2. Diz António Gedeão que todo o tempo é de
poesia, desde a arrumação do caos à confusão
da harmonia. Por sua vez, Inês Pedrosa diz que a
poesia é uma barragem contra a desumanidade.
Talvez seja por isso que Regina Gouveia escreve
poesia. Escreve-a e guarda-a num ficheiro de
computador.
Achei que a sua poesia tinha que ganhar asas e
assim considero- me um pouco responsável por
este livro.
Falar da autora e da sua poesia? Tudo o que eu
dissesse poderia parecer suspeito. Por isso,
limito-me a citar o que outros disseram.
Conheci Regina Gouveia porque ela é uma
daquelas pessoas de que nunca mais nos
ausentamos, depois de as conhecermos. Foi por
isso que um seu antigo aluno, hoje um
prestigiado técnico superior, me falou dela, de
uma forma tão especial que a quis conhecer.
Reconhecemo-nos, após marcarmos encontro
telefónico, sem senhas nem códigos, numa
confeitaria do Porto, e foi como se nos
tivéssemos conhecido desde sempre. E é o
conhecimento dessa Regina que gostava de
partilhar.
O seu corpo de aspecto frágil, a sua voz suave,
não chegavam para esconder uma paixão
enorme pelo que fazia: ensinar. Era
(é) quase comovedor ouvi-la falar do que faz, da
sua entrega na tentativa de transmitir a alunos e
futuros professores esse amor pela partilha do
saber e por gostar de aprender, esse
conhecimento de que tudo está em todos.
Descobri, entretanto, que há muito usava a
Poesia como elemento motivador para o ensino
da sua disciplina, Física e Química, e
que se não tinha esquecido de semear esse
presente em todos aqueles que lhe passavam por
2
3. perto. Impressionava-me o seu conhecimento de
literatura e a sua capacidade para descobrir o
poema certo para cada assunto. E uma obra sua
explicando como se tinha tornado professora,
entretanto publicada, mostrava como a sua prosa
era igualmente poética. Não podia deixar de lhe
perguntar por que não escrevia Poesia.
Respondeu-me com aquele seu sorriso delicado
e modesto:" E quem lhe disse que não escrevo?
"Tinha que a ler e em breve tive o prazer e a
honra de ter em mãos os seus escritos. Li-os com
um certo espanto: eram tão reais, falavam das
coisas de todos os dias e, ao mesmo tempo,
mostravam-nas de uma forma que nos permitia
vê-las como se pela primeira vez.
É, pois, para mim, uma honra poder dizer
que fui das primeiras pessoas a ver em Regina
Gouveia uma Poeta que, escrevendo e
ensinando, partilha um Dom mais que humano.
Pois não serão os Poetas os Profetas do nosso
tempo?
(Extractos do texto de apresentação da autoria da Drª
Maria do Carmo Cruz e que consta da colectânea
Tempera(Mental), na qual foram incluídos seis poemas
da autora
Pequenos poemas impressionistas nos quais as
palavras, lançadas como pequenas pinceladas
descrevem os sentimentos da autora, motivados
por factores tão diversos como a Natureza, uma
conversa ou uma notícia na televisão. Um
conjunto de textos pautados pelo ritmo e pela
melodia, onde a alegria de memórias passadas
contrasta com os problemas da sociedade
presente.
(Texto de apreciação do júri do Concurso on-line
"Novos Talentos" promovido pela Porto Editora,
concurso a que a autora concorreu e no qual lhe foi
atribuída a classificação de 4 estrelas)
Fernando Gouveia
3
4. Ausência
Hoje não estou para ninguém.
Se alguém telefonar,
nem que seja algum ministro,
(como se fosse vulgar
algum ministro ligar...)
digam só que eu não existo,
ou então fui viajar,
que ando à deriva no espaço,
que estou morta de cansaço.
Sentada no meu terraço,
hoje não estou para ninguém.
Quero ver o pôr do sol,
mais logo, ao entardecer,
quero ver Vénus nascer
e a lua desabrochar.
Quero dormir ao luar,
é noite de lua cheia.
Quero ter como lençol
este céu que me rodeia,
um céu de estrelas pejado.
Quero ver a estrela polar,
Marte, Júpiter, Dragão
Cassiopeia, Leão,
quero ver estrelas cadentes,
correndo no céu estrelado
brilhando, muito luzentes.
Quero sonhar com pulsares
com galáxias, quasares,
e à luz das constelações
embriargar-me de amor.
Quero esquecer meus pesares
e todo este amargor
que por dentro me consome
ao pensar que ainda há um ror,
são oitocentos milhões,
de gente que passa fome.
4
5. Enleios
O poeta enleia palavras e faz um soneto,
o compositor, enleando notas compõe um
concerto,
uma valsa, uma polka, uma sonata,
que por vezes a um poema se adapta.
Os químicos não recorrem às líricas;
com números e letras escrevem fórmulas
empíricas,
moleculares, iónicas, racionais,
e tantas outras com nomes que tais.
Enleando números, físicos e matemáticos,
tentam deslindar casos problemáticos.
Enleando fios, a minha tia Ausenda
fazia toalhas e colchas de renda,
enquanto enleada num amor passado,
continuava à espera do príncipe encantado.
Certeza
Falavam-nos de heróis e de vilões,
e eram sempre os outros os vilões.
Contavam-nos batalhas e traições,
falavam de epopeias, de façanhas,
de guerras desiguais, mesmo assim ganhas.
A meio da lição,
já eu montava no meu alazão
e uma vezes era D. João,
outras vezes D. Sebastião
ou D. Fernando, morto em Fez,
ou então, D Filipa, a linda Inês,
o Decepado, sempre com a bandeira,
ou ainda Brites, a famosa padeira.
Cresci e desde então não mais sonhei
usar a espada, guerrear, ser realeza.
Passei a confrontar-me com a certeza
que um belo dia nada mais serei
que molécula, átomo ou ião,
mistura de cinza com poeira
provavelmente pisada no chão.
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6. Navegação
No meu barco de sonhos icei vela,
vela latina.
Não sei se o meu barco é nau ou caravela
sei que me fiz ao largo, de bolina.
e não usei de Bernouilli o teorema.
Para navegar,
só precisei de um poema de Sofia
com gosto a mar e cheiro a maresia
Infinito
O que é o infinito?
