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______ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 68-84. Belo Horizonte, 2009-2010
HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975.
___ o Tbe Earth Is tbe Lord's: The lnner World of the Jew in Eastern Europe.
Woodstock, VT:Jewish Lights, 1995.
___ o O homem àproCtlra de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974a.
___ o O homem não está só. São Paulo: Paulinas, 1974b.
___ o A Passionfor Trutb. Woodstock, VT: Jewish Lights, 1973.
___ o Tbe Propbets. Nova York: Harper Perennial Modern Classics, 2001.
(perennial Classics).
___ o O Schabat. São Paulo: Perspectiva, 2000. (Elos, 49).
___ o O último dosprofetas. São Paulo: Manole, 2002.
LEONE, Alexandre Goes. A imagem divina e opó da terra: humanismo sagrado e
crítica da modernidade em A. J. Heschel. São Paulo: Humanitas, 2002.
___ o A oração como experiência rnistica em Abraham J. Heschel. Revista de
Estudos da Religião, São Paulo, n. 4, p. 42-53, 2003.
LOWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São
Paulo: Perspectiva; Edusp, 1990. p. 131-188. (Debates, 234).
MATZLIAH, Melamed. Sidur Teft//at Matzliah. Miarni Beach: Cuban Sephardic
Hebrew Congregation, 1966.
MEYER, Marshall T. ln Memorian. 10: HESCHEL, Abraham Joshua. O últifl'1o
dosprofetas. São Paulo: Manole, 2002.
84
4 Dor de letra: relatos
de sofrimento em Fílon
de Alexandria e Primo Levi
Cesar Motta Rios
Neste ensaio,pretendo observara maneira comoFilon eLevi lidam com o ato de narrar
o sofrimento imposto aosjudeus de seu tempo. Não se trata de uma comparação entre
dois eventos históricos (aperseguição aosjudeus alexandrinos em meados do século 1 e
a Shoá, no século20), mas entre as maneiras de se colocarcomo narrador dessesfatos.
Ambos optam pela palavra como meio de sua expressão, mas também reconhecemas
limitações desse "órgão" e, em algum momento, recorrem a uma forma específicadele
(apoesia, palavra-arte) e ao corpo (o corpo narrado) para precisar o que contam. Esse
aspecto deve ser explorado com algum cuidado nas páginas que seguem,juntamente
com uma indagação inicial' em que medida os relatos de Filon podem ser considerados
"testemunhos literários"juntamente com os de Primo Levi?
{Fílon deAlexandria; Primo Levi; testemunhos literários}
Introdução
Há um perigo constante em reflexões como a que proponho: a va-
lorização exagerada das semelhanças. A aproximação entre os relatos de
Fílon e Primo Levi poderia levar à conclusão de que o que teve lugar na
Alexandria do século 1 foi uma prévia do que viria a acontecer na Euro-
pa do século 20. Seduzido pela semelhança, alguém concluiria mais do
que o indicado pelos dados. Não é esse o caminho que pretendo trilhar.
Os eventos históricos, com suas proximidades e distanciamentos, têm um
papel secundário nesta reflexão. O conteúdo do enunciado só será interes-
sante na medida em que revelar algo sobre a maneira da enunciação.
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_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010
Como Fílon e Levi se colocam como narradores? Por que e para
que narram o que narram? São ambos "testemunhas"? Como se relacio-
nam com a mediação da linguagem e o que fazem para lidar com suas
limitações? Essas são as perguntas que nortearão o pensamento para este
escrito, à medida que palavras dos próprios autores serão evocadas para
ele. De Primo Levi, abordo sobretudo o livro É isto um homem? Para o
caso de Fílon, considerarei Contra Flaco, que narra os eventos da perse-
guição sofrida pelos judeus alexandrinos em 38 E.C, quando Aula Avilio
Placa ocupava o cargo de "prefeito". Ademais, observarei Embaixada a
Calígula, que, poucos anos mais tarde, recupera eventos de Contra Flaco,
enquanto conta sobre uma embaixada enviada pelos judeus ao impera-
dor romano Caio Caligula com o intuito de solicitar o direito à cidadania
alexandrina. Fílon era um dos representantes dos judeus. Os gregos da
cidade também haviam enviado uma embaixada com objetivo contrá-
rio: impedir a aquisição de direitos por parte dos conterrâneos judeus.
Durante a embaixada, é revelado o intento de Caligula de colocar uma
imagem sua dentro do Templo em Jerusalém. Embora ambos os trata-
dos tenham forte teor político, cada qual revela uma tentativa diferente
de lidar com a linguagem e com o lugar do narrador, o que deverá ser
explicitado ao longo deste ensaio.
Lugares da testemunha
Uma dúvida que pretendo resolver ao longo desta reflexão é justa-
mente a possibilidade de se classificar os referidos escritos filônicos como
"testemunhos literários". Um caminho viável para aproximar-me de uma
conclusão parece ser a comparação da maneira como Fílon ocupa a fun-
ção de narrado r dos eventos que o cercam com a maneira de alguém hoje
considerado (quase unanimemente) uma testemunha. Giorgio Agamben
afirma de modo determinado: "Um tipo perfeito de testemunha é Primo
Levi" (AGAMBEN, 2008, p. 26).
O filósofo procura nos termos latinos utilizados para referir-se à
testemunha algum esclarecimento sobre essa condição. Testis é aquele que
se coloca como terceiro em um litígio entre duas partes. Já superstes é o
sobrevivente, aquele que "atravessou até o final um evento e pode, por-
tanto, dar testemunho disso" (AGAMBEN, 2008, p. 27). De inicio, fica
86
RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...----------------------------
claro que Levi não é um testis. Ele não pode colocar-se como terceiro,
porque está incluído no evento de maneira radical. Por isso também, ele
não pode colaborar de modo neutro para um julgamento. Em princípio, ele
seria então um superstes, afinal, esteve no Lager e saiu vivo, tatuado para
contar. Adiante, porém, ao deparar-se com a figura do "muçulmano",
"a testemunha integral" que, paradoxalmente, não tem condição de relatar
o que viveu depois de "tocar afundo", Agamben parece reconsiderar a
condição de Levi. Ele não experimentou o Lager em sua completude, até
o limite de sua atrocidade. Outro termo latino é evocado pelo filósofo:
auctor. Este é aquele que concede (e tem autoridade para tanto) autori-
zação àquele que dela carece. Assim, o auctor supre uma incapacidade da
outra parte.
E assim como o ato do auctor completa o do incapaz, dá força de
prova ao que, em si, falta, e vida ao que por si só não poderia viver,
pode-se afirmar, ao contrário, que é o ato imperfeito ou a incapa-
cidade que o precedem e que ele vem a integrar que dá sentido ao
ato ou à palavra do aflclor-testemunha. Um ato de autor que tivesse a
pretensão de valer por si é um sem-sentido, assim como o testemu-
nho do sobrevivente é verdadeiro e tem razão de ser unicamente se
vier a integrar o de quem não pode dar testemunho (AGA1vfBEN,
2008, p. 151).
Há, pois, duas partes. Há, também, uma relação de comunhão entre
elas. Ou seja, o testemunho perde sua aura de unicidade e individuali-
dade (da experiência) e torna-se comunitário. A relação é de comum in-
terdependência. O que se cala (o "muçulmano", no caso da Shoa') existe
(isto é, se sustenta) no mundo depois de si a partir do testemunho do
sobrevivente. Este só é testemunha na medida em que é cocriador, tra-
balhando com o preexistente, o silêncio do outro (que lhe dá a possibi-
lidade da voz).
Assim, parece que Agamben encontra o lugar de Primo Levi e o
caracteriza minimamente a partir dos termos latinos. Inquieto-me: qual
desses três termos se refere melhor a Fílon? Apresento a seguir pequenos
trechos de Contra Flaco para buscar alguma compreensão do teor do texto.
Vejamos um primeiro:
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_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010
Pois, poucos dias depois, ele [Flaco] estabelece um edito, por meio do
qual nos nomeava estrangeiros e imigrantes, sem ter-nos concedido a
palavra, mas sim sentenciando-nos sem julgamento. O que seria uma
proclamação de tirania maior que isso? Ele mesmo se fazendo todas as
coisas (acusador, inimigo, testemunha, juiz, carrasco...). Assim, aos dois
primeiros [erros] acrescentou um terceiro, ao permitir aos que quises-
sem, como em conquistas de guerra, saquear os judeus.
E o que fazem os que receberam a imunidade? Há cinco partes da cida-
de, nomeadas com os primeiros elementos da voz em letras [isto é, do
alfabeto]. Destas, duas são ditas "judaicas", pelo fato de nelas habitar a
maior parte dos judeus (também nas demais moram não poucos espa-
lhados). O que fizeram então? Expulsaram osjude«: de quatro "letras"
e os forçaram a ir para uma pequeníssima parte de uma delas (pHILO,
1995a, p. 54-55. Grifos meus).'
Além de revelar a natureza da perseguição que teve lugar em Alexan-
dria, esse trecho revela um problema relacionado à posição que Filon ocu-
pa no evento. De início, ele, por ser também judeu, se inclui entre os que
são nomeados "estrangeiros e imigrantes": "nos nomeava" (hemás apekález).
Em seguida, contudo, ele se refere aos expulsos como "os judeus" (toiu
Ioudaíotls), não explicitando sua participação na experiência. Ele parece estar
ausente do padecimento em si. Diferente de Levi, em alguns momentos Fí-
lon, aparentemente, se coloca como espectador mais que como aquele que
vivencia os eventos, como no trecho que a seguir exponho. Após explicitar
as nefastas consequências econômicas da formação desse "gueto" judeu
em uma das cinco partes de Alexandria, Filon passa a narrar os sofrimentos
físicos impostos sobre aqueles que saiam dos limites recém-estabelecidos:
Malfadados! Pois, imediatamente, tendo sido capturados pelos que ha-
viam fortificado a "populachocracia", eram dolosamente assassinados
e, sendo puxados e levados por toda a cidade, eram largados, quando já
não restava nenhuma parte que pudesse ter parte em um sepultamento.
E os enlouquecidos sob uma selvageria, [levados] a uma natureza de
feras, subjugaram e mataram ainda outros milhares com multiface-
tadas formas de males praticadas com vistas a uma dura crueldade.
Eles expulsavam aqueles dentre os judeus que por acaso apareciam em
I Esta tradução, como todas as da obra de Filon apresentadas neste texto, é de minha responsabilidade e
elaborada a partir do texto em grego.
88
_____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...
qualquer lugar, ou com paus os espancavam, lançando os golpes não
imediatamente sobre as partes vitais, para que não acontecesse que,
chegando a termo rapidamente, rapidamente também escapassem da
percepção das dores. Mas alguns que agiam com audácia jovial pela
imunidade e licença das circunstâncias, desconsiderando as armas mais
vagarosas, erguiam as mais eficazes de todas, fogo e aço. Muitos foram
aniquilados com espadas, e não poucos, por sua vez, foram mortos
com fogo. E os mais sem compaixão de todos queimaram nesse mo-
mento famílias inteiras, homens junto com as mulheres, filhos infan-
tes junto com progenitores, em plena cidade, não tendo piedade nem
para com velhice, nem juventude, nem para com a idade sem maldade
das crianças. E quando quer que estivesse em falta a lenha de árvores,
ajuntando gravetos matavam com fumaça, mais gue com fogo, arquite-
tando uma destruição mais digna de piedade e mais prolongada para os
miseráveis, cujos corpos semigueimados jaziam confusamente. Dura e
dolorosíssima visão! (pHILO, 1995a, p. 65-68).
O padecimento do narrado r se limita à dor da visão, não chegan-
do a inserir-se como alvo direto da violência. Além disso, as vítimas não
são nomeadas ou identificadas como parentes ou pessoas de seu convívio
próximo. São alguns dentre os judeus. Por ser ele também um judeu, en-
tendemos que está implicado; no entanto, ele parece não estar inserido
explicitamente no acontecimento.
Por isso, talvez seja difícil identificar Fílon como sobrevivente (supers-
tes), ademais de não poder-se localizar com clareza sua situação durante o
ocorrido. Éprovável que também ele estivesse entre os judeus encurralados
numa pequena parte da cidade. Mas, ainda que isso seja verossímil, não
transparece no discurso. De alguma forma, ele se descola do grupo com o
qual está identificado para narrar, como observador, o sofrimento dos seus.!
Restam, pois, duas opções entre as arroladas por Agamben: testis e
auctor. Ambos os termos revelam algo sobre o lugar ocupado por Filon.
De fato, ele parece procurar o lugar de testis, do terceiro, ao ausentar-se
das cenas e referir-se aos seus, em alguns momentos, como "os judeus".
