Este documento é um resumo de três frases do artigo "O relato do Éden segundo a hermenêutica de Fílon de Alexandria: o tema do prazer na alegoria filoniana e a tradição filosófica":
1) Fílon de Alexandria interpreta alegoricamente o relato bíblico do Éden, vendo em Adão a razão, em Eva a percepção sensorial e na serpente o prazer, que une esses dois elementos.
2) Para Fílon, a narrativa não descreve apenas o passado distante, mas a
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O relato do éden segundo a hermenêutica de fílon de alexandria
1.
2. SOTER (Org.)
ANAIS DO CONGRESSO DA SOTER
27º Congresso Internacional da Soter
Espiritualidades e Dinâmicas Sociais: Memória - Prospectivas
PUC Minas, 15 a 18 de julho de 2014
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
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SOTER
ISSN: 2317-0506
Belo Horizonte
3. ANAIS DO CONGRESSO DA SOTER
ISSN: 2317-0506
27º Congresso Internacional da Soter / 2014
Tema: Espiritualidades e Dinâmicas Sociais: Memória - Prospectivas
Local: PUC Minas, 15 a 18 de julho de 2014
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
SOTER – Sociedade de Teologia e Ciências da Religião
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Congresso Internacional Sociedade de Teologia e Ciências da Religião -
C749a Anais do 27º Congresso Internacional da SOTER: espiritualidades e dinâmicas
sociais: memória – prospectivas / Organização SOTER. Belo Horizonte: SOTER,
2014.
Anual
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ISSN: 2317-0506
1. Espiritualidade - Congressos. 2. Cultura - Aspectos sociais. 3. Pluralismo religioso.
I. Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. II. Título.
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O relato do Éden segundo a hermenêutica de Fílon de
Alexandria: o tema do prazer na alegoria filoniana e a
tradição filosófica
Cesar Motta Rios1*
Reseumo: O prazer não configura uma questão explicitamente discutida no relato do
ÉdenoumesmonaBíbliahebraicacomoumtodo.Contudo,FílondeAlexandria,exegeta
judeu do século I d.C., em seu ideal de aperfeiçoamento moral, encontra no prazer um
problema a ser enfrentado com muitos argumentos e exortações. Como além de leitor
dos textos da tradição judaica, Fílon tem uma sólida formação helenística, encontrará
na tradição filosófica grega uma rica reflexão sobre o prazer, tanto hedonista quanto
anti-hedonista. Mas o exegeta não se privará de discutir o assunto a partir da Torah.
Por meio da interpretação alegórica, encontrará ali um ponto de partida adequado
para suas considerações. Nesta comunicação, a partir de uma leitura do percurso
interpretativo realizado por Fílon em trechos pertinentes de De Opificio Mundi e Legum
Allegoriae, exponho o modo como essa dinâmica se dá quando o alexandrino lê o relato
do Éden. Ao fazê-lo, demonstrarei a complexidade do método alegórico filoniano, bem
como aspectos de seu pensamento sobre o prazer.
Palavra-chave: Fílon de Alexandria; hermenêutica; prazer; Éden.
Introdução
O prazer não constitui um problema na Bíblia hebraica. Até mesmo fora do
âmbito do cânone sagrado, não é abundante a polêmica contra o prazer em textos
judaicos antigos. Não é estranho, então, que tenha demorado até que aparecesse
alguma interpretação do relato do Éden que identificasse o prazer (sexual) como
elemento desencadeador dos acontecimentos que resultariam na expulsão de Adão
e Eva. Na tradição judaica, era normal entender que o casal primitivo mantinha
relações sexuais ainda habitando o pomar das delícias (ANDERSON, 1992).
Em contraste, no âmbito da cultura helênica, o prazer foi tratado como
problema de especial relevância desde o período clássico. Em vários diálogos de
Platão, a discussão sobre o prazer faz perceber que se tratava de um debate intenso
e significativo. Tanto é assim, que um diálogo inteiro, o Filebo, é dedicado a se pensar
1 *
Doutor em Literaturas Clássicas e Medievais (UFMG). Pós-doutorando junto ao Programa de Pós-
-Graduação em Filosofia da UFMG. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.
6. Anais do Congresso da SOTER
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o estatuto do prazer como definidor da boa vida. Aristóteles divergirá de Platão,
mas também dedicará várias páginas ao tema, especialmente na Ética a Nicômaco e
na Ética a Eudemo. Também, como é amplamente sabido, embora frequentemente
de modo precário, o prazer representa um elemento importante no pensamento
de Epicuro. Ademais, a escola dos cirenaicos se destacará pela defesa do prazer,
enquanto os estoicos se oporão a ele de modo ferrenho.