Será um estado de alma
num dia de muita calma,
em que o ar fica parado
de tão sereno e tão quente?
Será um oito deitado
dos que vêm nas sebentas,
nos compêndios, nos opúsculos,
ou serão as tardes lentas
que precedem os crepúsculos?
Ou será o quociente
em toda e qualquer divisão,
sem indeterminação,
em que zero é o divisor?
Ou será um grande amor?
Ou será a imensa dor
sentida ao perder alguém?
Ou será a imensidão
do Universo em expansão?
Ou será mesmo o Além?
Será a suprema alegria
de ver um filho nascer?
Será talvez a magia
de ver a vida crescer?
O que é o infinito?
Talvez seja aquele grito
que eu tento a custo suster
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7. Nave
Não tem nome minha nave
seja de um deus ou de um sábio.
Sem bússola, sem astrolábio,
computador ou radar,
cá vou eu na minha nave
mais uma vez a girar,
no meu passeio orbital.
Minha nave é espacial.
Com qualquer velocidade
e momento linear,
vai girando minha nave
com seu momento angular.
Minha nave é singular.
Minha nave não precisa
de impulsão nem gravidade,
pelo espaço ela desliza,
só precisa liberdade.
Não tem motores de explosão,
não há qualquer combustão
nem reacção nuclear.
Ela pode viajar
sem energia solar
e sem ajuda do vento.
O motor da minha nave
é só o meu pensamento.
Ozono
O ozono é um gás de fórmula O3,
que diminui ano a ano, mês a mês,
lá nas camadas da estratosfera,
porque o homem, com a sua insensatez,
continua a lançar "CêEfeCês",
todos os dias na atmosfera
E uma menina de seu nome Vera,
de olhos azuis e com clara tez,
que faria cinco anos no próximo mês,
morreu de melanoma, no passado dia três.
7
8. Tempo
Para os físicos, o tempo é uma grandeza,
não por ser grande, com toda a certeza.
É grandeza porque é mensurável
e é esta ideia que eu acho contestável.
Usando raciocínios, em geral profundos,
os físicos, a contratempo,
em horas, minutos e segundos,
tentam dividir o tempo.
E ainda usam múltiplos,
outras vezes submúltiplos,
como nano, pico, fento.
Ora há minutos que duram como vidas
e há vidas que nem segundos duram,
como há imagens que ficam esquecidas
enquanto outras para sempre perduram.
O tempo do calendário e da agenda
é simplesmente um tempo por encomenda.
Que saudades eu tenho do tempo de criança,
tempo da ilusão, do sonho, da esperança,
tempo de quimera,
em que o tempo não era tempo,
porque o tempo, simplesmente não era.
Mas voa o meu pensamento
para as crianças da rua,
que embaladas pelo vento,
tendo a velá-las a lua,
dormem no chão ao relento,
enquanto passa, alheio, o tempo.
Ensinamentos
Com o meu pai aprendi a olhar o céu,
que era mais belo quando da cor do breu.
Com ele aprendi o que era um cometa
e que a estrela da tarde era apenas um planeta.
Foi ele quem me ensinou a identificar
o norte, o sul, o nascente e o poente,
o futuro, o passado e o presente.
Então eu não podia imaginar,
no futuro tanto passado e tanto ausente.
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9. Neve
A neve é um cristal
com padrão hexagonal.
De origem molecular,
tem átomos de hidrogénio
ligados a oxigénio
de uma forma regular.
Em flocos, lembrando enxames,
e com o vento a ajudar,
volteia com ademanes
antes de no chão pousar.
Transforma-se em branco manto,
e é motivo de espanto,
de êxtase, contemplação.
É fonte de inspiração
para poetas, pintores,
para amantes sonhadores.
Ela é todas as cores
em uma só reunidas,
mas também é mãos doridas
em gentes desprotegidas
do frio cruel, cortante,
que enregela num instante.
Cobrem-se com velhos trapos,
com jornais e com farrapos,
e nós fechamos os olhos
a todos estes escolhos.
É cómodo ignorar.
É bem mais fácil pensar
nos cristais hexagonais
e na neve dos postais.
Indeterminismo
O nosso Universo é quadrimensional,
a quarta dimensão é fundamental
e já não faz sentido a seta do tempo.
Daí eu não saber se este sofrimento,
esta angústia infinda que me invade o peito,
afinal é causa ou será efeito.
9
10. Poesia
i
Gosto do narciso poeta
aquela flor cuja corola,
por dentro amarela,
é branca por fora.
Colhi duas.
Uma decidi comê-la
cuidando assim
engravidar de poesia
Mas a poesia, tão arredia,
riu-se de mim.
Cheia de mágoa,
à beira da água
lancei ao mar
a outra flor, daquelas duas.
E fiquei a olhar, a flor boiar
na onda que vai e que logo vem,
que se reflecte e se refracta,
que interfere e se difracta.
A luz do sol bateu no mar
fê-lo de prata,
reflexão também.
Por entre os meus dedos,
a areia fluía
suavemente.
A flor boiava dolentemente
e a onda, sempre a ir e voltar,
e o som do mar
com seus segredos
e o gosto a sal a pairar no ar
deixando um cheiro a maresia.
Então, por magia,
luz , céu e ar,
onda do mar, no ir e voltar,
areia, sal , flor a boiar,
tudo em redor foi poesia
10
11. Mar
Mar, lugar de encantamento
onde por vezes o vento
se agita em remoinhos,
mar de baleias, golfinhos,
de algas e de corais,
mar de sais...
Mar de navios, veleiros,
e de grandes petroleiros,
mar de botes e traineiras,
de grandes frotas pesqueiras
que navegam norte e sul,
mar azul...
Mar que tantos nomes usas,
mar de argonautas, medusas,
mar, que ora estás encrespado,
ora calmo, mar parado
onde a lua se retrata,
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12. mar de prata....
Mar que namoras estrelas,
mar de naus e caravelas,
mar de istmos e estreitos,
mar de navios desfeitos,
guardando tanto tesouro,
mar de ouro...
Mar de ondas e de vagas,
mar que as areias afagas,
mar de águas frias e quentes,
mar que ligas continentes
e ilhas em todo o mundo,
mar profundo...
Mar de viagens, naufrágios,
mar de bons e maus presságios,
mar de piratas, corsários,
mar de homens temerários,
mar de gente destemida,
mar de vida....