2 Fllon não exclui 05 judeus mais abastados dos sofrimentos impostos pelos gregos, mas é possivel que a
posição que sua família ocupava lhe permitisse algum beneficio. Os filonistas são unãnimes sobre a riqueza
da família de Fllon. Um conhecido parente foi Alexandre. seu irmão. que exercia uma função burocrática ou
polftica em Alexandria referida pelo titulo de alabarca, e que era extremamente rico pelo que se sabe a partir
dos relatos de Flávio Josefo (ver, por exemplo: ARNALDEZ, 1961, p. 18; BORGEN, 2005, p. 14-15; MARTIN,
2009, p. 13-14).
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_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010
Ademais, diferente de Levi, ele não só assume a possibilidade de um julga-
mento, como procura demonstrar a culpa daqueles a quem considera seus
algozes". É considerável, por exemplo, que quase a metade de Contra Placa
seja dedicada à narrativa do destino que coube ao "prefeito" de Alexandria
_ exílio e morte -, segundo Fílon, uma punição providenciada por D'us.
Assim conclui-se o tratado: "Tais coisas Flaco sofreu também, tornando-
-se a prova mais livre de mentira de que a etnia dos judeus não foi privada
do socorro da parte de Deus" (pHILO, 1995a, p. 191). Notável a utiliza-
ção do termo prova (pístis), emprestado do vocabulário jurídico.
Parece razoável, então, compreender que Fílon procura, de fato,
narrar fatos com vistas a uma acusação, ou à justificação de um julgamen-
to." Ele não percebeu a zona cinzenta (LEVI, 1990, p. 31-59), descoberta
de Primo Levi. Talvez por isso acredite na possibilidade (e utilidade) de um
julgamento. Outra diferença correlata se apresenta: no livro do italiano já é
descartada desde o início qualquer pretensão lógica:
O livro foi escrito, em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de
liberação interior. Daí seu caráter fragmentário: seus capitulos foram
escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O traba-
lho de ligação e fusão foi planejado posteriormente (LEVI, 2000, p. 8).
Não está em questão a urgência ou não da escrita de Fílon, mas é
evidente que a estruturação de seu escrito não se faz "posteriormente",
mas de forma pensada com vistas a certa finalidade. Entretanto, não se
reconhece nele a neutralidade requerida pela posição de testis, ainda que ele
possa simulá-Ia em algum momento.'
Caberia, pois, recorrer ao outro termo: auitor. Como o testemunho
de Levi depende da impossibilidade do testemunho dos "muçulmanos",
o relato de Fílon talvez se apoie no silêncio dos corpos semiqueimados e
dos destroçados pelas ruas da cidade. No caso do autor antigo especifica-
mente, pode-se pensar que seu relato se apoia não só no silêncio dos que
3 No tratado agora em análise, Flaco; no outro a ser abordado. Callgula .
• Um julgamento divino? Alguém poderia indagar: ·Se é divino, precisaria de explicações?" Deve-se observar
que a acusação e a explicação podem servir como meio de se perceber o nexo causal entre uma atitude e
outro acontecimento. de modo a apontar a uma interpretação dos fatos que considere uma intervenção da
Providência.
S No caso de Primo Levi, também se pode pensar em uma relação com o julgamento. Embora o livro mesmo
não deixe perceber essa intenção e até indique outra, Dalya M. Sachs revela uma situação mais complexa com
relação ao assunto (ver SACHS, 1995).
90
_____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...
não puderam expressar-se, mas também na voz daqueles que escreveram
sobre o assunto (caso tenham escrito) e se perderam ao longo dos séculos.
Encaminho-me a uma solução provisória. Parece-me que, embora
os três termos cooperem para uma compreensão dos papéis exercidos por
Fílon e Levi, cada um tende a movimentar-se preferencialmente entre dois
deles. Primo Levi, de início, parece ser simplesmente uma testemunha-
-superstes, mas carecemos do termo auctor para cornpreendê-Io. Fílon, por
sua vez, solicita testis, em princípio, por sua maneira de articular os fatos e
a acusação, mas seu discurso só se sustenta a partir do silêncio alheio; pelo
que, sem o termo auctor, seu lugar é sem sentido. De alguma maneira ele po-
deria ser também considerado superstes, mas, como observei, não há ênfase
nessa direção. Assim, temos um Levi-sttperstes-auctor e um Filon-testis-auctor,
cada qual se dispondo a relatar os sofrimentos por um motivo e com um
objetivo aparentemente diferente, mas incorrendo em alguns problemas e
encontrando alguns limites semelhantes, como a seguir observarei.
As coisas e o som/ silêncio da palavra
cm lá recebemos as primeiras pancadas, o que foi tão novo e ab-
surdo que não chegamos a sentir dor, nem no corpo nem na alma. Ape-
nas um profundo assombro: Como é que, sem raiva, pode-se bater numa
criatura humana?" (LEVI, 2000, p. 15). O assombro diante do que não se
compreende é um passo prévio ao que quero observar neste tópico.
A novidade dos fatos ou seu deslocamento provocam naquele que
os experimenta (e os narra) a percepção de um desacerto que interferirá
em sua utilização da linguagem. O soco estava, até certo momento, direta-
mente relacionado à raiva. Quando se desconectam os dois, há estranheza.
O que se espera não se realiza, ou se realiza de modo completamente fora
da lógica do mundo previamente experimentado. As comparações surgem,
então, como elementos retóricos próprios para tornar clara a situação.
Para com os condenados à morte, a tradição prescreve um austero
cerimonial, a fIm de tornar evidente que já não existe paixão nem raiva;
apenas medida de justiça, triste obrigação perante a sociedade, tanto
que até o verdugo pode ter piedade da vítima. Evita-se ao condenado,
portanto, toda preocupação externa; a solidão lhe é concedida e, se
assim ele o desejar, todo conforto espiritual [...]
91
_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010
Nada disso, porém, nos foi concedido, já que éramos muitos, e pouco
o tempo. Além do mais, de que deveríamos nos arrepender ou sermos
perdoados? (LEVI, 2000, p. 13).
O que se faz a um condenado à morte pela Justiça se contrapõe ao
que lhes foi feito, não sendo eles nem mesmo judicialmente condenados.
De modo semelhante, Filon observa que inclusive os que perecem
na guerra são deixados para que os seus lhe prestem as homenagens fú-
nebres. Logo introduz a comparação nos seguintes termos: "Na guerra,
por um lado, os inimigos [fazem] estas coisas. Na paz, por outro lado, ob-
servemos o que fizeram os que há pouco eram amigos" (pHILO, 1995a,
p. 62). Em seguida, ele chega ao trecho que citei acima, no qual revela o
tratamento dado aos corpos dos judeus mortos.
Os condenados e os nem-sequer-julgados, em tempo de guerra e
em tempo de paz. As ações realizadas em situações diferentes são con-
trapostas com vistas a um esclarecimento único: o que fizeram (a nós?
Aos nossos? Aos judeus?) em uma situação "imprópria" foi mais grave,
mais intenso ou aterrador que o que fazem na situação "própria"? A ação
intensificada está fora de seu contexto. Então, a comparação pode ser,
como disse, uma tentativa de compreensão ou expressão dos fatos. Uma
tentativa necessária porque a simples nomeação dos fatos e ações não é
eficaz para produzir a comunicação almejada (isto é, não faz comum entre
narrador e leitor o que está sendo de fato narrado).
Os narradores (tanto o que suponho ser Levi-superstes-auctor quanto
o também hipotético Fílon-testis-auctor) tocam os limites da linguagem:
Assim como nossa fome não é apenas a sensação de quem deixou de
almoçar, nossa maneira de termos frio mereceria uma denominação
específica. Dizemos "fome", dizemos "cansaço", "medo" e "dor", di-
zemos "inverno", mas trata-se de outras coisas. Aquelas são palavras
livres, criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e
tristezas, em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem durado
mais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos faz
falta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento,
abaixo de zero, vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim
e tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega
(LEVI, 2000, p. 125-126).
E estas coisas, se já são insuportáveis, comparadas, entretanto, com as
praticadas em seguida são leváveis. Pois a pobreza é difícil (sobretudo
92
_____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...
quando preparada da parte de inimigos), mas é menos que a violência
aos corpos, ainda que seja brevíssima. E com relação aos nossos, dado o
excesso das coisas que sofreram, nem que alguém dissesse ter recebido
violência ou ultraje estaria usando termos próprios, mas parece-me que
estaria em falta de designações familiares, pela grandeza da crueldade
recém-obrada, de modo que as dos que saem conquistadores na guerra
(que são por natureza implacáveis para com os prisioneiros) pareceriam
ser as mais doces comparadas com aquelas (pHILO, 1995a, p. 58-59).
Levi se inquieta e pensa na possibilidade de uma linguagem criada
a partir daquela realidade dura, uma vez que a trazida do mundo livre
não lhe servia plenamente. Filon, por sua vez, deixa claro que o alcance
das palavras conhecidas não chega aos eventos narrados "pela grandeza
da crueldade recém-obrada". O novo, o diferente, o deslocado não são
contemplados satisfatoriamente pelo vocabulário preexistente. Por isso, o
narrador vê-se incomodado, insatisfeito, pois as palavras indicam minima-
mente o que ele pretende expressar, mas silenciam parte do significado, ou
enganam, ao ocultar diferenças. A relação com a palavra se torna parado-
xal, mas permanece necessária, como observa Valerio Ferme:
Não importa quão inadequada a linguagem possa ter sido inicialmente,
como ferramenta para entender como os campos funcionavam; ela per-
manece presente na ausência, como o único meio de resistência que pode
escapar do controle do nazismo (FERME, 2001, p. 57.Tradução minha).
O narrador depende da linguagem, mas precisa ir além do uso cor-
riqueiro do léxico, buscando explicações por analogias (como as mencio-
nadas), enfatizando certos elementos da realidade/narrativa ou lançando
mão de recursos especiais. O que chamo aqui de "recursos especiais" é o
tema do próximo tópico: uma aproximação da linguagem da narrativa à
poesia, uma ênfase no corpo ou, ao mesmo tempo, um trabalho de poética
e corporeidade na escrita (a partir da relação com um gênero específico).
o corpo inscrito e o recurso ao poético
Uma frase pode ter passado despercebida na última citação: "Pois
a pobreza é difícil (sobretudo quando preparada da parte de inimigos),
mas é menos que a violência aos corpos, ainda que seja brevissima"
(pHILO, 1995a, p. 58). Um elemento definitivamente envolvido nos fatos
93
que dão origem às narrativas de Fílon e Levi e, consequentemente, está
inscrito nestas, é justamente o corpo. A diferença entre os dois autores,
como antes vimos, é que os corpos na narrativa de Contra Flaco são de ou-
tros judeus. O corpo do escritor não aparece marcado, ou melhor, só está
implicado pela marca comum com aqueles que padecem: a circuncisão. ] á
o corpo de Levi é de tal modo sofrido que convém observá-lo:
O enfermeiro aponta as minhas costelas ao outro, como se eu fosse
um cadáver na sala de anatomia; mostra as pálpebras, as faces inchadas,
o pescoço fino; inclina-se, faz pressão com o dedo em minha canela,
indicando a profunda cavidade que o dedo deixa na pálida carne, como
se fosse cera (LEVI, 2000, p. 48).
Uma mudança que marca a degradação, pois: "No ano passado, a esta
hora eu era um homem livre. Fora da lei, porém livre, tinha nome e família,
uma mente ávida e inquieta, um corpo ágil e saudável." (LEVI, 2000, p. 145).
O corpo é trazido à cena. Colocado em evidência, ele revela a mu-
dança, explicita a gravidade do fato. O corpo parece ser um caminho para
se tentar fazer comum uma experiência. O narrador fala do corpo, talvez
com a intenção de atingir também, isto é, trazer para o ato da leitura o cor-
po do leitor, ou, no mínimo, para dar mostra da concretude da violência.
O foco no corpo parece, então, tentar suprir alguma limitação da lingua-
gem, ainda que dependente dela.
Resta, ainda, outra tentativa: a poesia. Se a linguagem pode ser percebida
como um órgão fora do corpo (e este, imagino um verbo fora da linguagem),
entendo a poesia como parte ou função desse órgão. Ou melhor, uma forma
de realização do órgão-linguagem. Nas palavras mais precisas de Karl ]aspers:
Poesia é o órgão pelo qual apreendemos o cosmos e todos os conteú-
dos de nossa essência da forma mais natural e evidente. Levados pela
linguagem, transformamo-nos a nós mesmos. Imperceptivelmente, a
fantasia provocada pela poesia abre em nós o mundo das concepções
pelas quais primeiro nos tornamos capazes de apreender significativa-
mente nossas realidades GASPERS, 2004, p. 23).