É justamente no encontro com o pensamento grego que o prazer passará
a se evidenciar como problema também na tradição judaica. Na Carta de Aristeas,
encontraremos os tradutores da Torah enviados a Alexandria em conversa com o
Ptolomeu fazendo algumas referências ao prazer. Contudo, nessas ocasiões, não
citam o texto que haviam sido encargados de traduzir. Suas respostas revelam que
são verdadeiros leitores de Aristóteles. De modo mais intenso, em 4 Macabeus, um
desconhecido escritor judeu tentará provar que “o raciocínio devoto” (ho eusebès
logismós) é o único elemento que tem o poder de superar as paixões. A argumentação
é construída a partir de um modo helênico, mas a devoção a Deus e a Lei são
introduzidas como elementos fundamentais. Não obstante, o texto da Torah não é
trazido de modo substancial para a argumentação, talvez justamente pela falta de
referências que possibilitem imediatamente a peleja contra o prazer.
ParecequeFílondeAlexandriaéoprimeiroareunircaracterísticasnecessárias
para a inclusão definitiva da Torah no dilema do prazer, e vice-versa, do dilema do
prazer na Torah. Trata-se de um judeu decididamente dedicado à exegese da Torah
em sua versão grega, a LXX. Ao mesmo tempo, é alguém interessado no ascetismo e
no progresso moral da alma, em sintonia com grande parte do pensamento estoico,
embora também influenciado por Platão, possivelmente pela escola peripatética, e
emdecididaoposiçãoaosdefensoresdohedonismo.Eseaquestãodoprazernãoestá
explícita no texto canônico, não é preciso deixá-lo fora da reflexão. Basta perceber
(ou gerar a percepção de) que está implícita, ou melhor, inserida no subterrâneo do
texto, como subsentido (hypónoia), precisando apenas ser procurado por meio do
método interpretativo apropriado, a interpretação alegórica (allegoría).
Qualquer pessoa interessada na história da recepção e hermenêutica da Bíblia
saberá que Fílon de Alexandria é conhecido pela utilização frequente do método
alegórico na interpretação da LXX. Certamente, o alexandrino não inventou esse
método de leitura, mas o adaptou a seu objeto de estudo, e o aplicou de modo tão
amplo que se poderia dizer que se a alegoria fosse suprimida de sua obra, restaria
somente uma pequena parte dela, ainda que também significativa.
O método alegórico viabiliza a identificação do prazer em diversos textos da
Torah, nos quais não se lê nenhum termo correspondente ou reflexão pertinente.
Essa dinâmica do método pode sugerir que se trata de uma leitura completamente
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desconectada do texto, e sustentada somente por imagens evocadas aleatoriamente.
Nas páginas que seguem, me proponho a demonstrar o oposto. Simultaneamente,
então, exporei o modo como Fílon trata o tema do prazer a partir de sua leitura
do relato do Éden, e farei perceber características fundamentais de seu método
de leitura, o qual, também simultaneamente, favorece o desenvolvimento de uma
reflexão que interessa ao exegeta e o ajuda a defender o valor do texto canônico,
livrando-o do rótulo de mito, mero mito.2
1. Adão, Eva, a serpente e seus respectivos significados profundos
Fílon se refere ao relato do Éden por diversas vezes, em diferentes tratados.
Em cada uma dessas vezes, ele é coerente na indicação dos significados alegóricos
atribuídos a cada um dos personagens envolvidos. Neste estudo, privilegiarei
dois tratados: De Opificio Mundi e Legum Allegoriae, no que diz respeito à leitura
dos acontecimentos entre Adão, Eva e a serpente. Embora haja, como se verá,
alguma variação no tratamento dos elementos da narrativa, não se verifica
uma incompatibilidade entre os tratados, como se o alegorista fosse um leitor
absolutamente descompromissado, que a cada ocasião inventa um sentido que lhe
convenha para o texto que estuda.
Adãoé,pois,consistentementeentendidocomosímbolodamente(noûs)eEva
da percepção sensorial (aísthesis). Então, o casal primitivo em conjunto representa
elementos constitutivos de todos os seres humanos. O texto canônico não é mais
(somente) sobre um passado longínquo, mas diz respeito à existência de cada ser
humano existente, no tempo do exegeta e seu público, inclusive. Normalmente, o
ser humano mobiliza mente e percepção sensorial para apreender o que tem a seu
redor. Por isso, se um mente e percepção sensorial não se encontrarem, a apreensão
do mundo exterior será impossível.3
Mas os dois não se encontram por si mesmos.
Um terceiro elemento de ligação surge como forma de unir essas duas partes. Tal
terceiro elemento, que existe por necessidade, é o prazer, simbolizado, na narrativa,
pela serpente.
Não há propriamente uma redenção da serpente/prazer nessa leitura, até
porque a expulsão é apresentada por Fílon como resultado de uma escolha pela
maldadeemlugardapiedade,easerpente/prazertemsuapartenesseacontecimento
2 Em Opif. 157, ao introduzir a leitura desse episódio em que um animal fala e os primeiros humanos são
criados, Fílon é categórico: “E tais coisas não são formulações de um mito, as quais agradam à raça dos poetas e
sofistas, mas são exemplos de figuras que exortam à alegoria, conforme explicações por meio de subentendidos.”
(Minha tradução, assim como as demais da obra de Fílon.)