Mar onde espreita a tormenta,
mar da rota da pimenta
e de outras especiarias,
da seda, das pedrarias,
mar que Neptuno reclama,
mar de fama...
Mar onde nadam sereias,
mar das grandes epopeias,
mar do cabo Bojador,
do gigante Adamastor,
mar de Gama e de Cabral,
mar fatal...
Mar de tanta fantasia,
mar da grande nostalgia,
de sonho e desilusão,
mar de vida e mar de morte,
temo pela tua sorte
nas garras da poluição.
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13. Indicador
Indicador, o que indica,
pode ser dedo da mão,
mas também identifica
carácter de solução.
Pode ser o tornesol,
ou a fenolftaleína,
pode ser bromotimol,
ou também heliantina.
Há quem não encontre o rumo
e precise de um sinal,
talvez um fio de prumo
que lhe indique a vertical.
Há quem passe pela vida,
só entregue à sua sorte,
com a bússola perdida,
jamais encontrando o norte,
deixando confusos rastos.
Há quem diga que os astros
no Universo em expansão
são grandes indicadores.
Há quem neles leia amores,
venturas e dissabores.
E há quem leia uma paixão
num simples ramo de flores.
Abrigo
A minha capa inglesa com setenta anos
abrigou amores, sonhos, desenganos.
Era de meu pai.
Apesar da idade
que não se adivinha
ainda me protege da chuva que cai,
forte ou miudinha,
e ainda me abriga do frio e do vento.
Só não me protege daquela saudade,
que, qual neve, invade
o meu pensamento
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14. Sorriso
Junto à campa da minha mãe
nasceram lírios no passado mês.
Alguns dos seus elementos,
o magnésio talvez,
já terão sido, por certo,
pertença da minha mãe.
Há momentos,
passava perto
de um lírio que ali cortei
e quando o olhar fixei,
pareceu-me ver alguém
que sorria para mim.
Doce, o sorriso, sem fim.
Por certo era a minha mãe,
só ela sorria assim.
Saturno
Usando a minha luneta
observo o céu nocturno
e eis que me surge Saturno,
um fabuloso planeta..
É de uma estranha beleza
com os seus anéis gelados
que brilham iluminados.
Para o sistema solar
é um planeta gigante
mas, ideia extravagante,
poderia flutuar
se pousado em grande mar.
Fascina tanta grandeza
deste infinito universo
em que o mundo está imerso.
Possui-me um grande fervor
e agradeço ao Criador,
seja lá Ele qual for,
e agradeço a Galileu
por me ajudar a olhar o Céu.
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15. Chama
Dançava a chama, voluptuosa,
espalhando em redor um tom vermelho-rosa
As achas ardiam na lareira
e a criança batendo as palmas, rindo,
dizia "lindo, lindo",
apontando a fogueira.
Era uma chama voluptuosa
e ao mesmo tempo etérea,
por causa do plasma,
o quarto estado da matéria.
Vibravam núcleos e iões,
e em estranhas convulsões,
electrões davam saltos quânticos.
Era a energia
que assim se emitia
em passos de dança, sensuais, românticos.
A criança que, batendo as palmas, rindo,
dizia "lindo, lindo",
adormeceu sorrindo.
E então a louca chama, pressentindo
que a criança já estava dormindo,
deu em esmorecer, foi-se extinguindo.
Apolo
Para os antigos romanos
Apolo era deus da Arte
e como deus, imortal.
Após mais de dois mil anos
o homem, simples mortal,
projecta idas a Marte.
Da Lua, pisou o solo,
viajando na Apolo,
uma nave espacial..
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16. Exploração
Qual exploradora, parti um dia.
Embrenhei-me na selva da vida
onde sabia andar escondida
a poesia
Encontrei-a
na luz ténue do sol ao fim do dia,
na molécula, no átomo, no quantum de energia,
nas leis de Newton, no conceito de entropia.
Encontrei-a
na reflexão da luz, na impulsão no ar,
no cheiro a maresia e nas algas do mar,
no orvalho, na geada, na chuva, no luar.
Encontrei-a
no ínfimo e no imenso que a vista não alcança,
nas rugas dum idoso, no rir de uma criança,
numa tela, num concerto, numa dança.
Encontrei-a
no voo da gaivota, na pétala da flor,
na chama que tremula e se multiplica em cor
e que irradia energia na forma de calor
Encontrei-a
nas estrelas, nas galáxias mais distantes,
no olhar apaixonado daqueles dois amantes,
nos extintos dinossauros de dimensões gigantes.
Encontrei-a
em medusas, corais, nos fundos oceanos,
no vento a agitar nas árvores os ramos,
em pinturas rupestres com vários milhares de
anos
Encontrei-a
na violeta escondida no canto do jardim
e no frasco que continha essência de jasmim.
Tentei então guardá-la só para mim.
Foi assim que ela se evolou
e de novo eu aqui estou
a procurá-la.
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17. Sensações
Tem um cheiro inconfundível
a minha casa da aldeia
Não sei se é do rosmaninho
que perfuma todo o linho
dentro das arcas guardado,
se é da madeira das portas,
dos tectos e do sobrado
se é das pratas no lambrim
ou das peças de faiança,
são travessas e são pratos,
nas paredes pendurados,
se é das peças de mobília
uma herança de família,
não sei se é dos retratos
que às vezes, a horas mortas,
falam, sorriem para mim.
Terão perfume as memórias
de quando eu era criança?
Terá perfume a lembrança?
Tem um cheiro inesquecível
a minha casa da aldeia
Mas não é só o odor
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18. São as cores e são os sons
que vejo e ouço em qualquer lado
e em tudo o que me rodeia.
Lembro lágrimas, sorrisos,
por vezes já imprecisos.
Lembro sussurros e histórias
imagens em vários tons
plenas de luz e de cor
ou também acinzentadas
baças, sem cor, desbotadas.
Têm cor alguns dos sons
Sons e cores têm odor
A minha casa da aldeia
cheira a afecto e amor.
Mesmo quando estou distante
às vezes, por um instante,
chego a pensar que estou lá,
pois apesar da distância
eu sinto aquela fragrância.
Que explicação haverá?
Será acção magnética?
Uma interacção eléctrica?
Força electromagnética?
Gravítica? Nuclear?
Forte ou fraca interacção?