Apresenta-se a possibilidade de uma apreensão das realidades com
a colaboração da poesia. No meio do campo (e entre as páginas de É isto
um homem?) comparece a poesia: "O canto de Ulisses. Quem sabe como e
por que veio-me à memória, mas não temos tempo pra escolher, esta hora
já não é mais uma hora. Se ]ean é inteligente, vai compreender. Vai: hoje
94
_____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...
sinto-me capaz disso" (LEVI, 2000, p. 114). Ao longo das páginas escritas
por Levi não são escassas as referências, mais ou menos sutis, a dados da
literatura. Mas nesse capítulo, intitulado "O canto de Ulisses", a poesia en-
tra definitivamente em cena, como meio de fazer algo comum. A "descul-
pa" para o poético vir à tona é uma aula de italiano. O produto escolhido
é a obra de Dante. O personagem, Ulisses, o herói do retorno. Primo Levi
rememora versos e os explica a ]ean ("Pikolo''). Em certo ponto:
Pikolo me pede para repetir esses versos. Como ele é bom: compreen-
deu que está me ajudando. Ou talvez seja algo mais: talvez (apesar da
tradução pobre e do comentário banal e apressado) tenha recebido a
mensagem, percebido que se refere a ele também, refere-se a todos os
homens que sofrem e, especialmente, a nós: a nós dois, nós que ousa-
mos discutir sobre estas coisas, enquanto levamos nos ombros as alças
do rancho (LEVI, 2000, p. 116).6
A poesia participa de um processo que pode ser entendido como re-
apropriação da dimensão humana, como recuperação da possibilidade de
se apreender a realidade por meio da linguagem, ou como a constituição
do ser por meio da rememoração. Seja como for, parece que o capítulo em
questão ("O canto de Ulisses'') "marca uma importante transição na ex-
periência do campo por parte de Levi" (FERME, 2001, p. 63).7 O poema
parece ajudar o ser a localizar-se no mundo.
Cabe, agora, observar essa relação entre a poesia e a escrita de Fílon,
o que não é estranho, uma vez que ele cita versos de vários poetas gregos,
ou faz referências mais ou menos perceptíveis a esses ao longo de seus tra-
tados (inclusive nos exegéticos). Entretanto, mais que citações, e inclusive
mais que referências sutis, outros rastros helênicos podem ser deixados na
escrita de Fílon. Essa escrita que nasce em prosa poderia ter sua fonte, seu
modelo, sempre observado no arquivo canônico judaico. Mas não é o que
se verifica, ao menos não exclusivamente. Como a prosa grega de então
(penso sobretudo nos romances gregos), a escrita de Fílon se deixa marcar
por um trabalho na fronteira dos gêneros literários. Parece que, na narrativa
em prosa, é fácil jogar com elementos de outros gêneros. A impressão que
• Cito os versos a Que se refere essa parte do diálogo: "Relembrai vossa origem. vossa essência:1 vós não
fostes criados para bichos.! e sim para o valor e a experiência."
7 Chegou-se a sugerir uma posslvel aproximação estrutural entre o livro de levi e a obra de Oante (ver FERME.
2001, p. 53-54, nota 5), mas não me sinto seguro a ponto de explorar essa possibilidade.
95
-'"
______ RI:::VISTA DI::: I:::STUUOS JUUAIc.;O~. V. ti, p. tio-1U4. seio HOrizonte, LUU~-LU lU
tenho, e que pretendo demonstrar minimamente, é que Fílon escolhe ele-
mentos da tragédia grega para retratar os ocorridos em sua época.
Horror e piedade, desmedida e erro figuram como características de
uma época em que um homem decide ser cultuado como deus e impõe essa
prática inclusive aos judeus. Mais que isso: Fílon parece conceber e traba-
lhar sobre a tragédia em cena, como espetáculo, não texto somente. Por isso,
o corpo está em total evidência, participando e comunicando a experiência
de então. Para início de uma demonstração, refiro-me a um trecho especí-
fico, o qual servirá de mero exemplo, escolhido entre outras possibilidades.
Fílon vem narrando a ansiosa espera da embaixada (da qual faz parte) en-
viada pelos judeus de Alexandria ao encontro de Calígula. O tempo passa e
o imperador não os recebe. Então, ocorre uma mudança na situação:
A nós, que refletíamos sobre a questão - pois tínhamos sempre a ex-
pectativa de sermos chamados - aproxima-se uma pessoa que nos olha-
va com [olhar] ensanguentado e perplexo, completamente ofegante e,
conduzindo-nos um pouco para longe dos outros - pois havia algumas
pessoas perto - disse: "Ouvistes as novidades?" E, quando estava a
ponto de nos contar, foi interrompido, pois lhe saía uma incessante
corrente de lágrimas. E, tendo começado de novo, por uma segunda
vez foi interrompido, e por uma terceira ainda. Vendo isso, nós nos
agitamos e pedimos que contasse o assunto pelo qual haviavindo. Ale-
gávamos: "Pois não [foi] com o intuito de prantear com testemunhas
[que vieste]. E se são coisas dignas de lágrimas, não padeças sozinho
da tristeza.Já estamos acostumados a infortúnios." E ele, embora com
dificuldade, soluçando e com a respiração entrecortada, disse: "Nosso
templo se foi! Caio ordenou erigir na parte mais interna do santuário
uma gigantesca estátua humanóide dele mesmo apelidada de Zeus."
Enquanto estávamos atônitos pelo dito, congelados pela consternação
e já não podendo ir adiante - pois jazíamos de pé mudos, tendo poucas
forças e desfalecendo por causa de nós mesmos, uma vez que estavam
exaustos nossos vigores corpóreos - outros se aproximavam trazendo
suas próprias aflições (PHILO, 1995b,p. 186-189).
Como se percebe, nesse trecho ocorre a chegada de um mensageiro,
personagem muito recorrente nas tragédias gregas. É possível chamá-lo
mensageiro trágico, tanto para marcar sua relação com aquele da tragédia,
quanto para caracterizar o conteúdo que anuncia (pensando no significado
96
_____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...
atual do termo trágicoB-y. Contudo, a teatralidade do episódio poderia não
ser dada a perceber, não fosse outro aspecto destacável: a ênfase no corpo
do mensageiro e dos que recebem a mensagem. Primeiro, o mensageiro
não consegue falar por causa do choro incessante. Uma, duas, três vezes o
"vemos" tentar e não conseguir. Em seguida, ele fala, mas entre soluços e
com respiração entrecortada. A mensagem em si é breve, ao menos nesse
primeiro momento. A atenção às maneiras, às reações e aos movimentos
dos corpos no espaço cênico, por outro lado, é detida. Uma pergunta nada
importante, mas talvez reveladora: um grupo de atores teria grande tra-
balho para reconstruir a cena, inclusive o comportamento não verbal dos
participantes?
Alguém poderia, decerto, perguntar se não se trata de uma preo-
cupação impensada ou relacionada a outra causa que não uma aproxima-
ção intencional com a tragédia. Em princípio, eu tenderia a reconhecer
que sim. Não obstante, alguns indícios nesse mesmo tratado me levam
à convicção de que há de fato um interesse especial na comunicação que
transcende o verbal (chegando ao corporal, ao espetacular) e na própria
tragédia especificamente.
Noto, por exemplo, que, quando a narrativa se detém em um grupo
de judeus que suplica a Petrônio que colabore para evitar a procissão que
levaria a imagem de Calígula-Zeus ao Templo, há também uma ênfase na
descrição do corpo dos suplicantes. Em seguida, diz-se que o romano foi
comovido "pelas coisas que foram ditas e pelas que foram vistas" ("hypà
tôn lekhthénton kai horoménon" - PHILO, 1995b, p. 243). Em outro
trecho, é o próprio Calígula que diz a Agripa que este já deveria ter notado
o seguinte fato: "falo claramente não somente com a voz, mas também
com os olhos" (ou "têi phonêi mónon allà kai tOISómmasi phthéngomai"
- PHILO, 1995b, p. 264).
Resta observar o fato de que essa ênfase no corporal reflete uma
relação estabelecida com a tragédia como gênero. Para tanto, não me basta,
embora me sirva como testemunho, lembrar que, segundo Aristóteles, a
• Para uma reflexão sobre os significados do termo, confira-se MOST (2001). Para uma diferenciação entre as
noções de testemunho, tragédia e trágico. veja-se SELlGMANN-SILVA (2005). Ressalto que o que proponho
não é uma explicação do testemunho pela tragédia, mas uma observação do texto como lugar de negociação
e construção de significado a partir dos meios (língua, gênero, fórmulas retóricas etc.) disponiveis em seu
universo discursivo.
97
_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010
tragédia se divide em seis partes, sendo que uma das quais é justamente
um componente visual (ópsis. Ver Poética, 1450a). Devo observar também
trechos do próprio tratado filônico que se refiram especificamente ao gê-
nero em questão. Destaco, então, a atenção que se dá ao fato de Apeles,
um certo ator trágico, ter chegado a ser conselheiro de Calígula (pHILO,
1995b, p. 203-204). Mas o fato é histórico, alguém poderia dizer. De fato,
mas a meu ver, a presença desse personagem histórico traz à cena a tragé-
dia e possibilita um diálogo com esta. Ainda assim, é bom considerar ou-
tro trecho. Durante a já mencíonada súplica a Petrônio, os anciãos dizem
que não faria falta um exército para se opor aos judeus, pois estes estavam
sujeitos à autoridade política e se entregariam a si mesmos em sacrifício,
"os assassinos de esposas oferecendo suas esposas ao altar, os fratricídas,
os irmãos e as irmãs, e os infanticídas, garotos e garotas, em idade de
inocência" (pHILO, 1995b, p. 234). A escolha dos termos, por si só, já
seria interessante ao meu objetivo. Contudo, o comentário imediatamente
posterior não deixará dúvidas: "Pois palavras trágicas [traguikôn onomáton]
são necessárias para aqueles que suportam circunstâncias trágicas [tragui-
kàs symphoràs]." (pHILO, 1995b, p. 234).9
O que proponho é simplesmente a possibilidade de se pensar que
esse recurso à tragédia não se limitaria a seu vocabulário e a essa súplica
específica. A meu ver, esta fala pontual possibilita uma suspeita mais
geral de que, mais do que palavras, outras características da tragédia são
mobilizadas no escrito. É conveniente, pois, estudar como Fílon agencia
elementos do gênero trágico para narrar as "circunstâncias trágicas" a
que estiveram submetidos os judeus de meados do século 1. E o mais
instigante, entender por que um gênero especificamente grego é mo-
bilizado para narrar a resistência (e sofrimento) dos judeus diante do
mundo greco-romano. A resposta talvez se encontre no mesmo tratado,
inclusive em sua parte inicial, mais dissertativa, na qual não somente a
teologia judaica, mas também (e mais detidamente) a própria mitologia
grega é evocada para se refutar a divinização de Calígula. Talvez seja essa
uma marca da obra de Fílon: a possibilidade de se mover nos diferentes
• Vale lembrar que o adjetivo traguik6s, que traduzo por trágico, remete à tragédia como gênero. Talvez pos-
samos pensar em um sentido mais desconectado da própria tragédia como gênero na segunda ocorrência na
frase, mas o jogo com o sentido que agora me interessa é inegável.
98
_____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...
discursos, argumentando, interpretando e narrando nas fronteiras, ne-
gocíando habilmente em meio a uma situação de considerável tensão
cultural. 10
Além disso, algo interessante é perceptível no trecho mais longo
antes citado: um dos "atores" é o próprio narrador. Se em Contra Placo ele
só observava corpos alheios, agora seu próprio corpo está em cena, falto
de forças, como os dos outros. O envolvimento é bem marcado. Pouco
antes, porém, ele havia fornecido um dado também importante, que de
alguma maneira o destaca no grupo: ele diz que todos estavam iludidos
com a recepção do imperador, mas que ele (e ele usa a palavra eu - ego)
era mais cauteloso (eulabésteros), pela idade e pela outra formação (kai
di'helikían kai tên állen paideían). A idade mais avançada e a formação, isto
é, educação formal, o distinguem, fazendo-o mais prudente, por um lado,
mas também, a meu ver, dando a ele uma posição privilegiada para relatar.
De alguma maneira, ele se apresenta explicitamente como preparado para
considerar as ações com cuidado e, por conseguinte, defende implicita-
mente sua qualidade de narrador. Logo, como vimos, inclui-se na cena. A
meu ver, ele diz algo como: "Estarei em cena, mas sou capaz de narrá-Ia
com acerto."
Decerto, os relatos de sofrimento não são necessariamente poéticos.