3 Cabe observar que em Fílon há certa ambivalência na apreciação do mundo físico. Em alguns momen-
tos, ele acusa a existência material como nefasta, mas em outros tantos elogia a criação de Deus como algo bom.
(Cf. ANDERSON, 2011).
8. Anais do Congresso da SOTER
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(Opif. 155-156). Ainda assim, a sua localização como algo estritamente necessário
para a existência humana contrasta seriamente com as duras repreensões de Fílon
em diversos outros trechos de sua obra. Não obstante, um caminho sensato é
valorizar o fato de que o alexandrino apresenta o papel do prazer como necessário
e não bom. Mas resta uma questão menos óbvia: Por que ler a serpente justamente
como o prazer? Ou, noutros termos, por que o prazer faz a ligação entre mente e
percepção sensorial?
Francesca Calabi sugere de passagem, sem demonstrar seus motivos, que essa
opção de Fílon faz lembrar de dois trechos do Banquete de Platão: 191d e 206b-207a.
O segundo não me parece especialmente relevante. Já o primeiro é instigante
e, se nos convencermos de que o alexandrino o tem em mente, enfrentaremos
um problema secundário importante. Quem tem a palavra em Banquete 191d é
Aristófanes, que conta um mito sobre a divisão do ser humano em dois e a posterior
união apaziguadora das metades por meio do sexo. Esse relato poderia motivar Fílon
de alguma forma, uma vez que associar sexo e prazer não é um passo difícil, pois
Fílon entende que o prazer oriundo da união entre homem e mulher é o maior de
todos, algo que, ele afirma, inclusive, no trecho em estudo (Leg. II 74), de modo que
pode ser usado para fazer referência a todo prazer em geral (Spec. I 9). Favorece a
aproximação o fato de que tanto o relato de Aristófanes quando o do Gênesis tratam
a origem do ser humano. Se tivéssemos testemunho de alguma interpretação desse
mito em termos semelhantes aos do alexandrino a respeito do prazer, seria certa a
apropriação.4
No entanto, nada nos chegou nesse sentido. Resta-nos supor que Fílon
faz uma aproximação do relato do Gênesis a um mito grego em sua forma literal, o
que ele se recusa a fazer e a aceitar o mais das vezes.
Parece-me possível também que Fílon apresente o prazer como viabilizador
do êxito da apreensão do mundo sensível a partir de uma reflexão teórica própria,
ainda que apoiada obviamente em desenvolvimentos anteriores. Nesse sentido, seria
plausível pensar em alguma relevância do desenvolvido por Aristóteles no livro X
da Ética a Nicômaco (1174b). Como se trata de uma conjectura que dependeria de
uma argumentação minimamente prolongada e ainda em desenvolvimento, prefiro
apenas registrar a hipótese, já que sua exposição minuciosa, além de não ser possível
nesta ocasião, não afetaria o decorrer da presente reflexão.
De fato, o fato é que o alexandrino não explicita ou discute o motivo pelo
qual o prazer teria esse papel de elemento de ligação. Esse silêncio pode sugerir
justamente que ele se apoia em alguma noção compartilhada por seus leitores. Não
me parece que esse dado compartilhado se basearia em uma intrincada apropriação
4 Inclusive porque Fílon faz apropriação de significado alegórico encontrado na Odisseia por intérpretes
gregos a relato do Gênesis (cf. Congr. 9ss).
9. Anais do Congresso da SOTER
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de elementos do mito grego contado por Aristófanes no Banquete.5
Seria pedir muito
do leitor. Menos difícil, mas ainda discutível, seria considerar plausível que uma
reflexão teórica de origem peripatética a respeito do prazer fosse bem compreendida
em Alexandria. Mas resta a possibilidade, também, de que Fílon não estivesse
realizando uma incursão teórica sobre o papel do prazer, mas somente aproveitando
alguma reflexão desenvolvida no período entre Aristóteles e ele mesmo, com
possível participação (indireta, talvez) do pensamento estoico. O estado fragmentar
do que nos restou da filosofia helenística, estoica sobretudo, nos permite suspeitar
da existência dessa lacuna.
Mas se Fílon não explica o motivo desse papel do prazer, ele dá, por outro lado,
as razões pelas quais deveríamos entender como plausível a relação entre símbolo e
significado profundo, sobretudo no caso da serpente/prazer.
2. Analogia visual entre a serpente e o (amante do) prazer
Em Opif. 157, Fílon afirma que alguém diria ser a serpente o símbolo do prazer
seguindo uma conjectura razoável (eikóti stokhasmôi). Esse detalhe na apresentação
da leitura como dependente de uma conjectura indica a reconhecida inexatidão
do método. Os significados profundos são variáveis e devem ser apresentados e
defendidos pelo exegeta, como se seu leitor fosse julgar o acerto da relação alegórica
proposta.