É difícil de explicar
pois não há explicação
que assente só na razão.
Esta estranha sensação
tem a ver com o coração.
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19. Cor
A cor, o que é afinal?
Energia, no essencial.
É emissão de fotões,
é um salto de electrões,
absorções, emissões,
ou também interacções
entre a luz e a matéria.
Pode ser sublime, etérea.
Ela é interferência
é período, é frequência
ela é excitação,
e logo desexcitação,
ela é inspiração
na paleta do pintor.
Afinal o que é a cor?
È o vermelho de Almada?
É o azul de Chagall?
Seja ela tudo ou nada,
a cor é fundamental.
Seja no azul do mar,
que às vezes é cor de breu,
seja no azul do céu
ou no verde de um olhar,
seja no roxo dos montes,
seja no cinza das fontes,
nas searas amarelas,
perturbantes de tão belas,
seja no verde das plantas,
no colorido das mantas,
seja em janelas, portadas,
seja em telhados, fachadas,
em azulejos, vitrais
ou em tantas coisas mais,
a cor é fundamental.
O que é a cor afinal?
Energia, no essencial
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20. Pastoral
Ainda hoje não sei
se apenas o sonhei
ou foi real.
A orquestra tocava a Pastoral
e eu, comovida, aplaudia.
Pareceu-me ver que estremecia
a flor que eu usava na lapela.
Creio que também ela
se comovia.
Ou então seria
por causa da tal da ressonância.
Sei que a minha mente
era toda ela sinfonia
e fragrância.
Ao allegro seguia-se o andante
e mais adiante
um outro allegro, a tempestade
- Beethoven, a genialidade.
O som crescia, enchia todo o ar,
e, de repente,
um dos violinos pareceu-me ser um querubim
não sei se aquele do canto do jardim
se o outro, na capela
à direita no altar.
Pareceu-me que eu estava a flutuar
e que a orquestra tocava a Pastoral
só para mim.
Ainda hoje não sei
se tudo isto eu sonhei
ou se foi mesmo assim
tudo real.
Afagos
A onda rasga-se em espuma,
a bruma seduz o ar,
e o vento afaga a duna.
Escondo-me dentro da bruma,
torno-me em coisa nenhuma,
e deitada sobre a duna,
afago a espuma do mar
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21. Abril
Foram cravos vermelhos nos canos das
espingardas
Cortaram-se grilhões,
abriram-se prisões,
soltaram-se emoções,
há muito adormecidas.
Foram cravos vermelhos nos canos das
espingardas
Após tão longa espera,
aquela primavera,
aquele Abril, trouxera
esperança a muitas vidas.
Foram cravos vermelhos nos canos das
espingardas
Foi o sonho a flutuar,
foi o amor a pairar,
a alegria a fervilhar,
nas praças, nas avenidas.
Depois, murcharam os cravos nos canos das
espingardas.
Por que hão-de sempre murchar as flores ?
Amazónia
A floresta Amazónica é o pulmão do mundo
e, segundo a segundo, está a desaparecer,
porque homens, sem qualquer ideal,
para além do vil metal,
a mandam abater.
Rancorosos, brutais,
mandaram abater o Chico Mendes e outros mais,
só porque eles não queriam ver
a Amazónia desaparecer.
A Amazónia é o pulmão do mundo,
a Amazónia não pode morrer.
A Amazónia é o pulmão do mundo,
a Amazónia não pode morrer.
A Amazónia é o pulmão do mundo,
a Amazónia não pode morrer.
21
22. Paz
Palavras leva-as o vento.
Também leva o pensamento,
leva ainda as folhas soltas
que caem no fim do tempo
e vão por aí revoltas,
revoltas, a ondular
quais aves a esvoaçar.
Palavras leva-as o vento
e não as pode arrumar,
tantas são, tão diferentes,
umas duras, outras quentes,
outras um pouco dormentes,
que podem significar
coisas tão surpreendentes,
e tantas coisas diversas!
Palavras leva-as o vento
e andam por vezes dispersas
sem ninguém que as queira usar.
Veja-se a palavra paz,
tão bonita, como jaz
perdida por esse mundo,
completamente esquecida
qual folha morta caída,
num charco sombrio, imundo.
Sida
Tomás
morreu ontem com sida
na flor da vida.
Entretanto, num casino da Florida,
Joe, traficante de heroína,
de ecstasy, crack e cocaína,
jogava a vida de Tomás.
22
23. Imagem
Minha mãe era brasileira de alma e coração,
para ela, o Brasil era país de eleição.
O meu pai era brasileiro de torna- viagem
e assim, do Brasil eu construí uma imagem.
Nessa imagem há uma miscelânea tal
que vai de Salvador até ao Carnaval,
de Copacabana à aguardente de cana.
É Elis, Betânia, Caetano, Jobim
é jeito de samba, sabor de quindim.
São as cataratas do Iguaçu
e as cachoeiras lá em Avaré
É jaca, acerola, pitanga, caju
gosto de garapa, cheiro de café,
É Sena, Pelé.
É Oscar Niemeyer disperso em Brasília
é toda a família
Irmãos, tios, primos, sobrinhos, sei lá,
ali em S.Paulo, Goiás, Paraná
Santa Catarina.
È Chico Buarque, o meu cantor dilecto,
Cabral de Melo Neto,
23
24. "Vida e Morte Severina"
É Manuel Bandeira e é Jorge Amado
Érico Veríssimo, Alcântara Machado
Di Cavalcanti, Vinicius, Heitor Villa Lobos.
É impossível enumerar todos.
É a bandeira, verde e amarela,
é cheiro de cravo, sabor a canela
É telenovela,
coronéis, jagunços, grandes fazendeiros,
fazendas, engenhos, bois e boiadeiros.
É praia e é mar, é Sol a brilhar
É o Céu Azul e o Cruzeiro do Sul
É pamonha de milho e é vatapá
Enfeitando os jardins, é o manacá
É um povo que canta e seus males espanta
È a Amazónia e é o Pantanal,
Pedro Álvares Cabral
É um testemunho bem colonial
como em Olinda e em Parati,
é o negro Zumbi,
os Tupi-Guarani
É onça pintada, tatu, colibri
É cheiro a cocada, gosto de siri
É mistura de gentes
É o Tiradentes
É o Lampião
É o Rio Amazonas e o Maranhão
É arroz com feijão
nem sempre na mesa
É a extrema pobreza
dos descamisados,
marginalizados,
dos sem terra e sem pão,
gente do sertão.