Ademais, o poético não precisa ter uma ancoragem precisa no mundo das
realidades. Não obstante, há uma relação perceptível entre poeta e teste-
munha, pois ambos se movimentam em um espaço localizado entre a im-
possibilidade e a possibilidade de dizer. Encerro este tópico com palavras
de Giorgio Agamben:
a palavra poética é aquela que se situa, de cada vez, na posição de
resto, e pode, dessa maneira, dar testemunho. Os poetas - as teste-
munhas - fundam a língua como o que resta, o que sobrevive em
ato à possibilidade - ou à impossibilidade - de falar (AGAMBEN,
2008, p. 160).
10 Interessante também notar que, se a tragédia está relacionada com a forma de narrar a perseguição sofrida
após os eventos, outro tipo de representação aparece no inicio desta. Em Contra Flaco (PHILO, 1995a, p.
3640), Filon conta que, quando da visita de Agripa a Alexandria, os gregos tomaram um lunático da cidade,
vestiram-no como rei e se curvaram a ele no Ginásio, em uma espécie de mimica teatral para ridicularizar o
rei dos judeus (HORST, 2003, p. 130).
99
_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 20-0g:-2010
No campo da hermenêutica
Primo Levi não era escritor quando foi levado ao campo de concen-
tração. Fílon, por sua vez, parece que já havia escrito muitos de seus trata-
dos quando compôs Embaixada a Calígula e Contra Flaco. Vale lembrar que
a maioria dos outros tratados são caracterizados como exegéticos porque,
o mais das vezes, reescrevem ou apresentam interpretações para o Pen-
tateuco. De alguma maneira, percebo que ao contar a violência que teve
lugar em Alexandria, Fílon não deixa de ser um hermeneuta. Ele, de fato,
apresenta as diversas "cenas" de sua narrativa com o intuito de produzir
uma compreensão sobre o ocorrido. Como vimos, no caso de Contra Flaco,
a interpretação conclui que o povo judeu continuava sob uma proteção
especial de D''us. Mas essa conclusão só é dada após a estruturação de
toda uma narrativa que enfatiza certos elementos e os arranja de manei-
ra devida. Em Embaixada a Calígula parece acontecer algo semelhante, o
autor mostra como D'us colocou em prova a virtude dos judeus. O fim
de Caligula não é demonstrado, como o de Flaco, mas o tratado termina
em aberto, como anunciando outro tratado, ou indicando que a história
demonstraria o que se segue (BORGEN, 2005, P: 193). Sobre ambos os
tratados, Peder Borgen afirma de forma clara e resumida:
Fílon aqui narra uma história teologicamente interpretada, baseada em
ideias relacionadas à Lei de Moisés. Nesse aspecto, esses tratados mos-
tram uma similaridade com a escrita da história no Antigo Testamento,
no judaísmo e no Novo Testamento (BORGEN, 2005, p. 192. Tradu-
ção minha).
Quanto a Primo Levi, devo destacar algo que ele parece entrever,
mas que não desenvolve detidamente:
Na marcha para o trabalho, vacilando sobre nossos tamancos por cima
da neve gelada, trocamos algumas palavras. Resnyk é polonês; morou
vinte anos em Paris, mas fala um francês terrível. Tem trinta anos, po-
rém, assim como cada um de nós, poderia aparentar entre dezessete e
cinqüenta. Contou-me a sua história e já a esqueci, devia ser, por certo,
uma história dolorosa, comovedora, cruel, porque todas as nossas his-
tórias são assim, centenas de milhares de histórias, cada uma diferente
das demais e cada uma carregada de uma trágica, surpreendente fata-
lidade. Contamo-nos essas histórias, uns aos outros, à noite; histórias
100
_____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...
de fatos acontecidos na Noruega, na Itália, na Argélia, na Ucrânia, his-
tórias simples e incompreensíveis como as da Bíblia. Ou serão, acaso,
histórias de uma nova Bíblia? (LEVI, 2000, p. 65).
As histórias vividas por cada judeu levado ao campo, bem como
a de Levi, têm uma semelhança com as da Bíblia: simplicidade e falta de
acesso a uma compreensão. Parecem, então, histórias deslocadas de acon-
tecimentos que estariam bem localizados se narrados dentro do cânone sa-
grado. Ali receberiam, juntamente com outras tantas narrativas, o cuidado
hermenêutico de todas as gerações. Sua estranheza teria um entorno, um
enquadramento próprio. Mas, se elas não estão na Bíblia, seriam de uma
nova Bíblia? Uma Bíblia, talvez, sem a mesma solicitação de sacralidade da
outra, mas com semelhante solicitação de hermenêutica, de comentários
e, isso em especial, de reescritas.
Por esse pensamento, se são considerados também os textos de
Fílon para a reflexão, pode-se indagar: Por que Contra Flaco não está,
mas Ester sim? Filon e Levi (cada um a seu modo e com uma relação
diferente para com a religião judaica - e independente disso) parecem
escrever textos de uma bíblia fora da Bíblia. Se o italiano não procu-
ra explicações rápidas para cada dado de seu objeto de leitura é por-
que sua hermenêutica não é aquela dos comentadores "verso a verso".
le busca mais uma apreensão reflexiva (não radicalmente racional)
do "texto". Como na hermenêutica de Fílon (refiro-me agora às in-
terpretações que ele faz do Pentateuco), nem sempre se encontra uma
resposta certeira, definitiva ou única, havendo lugar para certa fluidez
(RIOS, 2009, p. 100-102). Por isso, escrevem. Esse é um passo para
fazer a leitura, manter o objeto de interpretação em evidência e analisá-
-10 (isto é, desenrolar seu novelo na esperança de isolar alguma de suas
linhas [de sentido]).
Em outras palavras, quer queiram ou não emitirjufgamento sobre os
fatos, algo é mais certo, ambos os escritores procuram estabelecer um tipo
de critica do acontecimento. O termo crítica, como se sabe, pode ser aproxi-
mado por etimologia da ideia de julgamento. Entenda-se, pois, que quero
usá-lo, ao mesmo tempo, tão próximo e tão distante quanto possível des-
sa. Eles emitem critica por não poderem não fazê-lo, justamente porque
os próprios acontecimentos os convidam ao trabalho de hermeneutas. E
101
_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. 8elo Horizonte, 2009-2010
já que percebemos que seu objeto de leitura não é exatamente um texto,
lembro-me da consideração de Paul Ricceur: "como um texto, a ação hu-
mana é uma obra aberta, cuja significação está 'em suspenso'" (RICCEUR,
1986, p. 197. Tradução minha). Uma significação que deve ser repensada e
refletida por cada geração, como em um comentário cumulativo da outra
bíblia: "Rab Fílon de Alexandria disse ... Rab Primo Levi disse ... Rab ..."
Conclusões
Observei, neste breve ensaio, que corpo e poesia (em algum momen-
to juntos) podem ser convocados para um discurso que pretende narrar o
horror e a violência contra um povo. Isso, o fiz aproximando e tratando
lado a lado uma obra do século 20 e escritos do século 1. A obra do século
20 foi chamada de testemunho. Para os tratados antigos, não utilizei nenhu-
ma designação tão definitiva. Mas, agora, talvez seja mais fácil considerar a
questão: essas obras de Fílon podem ser tomadas como "testemunhos lite-
rários"? Pois bem, de fato até o termo literário é de difícil manuseio quando
se trata de escritos de um tempo em que a noção de literatura não existia
ainda nos moldes modernos. Mas não deixo de referir-me a esses escritos
do alexandrino como literários, uma vez que assim os leio, facilitado (corro-
borado, penso) pelo intenso diálogo que ele estabelece com obras que são
corriqueiramente chamadas de "literatura grega". Testemunho? A sensata
asserção de Seligmann-Silva pode ajudar nesse momento:
Nos estudos de testemunho deve-se buscar caracterizar o "teor teste-
munhal" que marca toda obra literária (mas, repito, que aprendemos a
detectar a partir da concentração deste teor na literatura e escritura do
século 20). Este teor indica diversas modalidades de relação rnetoní-
mica entre o "real" e a escritura (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 85).
Em suma, após essa leitura, parece-me plausível considerar os dois
tratados filônicos estudados em comparação com a obra de Levi como um
tipo deprosa literária comfundo histórico e marcado teor testemunhal. Lembrando
que esse teor não é encontrado de modo único em todas as obras, mas va-
ria entre tantas possibilidades de relação da escritura para com esse "real",
que Seligmann-Silva pretende ler, seguindo orientação freudiana, como
trauma, o que convém no caso de Filon.
102
----------------- RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...
Por fim, vale dizer, também, pelo que tangencialmente se percebe
neste breve escrito, que a leitura da obra de Primo Levi em comparação
com outras de teor testemunhal, mas mais antigas, pode ser proveitosa.
Parece-me que o procedimento revela semelhanças e diferenças que lo-
calizam a escritura do italiano (inclusive no que diz respeito ao aspecto
testemunhal) em uma história literária, não a deixando isolada ou em
contato somente com a chamada "literatura do Holocausto" (ou, para
dizer melhor, literatura da Shoa).
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Allschwitz. o arquivo e a testemunha: Homo
Sacer IIl. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARISTOTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poetica, 1992.
[Edição bilíngue grego-português]
ARNALDEZ, Roger. Introduction générale. ln: PHILON D'ALEXANDRIE.
Les oeuuresde Pbiion d'Alexandrie. Paris: Éditions du Cerf, 1961. v. 1.
BORGEN, Peder. Philo of Alexandna: an Exegete for Bis Time. Atlanta: Society
of Biblical Literarure, 2005.
FERME, Valerio. TransIating the Babel of Horror: Primo Levi's Catharsis
through Language in the Holocaust Memoir Se qllesto e Uf1 110mo.Italica, Menasha,
WI: American Association of Teachers of ltalian, v. 78, n. 1, p. 62-65, 200l.
HORST, Pieter Willem van der. Pbuo': P/aceus: The First Pogrom - lntroduction,
TransIation and Commentary. Atlanta: SBL, 2003.
JASPERS, Karl. O trágico.Trad. Ronel Alberti da Rosa. Desterro: Nefelibata, 2004.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as
impunidades. Trad. Luiz Sérgio Henriques. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
___ o É isto 11mhomem? Trad. Luigi DeI Re. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
MARTÍN, José Pablo. lntroduccián general. ln: FILÓN DE ALEJANDRÍA. Obras
completas. Madrid: Trotta, 2009. v. 1.
103
_____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010
MOST, Glenn Warren. Da tragédia ao trágico. In: ROSENFIELD, Denis Lerrer
(Org.). Filosofia e literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 20-35.
PH1LO OF ALEXAN DRIA. In Flaccllftl. Philo: 1n Ten Volumes. English
Translation by F. H. Colson and G. H. Whitaker. Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1995a. v. 9. [Edição bilingue grego-inglês]
PH1LO OF ALEXANDRIA. Ad Legatione ad Gaito». Philo: In Ten Volumes.
English Translation by F. H. Colson and G. H. Whitaker. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1995b. v. 10. [Edição bilingue grego-inglês]
RICCEUR,Paul. D« texte à l'action: essais d'herméneutique. Paris: Seuil, 1986. v. 2.
RIOS, Cesar Motta. A alegoriana tessitura de Fílon de.Alexandna: estudo a partir da
obra filônica com ênfase em Sobre os sonhos 1.2009, 195 f. Dissertação (Mestrado
em Estudos Clássicos) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte.
SACHS, Dalya M. The Language of Judgment: Primo Levi's Se questo e an 1I0mo.
lvILN, Baltimore, MD: The Johns Hopk.ins Universiry Press, v. 110, n. 4, 1995.
(Compara tive Literature Issue).
SELIGMANN-S1LVA, Márcio. Literatura, testemunho e tragédia: pensando
algumas diferenças. In: . O /ocal da diferença:ensaios sobre memória, arte,
literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.
___ o Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes.
Revista Projeto Histâria, São Paulo: Programa de Estudos Pós-Graduados em
História/ Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, V. 30, p. 71-98, 2005. Disponível em: <http://www.pucsp.br/
projetohistoria/ downloads/volume30 /04-Artg-%28Marcio%29. pdf>. Acesso
em: 14 jun. 2010.
104
5 Uma travessia frustrada:
da galut para o exil
Luis S. Krausz
Este artigo analisa a novela "O rabbi de Bacherach'~ de Heinricb Heine, atentando
particularmente para o caráter transiciona/ dessa obra CI'!JO enredo, ambientado na Idade
Média, parece tratar da passagem do mundo isolado e ssjeito à constante perseguição do
gueto para um universo defeições mais modernas, no qual opertencimento aojudaísmo se
torna lima possibilidade, mas não uma necessidade, Sugiro q1le a trajetária apresentada
na novela possui para/elos com a própria trajetôria descrita pelo autor que, educado nos
moldes do pensamento iluminista, desejava integrar-se plenamente à sociedade européia.