No presente caso, a defesa da leitura é feita inicialmente pela apresentação
paralela entre características da serpente e do amante do prazer. Resumidamente
as aproximações são as seguintes: A serpente se arrasta junto ao chão sobre o
estômago, e, semelhantemente, o amante do prazer mal pode erguer a cabeça, por
andar pesado, como que puxado para baixo; A serpente se alimenta do que está
no chão, e o amante do prazer não usufrui do alimento celestial, mas se entrega
desmedidamente à comilança e ao vinho, que estimula também o apetite sexual; A
serpente tem veneno nos dentes, e os dentes do amante do prazer são mortais na
medida em que são servos de um apetite insaciável, cortando e destrinchando mais
comida incessantemente.
Como se vê, a evidência em favor da leitura é uma analogia entre imagens.
Facilita essa demonstração a troca do prazer pela figura do amante do prazer, uma
vez que o comportamento do ser humano descrito é mais facilmente traduzido
em imagens aproveitáveis para a comparação. Em Leg. II, Fílon não recorre a essa
estratégia, mas, estabelecendo a analogia a partir do prazer mesmo, se restringe a
dizer que o deslocamento ziguezagueante e tortuoso da serpente se assemelha ao
5 A não ser que houvesse uma interpretação desse mito em termos semelhantes, como sugeria antes.
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prazer, que se enrola por cada uma das partes irracionais da alma, os sentidos (Leg. II
74-75); assim, o andar variado da serpente se aproxima da atuação variada do prazer
(Leg. II 76).
Outra característica específica da serpente do Gênesis aproveitada por Fílon
é o fato de que ela emitia voz humana. A explicação está no fato de que o prazer
tem diversos defensores, que discursam em seu favor (Opif. 160). Em seguida, o
exegeta apresenta alguns dos argumentos levantados por tais defensores do prazer,
começando pela afirmação de que, como todos os seres nascem da conjugação carnal
com prazer entre macho e fêmea, ainda recém-nascidos sentem uma afinidade
natural com o prazer, detestando seu oposto, a dor (Opif. 161). Especificamente, essa
defesa do prazer é identificável como oriunda de Epicuro (RUNIA, 2001, 375). Fílon
não tem interesse em explicar o pensamento do filósofo, que é muito mais complexo
e menos tosca e radicalmente hedonista do que sua representação pelo próprio Fílon
e a maioria dos pensadores cristãos posteriores (cf. RAMELLI, 2014). Essa crítica
aparentemente descuidada pode se explicar, a meu ver, por duas razões diferentes e
alternativas: 1) É possível que Fílon conhecesse o pensamento de Epicuro de modo
mais completo, mas preferisse não dar-lhe a oportunidade de parecer mais razoável
por considerar vital desprezar todo seu pensamento em conjunto por causa de sua
impiedade, que é acusada nominalmente Post. 2. É possível que, nesse passo, Fílon
não estivesse pensando em Epicuro especificamente, quer soubesse ou não que o
argumento era dele originalmente, mas que estivesse se voltando contra pessoas que
se valiam do argumento epicurista junto de outros.
3. Evidência a partir da oposição ao prazer por recorrência lexical complexa
Em seguida, Fílon recorre a outro texto da Torah como evidência da existência
dessa peleja em prol do prazer e necessária oposição a ela. O texto evocado é
legislativo e não guarda muita semelhança imagética com a narrativa do Gênesis. O
quepossibilitaarelaçãoentreessasdiferentespartesdoLivroSagradoéarecorrência
da raiz de óphis no termo ophiomákhes em Lv 11:22, que traduz o termo hebraico
khagav, e que seria um tipo de gafanhoto.
Esse animal é indicado pela Lei como permitido para consumo. Fílon
reconhece nessa autorização um louvor do ophiomákhes (Opif. 163), que lhe seria
tributado pelo fato de ele simbolizar o autocontrole (enkráteia), uma vez que se
opõe à incontinência, o que lhe é sugerido pelo significado etimológico do nome,
composto por óphis (serpente) e mákhe (batalha). Esse movimento hermenêutico
é interessante porque faz perceber que o alegorista não se envereda somente pelas
imagens sugeridas pela narrativa, mas atenta também aos detalhes textuais. É por
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isso que chega ao ophiomákhes, por atentar para uma recorrência lexical complexa
(de uma raiz no interior de um termo, e não de um mero termo) no texto da LXX. Ora,
isso revela também que é o texto grego da LXX que possibilita a associação, uma vez
que o caminho percorrido seria impossível na leitura do texto hebraico, que é, o mais
das vezes, ignorado por nosso exegeta.
Do detalhe lexical, contudo, Fílon volta a sugerir algo no âmbito imagético,
ao lembrar que o tal animal salta da terra ao ar (Opif. 163), diferente da serpente
que está presa ao chão. De modo diferente, mas complementar, em Leg. II 105 a
imagem alimentar ou nutricional, obtida da leitura do texto legislativo de Levítico, é
aplicada à leitura alegórica da serpente por meio de uma oposição: se o ophiomákhes
é permitido como alimento é porque o autocontrole é nutritivo, enquanto seu oposto
não alimenta e é prejudicial. O ophiomákhes não é um bom oposto da serpente/
prazer somente por seu nome, mas por suas características.