É Carmen Miranda, afinal portuguesa,
tudo isto é Brasil com toda a certeza
24
25. Mina
Mina faz lembrar minério,
e também algum mistério,
naquelas muito profundas,
e muitas vezes imundas,
onde espreita frio e cru
o perigo do grisu.
Mina, lembra ouro, diamantes,
e as condições degradantes
em que se extraem da terra.
Mina também lembra guerra
com todo o horror que encerra.
Gimbi, menino de Angola,
não vai mais jogar à bola
pois ficou estropiado,
sem as pernas, mutilado,
ao pisar em chão minado.
Estrelas
A estrela que ambos olhamos
pode já não existir
há vários milhões de anos.
E tu olhas-me a sorrir,
pensas que estou a mentir.
A luz que então enviou
pelo espaço vagueou
e só agora chegou,
enquanto a pobre da estrela,
que em tempos fora tão bela,
foi minguando, definhou,
e em anã se transformou,
ou então foi em gigante,
talvez em buraco negro.
É como o desaconchego
daquela paixão de amante
que ao morrer, depois de intensa,
deixa uma dor negra imensa.
25
26. Mãe
Como eu me lembro bem, mãe.
Catorze anos seria talvez a minha idade,
uma colega do liceu
disse que tu eras a senhora mais bonita da
cidade
E eu
fiquei toda cheia de vaidade.
Lembro-me de tanta outra coisa mãe
Do linho esticado dentro do bastidor
e dos teus bordados em ponto pé-de flor,
em matiz, ponto de sombra ou de grilhão,
ao sabor da imaginação,
como o vestido da minha comunhão.
Lembro-me dos cozinhados que fazias com
paixão;
chamavas-lhe quitutes, mãe.
Receita portuguesa, brasileira, italiana,
ainda hoje os teus quitutes têm fama
entre os amigos que os saborearam.
Ainda há dias alguns os recordaram.
Lembro-me ainda
que não era só o sabor, era o aspecto.
Em tudo colocavas muito afecto
e sempre a tua a sensibilidade infinda.
Além de sensível eras tolerante, corajosa,
lutadora, criativa, generosa.
Como eu recordo, mãe,
tantas histórias inventadas por ti,
em que o sabiá e a surucucu
26
27. contracenavam com o colibri,
com a jibóia e o bicho tatu.
Como eu recordo, mãe,
a tua lindíssima voz de soprano
cantando árias de Verdi, de Puccini,
(da Madame Butterfly, da Traviata),
do barbeiro de Sevilha de Rossini,
ou ainda Shubert, a serenata,
tentando eu acompanhar-te no piano
que, por falta de talento, mal tocava,
o que algum desgosto te causava.
Um dia, já a tua mente muito vária,
apercebi-me de que não gravara a tua voz
Tentei então que cantasses uma ária
para ficar com os registos entre nós
Tarde demais
De reconhecer a música tu foste incapaz
Tinhas apenas cinquenta e oito anos.
E a partir daí a doença, tão voraz,
foi-te destruindo dia a dia a mente,
dia após dia causando mais danos
e eu, recusando-me a aceitar tais desenganos,
era contigo que me revoltava, mãe.
Que foi feito de ti mãe
outrora tão sensata, inteligente?
Que foi feito da tua sensibilidade,
da tua coragem e força de vontade?
Porque te deixaste assim destruir, mãe?
Ficaram as fotos, a recordação,
tanto vazio no meu coração,
tantas lembranças, algumas em bocados.
Como herança deixaste o bastidor,
as partituras, as receitas, os bordados.
Ficaram sentimentos de culpa e muita dor.
Por dizer ficou ainda tanto amor.
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28. Imaginário
O meu imaginário
lembra, em imagens, um caleidoscópio,
sem o sonho, seria como um baroscópio,
a que faltou o ar
para o empurrar.
No meu imaginário cruzam-se dois mundos
ligados por laços, em geral, profundos
No meu imaginário
há onças pintadas,
mouras encantadas,
há o bem-te-vi,
há o colibri,
há a andorinha,
e a joaninha,
que voa, que voa
vai para Lisboa,
há o bicho tatu,
a surucucu,
há o gato e o cão,
a assombração,
o bicho papão.
Há jaboticabas, caquis e goiabas,
há nozes, amêndoas, pitangas e mangas
há cerejas, castanhas
e jacas, tamanhas.
Há cocos, coqueiros
bolotas, sobreiros.
Há cheiro a jasmim, há o alecrim,
há o sabiá, há o jacaré.
Há frio e há fumo que sai da chaminé
Há montes e há sol, há neve e há mar,
histórias ao luar.
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29. Há o Zé do Telhado, há o Lampião
o lobo, a raposa, a cobra pitão
há o mocho, há o cuco, a perdiz, o tucano
há o vira, o malhão,
samba todo o ano.
Há todas as gentes e todas as cores,
múltiplos cheiros, múltiplos sabores.
Há bacalhau no Natal e no fim do ano,
há arroz doce, folar, e há couve mineira
há feijoada, bem à brasileira,
há pão- de - ló, leite creme, rolete de cana,
há pé de moleque e cocada baiana.
Há bonecas de trapos e de porcelana.
Há navegantes e há bandeirantes,
há escravos, há reis e há imperadores,
há grandes senhores,
há marqueses, vilões,
condes e barões,
burguesia, nobreza
e muita pobreza.
Há muito opressão,
muita exploração.
Há jugo e há canga,
grito do Ipiranga.
Há guerras com Espanha,
e a Restauração
Há muita façanha
e muito visionário.
No meu imaginário,
que une dois mundos,
há laços profundos,
de muita beleza.
Há canto de canário,
sabor a medronho,
há quimera e sonho,
cheiro a maresia,
alguma tristeza,
e muita nostalgia,
cor azul turquesa.
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30. Afectos
Hoje eu decidi escrever um poema
com os afectos por tema.
Podia ser sobre a buganvília,
sobre a família,
sobre o gosto do mel,
sobre o bolero de Ravel,
sobre o meu filho Miguel ,
que em pequenino,
os olhos a cintilar de amor,
aplaudia ao ver qualquer flor
a que chamava tanta,
sobre os livros de Florbela Espanca,
Pessoa, Saramago, Aquilino
Manuel Alegre, Gedeão, Quental.