Heine efetivamente pertencia à primeira geração que escapou do gueto, embora sua
ambição de tornar-se tl11I alemão paradoxalmente só pôde concretizar-se, e ainda em
parte, em seu exílio francês.
{Literatura judaica; literatura alemã; assimilação; gueto; iluminismo}
Agora sou odiado por judeus e por cristãos.
Arrependo-me muito de ter-me batizado, e não
vejo que minha situação tenha melhorado em
decorrência do batismo. Ao contrário, desde
então só tenho sido infeliz ...
Heinrich Heine (2000)'
1 Esta e todas as citações de Heine apresentadas no artigo são traduções a partir do alemão feitas por Luis
S. Krausz. (N. do E.)
1n"

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A narração do sofrimento entre Fílon e Levi

  • 1. ______ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 68-84. Belo Horizonte, 2009-2010 HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975. ___ o Tbe Earth Is tbe Lord's: The lnner World of the Jew in Eastern Europe. Woodstock, VT:Jewish Lights, 1995. ___ o O homem àproCtlra de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974a. ___ o O homem não está só. São Paulo: Paulinas, 1974b. ___ o A Passionfor Trutb. Woodstock, VT: Jewish Lights, 1973. ___ o Tbe Propbets. Nova York: Harper Perennial Modern Classics, 2001. (perennial Classics). ___ o O Schabat. São Paulo: Perspectiva, 2000. (Elos, 49). ___ o O último dosprofetas. São Paulo: Manole, 2002. LEONE, Alexandre Goes. A imagem divina e opó da terra: humanismo sagrado e crítica da modernidade em A. J. Heschel. São Paulo: Humanitas, 2002. ___ o A oração como experiência rnistica em Abraham J. Heschel. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, n. 4, p. 42-53, 2003. LOWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Benjamin. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1990. p. 131-188. (Debates, 234). MATZLIAH, Melamed. Sidur Teft//at Matzliah. Miarni Beach: Cuban Sephardic Hebrew Congregation, 1966. MEYER, Marshall T. ln Memorian. 10: HESCHEL, Abraham Joshua. O últifl'1o dosprofetas. São Paulo: Manole, 2002. 84 4 Dor de letra: relatos de sofrimento em Fílon de Alexandria e Primo Levi Cesar Motta Rios Neste ensaio,pretendo observara maneira comoFilon eLevi lidam com o ato de narrar o sofrimento imposto aosjudeus de seu tempo. Não se trata de uma comparação entre dois eventos históricos (aperseguição aosjudeus alexandrinos em meados do século 1 e a Shoá, no século20), mas entre as maneiras de se colocarcomo narrador dessesfatos. Ambos optam pela palavra como meio de sua expressão, mas também reconhecemas limitações desse "órgão" e, em algum momento, recorrem a uma forma específicadele (apoesia, palavra-arte) e ao corpo (o corpo narrado) para precisar o que contam. Esse aspecto deve ser explorado com algum cuidado nas páginas que seguem,juntamente com uma indagação inicial' em que medida os relatos de Filon podem ser considerados "testemunhos literários"juntamente com os de Primo Levi? {Fílon deAlexandria; Primo Levi; testemunhos literários} Introdução Há um perigo constante em reflexões como a que proponho: a va- lorização exagerada das semelhanças. A aproximação entre os relatos de Fílon e Primo Levi poderia levar à conclusão de que o que teve lugar na Alexandria do século 1 foi uma prévia do que viria a acontecer na Euro- pa do século 20. Seduzido pela semelhança, alguém concluiria mais do que o indicado pelos dados. Não é esse o caminho que pretendo trilhar. Os eventos históricos, com suas proximidades e distanciamentos, têm um papel secundário nesta reflexão. O conteúdo do enunciado só será interes- sante na medida em que revelar algo sobre a maneira da enunciação. 85
  • 2. _____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010 Como Fílon e Levi se colocam como narradores? Por que e para que narram o que narram? São ambos "testemunhas"? Como se relacio- nam com a mediação da linguagem e o que fazem para lidar com suas limitações? Essas são as perguntas que nortearão o pensamento para este escrito, à medida que palavras dos próprios autores serão evocadas para ele. De Primo Levi, abordo sobretudo o livro É isto um homem? Para o caso de Fílon, considerarei Contra Flaco, que narra os eventos da perse- guição sofrida pelos judeus alexandrinos em 38 E.C, quando Aula Avilio Placa ocupava o cargo de "prefeito". Ademais, observarei Embaixada a Calígula, que, poucos anos mais tarde, recupera eventos de Contra Flaco, enquanto conta sobre uma embaixada enviada pelos judeus ao impera- dor romano Caio Caligula com o intuito de solicitar o direito à cidadania alexandrina. Fílon era um dos representantes dos judeus. Os gregos da cidade também haviam enviado uma embaixada com objetivo contrá- rio: impedir a aquisição de direitos por parte dos conterrâneos judeus. Durante a embaixada, é revelado o intento de Caligula de colocar uma imagem sua dentro do Templo em Jerusalém. Embora ambos os trata- dos tenham forte teor político, cada qual revela uma tentativa diferente de lidar com a linguagem e com o lugar do narrador, o que deverá ser explicitado ao longo deste ensaio. Lugares da testemunha Uma dúvida que pretendo resolver ao longo desta reflexão é justa- mente a possibilidade de se classificar os referidos escritos filônicos como "testemunhos literários". Um caminho viável para aproximar-me de uma conclusão parece ser a comparação da maneira como Fílon ocupa a fun- ção de narrado r dos eventos que o cercam com a maneira de alguém hoje considerado (quase unanimemente) uma testemunha. Giorgio Agamben afirma de modo determinado: "Um tipo perfeito de testemunha é Primo Levi" (AGAMBEN, 2008, p. 26). O filósofo procura nos termos latinos utilizados para referir-se à testemunha algum esclarecimento sobre essa condição. Testis é aquele que se coloca como terceiro em um litígio entre duas partes. Já superstes é o sobrevivente, aquele que "atravessou até o final um evento e pode, por- tanto, dar testemunho disso" (AGAMBEN, 2008, p. 27). De inicio, fica 86 RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ...---------------------------- claro que Levi não é um testis. Ele não pode colocar-se como terceiro, porque está incluído no evento de maneira radical. Por isso também, ele não pode colaborar de modo neutro para um julgamento. Em princípio, ele seria então um superstes, afinal, esteve no Lager e saiu vivo, tatuado para contar. Adiante, porém, ao deparar-se com a figura do "muçulmano", "a testemunha integral" que, paradoxalmente, não tem condição de relatar o que viveu depois de "tocar afundo", Agamben parece reconsiderar a condição de Levi. Ele não experimentou o Lager em sua completude, até o limite de sua atrocidade. Outro termo latino é evocado pelo filósofo: auctor. Este é aquele que concede (e tem autoridade para tanto) autori- zação àquele que dela carece. Assim, o auctor supre uma incapacidade da outra parte. E assim como o ato do auctor completa o do incapaz, dá força de prova ao que, em si, falta, e vida ao que por si só não poderia viver, pode-se afirmar, ao contrário, que é o ato imperfeito ou a incapa- cidade que o precedem e que ele vem a integrar que dá sentido ao ato ou à palavra do aflclor-testemunha. Um ato de autor que tivesse a pretensão de valer por si é um sem-sentido, assim como o testemu- nho do sobrevivente é verdadeiro e tem razão de ser unicamente se vier a integrar o de quem não pode dar testemunho (AGA1vfBEN, 2008, p. 151). Há, pois, duas partes. Há, também, uma relação de comunhão entre elas. Ou seja, o testemunho perde sua aura de unicidade e individuali- dade (da experiência) e torna-se comunitário. A relação é de comum in- terdependência. O que se cala (o "muçulmano", no caso da Shoa') existe (isto é, se sustenta) no mundo depois de si a partir do testemunho do sobrevivente. Este só é testemunha na medida em que é cocriador, tra- balhando com o preexistente, o silêncio do outro (que lhe dá a possibi- lidade da voz). Assim, parece que Agamben encontra o lugar de Primo Levi e o caracteriza minimamente a partir dos termos latinos. Inquieto-me: qual desses três termos se refere melhor a Fílon? Apresento a seguir pequenos trechos de Contra Flaco para buscar alguma compreensão do teor do texto. Vejamos um primeiro: 87
  • 3. _____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010 Pois, poucos dias depois, ele [Flaco] estabelece um edito, por meio do qual nos nomeava estrangeiros e imigrantes, sem ter-nos concedido a palavra, mas sim sentenciando-nos sem julgamento. O que seria uma proclamação de tirania maior que isso? Ele mesmo se fazendo todas as coisas (acusador, inimigo, testemunha, juiz, carrasco...). Assim, aos dois primeiros [erros] acrescentou um terceiro, ao permitir aos que quises- sem, como em conquistas de guerra, saquear os judeus. E o que fazem os que receberam a imunidade? Há cinco partes da cida- de, nomeadas com os primeiros elementos da voz em letras [isto é, do alfabeto]. Destas, duas são ditas "judaicas", pelo fato de nelas habitar a maior parte dos judeus (também nas demais moram não poucos espa- lhados). O que fizeram então? Expulsaram osjude«: de quatro "letras" e os forçaram a ir para uma pequeníssima parte de uma delas (pHILO, 1995a, p. 54-55. Grifos meus).' Além de revelar a natureza da perseguição que teve lugar em Alexan- dria, esse trecho revela um problema relacionado à posição que Filon ocu- pa no evento. De início, ele, por ser também judeu, se inclui entre os que são nomeados "estrangeiros e imigrantes": "nos nomeava" (hemás apekález). Em seguida, contudo, ele se refere aos expulsos como "os judeus" (toiu Ioudaíotls), não explicitando sua participação na experiência. Ele parece estar ausente do padecimento em si. Diferente de Levi, em alguns momentos Fí- lon, aparentemente, se coloca como espectador mais que como aquele que vivencia os eventos, como no trecho que a seguir exponho. Após explicitar as nefastas consequências econômicas da formação desse "gueto" judeu em uma das cinco partes de Alexandria, Filon passa a narrar os sofrimentos físicos impostos sobre aqueles que saiam dos limites recém-estabelecidos: Malfadados! Pois, imediatamente, tendo sido capturados pelos que ha- viam fortificado a "populachocracia", eram dolosamente assassinados e, sendo puxados e levados por toda a cidade, eram largados, quando já não restava nenhuma parte que pudesse ter parte em um sepultamento. E os enlouquecidos sob uma selvageria, [levados] a uma natureza de feras, subjugaram e mataram ainda outros milhares com multiface- tadas formas de males praticadas com vistas a uma dura crueldade. Eles expulsavam aqueles dentre os judeus que por acaso apareciam em I Esta tradução, como todas as da obra de Filon apresentadas neste texto, é de minha responsabilidade e elaborada a partir do texto em grego. 88 _____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ... qualquer lugar, ou com paus os espancavam, lançando os golpes não imediatamente sobre as partes vitais, para que não acontecesse que, chegando a termo rapidamente, rapidamente também escapassem da percepção das dores. Mas alguns que agiam com audácia jovial pela imunidade e licença das circunstâncias, desconsiderando as armas mais vagarosas, erguiam as mais eficazes de todas, fogo e aço. Muitos foram aniquilados com espadas, e não poucos, por sua vez, foram mortos com fogo. E os mais sem compaixão de todos queimaram nesse mo- mento famílias inteiras, homens junto com as mulheres, filhos infan- tes junto com progenitores, em plena cidade, não tendo piedade nem para com velhice, nem juventude, nem para com a idade sem maldade das crianças. E quando quer que estivesse em falta a lenha de árvores, ajuntando gravetos matavam com fumaça, mais gue com fogo, arquite- tando uma destruição mais digna de piedade e mais prolongada para os miseráveis, cujos corpos semigueimados jaziam confusamente. Dura e dolorosíssima visão! (pHILO, 1995a, p. 65-68). O padecimento do narrado r se limita à dor da visão, não chegan- do a inserir-se como alvo direto da violência. Além disso, as vítimas não são nomeadas ou identificadas como parentes ou pessoas de seu convívio próximo. São alguns dentre os judeus. Por ser ele também um judeu, en- tendemos que está implicado; no entanto, ele parece não estar inserido explicitamente no acontecimento. Por isso, talvez seja difícil identificar Fílon como sobrevivente (supers- tes), ademais de não poder-se localizar com clareza sua situação durante o ocorrido. Éprovável que também ele estivesse entre os judeus encurralados numa pequena parte da cidade. Mas, ainda que isso seja verossímil, não transparece no discurso. De alguma forma, ele se descola do grupo com o qual está identificado para narrar, como observador, o sofrimento dos seus.! Restam, pois, duas opções entre as arroladas por Agamben: testis e auctor. Ambos os termos revelam algo sobre o lugar ocupado por Filon. De fato, ele parece procurar o lugar de testis, do terceiro, ao ausentar-se das cenas e referir-se aos seus, em alguns momentos, como "os judeus". 2 Fllon não exclui 05 judeus mais abastados dos sofrimentos impostos pelos gregos, mas é possivel que a posição que sua família ocupava lhe permitisse algum beneficio. Os filonistas são unãnimes sobre a riqueza da família de Fllon. Um conhecido parente foi Alexandre. seu irmão. que exercia uma função burocrática ou polftica em Alexandria referida pelo titulo de alabarca, e que era extremamente rico pelo que se sabe a partir dos relatos de Flávio Josefo (ver, por exemplo: ARNALDEZ, 1961, p. 18; BORGEN, 2005, p. 14-15; MARTIN, 2009, p. 13-14). 89