4. Recorrência e ambivalência da imagem / expansão da reflexão
Em Leg. II, antes de mencionar o ophiomákhes e concluir o tratado com uma
exortação ao combate contra o prazer, a qual comentarei adiante, Fílon menciona
outros trechos da Torah em que aparecem serpentes e os interpreta tendo em vista
o tema do prazer. Não obstante, a serpente não será sempre interpretada como o
prazer. Ora, essa polissemia me parece possibilitada justamente pela primeira cena
evocada pelo intérprete nessa série de alegorizações: o episódio das serpentes que
Deus manda para atacarem os hebreus murmuradores no deserto (Nm 21:6). Na
própria narrativa, encontram-se dois tipos de serpentes com valores inversos. As
serpentes que mordem provocam a morte. A serpente de bronze que Deus manda
Moisés erguer traz a cura. Essa oposição é aproveitada da seguinte forma: a serpente
que morde representa o prazer, é a própria serpente de Eva, enquanto a outra, a de
que Moisés ergue, é a moderação (sophrosýne): “Pois caso a mente mordida pelo
prazer, pela serpente de Eva, seja capaz de contemplar espiritualmente a beleza da
moderação, a serpente de Moisés, e, por meio dela, o próprio Deus, viverá” (Leg. II 81).
Não é, pois, o alegorista que descuidadamente decide variar os significados conforme
sua necessidade. Ele é levado pelo próprio texto à constatação da polissemia da
serpente.6
A interpretação traz, então, a sophrosýne para o combate contra o prazer,
juntamente com a enkráteia, que em Opif. é representada pelo ophiomákhes. Não é
6 Outras imagens muito recorrentes na Torah também serão apontadas como polissêmicas e tal fato
semântico será cuidadosa e engenhosamente assinalado pelo exegeta. Por exemplo, o Sol tem significados dife-
rentes, mas semelhantes (Somn. I 77ss) e o cacho de uva tem, como a serpente de que agora trato, significados não
só diferentes, mas opostos (Somn. II 169).
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coincidente o fato de que na tradição grega sophrosýne e enkráteia são igualmente
assinalados como meios para o controle ou supressão das paixões/afecções (páthe)
e do prazer. Mas Fílon não deixa de sugerir que sua proposta vai além, ao convidar
à contemplação da própria divindade por meio da contemplação da beleza da
moderação. Esse passo além é muito relevante, e a ele voltarei adiante. Neste ponto,
contudo, para facilitar minimamente a visualização da complexa interpretação
filoniana, apresento a série de alegorizações de modo esquemático, para, em seguida,
assinalar algo de seu conteúdo e de sua construção:
A) A interpretação é introduzida pela citação direta de Gn 3:1, e se desenrola como
13. Anais do Congresso da SOTER
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foi exposto anteriormente.
A > B) A transição se dá pelo fato de Fílon mencionar o efeito danoso do prazer, que
provoca a morte. O trecho do relato do Éden em foco não deixa isso claro, sobretudo
pela apresentação do prazer-serpente como elemento de ligação entre mente e
percepção sensorial. Por isso, recorre ao texto seguinte.
B) A interpretação, que já foi exposta, é importante por viabilizar a partir de um
texto da própria Torah a percepção da ambivalência da serpente.
B1) Fílon menciona Sara já lhe atribuindo o significado alegórico de sabedoria
governante e cita uma fala dela quando do nascimento de Isaque: “O que ouvir
se alegrará comigo”. Logo, narrando já com o sentido alegórico diz que, de fato,
alguém que escutasse que a virtude (Sara) gerou a alegria (Isaque) entoaria um
hino de gratidão. Essa leitura serve como exemplo de uma relação causal (quem
ouve isso naturalmente expressa gratidão) tão lógica quanto a interpretada no caso
da serpente de bronze (quem contempla a moderação e a Deus naturalmente não
morre). De todas as interpretações dessa série, essa talvez seja a que menos se ajusta
imediatamente ao tema. Não obstante, ela se relaciona por oposição, uma vez que
trata da virtude e de seu fruto, enquanto o tema principal é o das paixões, ou de uma
paixão específica, e de seus efeitos danosos. As virtudes e as paixões são elementos
fundamentais do pensamento ético estoico, com o qual Fílon se relaciona de perto.
B > C) A ligação entre as duas interpretações é a imagem do deserto. O motivo da
complementação é a apresentação de uma alternativa à sophrosýne-serpente de
bronze. C)
C>D)AimagemrecorrentenosepisódiosinterpretadosemCeDéocajadodeMoisés.
Mas esse objeto não é mencionado diretamente em C, só sendo possível estabelecer a
relação se o texto interpretado é conhecido pelo leitor. Parece-me possível, contudo,
que esse seja o motivo que leva o exegeta a fazer a transição, embora não o explicite.
A conexão conceitual também existe, como percebe pela proximidade de sentido
entre os significados alegóricos da água da rocha e do cajado.
D) Fílon introduz a explanação observando que o prazer não se afastou nem de
Moisés, o mais amado de Deus (toû theofilestátou Mouséos). O cajado de Moisés é
símbolo da formação (paideía), pois com a formação a alma aquieta sua agitação.