Podia ser sobre o Natal
com a família reunida à mesa
e as chaminés a expelir fumo
Podia ser sobre a Cláudia, sobre a Teresa
sobre o meu filho Nuno
que me dizia, em pequenito,
gosto de ti até ao infinito.
Podia ser sobre o cheiro do tomilho,
o sabor da pamonha de milho,
sobre o meu gato andarilho,
sobre a minha mãe,
que cantava tão bem
de Verdi, a Traviata,
de Schubert, a serenata.
Podia ser sobre o alecrim que, aos molhos,
faz chorar os olhos,
como cantava o meu pai.
Podia ser sobre o meu bonsai
Podia ser sobre as cadeiras que herdei da avó,
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31. tal como do avô a caixa do rapé,
podia ser sobre as colchas em filé,
rede de nó,
rendadas, bordadas,
feitas por várias tias.
Podia ser sobre as tristezas e as alegrias
que partilho, por inteiro
com o marido, amante e companheiro.
Podia ser sobre os chapéus da mãe e as suas
luvas,
podia ser sobre o gosto das uvas
nas vindimas, em Setembro.
Podia ser sobre Paris, sobre Veneza,
sobre as conversas à mesa
ou sobre as histórias ao serão, em Dezembro.
sobre Mozart, Chopin, sobre Gauguin, Renoir,
sobre o sol, sobre a lua, sobre o mar,
sobre a areia quente no verão,
sobre a neve a cobrir o chão,
sobre a amizade, sobre a saudade.
Mas eu decidi que ia escrever um poema
tendo os afectos por tema.
E o poema que escrevi fala de afectos
Fala de afectos nas linhas,
e nas entrelinhas,
fala de afectos através de imagens
e de viagens
pelo espaço e pelo tempo
Os afectos estão dispersos,
implícitos nos vários versos.
Com afectos povoei meu pensamento.
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32. Vida
O mundo com todas as suas fragrâncias
é feito de elementos, misturas, substâncias.
Elementos mais ou menos cem.
Como pode acreditar alguém, com senso,
que a diversidade de um universo tão imenso
a partir de tão pouco seja conseguida?
Mas o mais estranho é o que agora vem.
Muito menos elementos tem
aquilo a que resolvemos chamar vida.
Flores
Eram flores selvagens embelezando Maio,
junto ao caminho.
Eram muitas e singelas,
rubras, azuis, roxas , brancas, amarelas.
Os seus nomes?
Creio que uma se chamava rosmaninho,
as outras não sei, mas não importa.
Numa conferência a que a memória me reporta
Feynman, Nobel da Física, sobre a ciência dizia
que o nome das coisas não é o que mais importa,
até porque de lugar para lugar varia.
Importa muito mais observar, reflectir, interrogar.
Só assim se pode compreender a natureza.
E também amar,
eu acrescentaria.
Veio isto a propósito das flores, junto ao caminho
que me impressionaram pela singeleza,
mas cujo nome não sei.
Por isso as baptizei;
a uma chamei ternura e a outra afecto,
a uma outra alegria,
a uma dei o nome fantasia,
a outra atribuí o nome de paixão.
A uma que logo ali murchou,
e murcha se quedou
baptizei-a com o nome de ilusão.
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33. Ilusão
Em pleno estio
os meus olhos vagueiam na ladeira
que exulta em cor, em cheiro e em sons
que me afloram o ouvido, subtis
Os meus olhos vagueiam na ladeira
exuberante em todos os seus tons
tecendo à minha volta mil ardis
É o amarelo das searas,
das oliveiras, o verde prateado,
dos troncos dos sobreiros o tom acastanhado,
mais além um outro verde, das figueiras.
Pobres figueiras em terras tão avaras,
avaras de água, que não de encantamento
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34. que esse de há muito me há a mim tomado
enquanto dolente passa o vento
que agita os ramos das amendoeiras.
Os meus olhos vagueiam na ladeira
em pleno estio
e sinto um arrepio
Lá em baixo serpenteia preguiçoso o rio
e o céu, por cima, dum azul sem fim,
parece olhar para mim .
Sinto no ar toda uma fragrância
e volto sem querer à minha infância
de sonhos que nunca mais foram sonhados.
Amoras, mel, uvas e mosto
de repente sinto-lhes o gosto
Tudo se repete agora e logo, de onde em onde.
Cigarras, besouros, libelinhas
gaviões, pardais e andorinhas,
urze, giesta, papoilas e tomilho,
tudo se agita; é grande a euforia
nos meus pensamentos enredados,
grávidos de sonho e fantasia
que parecem gerar como que um filho,
envolto em tule, rendas e brocados.
Afaga-me uma onda de alegria
matizada de muita nostalgia,
aproxima-se a noite, ao fim do dia.
No ocaso, o sol vermelho já se esconde,
porém, já lá não está, é ilusão!
Ainda o vemos devido à refracção
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35. Miragem
Estou sentada no café do cais
aqui na Ribeira junto ao rio,
um passante segue pela rádio o desafio,
e, ao meu lado, uma jovem enlevada
olha com o olhar perdido a outra margem,
enquanto um casal recorda uma viagem.
Os demais conversam sobre tudo.
Aqui e além falares dispersos.
Aqueles ali creio que falam eslavo
e conversam com um ar muito sisudo
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36. Na minha mesa está pousado um cravo
ii
e o livro que ando a ler "Primeiros versos"
Não me apetece ler, de enamorada
que fico ao olhar esta paisagem
mista de sonho e de realidade,
nem sei se ela existe ou se é miragem.
Do outro lado, as caves imponentes;
atravesso a ponte e já me encontro em Gaia,
na vila nova que agora é cidade.
Vejo o Douro, os barcos rio acima
levam turistas e passam indolentes,
vejo as fachadas de granito, e bem por cima
ameaçando chuva o céu cinzento.
Um ar frio perpassa-me, é o vento
o tal a que chamam de nortada.
Regresso e inicio uma viagem,
entro num carro eléctrico, na paragem
e aí vou eu vagueando com o olhar,
S. Francisco, S. Pedro em Miragaia,
a Alfândega, Massarelos , vários cais.
O eléctrico avança um pouco mais
e do outro lado já vejo o Cabedelo,
o rio encontrou o Oceano, entrou no mar.
