“Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano”. – Perdoe-me –
atalhou ele -, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pádua; não se
lembra?
- É verdade, mas foi tão de passagem...
- Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de
Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande com o
Pádua na rua.
- Mas eu andei algumas vezes...
- Quando era jovem; em criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você está
ficando moço, e ele vai tomando confiança. Dona Glória, afinal, não pode gostar disto.
A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu...
Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar
deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e adulação. Oh! A adulação! (p.36).
Conforme verificamos a partir da leitura do trecho acima,
convenientemente, o agregado aprendera os valores de uma sociedade hierarquizada,
onde a manutenção da diferenciação social é definidora das normas de conduta e a
garantia de sobrevivência de alguns. Bento fora desaconselhado por José Dias quanto à
manutenção do vínculo de convivência com o vizinho pobre. Por extensão, a filha, com
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7. os olhos “presenteados” pelo diabo, não seria de confiança. Na verdade, Capitolina, bem
como toda sua família pobre, é uma ameaça ao seu domínio. Sobre o pai da jovem, o
agregado não poupa comentários.
“- (...) Pádua tem uma tendência para gente reles. Em se cheirando a
homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se
ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados...” (p.36).
A personagem José Dias pertence ao segmento social dos agregados.
Representa um grupo dependente, mas com distinção em relação aos mais pobres:
possui liberdade e vida digna, em troca de favores. Em situação sempre instável, deve
ser racional o tempo todo, sabendo como se portar, o que falar e as ideias que poderá
defender, mesmo que entre em contradição. Nada de princípios bem firmados, nem
utopias “desnecessárias”, o objetivo é ficar sob o manto protetor de uma família rica,
angariando reconhecimento e se diferenciando daqueles que precisavam valer-se do
esforço físico para garantir o sustento.
Fora José Dias que avisara Dona Glória sobre o perigo da proximidade dos
dois adolescentes. Para o agregado, o “Tartaruga” – alcunha que proferia quando citava
o pai de Capitu, para frisar sua pretensa superioridade em relação ao vizinho
obsequioso, numa disputa evidente entre representantes de classes distintas, porém
próximas – bem sabia da inclinação afetiva entre ambos, porém disfarçava com a
intenção de tirar vantagem de uma provável união. Esse é o trecho de uma conversa
datada: o ano era o de 1857.
“- Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia”. Não
me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido pelos cantos com a filha do
“Tartaruga”, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro a senhora terá
muito que lutar para separá-los.
- Não acho. Metidos nos cantos?
- É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase não sai de lá. A
pequena é desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de
maneira que... “Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe
que todos têm a alma cândida...” (p.8).
Encerra uma duplicidade a preocupação de José Dias. Com o ingresso do
futuro “chefe da família” no seminário, com o objetivo de tornar-se padre, o agregado
melhor asseguraria sua permanência na casa de Dona Glória. Por outro lado, visava
7
8. impedir uma disputa futura, que tivesse origem na junção da família de Capitu à família
de Bento, após o enlace matrimonial à vista.
A possibilidade de interesse por parte de Pádua não se concretiza, porque o
pai de Capitu morre poucos anos após o casamento da filha, além do que não se revelara
o interesseiro insinuado pelo agregado. Não obstante, sua filha – sempre segundo a ótica
do autor-personagem Bento – mostra sua diferença em relação ao pai. Para mudar de
classe, Capitu fora ardilosa no trato. Não poupara carinhos àquela que chamara de
“carola, beata, papa-missas” (p.27). Em uma sociedade em que a divisão entre as
classes era sempre lembrada pelo intermediário José Dias, somente o amor de Bentinho
talvez não assegurasse a elevação da condição social de Capitu. A aceitação da menina
na casa de Dona Glória dependeria também da habilidade afetiva da moça de
Matacavalos no trato para com sua provável futura sogra. Do contrário, talvez Capitu
acabasse nos mesmos termos de Lalau – a personagem de Casa Velha, sua antípoda em
termos de pretensões sócio-econômicas -, ou seja, guiando-se sobremaneira pelo
aspecto da afetividade e desconsiderando a racional formalidade social, tão necessária
para o “sucesso em sociedade”. Aquela personagem, após relacionar-se com o futuro
rico herdeiro Félix, por despeito, casa-se com um segeiro e mantém-se no mesmo nível
sócio-econômico.