Quando Moisés lança o cajado, ele se transforma em serpente, porque quando a
pessoa se separa da formação (paideía), se torna amante do vício (e por isso o prazer
aparece). Moisés foge, pois o virtuoso foge da paixão e do prazer. Mas Deus manda
que ele agarre a serpente pela cauda, porque Moisés havia alcançado a perfeição
e lhe cabia enfrentar a paixão e o prazer de frente. Diferentemente, os que não
chegaram à perfeição devem sim fugir. Moisés agarra a serpente com a mão (símbolo
da ação da alma) e ela volta a ser bastão, porque o prazer se transforma em formação
14. Anais do Congresso da SOTER
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(paideía) na ação virtuosa do sábio (sophós). Esse gesto de estender a mão para
pegar a serpente ainda é interpretado como o movimento da alma que reconhece
que suas ações e progressos existem conforme Deus e que nada deve ser creditado
a si mesma. Não fica claro o modo como essa ação divina se articula com a formação
(paideía). É possível, contudo, supor que Fílon entende que o fato de Deus ser aquele
que comanda a ação de Moisés diante com relação à serpente e o cajado é suficiente
para se perceber que esse Deus rege sobre tudo isso.
D1) Para corroborar a interpretação do cajado como formação (paideía) com uma
recorrência da imagem, Fílon recolhe uma frase proferida por Jacó em mensagem a
Esaú: “Com meu cajado passei o Jordão”. Não lhe interessa expor o contexto narrativo,
mas apenas mencionar que Jacó é a figura do praticante/exercitador (leitura
frequente e importante em suas interpretações) e que “Jordão” é interpretado como
“descida”. Tratar-se-ia de uma descida ao mundo corruptível, terreno. Fica, pois,
corroborada a interpretação do cajado como formação (paideía), uma vez que é
significativo que o praticante transite no meio desse mundo com a formação. Além
disso, Fílon encerra essa exposição breve sugerindo que o sentido literal seria pobre
(tapeinós), obviamente, como forma de respaldar a busca do sentido alegórico.
D>[B>]E)FílonnãovaideDimediatamenteaE,masfazumabrevereferênciaaB,pela
necessidade de lembrar o leitor do sentido oposto que também pode ser atribuído à
imagem da serpente. Já a ligação entre D e E não se explica por uma imagem, mas por
uma continuidade no ensino exposto por meio da alegoria, especialmente no que diz
respeito ao papel de Deus no enfrentamento do prazer.
E) É inviável expor em detalhes a apresentação dessa interpretação de Fílon, pois
remete a uma sequência de grande de significados concatenados com figuras
relacionadas com Dan. Apresento, pois, somente o cerne da interpretação, que é o
que diretamente se relaciona com a questão do prazer. Após retomar a serpente/
moderação de Moisés, o exegeta passa à nova intepretação com a seguinte frase: “Em
tal serpente (toioûton óphin) Jacó pede que Dan se transforme” (Leg. II 94). Assim,
ele assinala que essa ocorrência da imagem carrega o mesmo significado positivo
de outra específica. Introduz, então, a fala de Jacó, que diz: “E Dan se torne uma
serpente no caminho, de tocaia junto à trilha, mordendo o tornozelo do cavalo, e
cairá o cavaleiro para traz, aguardando a salvação do Senhor” (Gn 49:17). O que se diz
alegoricamente é que apareça na alma uma serpente, isto é, o discurso da moderação
(tòn sophrosýnes lógon), e que ela fique à espreita no caminho muito transitado, isto
é, no caminho da paixão e do vício, por onde vão os pensamentos que se afastam da
virtude. O cavalo bem representa as paixões por ser quadrúpede (Fílon se refere à
divisão estoica das paixões em quatro principais). O discurso da moderação impede
que as paixões levem a mente, representada pelo cavaleiro, aonde quiserem. Ele
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estava se dirigindo a um vício, mas o discurso da moderação intervém e o faz voltar
para traz, por isso diz que cai para traz. Todo aquele que se livra das paixões colhe
o melhor fruto, a apátheia. É na apátheia que os estoicos diziam se localizarem as
virtudes (SVF III, p. 48). Para Fílon há algo mais. Pois esse que aí se encontra é ainda
salvo por Deus (hypò theoû sóidzetai).
E1) Fílon encontra uma imagem de cavalo montado que serve para corroborar a
interpretação proposta por meio de um contraste. Trata-se de Ex 15:1, que narra
a destruição dos egípcios que perseguiam os hebreus quando da travessia do Mar
Morto.Ocavaloeaquelequeomontasãolançadosaomar.Essenãotem,pois,omesmo
fim do que monta o cavalo mordido pela serpente. Em vez de cair e esperar pela
salvação divina, é lançado ao mar, isto é, é anulado junto com o cavalo (as paixões). O
contraste é reforçado pelo fato de que Ex 15:1 se refere ao cavaleiro como anabáten,
“aquele que monta”, e não, como no caso de Gn 49:17, como hippeús, “cavaleiro”.7
A diferença é que o cavaleiro doma o cavalo, controla as paixões, enquanto o que
monta simplesmente é levado aonde vai o cavalo. A diferença lexical conciliada com
o diferente fim dos acontecimentos favorece a interpretação alegórica contrastante.