Difusos através da bruma,
uma traineira, um navio parado,
que para entrar na barra ao largo aguarda.
enquanto o mar se agita e regurgita espuma.
A difusão da luz torna tudo mais belo,
mas o meu passeio vai findar, não tarda.
O meu corpo está enregelado
e o vento desalinha-me o cabelo.
É quase noite, urge regressar
mas é difícil ter que abandonar
estas paisagens de bruma e de granito.
Não sei se adivinhando o meu pensar
uma gaivota solta um pio, aflito.
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37. Amantes
É Agosto
Amam-se na praia, com o sol já posto,
fundem-se as bocas, do sal fica o gosto,
salpica-os a espuma que o mar regurgita.
Amam-se na praia à luz do luar,
gemidos de amor, bramidos do mar,
tudo se confunde quando o mar se agita.
É Agosto
Envolvem-se os corpos, ela toda nua,
tendo a vigiá-los, sempre atenta a lua.
A areia brilha, os corpos resplandecem.
No Céu, andam anjos muito divertidos,
vão lançando setas, fazem de Cupidos.
Na praia os amantes, por fim adormecem.
É Agosto
Acordam mil vezes pela noite fora
Amam-se de novo não importa a hora
nem a areia húmida nem a noite fria
Amam-se uma vez, mais outra, mais outra
É de amor e sal o gosto na boca
Nunca um tal êxtase nem tanta magia
É Agosto
Acordam bem cedo, cheira a maresia.
Amam-se de novo ao romper do dia.
Idílio
Olhava para a Lua
e pensava nela
Então, de repente
ficou sem saber
se a Lua era ela.
Viu-a toda nua
mas ela era a Lua
e então, docemente
ouviu "Eu sou tua"
Ficou sem saber
se era ela ou a Lua
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38. Telejornal
Vejo o Telejornal no canal dois
A apresentadora fala da BSE, de clonagem,
do Kosovo e, logo depois,
de um acidente no Cais do Sodré
e da instabilidade na Guiné.
E eu empreendo no tempo uma viagem...
O Braima, a Binta, o Adrião,
onde andarão neste momento?
Conheci-os em Bafatá, há muito tempo,
iam buscar o "cume" no fim da refeição.
Recordo os seus olhos vivos de crianças
pele negra, dentes alvos, sem igual
os passos apressados quando o vento
anunciava em breve um temporal
Eu era aluna e eles mestres
do crioulo de que mal guardo lembranças.
Das mulheres, recordo as suas vestes
fossem mulheres grandes ou "bajudas"
no tronco, eram em geral desnudas,
presos na cinta panos coloridos
que, de compridos,
chegavam quase ao chão.
Algumas eram de tal modo belas
que pareciam extraídas de telas
Recordo, servindo-me o café, o Infali
com aquele seu olhar tão doce e triste
talvez o ar mais triste que eu já vi.
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39. Será que o café ainda existe?
Recordo aquele condutor, o Mamadu
mostrando com orgulho o seu menino
Que terá feito deles o destino?
Recordo os passeios na estrada do Gabu
os mangueiros, os troncos de poilão,
a mesquita, o mercado, a sensação
de paz que tudo irradiava,
apesar do obus de Piche que atroava,
apesar da maldição da guerra
cujo espectro por cima pairava.
Recordo ainda o cheiro e a cor da terra,
o Colufe e o Geba sinuosos
onde canoas esguias deslizavam,
recordo macaquitos numerosos
que entre os ramos das árvores saltavam
enquanto que lagartos, preguiçosos,
ao sol, pelos caminhos se espraiavam
e uma miríade de insectos buliçosos
ao nosso redor sempre volteavam.
Recordo o batuque daquele casamento
Na foto ficou bem impresso o momento
em que o dançarino fazia um mortal
numa fantástica expressão corporal
Foi lá na Ponte Nova, naquela tabanca
onde de azul se coloriam panos
que as mulheres usavam em volta da anca
e que desciam quase até ao chão.
Tudo isto se passou há muitos anos.
A apresentadora fala agora em danos
causados por uma longa estiagem
e mostra uma desértica paisagem.
Eu regresso da minha viagem
e tento organizar o pensamento.
O telejornal está quase no final.
Deve seguir-se a previsão do tempo.
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40. Heroína
Para mim, em criança, heroína
era pessoa, obviamente feminina.
Podia ser Maria, Brites ou Joana,
era mulher, de grande lenda e fama.
Mais tarde vim-me a aperceber
das que não tinham direito a notícias,
lutavam, morriam, sofriam sevícias,
mas delas não rezava a história
que, na escola, eu tinha que aprender.
Hoje, esculpe-se na minha memória
com fino escopro, a expressão da dor
em rostos de mulheres ao mundo divulgados,
e por câmeras para sempre fixados,
no Kosovo, na Argélia, em Timor.
Por isso, dar o nome de heroína
a uma droga que mata e arruina,
só pode ser uma questão de negro humor.
Hiroxima
Foi no Japão.
Mil novecentos e quarenta e cinco,
era Verão,
caiu a morte em Hiroxima.
Poucos ficaram para contar
daquela bomba tão assassina,
chamada bomba nuclear,
que transportada no Enola Gay,
alguém lançou mesmo por cima.
Quantos morreram, isso não sei.
Foi no Japão,
mil novecentos e quarenta e cinco,
era Verão,
e ainda ontem, em Hiroxima,
nasceu sem vida uma menina,
por causa da bomba assassina
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41. Grave
Grave era o acento, da ortografia,
quando á era à e eu não sabia
e, por isso, dava erros quando escrevia,
redigia, era assim que se dizia.
Grave era o ar do Sr. Jorge Aragão,
com relógio de ouro e bengala na mão,
ou o do Sr. Abade, pregando o sermão,
ou o da minha tia Conceição,
sempre suspirando profundo,
dizendo que vinha aí o fim do mundo,
que já levara lá para bem fundo,
o pobre do meu tio Edmundo,
que confundindo sonho e realidade,
subira à torre mais alta da cidade,
e se deixara cair, que ingenuidade,
ignorando não só as leis da gravidade,
mas que grave não era apenas o acento,
nem o ar do Sr. Jorge Aragão em outro tempo,
nem o ai da tia Conceição, que sofrimento,
nem o sermão do abade, que tormento!