Manuseando habilmente o tratamento necessário para transpor a barreira
social, Capitu centra suas atenções na dona da casa. Lança mão da racionalidade no
trato doméstico, a fim de alcançar vantagens para sua pessoa. Dedica muito do seu
tempo à mãe de Bento, mesmo que isso o deixe aflito. Na visita estratégica que fizera à
casa do rapaz, quando da protonataria do padre Cabral, Capitu utilizara sempre o título
recebido com júbilo pelo professor de Bento, fato este que impacientara José Dias, o
qual necessita muito discursar para ser notado na sala entre os convivas.
Para angústia do pretendente Bentinho, do início ao final da visita, a
proximidade e atenção de Capitu são para com a Dona Glória. Não atende aos
apelativos olhares do amado. Esse, em indisfarçável e inábil atitude, demonstra o tempo
todo o quanto desconhece os hábitos “de sala” que iriam marcar mais fortemente as
atitudes da burguesia em ascensão. Segundo Kátia Muricy,
“A corte pedia ‘a mulher de salão’, ‘a mulher da rua’. Os grandes negócios do
marido a requeriam, o pequeno comércio da rua a chamava. A mulher de posses devia expor-se
ao mundo; nos salões e residências, nos teatros, nas recepções oficiais, nos restaurantes que
começavam a surgir.” (MURICY, op. cit. P.57).
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9. Capitu sim estava de acordo com a postura pública das novas exigências
sociais. Da mesma forma que José Dias, ela é toda cálculo. Apesar da atenção para com
Dona Glória, não descuida da conversa principal da sala; suas roupas e sapatos são
aqueles utilizados em ocasiões públicas; além do que, dissimula totalmente sua atenção
ao pretendente. Bento é o fracasso, no que diz respeito àquela necessidade de tratamento
em público. À mercê dos olhares da amada, está o tempo todo a denunciar seu interesse
pela vizinha pobre. Procede da mesma forma titubeante e impensada quando estava fora
da sua propriedade. Na casa onde acompanharam um séquito religioso que visitava uma
enferma tísica, ele lembra de sua situação íntima e ri; nas casas de Capitu e de Sancha
denuncia o namoro; e, mais terrivelmente, no teatro onde encenam Otelo interpreta
erroneamente a peça. Este ato, contudo, é decisivo para sua trajetória. Julga conveniente
que sua amada seja mais passível de morte que Desdêmona, o que direciona o fim
trágico do seu relacionamento com a mãe do seu filho.
O fechamento do romance demonstra a incapacidade irrestrita da
compreensão de Bento no que diz respeito aos códigos do mundo fora de casa, ao
mesmo tempo em que nos coloca diante da decisão exacerbada de um marido
enciumado. O caráter social do ciúme de Bento é que mais nos interessa. Oriundo de
uma classe abastada, conduz sua vida auto-suficiente ao lado de pessoas que lhe devem
obediência. Ao contrário dessas pessoas a ele subordinadas, Bento possui uma
existência facilitada. Não necessita esforçar-se muito para agradar aqueles que o
circundam e, diferentemente do que faz Capitu e José Dias, seu aprendizado para a
sociabilidade resulta precário, comparado ao daqueles dois personagens. Apesar de
situar-se num extrato social superior ao de Capitu, diante da mesma é um indivíduo
inapto. Na relação imediata com a amada, o ciúme de Bento representa uma inaceitável
– visto pela ótica da classe à qual pertence o autor-personagem – oposição de classe.