E > F) A passagem de E a F se faz por um méntoi adversativo. Como E termina com
a impressão de uma possível passividade na espera de uma intervenção divina no
combate contra as paixões, é preciso apresentar uma interpretação final que desfaça
o possível engano e viabilize a exortação final a um enfrentamento ativo.
F) Trata-se da já comentada interpretação do ophiomákhes, animal evocado pela
recorrência da raiz de óphis. O objetivo dessa interpretação é viabilizar a exortação
final, que motiva o leitor a combater o prazer como em uma batalha.8
Ora, a proliferação de textos evocados e interpretados não se realiza por
mero colecionismo ou exibicionismo. Ela serve como meio de especificar melhor o
pensamentoarespeitodotemadesenvolvidonainterpretaçãoinicial,eservetambém
para respaldar essa interpretação inicial pela demonstração da possibilidade de
coerência do sentido proposto com uma série de outros textos da Torah. Ao longo de
todo o percurso interpretativo, percebe-se a presença de elementos do pensamento
7 Essa diferença inexiste nos textos se lidos em hebraico. Ambos os versículos apresentam rokhvo com
o sufixo pronominal obviamente remetendo ao cavalo. Mas para Fílon isso é indiferente, uma vez que ele lê so-
mente a LXX.
8 Pode parecer curioso que o exegeta inicie o percurso localizando o prazer como inevitavelmente pre-
sente na existência humana e o encerre com um convite a luta contra o prazer, depois também de exaltar a
possibilidade de uma ausência dele (apátheia). Para desfazer esse aparente paradoxo, teríamos que considerar
que há para Fílon uma diferença entre o ideal e o viável na existência terrena, ou admitir que ele se enquadra
entre aqueles que, conforme Aristóteles, afirmam que o prazer é absolutamente mau não por convicção de que
tal afirmação seja verdadeira, mas por julgarem que é conveniente para a vida de seus leitores (Ética a Nicômaco
1172a25). Essa dimensão didática da escrita de Fílon precisa ser melhor estudada, mas sem dúvida é extrema-
mente relevante.
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grego, sobretudo no que se refere à oposição ao prazer, como o autocontrole, a
moderação e a formação escolar. No entanto, com a mesma frequência se encontram
referências à atuação de Deus como superior. Por isso encontramos menção à
sabedoria divina, à salvação e ao mérito de Deus na vitória sobre o prazer e outras
paixões. Enquanto o sábio estoico como compreendido por Sêneca, contemporâneo
de Fílon, é privilegiado por não temer nem a deus nem a seres humanos (Epístola
XVII, 6), o sábio na concepção filoniana, embora igualmente vitorioso contra as
paixões, tem como característica fundamental a dependência de Deus.
5. Aplicação do sentido alegórico ao plano diegético
Parte da interpretação alegórica consiste na aplicação ao plano narrativo
do significado alegórico proposto e defendido pelo intérprete. Não são somente os
personagens ou objetos da narrativa que estão em jogo, mas também suas ações
e inter-relações. Se um significado alegórico não se acomodar à ação narrada, lida
em seu sentido mais profundo, isto é, dependente dos significados alegóricos dos
diferentes participantes no enredo, não será possível entendê-lo como plausível.
Antes de introduzir um exemplo que explicita bem esse movimento, lembro
aos significados alegóricos atribuídos a Adão, Eva e serpente: mente, percepção
sensorial e prazer, respectivamente. Pois bem, Fílon encontra um aparente problema
no seguinte diálogo entre Deus e Eva quando a transgressão havia sido revelada:
E disse-lhe [Deus]: Quem te anunciou que estás nu? Não é que
comeste da árvore, desta única árvore de que te ordenei não comer?
EdisseAdão:Amulher,quedestejuntodemim,elamedeudaárvoreeeucomi.
E disse o Senhor Deus à mulher: O que é isso que fizeste?
E disse a mulher: A serpente me enganou e eu comi. (Gn 2:11-13)9
Inicialmente, o exegeta observa um desencontro entre a pergunta de Deus
e a resposta de Eva. Ele pergunta sobre o fato de ela ter dado o fruto a Adão. Ela
responde sobre como veio ela mesma a comer do fruto. Segundo Fílon, esse problema
da narrativa no nível literal se resolve quando se passa ao significado alegórico da
narrativa: Uma vez que tudo que a percepção sensorial se lança sobre algo do mundo
sensível, ou “come” no plano literal, é imediatamente recebido pela mente que a
acompanha. Se a mulher, isto é, a percepção sensorial, responde que o comeu, então,
é porque isso significa também já que o deu ao homem, à mente (Leg. III 51ss). O
alexandrino ainda aproveita a diferença dos verbos utilizados pelo homem-mente
e pela mulher-percepção sensorial. Ele diz que a mulher lhe deu o fruto, porque a
percepção sensorial é direta em comunicar à mente tudo que tem diante de si tal
9 Minha tradução a partir da LXX, texto como o utilizado por Fílon.
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como é. O prazer, por sua vez, é enganoso, e faz confundir e aceitar algo ruim como
se fosse bom (Leg. III 54).