  • 4. _____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010 Ademais, diferente de Levi, ele não só assume a possibilidade de um julga- mento, como procura demonstrar a culpa daqueles a quem considera seus algozes". É considerável, por exemplo, que quase a metade de Contra Placa seja dedicada à narrativa do destino que coube ao "prefeito" de Alexandria _ exílio e morte -, segundo Fílon, uma punição providenciada por D'us. Assim conclui-se o tratado: "Tais coisas Flaco sofreu também, tornando- -se a prova mais livre de mentira de que a etnia dos judeus não foi privada do socorro da parte de Deus" (pHILO, 1995a, p. 191). Notável a utiliza- ção do termo prova (pístis), emprestado do vocabulário jurídico. Parece razoável, então, compreender que Fílon procura, de fato, narrar fatos com vistas a uma acusação, ou à justificação de um julgamen- to." Ele não percebeu a zona cinzenta (LEVI, 1990, p. 31-59), descoberta de Primo Levi. Talvez por isso acredite na possibilidade (e utilidade) de um julgamento. Outra diferença correlata se apresenta: no livro do italiano já é descartada desde o início qualquer pretensão lógica: O livro foi escrito, em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí seu caráter fragmentário: seus capitulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O traba- lho de ligação e fusão foi planejado posteriormente (LEVI, 2000, p. 8). Não está em questão a urgência ou não da escrita de Fílon, mas é evidente que a estruturação de seu escrito não se faz "posteriormente", mas de forma pensada com vistas a certa finalidade. Entretanto, não se reconhece nele a neutralidade requerida pela posição de testis, ainda que ele possa simulá-Ia em algum momento.' Caberia, pois, recorrer ao outro termo: auitor. Como o testemunho de Levi depende da impossibilidade do testemunho dos "muçulmanos", o relato de Fílon talvez se apoie no silêncio dos corpos semiqueimados e dos destroçados pelas ruas da cidade. No caso do autor antigo especifica- mente, pode-se pensar que seu relato se apoia não só no silêncio dos que 3 No tratado agora em análise, Flaco; no outro a ser abordado. Callgula . • Um julgamento divino? Alguém poderia indagar: ·Se é divino, precisaria de explicações?" Deve-se observar que a acusação e a explicação podem servir como meio de se perceber o nexo causal entre uma atitude e outro acontecimento. de modo a apontar a uma interpretação dos fatos que considere uma intervenção da Providência. S No caso de Primo Levi, também se pode pensar em uma relação com o julgamento. Embora o livro mesmo não deixe perceber essa intenção e até indique outra, Dalya M. Sachs revela uma situação mais complexa com relação ao assunto (ver SACHS, 1995). 90 _____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ... não puderam expressar-se, mas também na voz daqueles que escreveram sobre o assunto (caso tenham escrito) e se perderam ao longo dos séculos. Encaminho-me a uma solução provisória. Parece-me que, embora os três termos cooperem para uma compreensão dos papéis exercidos por Fílon e Levi, cada um tende a movimentar-se preferencialmente entre dois deles. Primo Levi, de início, parece ser simplesmente uma testemunha- -superstes, mas carecemos do termo auctor para cornpreendê-Io. Fílon, por sua vez, solicita testis, em princípio, por sua maneira de articular os fatos e a acusação, mas seu discurso só se sustenta a partir do silêncio alheio; pelo que, sem o termo auctor, seu lugar é sem sentido. De alguma maneira ele po- deria ser também considerado superstes, mas, como observei, não há ênfase nessa direção. Assim, temos um Levi-sttperstes-auctor e um Filon-testis-auctor, cada qual se dispondo a relatar os sofrimentos por um motivo e com um objetivo aparentemente diferente, mas incorrendo em alguns problemas e encontrando alguns limites semelhantes, como a seguir observarei. As coisas e o som/ silêncio da palavra cm lá recebemos as primeiras pancadas, o que foi tão novo e ab- surdo que não chegamos a sentir dor, nem no corpo nem na alma. Ape- nas um profundo assombro: Como é que, sem raiva, pode-se bater numa criatura humana?" (LEVI, 2000, p. 15). O assombro diante do que não se compreende é um passo prévio ao que quero observar neste tópico. A novidade dos fatos ou seu deslocamento provocam naquele que os experimenta (e os narra) a percepção de um desacerto que interferirá em sua utilização da linguagem. O soco estava, até certo momento, direta- mente relacionado à raiva. Quando se desconectam os dois, há estranheza. O que se espera não se realiza, ou se realiza de modo completamente fora da lógica do mundo previamente experimentado. As comparações surgem, então, como elementos retóricos próprios para tornar clara a situação. Para com os condenados à morte, a tradição prescreve um austero cerimonial, a fIm de tornar evidente que já não existe paixão nem raiva; apenas medida de justiça, triste obrigação perante a sociedade, tanto que até o verdugo pode ter piedade da vítima. Evita-se ao condenado, portanto, toda preocupação externa; a solidão lhe é concedida e, se assim ele o desejar, todo conforto espiritual [...] 91
  • 5. _____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010 Nada disso, porém, nos foi concedido, já que éramos muitos, e pouco o tempo. Além do mais, de que deveríamos nos arrepender ou sermos perdoados? (LEVI, 2000, p. 13). O que se faz a um condenado à morte pela Justiça se contrapõe ao que lhes foi feito, não sendo eles nem mesmo judicialmente condenados. De modo semelhante, Filon observa que inclusive os que perecem na guerra são deixados para que os seus lhe prestem as homenagens fú- nebres. Logo introduz a comparação nos seguintes termos: "Na guerra, por um lado, os inimigos [fazem] estas coisas. Na paz, por outro lado, ob- servemos o que fizeram os que há pouco eram amigos" (pHILO, 1995a, p. 62). Em seguida, ele chega ao trecho que citei acima, no qual revela o tratamento dado aos corpos dos judeus mortos. Os condenados e os nem-sequer-julgados, em tempo de guerra e em tempo de paz. As ações realizadas em situações diferentes são con- trapostas com vistas a um esclarecimento único: o que fizeram (a nós? Aos nossos? Aos judeus?) em uma situação "imprópria" foi mais grave, mais intenso ou aterrador que o que fazem na situação "própria"? A ação intensificada está fora de seu contexto. Então, a comparação pode ser, como disse, uma tentativa de compreensão ou expressão dos fatos. Uma tentativa necessária porque a simples nomeação dos fatos e ações não é eficaz para produzir a comunicação almejada (isto é, não faz comum entre narrador e leitor o que está sendo de fato narrado). Os narradores (tanto o que suponho ser Levi-superstes-auctor quanto o também hipotético Fílon-testis-auctor) tocam os limites da linguagem: Assim como nossa fome não é apenas a sensação de quem deixou de almoçar, nossa maneira de termos frio mereceria uma denominação específica. Dizemos "fome", dizemos "cansaço", "medo" e "dor", di- zemos "inverno", mas trata-se de outras coisas. Aquelas são palavras livres, criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega (LEVI, 2000, p. 125-126). E estas coisas, se já são insuportáveis, comparadas, entretanto, com as praticadas em seguida são leváveis. Pois a pobreza é difícil (sobretudo 92 _____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ... quando preparada da parte de inimigos), mas é menos que a violência aos corpos, ainda que seja brevíssima. E com relação aos nossos, dado o excesso das coisas que sofreram, nem que alguém dissesse ter recebido violência ou ultraje estaria usando termos próprios, mas parece-me que estaria em falta de designações familiares, pela grandeza da crueldade recém-obrada, de modo que as dos que saem conquistadores na guerra (que são por natureza implacáveis para com os prisioneiros) pareceriam ser as mais doces comparadas com aquelas (pHILO, 1995a, p. 58-59). Levi se inquieta e pensa na possibilidade de uma linguagem criada a partir daquela realidade dura, uma vez que a trazida do mundo livre não lhe servia plenamente. Filon, por sua vez, deixa claro que o alcance das palavras conhecidas não chega aos eventos narrados "pela grandeza da crueldade recém-obrada". O novo, o diferente, o deslocado não são contemplados satisfatoriamente pelo vocabulário preexistente. Por isso, o narrador vê-se incomodado, insatisfeito, pois as palavras indicam minima- mente o que ele pretende expressar, mas silenciam parte do significado, ou enganam, ao ocultar diferenças. A relação com a palavra se torna parado- xal, mas permanece necessária, como observa Valerio Ferme: Não importa quão inadequada a linguagem possa ter sido inicialmente, como ferramenta para entender como os campos funcionavam; ela per- manece presente na ausência, como o único meio de resistência que pode escapar do controle do nazismo (FERME, 2001, p. 57.Tradução minha). O narrador depende da linguagem, mas precisa ir além do uso cor- riqueiro do léxico, buscando explicações por analogias (como as mencio- nadas), enfatizando certos elementos da realidade/narrativa ou lançando mão de recursos especiais. O que chamo aqui de "recursos especiais" é o tema do próximo tópico: uma aproximação da linguagem da narrativa à poesia, uma ênfase no corpo ou, ao mesmo tempo, um trabalho de poética e corporeidade na escrita (a partir da relação com um gênero específico). o corpo inscrito e o recurso ao poético Uma frase pode ter passado despercebida na última citação: "Pois a pobreza é difícil (sobretudo quando preparada da parte de inimigos), mas é menos que a violência aos corpos, ainda que seja brevissima" (pHILO, 1995a, p. 58). Um elemento definitivamente envolvido nos fatos 93
  • 6. que dão origem às narrativas de Fílon e Levi e, consequentemente, está inscrito nestas, é justamente o corpo. A diferença entre os dois autores, como antes vimos, é que os corpos na narrativa de Contra Flaco são de ou- tros judeus. O corpo do escritor não aparece marcado, ou melhor, só está implicado pela marca comum com aqueles que padecem: a circuncisão. ] á o corpo de Levi é de tal modo sofrido que convém observá-lo: O enfermeiro aponta as minhas costelas ao outro, como se eu fosse um cadáver na sala de anatomia; mostra as pálpebras, as faces inchadas, o pescoço fino; inclina-se, faz pressão com o dedo em minha canela, indicando a profunda cavidade que o dedo deixa na pálida carne, como se fosse cera (LEVI, 2000, p. 48). Uma mudança que marca a degradação, pois: "No ano passado, a esta hora eu era um homem livre. Fora da lei, porém livre, tinha nome e família, uma mente ávida e inquieta, um corpo ágil e saudável." (LEVI, 2000, p. 145). O corpo é trazido à cena. Colocado em evidência, ele revela a mu- dança, explicita a gravidade do fato. O corpo parece ser um caminho para se tentar fazer comum uma experiência. O narrador fala do corpo, talvez com a intenção de atingir também, isto é, trazer para o ato da leitura o cor- po do leitor, ou, no mínimo, para dar mostra da concretude da violência. O foco no corpo parece, então, tentar suprir alguma limitação da lingua- gem, ainda que dependente dela. Resta, ainda, outra tentativa: a poesia. Se a linguagem pode ser percebida como um órgão fora do corpo (e este, imagino um verbo fora da linguagem), entendo a poesia como parte ou função desse órgão. Ou melhor, uma forma de realização do órgão-linguagem. Nas palavras mais precisas de Karl ]aspers: Poesia é o órgão pelo qual apreendemos o cosmos e todos os conteú- dos de nossa essência da forma mais natural e evidente. Levados pela linguagem, transformamo-nos a nós mesmos. Imperceptivelmente, a fantasia provocada pela poesia abre em nós o mundo das concepções pelas quais primeiro nos tornamos capazes de apreender significativa- mente nossas realidades GASPERS, 2004, p. 23). Apresenta-se