Conforme assinala Roberto Schwarz, comparando ao texto muito distante no tempo e
espaço,
“Em lugar do novo Otelo, que por ciúme destrói e difama a amada, surge
um moço rico, de família decadente, filho de mamãe, para o qual energia e liberdade de
opinião de uma mocinha mais moderna, além de filha de um vizinho pobre, provam ser
intoleráveis. Nesse sentido, os ciúmes condensam uma problemática social ampla,
historicamente específica, e funcionam como convulsões da sociedade patriarcal em
crise.” (SCHWARZ, 1997, p.11).
9
10. Conforme estamos salientando, em suas trajetórias ficcionais (que muito
nos dizem sobre a problemática social brasileira), Bento evidencia a dificuldade muito
presente no homem cordial. Ao contrário das atitudes tomadas por Dona Glória e pelos
menos abastados Capitu e José Dias, Bento (assim como Félix, em Casa Velha) se
revela um inepto personagem da classe dirigente, cujo universo de auto-suficiência
escamoteia e propicia dificuldades ao homem cordial. Conforme argumento de Sérgio
Buarque de Holanda, a cordialidade reflete a adesão a formas de convívio que possuem
origem na família. Calcado no sentimento de priorizar vontades particulares, tal
procedimento é um poderoso obstáculo a uma sociedade em vias de modernização. Em
seu isolamento, Bento reproduz a lógica de conveniência do mundo doméstico.
Esconde sua falta de determinação, por meio de um sentimento de filho obediente. Sua
postura oscila em situações com os subalternos e os dominantes. Capitolina precisa
lembrar ao pretendente rico que o mesmo deve dirigir-se com autoridade diante do
agregado José Dias. Pragmática, faz com que o amado repita os termos acordados, para
ver se aprendera o que a mocinha pobre estava lhe ensinando.
“Prometi falar a José Dias nos termos propostos. Capitu repetiu-os
acentuando alguns, como principais; e inquiria-me depois sobre eles, a ver se entendera
bem, se não trocara uns por outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas assim
como quem pede um copo de água a pessoa que tem obrigação de o trazer.”
(MACHADO DE ASSIS, op. cit. 1981 p.30).
Com seus laços sociais mal-sustentados pelo não entendimento da norma,
Bento faz parte da longa lista de personagens machadianos que perfazem suas trajetórias
de fracasso quando dependem da convivência fora do domínio doméstico. Rubião –
personagem de Quincas Borba – é o exemplo mais significativo do movimento guiado
pela emoção que resulta em tragédia. A racionalidade capitalista do esposo de Sofia,
bem como a do político Camacho, explora os sentimentos íntimos e os bolsos de
Rubião, que empobrece e conhece a loucura. Representante de um mundo arcaico em
vias de superação, Rubião deve ceder espaço para outra lógica: a da mercantilização das
relações. Ficam evidentes as consequências da nossa formação (conforme Sérgio
10
11. Buarque), ao qual se norteia pela ética de fundo emotivo, produzindo destruição,
exploração e indistinção entre público e privado.
A guisa de conclusão
Após essa explanação, desnecessário se torna repetir a ideia de que
literatura e história encontram-se imbricadas. De maneira direta ou tangencialmente, o
literato que está descrevendo, problematizando ou fantasiando uma situação qualquer
que lhe sirva de conteúdo temático sempre estará tendo como referência a realidade em
que vive. Perceber as conexões entre realidade e ficção, assim como os movimentos
explicativos entre ambas é tarefa importante para nós educadores, mesmo que sejamos
pouco inclinados a conferir relevância à imaginação literária. Não obstante, trata-se de
outro texto, cuja intenção precípua não é explicar um processo histórico, antes sim criar
um enredo com algum sentido para os leitores. Finalizando em aberto: o que nós
historiadores teríamos em comum com esses criadores de estórias e o que as mesmas
podem contribuir para promovermos aprendizagens significativas nas salas de aula em
que atuamos? Pensemos.
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