6. Deus e o combate contra o prazer
Essa exposição parece-me suficiente para ilustrar como o pensamento de
Fílon a respeito do prazer está relacionado diretamente com o pensamento grego.
Uma ampliação do recorte aqui estabelecido tornaria ainda mais evidente tal fato (cf.
BOULLUEC, 1998). Não obstante, ao mesmo tempo, Fílon expõe sua reflexão de modo
completamente judaico, como um exegeta incansável, que se rodeia de numerosos
textos da Torah como se isso fosse imprescindível para que seu discurso ganhasse
consistência. Assim fazendo, ele estabelece que o lugar da Torah, enquanto texto e
filosofia perfeita, é oposto ao do discurso da serpente, isto é, do pensamento dos
defensores do prazer. A Torah, sob os olhos de Fílon, se afasta de um certo “Epicuro”,
ou dos cirenaicos e outros, enquanto se aproxima dos estoicos. Restaria pensar
por que ele faz justamente essa opção, uma vez que no texto mesmo da LXX não há
referências ao prazer que o requeira. Pode-se pensar que o alexandrino se alinha
com os estoicos nesse ponto, embora também reproduza também a respeito desse
tema ideias identificáveis com diálogos platônicos, com o objetivo de se inserir no
diálogo de modo amigável com uma escola filosófica respeitável, o que lhe conferiria
certo status. Não obstante, é preciso lembrar que Fílon é em primeiro lugar um
exegeta (BORGEN, 2005), mais que um filósofo, e que ele se utiliza da filosofia como
uma linguagem da razão capaz de comunicar sua exegese, por meio do que se dá
uma mutação qualitativa, que gera noções que não são completamente equivalentes
às do pensamento grego, nem às das Escrituras (NIKPROWETZKY, 1974, p. 326). Se
tamanha relevância tem tal aspecto da escrita de Fílon, parece-me sensato buscar em
seu ofício de exegeta e na lida com o texto sagrado sua motivação para estabelecer
a necessidade de oposição ao prazer. Nesse sentido, não me vejo em condição de
defender cabalmente minha hipótese, mas não deixo de apresentá-la ao menos como
modo de instigar o leitor e de definir um rumo para a reflexão a partir deste texto:
É possível que Fílon identifique no discurso dos hedonistas radicais, que definem
o prazer como o bem absoluto e sua busca como finalidade da vida, como opositor
da piedade judaica na medida em que pode fomentar a inobservância da Lei. Afinal,
se o fim (télos) da vida é o gozo do prazer, se a boa vida é uma vida cheia de prazer,
não seria sábio dedicar-se a uma lei que restringe em muitos aspectos a experiência
do prazer. Fílon não nega que a Lei imponha impedimento ao prazer. Pelo contrário,
ele o afirma. Entendo que se essa é a disposição de Fílon em seu embate contra o
excesso do prazer, ele pode estar simplesmente seguindo uma lida já empreendida
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pelo autor de 4 Macabeus e, de modo diferente e em outro ambiente discursivo,
pelo autor do Salmo 1. Ao menos, isso me sugere a leitura dos dois primeiros versos
conforme o Texto Massorético, uma vez que o texto da tradução grega antiga opta
por traduzir khephets não por hedoné, mas por thélema.
Conclusão
Mesmo que a motivação de Fílon ou do autor de 4 Macabeus não seja a
mesma e exatamente a preservação da observância da Torah, é notável que uma
semelhança permanece entre os dois: ambos se apropriam de um tipo de discurso
ou de noções da filosofia helênica, mas tratam de inserir o Deus de Israel em uma
posição de absoluta importância no enfrentamento contra o prazer e outras paixões.
Parece-me que são os primeiros textos com formulações desse tipo. A meu ver, uma
diferença importante entre os dois reside na insistência de Fílon em refletir e tecer
sua exposição como um exegeta incansável, que não se satisfaz em comunicar o que
pensa se não encontra um texto da Torah no qual possa se apoiar.
O presente estudo demonstrou a intrincada forma como Fílon defende sua
leitura, que encontra o prazer rastejando no Jardim do Éden, por meio de uma
série de outras alegorizações de diferentes textos da Torah. Ficou clara sua negação
de que a Torah se iguale a mitos e também sua crença na unidade do texto. Além
disso, a sagacidade e capacidade de observação e exposição de detalhes do exegeta
alexandrino puderam ser contempladas em diferentes passos.
Essa veneração e valorização do texto sagrado, refletida em uma dedicação
radical, contribui para minha hipótese improvada de que até mesmo a opção do
enfrentamento contra os discursos pró-hedonistas seja oriunda de uma defesa da
observância desse mesmo texto. Inclusive porque, para Fílon, mesmo o alegorista
deve cumprir literalmente toda a Lei (Mig. 89-90).
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