a possibilidade de uma apreensão das realidades com a colaboração da poesia. No meio do campo (e entre as páginas de É isto um homem?) comparece a poesia: "O canto de Ulisses. Quem sabe como e por que veio-me à memória, mas não temos tempo pra escolher, esta hora já não é mais uma hora. Se ]ean é inteligente, vai compreender. Vai: hoje 94 _____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ... sinto-me capaz disso" (LEVI, 2000, p. 114). Ao longo das páginas escritas por Levi não são escassas as referências, mais ou menos sutis, a dados da literatura. Mas nesse capítulo, intitulado "O canto de Ulisses", a poesia en- tra definitivamente em cena, como meio de fazer algo comum. A "descul- pa" para o poético vir à tona é uma aula de italiano. O produto escolhido é a obra de Dante. O personagem, Ulisses, o herói do retorno. Primo Levi rememora versos e os explica a ]ean ("Pikolo''). Em certo ponto: Pikolo me pede para repetir esses versos. Como ele é bom: compreen- deu que está me ajudando. Ou talvez seja algo mais: talvez (apesar da tradução pobre e do comentário banal e apressado) tenha recebido a mensagem, percebido que se refere a ele também, refere-se a todos os homens que sofrem e, especialmente, a nós: a nós dois, nós que ousa- mos discutir sobre estas coisas, enquanto levamos nos ombros as alças do rancho (LEVI, 2000, p. 116).6 A poesia participa de um processo que pode ser entendido como re- apropriação da dimensão humana, como recuperação da possibilidade de se apreender a realidade por meio da linguagem, ou como a constituição do ser por meio da rememoração. Seja como for, parece que o capítulo em questão ("O canto de Ulisses'') "marca uma importante transição na ex- periência do campo por parte de Levi" (FERME, 2001, p. 63).7 O poema parece ajudar o ser a localizar-se no mundo. Cabe, agora, observar essa relação entre a poesia e a escrita de Fílon, o que não é estranho, uma vez que ele cita versos de vários poetas gregos, ou faz referências mais ou menos perceptíveis a esses ao longo de seus tra- tados (inclusive nos exegéticos). Entretanto, mais que citações, e inclusive mais que referências sutis, outros rastros helênicos podem ser deixados na escrita de Fílon. Essa escrita que nasce em prosa poderia ter sua fonte, seu modelo, sempre observado no arquivo canônico judaico. Mas não é o que se verifica, ao menos não exclusivamente. Como a prosa grega de então (penso sobretudo nos romances gregos), a escrita de Fílon se deixa marcar por um trabalho na fronteira dos gêneros literários. Parece que, na narrativa em prosa, é fácil jogar com elementos de outros gêneros. A impressão que • Cito os versos a Que se refere essa parte do diálogo: "Relembrai vossa origem. vossa essência:1 vós não fostes criados para bichos.! e sim para o valor e a experiência." 7 Chegou-se a sugerir uma posslvel aproximação estrutural entre o livro de levi e a obra de Oante (ver FERME. 2001, p. 53-54, nota 5), mas não me sinto seguro a ponto de explorar essa possibilidade. 95 -'"
  • 7. ______ RI:::VISTA DI::: I:::STUUOS JUUAIc.;O~. V. ti, p. tio-1U4. seio HOrizonte, LUU~-LU lU tenho, e que pretendo demonstrar minimamente, é que Fílon escolhe ele- mentos da tragédia grega para retratar os ocorridos em sua época. Horror e piedade, desmedida e erro figuram como características de uma época em que um homem decide ser cultuado como deus e impõe essa prática inclusive aos judeus. Mais que isso: Fílon parece conceber e traba- lhar sobre a tragédia em cena, como espetáculo, não texto somente. Por isso, o corpo está em total evidência, participando e comunicando a experiência de então. Para início de uma demonstração, refiro-me a um trecho especí- fico, o qual servirá de mero exemplo, escolhido entre outras possibilidades. Fílon vem narrando a ansiosa espera da embaixada (da qual faz parte) en- viada pelos judeus de Alexandria ao encontro de Calígula. O tempo passa e o imperador não os recebe. Então, ocorre uma mudança na situação: A nós, que refletíamos sobre a questão - pois tínhamos sempre a ex- pectativa de sermos chamados - aproxima-se uma pessoa que nos olha- va com [olhar] ensanguentado e perplexo, completamente ofegante e, conduzindo-nos um pouco para longe dos outros - pois havia algumas pessoas perto - disse: "Ouvistes as novidades?" E, quando estava a ponto de nos contar, foi interrompido, pois lhe saía uma incessante corrente de lágrimas. E, tendo começado de novo, por uma segunda vez foi interrompido, e por uma terceira ainda. Vendo isso, nós nos agitamos e pedimos que contasse o assunto pelo qual haviavindo. Ale- gávamos: "Pois não [foi] com o intuito de prantear com testemunhas [que vieste]. E se são coisas dignas de lágrimas, não padeças sozinho da tristeza.Já estamos acostumados a infortúnios." E ele, embora com dificuldade, soluçando e com a respiração entrecortada, disse: "Nosso templo se foi! Caio ordenou erigir na parte mais interna do santuário uma gigantesca estátua humanóide dele mesmo apelidada de Zeus." Enquanto estávamos atônitos pelo dito, congelados pela consternação e já não podendo ir adiante - pois jazíamos de pé mudos, tendo poucas forças e desfalecendo por causa de nós mesmos, uma vez que estavam exaustos nossos vigores corpóreos - outros se aproximavam trazendo suas próprias aflições (PHILO, 1995b,p. 186-189). Como se percebe, nesse trecho ocorre a chegada de um mensageiro, personagem muito recorrente nas tragédias gregas. É possível chamá-lo mensageiro trágico, tanto para marcar sua relação com aquele da tragédia, quanto para caracterizar o conteúdo que anuncia (pensando no significado 96 _____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ... atual do termo trágicoB-y. Contudo, a teatralidade do episódio poderia não ser dada a perceber, não fosse outro aspecto destacável: a ênfase no corpo do mensageiro e dos que recebem a mensagem. Primeiro, o mensageiro não consegue falar por causa do choro incessante. Uma, duas, três vezes o "vemos" tentar e não conseguir. Em seguida, ele fala, mas entre soluços e com respiração entrecortada. A mensagem em si é breve, ao menos nesse primeiro momento. A atenção às maneiras, às reações e aos movimentos dos corpos no espaço cênico, por outro lado, é detida. Uma pergunta nada importante, mas talvez reveladora: um grupo de atores teria grande tra- balho para reconstruir a cena, inclusive o comportamento não verbal dos participantes? Alguém poderia, decerto, perguntar se não se trata de uma preo- cupação impensada ou relacionada a outra causa que não uma aproxima- ção intencional com a tragédia. Em princípio, eu tenderia a reconhecer que sim. Não obstante, alguns indícios nesse mesmo tratado me levam à convicção de que há de fato um interesse especial na comunicação que transcende o verbal (chegando ao corporal, ao espetacular) e na própria tragédia especificamente. Noto, por exemplo, que, quando a narrativa se detém em um grupo de judeus que suplica a Petrônio que colabore para evitar a procissão que levaria a imagem de Calígula-Zeus ao Templo, há também uma ênfase na descrição do corpo dos suplicantes. Em seguida, diz-se que o romano foi comovido "pelas coisas que foram ditas e pelas que foram vistas" ("hypà tôn lekhthénton kai horoménon" - PHILO, 1995b, p. 243). Em outro trecho, é o próprio Calígula que diz a Agripa que este já deveria ter notado o seguinte fato: "falo claramente não somente com a voz, mas também com os olhos" (ou "têi phonêi mónon allà kai tOISómmasi phthéngomai" - PHILO, 1995b, p. 264). Resta observar o fato de que essa ênfase no corporal reflete uma relação estabelecida com a tragédia como gênero. Para tanto, não me basta, embora me sirva como testemunho, lembrar que, segundo Aristóteles, a • Para uma reflexão sobre os significados do termo, confira-se MOST (2001). Para uma diferenciação entre as noções de testemunho, tragédia e trágico. veja-se SELlGMANN-SILVA (2005). Ressalto que o que proponho não é uma explicação do testemunho pela tragédia, mas uma observação do texto como lugar de negociação e construção de significado a partir dos meios (língua, gênero, fórmulas retóricas etc.) disponiveis em seu universo discursivo. 97
  • 8. _____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010 tragédia se divide em seis partes, sendo que uma das quais é justamente um componente visual (ópsis. Ver Poética, 1450a). Devo observar também trechos do próprio tratado filônico que se refiram especificamente ao gê- nero em questão. Destaco, então, a atenção que se dá ao fato de Apeles, um certo ator trágico, ter chegado a ser conselheiro de Calígula (pHILO, 1995b, p. 203-204). Mas o fato é histórico, alguém poderia dizer. De fato, mas a meu ver, a presença desse personagem histórico traz à cena a tragé- dia e possibilita um diálogo com esta. Ainda assim, é bom considerar ou- tro trecho. Durante a já mencíonada súplica a Petrônio, os anciãos dizem que não faria falta um exército para se opor aos judeus, pois estes estavam sujeitos à autoridade política e se entregariam a si mesmos em sacrifício, "os assassinos de esposas oferecendo suas esposas ao altar, os fratricídas, os irmãos e as irmãs, e os infanticídas, garotos e garotas, em idade de inocência" (pHILO, 1995b, p. 234). A escolha dos termos, por si só, já seria interessante ao meu objetivo. Contudo, o comentário imediatamente posterior não deixará dúvidas: "Pois palavras trágicas [traguikôn onomáton] são necessárias para aqueles que suportam circunstâncias trágicas [tragui- kàs symphoràs]." (pHILO, 1995b, p. 234).9 O que proponho é simplesmente a possibilidade de se pensar que esse recurso à tragédia não se limitaria a seu vocabulário e a essa súplica específica. A meu ver, esta fala pontual possibilita uma suspeita mais geral de que, mais do que palavras, outras características da tragédia são mobilizadas no escrito. É conveniente, pois, estudar como Fílon agencia elementos do gênero trágico para narrar as "circunstâncias trágicas" a que estiveram submetidos os judeus de meados do século 1. E o mais instigante, entender por que um gênero especificamente grego é mo- bilizado para narrar a resistência (e sofrimento) dos judeus diante do mundo greco-romano. A resposta talvez se encontre no mesmo tratado, inclusive em sua parte inicial, mais dissertativa, na qual não somente a teologia judaica, mas também (e mais detidamente) a própria mitologia grega é evocada para se refutar a divinização de Calígula. Talvez seja essa uma marca da obra de Fílon: a possibilidade de se mover nos diferentes • Vale lembrar que o adjetivo traguik6s, que traduzo por trágico, remete à tragédia como gênero. Talvez pos- samos pensar em um sentido mais desconectado da própria tragédia como gênero na segunda ocorrência na frase, mas o jogo com o sentido que agora me interessa é inegável. 98 _____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ... discursos, argumentando, interpretando e narrando nas fronteiras, ne- gocíando habilmente em meio a uma situação de considerável tensão cultural. 10 Além disso, algo interessante é perceptível no trecho mais longo antes citado: um dos "atores" é o próprio narrador. Se em Contra Placo ele só observava corpos alheios, agora seu próprio corpo está em cena, falto de forças, como os dos outros. O envolvimento é bem marcado. Pouco antes, porém, ele havia fornecido um dado também importante, que de alguma maneira o destaca no grupo: ele diz que todos estavam iludidos com a recepção do imperador, mas que ele (e ele usa a palavra eu - ego) era mais cauteloso (eulabésteros), pela idade e pela outra formação (kai di'helikían kai tên állen paideían). A idade mais avançada e a formação, isto é, educação formal, o distinguem, fazendo-o mais prudente, por um lado, mas também, a meu ver, dando a ele uma posição privilegiada para relatar. De alguma maneira, ele se apresenta explicitamente como preparado para considerar as ações com cuidado e, por conseguinte, defende implicita- mente sua qualidade de narrador. Logo, como vimos, inclui-se na cena. A meu ver, ele diz algo como: "Estarei em cena, mas sou capaz de narrá-Ia com acerto." Decerto, os relatos de sofrimento não são necessariamente poéticos. Ademais, o poético não precisa ter uma ancoragem precisa no mundo das realidades. Não obstante, há uma relação perceptível entre poeta e teste- munha, pois ambos se movimentam em um espaço localizado entre a im- possibilidade e a possibilidade de dizer. Encerro este tópico com palavras de Giorgio Agamben: a palavra poética é aquela que se situa, de cada vez, na posição de resto, e pode, dessa maneira, dar testemunho. Os poetas - as teste- munhas - fundam a língua como o que resta, o que sobrevive em ato à possibilidade - ou à impossibilidade - de falar (AGAMBEN, 2008, p. 160). 10 Interessante também notar que, se a tragédia está relacionada com a forma de narrar a perseguição sofrida após os eventos, outro tipo de representação aparece no inicio desta. Em Contra Flaco (PHILO, 1995a, p. 3640), Filon conta que, quando da visita de Agripa a Alexandria, os gregos tomaram um lunático da cidade, vestiram-no como rei e se curvaram a ele no Ginásio, em uma espécie de mimica teatral para ridicularizar o rei dos judeus (HORST, 2003, p. 130). 99
  • 9. _____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 20-0g:-2010 No campo da hermenêutica Primo Levi não era escritor quando foi levado ao campo de concen- tração. Fílon, por sua vez, parece que já havia escrito muitos de seus trata- dos quando compôs Embaixada a Calígula e Contra Flaco. Vale lembrar que a maioria dos outros tratados são caracterizados como exegéticos porque, o mais das vezes, reescrevem ou apresentam interpretações para o Pen- tateuco. De alguma maneira, percebo que ao contar a violência que teve lugar em Alexandria, Fílon não deixa de ser um hermeneuta. Ele, de fato, apresenta as diversas "cenas" de sua narrativa com o intuito de produzir uma compreensão sobre o ocorrido. Como vimos, no caso de Contra Flaco, a interpretação conclui que o povo judeu continuava sob uma proteção especial de D''us. Mas essa conclusão só é dada após a estruturação de toda uma narrativa que enfatiza certos elementos e os arranja de manei- ra devida. Em Embaixada a Calígula parece acontecer algo semelhante, o autor mostra como D'us colocou em prova a virtude dos judeus. O fim de Caligula não é demonstrado, como o de Flaco, mas o tratado termina em aberto, como anunciando outro tratado, ou indicando que a história demonstraria o que se segue (BORGEN, 2005, P: 193). Sobre ambos os tratados, Peder Borgen afirma de forma clara e resumida: Fílon aqui narra uma história teologicamente interpretada, baseada em ideias relacionadas à Lei de Moisés. Nesse aspecto, esses tratados mos- tram uma similaridade com a escrita da história no Antigo Testamento, no judaísmo e no Novo Testamento (BORGEN, 2005, p. 192. Tradu- ção minha). Quanto a Primo Levi, devo destacar algo que ele parece entrever, mas que não desenvolve detidamente: Na marcha para o trabalho, vacilando sobre nossos tamancos por cima da neve gelada, trocamos algumas palavras. Resnyk é polonês; morou vinte anos em Paris, mas fala um francês terrível. Tem trinta anos, po- rém, assim como cada um de nós, poderia aparentar entre dezessete e cinqüenta. Contou-me a sua história e já a esqueci, devia ser, por certo, uma história dolorosa, comovedora, cruel, porque todas as nossas his- tórias são assim, centenas de milhares de histórias, cada uma diferente das demais e cada uma carregada de uma trágica, surpreendente fata- lidade. Contamo-nos essas histórias, uns aos outros, à noite; histórias 100 _____________________ RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ... de fatos acontecidos na Noruega, na Itália, na Argélia, na Ucrânia, his- tórias simples e incompreensíveis como as da Bíblia. Ou serão, acaso, histórias de uma nova Bíblia? (LEVI, 2000, p. 65). As histórias vividas por cada judeu levado ao campo, bem como a de Levi, têm uma semelhança com as da Bíblia: simplicidade e falta de acesso a uma compreensão. Parecem, então, histórias deslocadas de acon- tecimentos que estariam bem localizados se narrados dentro do cânone sa- grado. Ali receberiam, juntamente com outras tantas narrativas, o cuidado hermenêutico de todas as gerações. Sua estranheza teria um entorno, um enquadramento próprio. Mas, se elas não estão na Bíblia, seriam de uma nova Bíblia? Uma Bíblia, talvez, sem a mesma solicitação de sacralidade da outra, mas com semelhante solicitação de hermenêutica, de comentários e, isso em especial, de reescritas. Por esse pensamento, se são considerados também os textos de Fílon para a reflexão, pode-se indagar: Por que Contra Flaco não está, mas Ester sim? Filon e Levi (cada um a seu modo e com uma relação diferente para com a religião judaica - e independente disso) parecem escrever textos de uma bíblia fora da Bíblia. Se o italiano não procu- ra explicações rápidas para cada dado de seu objeto de leitura é por- que sua hermenêutica não é aquela dos comentadores "verso a verso". le busca mais uma apreensão reflexiva (não radicalmente racional) do "texto". Como na hermenêutica de Fílon (refiro-me agora às in- terpretações que ele faz do Pentateuco), nem sempre se encontra uma resposta certeira, definitiva ou única, havendo lugar para certa fluidez (RIOS, 2009, p. 100-102). Por isso, escrevem. Esse é um passo para fazer a leitura, manter o objeto de interpretação em evidência e analisá- -10 (isto é, desenrolar seu novelo na esperança de isolar alguma de suas linhas [de sentido]). Em outras palavras, quer queiram ou não emitirjufgamento sobre os fatos, algo é mais certo, ambos os escritores procuram estabelecer um tipo de critica do acontecimento. O termo crítica, como se sabe, pode ser aproxi- mado por etimologia da ideia de julgamento. Entenda-se, pois, que quero usá-lo, ao mesmo tempo, tão próximo e tão distante quanto possível des- sa. Eles emitem critica por não poderem não fazê-lo, justamente porque os próprios acontecimentos os convidam ao trabalho de hermeneutas. E 101
  • 10. _____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. 8elo Horizonte, 2009-2010 já que percebemos que seu objeto de leitura não é exatamente um texto, lembro-me da consideração de Paul Ricceur: "como um texto, a ação hu- mana é uma obra aberta, cuja significação está 'em suspenso'" (RICCEUR, 1986, p. 197. Tradução minha). Uma significação que deve ser repensada e refletida por cada geração, como em um comentário cumulativo da outra bíblia: "Rab Fílon de Alexandria disse ... Rab Primo Levi disse ... Rab ..." Conclusões Observei, neste breve ensaio, que corpo e poesia (em algum momen- to juntos) podem ser convocados para um discurso que pretende narrar o horror e a violência contra um povo. Isso, o fiz aproximando e tratando lado a lado uma obra do século 20 e escritos do século 1. A obra do século 20 foi chamada de testemunho. Para os tratados antigos, não utilizei nenhu- ma designação tão definitiva. Mas, agora, talvez seja mais fácil considerar a questão: essas obras de Fílon podem ser tomadas como "testemunhos lite- rários"? Pois bem, de fato até o termo literário é de difícil manuseio quando se trata de escritos de um tempo em que a noção de literatura não existia ainda nos moldes modernos. Mas não deixo de referir-me a esses escritos do alexandrino como literários, uma vez que assim os leio, facilitado (corro- borado, penso) pelo intenso diálogo que ele estabelece com obras que são corriqueiramente chamadas de "literatura grega". Testemunho? A sensata asserção de Seligmann-Silva pode ajudar nesse momento: Nos estudos de testemunho deve-se buscar caracterizar o "teor teste- munhal" que marca toda obra literária (mas, repito, que aprendemos a detectar a partir da concentração deste teor na literatura e escritura do século 20). Este teor indica diversas modalidades de relação rnetoní- mica entre o "real" e a escritura (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 85). Em suma, após essa leitura, parece-me plausível considerar os dois tratados filônicos estudados em comparação com a obra de Levi como um tipo deprosa literária comfundo histórico e marcado teor testemunhal. Lembrando que esse teor não é encontrado de modo único em todas as obras, mas va- ria entre tantas possibilidades de relação da escritura para com esse "real", que Seligmann-Silva pretende ler, seguindo orientação freudiana, como trauma, o que convém no caso de Filon. 102 ----------------- RIOS. Dor de letra: relatos de sofrimento ... Por fim, vale dizer, também, pelo que tangencialmente se percebe neste breve escrito, que a leitura da obra de Primo Levi em comparação com outras de teor testemunhal, mas mais antigas, pode ser proveitosa. Parece-me que o procedimento revela semelhanças e diferenças que lo- calizam a escritura do italiano (inclusive no que diz respeito ao aspecto testemunhal) em uma história literária, não a deixando isolada ou em contato somente com a chamada "literatura do Holocausto" (ou, para dizer melhor, literatura da Shoa). Referências AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Allschwitz. o arquivo e a testemunha: Homo Sacer IIl. São Paulo: Boitempo, 2008. ARISTOTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poetica, 1992. [Edição bilíngue grego-português] ARNALDEZ, Roger. Introduction générale. ln: PHILON D'ALEXANDRIE. Les oeuuresde Pbiion d'Alexandrie. Paris: Éditions du Cerf, 1961. v. 1. BORGEN, Peder. Philo of Alexandna: an Exegete for Bis Time. Atlanta: Society of Biblical Literarure, 2005. FERME, Valerio. TransIating the Babel of Horror: Primo Levi's Catharsis through Language in the Holocaust Memoir Se qllesto e Uf1 110mo.Italica, Menasha, WI: American Association of Teachers of ltalian, v. 78, n. 1, p. 62-65, 200l. HORST, Pieter Willem van der. Pbuo': P/aceus: The First Pogrom - lntroduction, TransIation and Commentary. Atlanta: SBL, 2003. JASPERS, Karl. O trágico.Trad. Ronel Alberti da Rosa. Desterro: Nefelibata, 2004. LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trad. Luiz Sérgio Henriques. São Paulo: Paz e Terra, 1990. ___ o É isto 11mhomem? Trad. Luigi DeI Re. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. MARTÍN, José Pablo. lntroduccián general. ln: FILÓN DE ALEJANDRÍA. Obras completas. Madrid: Trotta, 2009. v. 1. 103
  • 11. _____ REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. v. 8, p. 85-104. Belo Horizonte, 2009-2010 MOST, Glenn Warren. Da tragédia ao trágico. In: ROSENFIELD, Denis Lerrer (Org.). Filosofia e literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 20-35. PH1LO OF ALEXAN DRIA. In Flaccllftl. Philo: 1n Ten Volumes. English Translation by F. H. Colson and G. H. Whitaker. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995a. v. 9. [Edição bilingue grego-inglês] PH1LO OF ALEXANDRIA. Ad Legatione ad Gaito». Philo: In Ten Volumes. English Translation by F. H. Colson and G. H. Whitaker. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995b. v. 10. [Edição bilingue grego-inglês] RICCEUR,Paul. D« texte à l'action: essais d'herméneutique. Paris: Seuil, 1986. v. 2. RIOS, Cesar Motta. A alegoriana tessitura de Fílon de.Alexandna: estudo a partir da obra filônica com ênfase em Sobre os sonhos 1.2009, 195 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Clássicos) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. SACHS, Dalya M. The Language of Judgment: Primo Levi's Se questo e an 1I0mo. lvILN, Baltimore, MD: The Johns Hopk.ins Universiry Press, v. 110, n. 4, 1995. (Compara tive Literature Issue). SELIGMANN-S1LVA, Márcio. Literatura, testemunho e tragédia: pensando algumas diferenças. In: . O /ocal da diferença:ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005. ___ o Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Revista Projeto Histâria, São Paulo: Programa de Estudos Pós-Graduados em História/ Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, V. 30, p. 71-98, 2005. Disponível em: <http://www.pucsp.br/ projetohistoria/ downloads/volume30 /04-Artg-%28Marcio%29. pdf>. Acesso em: 14 jun. 2010. 104 5 Uma travessia frustrada: da galut para o exil Luis S. Krausz Este artigo analisa a novela "O rabbi de Bacherach'~ de Heinricb Heine, atentando particularmente para o caráter transiciona/ dessa obra CI'!JO enredo, ambientado na Idade Média, parece tratar da passagem do mundo isolado e ssjeito à constante perseguição do gueto para um universo defeições mais modernas, no qual opertencimento aojudaísmo se torna lima possibilidade, mas não uma necessidade, Sugiro q1le a trajetária apresentada na novela possui para/elos com a própria trajetôria descrita pelo autor que, educado nos moldes do pensamento iluminista, desejava integrar-se plenamente à sociedade européia. Heine efetivamente pertencia à primeira geração que escapou do gueto, embora sua ambição de tornar-se tl11I alemão paradoxalmente só pôde concretizar-se, e ainda em parte, em seu exílio francês. {Literatura judaica; literatura alemã; assimilação; gueto; iluminismo} Agora sou odiado por judeus e por cristãos. Arrependo-me muito de ter-me batizado, e não vejo que minha situação tenha melhorado em decorrência do batismo. Ao contrário, desde então só tenho sido infeliz ... Heinrich Heine (2000)' 1 Esta e todas as citações de Heine apresentadas no artigo são traduções a partir do alemão feitas por Luis S. Krausz. (N. do E.) 1n"