Grave é também a folha solta ao vento.
Paixão
Cintila o olhar
e brilha o sorriso
num luzir sem fim.
Tudo é som de riso,
tem cor de luar,
e toque de cetim.
Tudo sabe a mel,
tudo cheira a flor,
a horto, a vergel.
É isto o amor.
É isto a paixão.
Pobre coração!
Bate acelerado
e descompassado.
Quer sair do peito
e não encontra jeito.
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42. Palavrões
Quando em pequenina, mãe,
me contavas histórias aos serões,
também me dizias: Não se dizem palavrões.
Mal sabias, quando contavas histórias aos
serões,
que eu iria aprender muitos, muitos palavrões.
Não aqueles a que te referias nos serões,
mas outros geradores de muitas confusões.
Os nucleões que são os neutrões e os protões,
e os que giram á volta do núcleo e como piões,
e que são chamados de electrões,
todos eles aos biliões, de biliões, de biliões.
Mais tarde vieram os bariões,
os mesões e os positrões,
os antiprotões e os antineutrões,
e ainda os fotões, os muões e os fermiões.
Havia os ciclotrões que aceleravam iões,
os betatrões acelerando electrões,
os sincrotões, podiam ser bevatrões,
que aceleravam protões.
Tantos, tantos palavrões....
Ouvia falar de charme, de spin, de estranheza,
e do princípio da incerteza.
Apanhada de surpresa,
que saudades tinha, então,
de estar contigo ao serão.
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43. Tchador
Déboras, Irinas, Svetlanas
ucranianas,
sul- americanas,
não importa.
Partiram em busca de uma porta
que lhes desse acesso a melhores vidas.
e acabaram ludibriadas,
iludidas,
nas mãos de proxenetas.
São traficadas
são exploradas,
vezes sem conta são violadas
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44. e quando, apesar de jovens, acabadas,
são abandonadas,
jogadas nas sarjetas.
Sandras, Bintas, não importa o nome,
a vida deu-lhes até hoje violência e fome.
Aquela com onze anos, tão menina,
de uma outra menina já é mãe.
Por certo é a primeira boneca que ela tem.
E nos olhos, em vez de ódio e de revolta,
uma lágrima solta,
enquanto embala a filha com amor.
Aquela outra ali é argelina,
talvez a "pietá" que correu mundo.
Nos olhos um desgosto tão profundo,
maior que o próprio mundo.
E aquelas outras das quais não vejo o rosto
que, se doentes, não podem ser tratadas,
que são impuras, se desvirginadas,
que se forem violadas
poderão por castigo ser queimadas?
O que dirão os seus olhos por baixo do tchador?
Humilhação?
Desgosto?
Resignação?
Rancor?
Talvez revolta?
Se eu um dia usar tchador
por meu querer
acreditem que não é para me esconder
é só para tentar não ver
tanta injustiça, tanto horror,
tanto fanatismo, tanta dor,
neste mundo cruel à nossa volta.
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45. Hipocrisia
Lactarius deliciosus.
Não sei se foi Lineu
quem o nome lhes deu.
Eu,
no meio do pinhal,
com gestos suaves, subtis,
vou-as colhendo uma a uma.
São as sanchas, frágeis, delicadas,
como que envergonhadas,
por baixo da caruma.
Chapéu e pé em tom alaranjado,
já em pequenina,
a medo, eu as colhia
pois sabia
que mesmo ali ao lado,
outros cogumelos,
alguns muito mais belos,
teciam seus ardis.
Insidiosos, perigosos,
escondem em si a muscarina,
a psilocibina,
tanta, tanta toxina,
tantas vezes fatal.
Tal qual a hipocrisia
nos humanos,
desumanos,
antes eu diria,
que enchem a boca com a democracia
e a globalização,
visando um mundo novo,
enquanto vendem armas para matar o povo
que subjugam pela exploração.
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46. Impulsão
Arquimedes
não descobriu Ganimedes,
que é uma lua.
Diz a lenda que saiu nu para a rua,
gritando Eureka, Eureka,
com enorme satisfação.
Acabara de descobrir a impulsão.
E é essa a principal razão
por que, volvidos mais de dois mil anos,
navios continuam a cruzar os oceanos.
Alteridade
Quando, em pequenina,
me via ao espelho daquele guarda fatos
tentava abrir a porta, em busca da menina
que eu achava estar do outro lado.
Já então eu achava que a menina
era uma outra menina que não eu.
Hoje, quando me vejo no espelho daquele guarda
fatos
ou em outro qualquer, não importa qual,
sei também que o que vejo não sou eu.
Tudo o que eu faço, do outro lado,
a outra faz em simetria.
Saúdo-a com a minha mão direita
e ela que me espreita,
talvez por ironia,
devolve-me com a esquerda a saudação.
Eis a razão
de eu não conhecer o meu real
porque a outra que de lá me respondeu
não era eu
mas a imagem simétrica, direita, virtual.
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47. Mole
Se me falam em mole, por associação,
posso pensar em macio, em massa informe,
mas posso pensar em rígido, isso conforme
pensar no significado ou na oposição.
Mas estranho é falar de mole como quantidade,
a que corresponde aquela enormidade,
seis vezes dez elevado a vinte e três.
É estranho ou esotérico talvez,
mas é assim que o nosso mundo é feito.
Não deixaria ninguém satisfeito uma mole de pão
já que nos esmagaria e, de tal jeito,
nem poderíamos morrer de indigestão.
Mas se ao mundo chegasse uma mole de amor,
por certo o mundo desabrocharia em flor.
A exploração, a xenofobia,
a guerra, a fome, tudo acabaria
e um novo mundo, então, começaria.
Lata
Quando ia à praia, em criança,
levava pá e balde em lata,
que eram azuis e cor da prata.
Lembro também, eu criança,
que em casa da família Malcata,
que usava talher de prata,
trabalhava a senhora Liberata,
que vivia num bairro de lata
e que, um dia, emigrou para França.
O seu endereço, perto da Flandres,
tenho-o na agenda, em papel almaço.
O balde e a pá, azul e prata
com que eu brincava em criança,
e a casa da senhora Liberata
que um dia emigrou para França,
eram de lata- folha de Flandres,
folha que é feita com estanho e aço.
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48. Arco-íris
Passeio no jardim das Tulherias,
o céu é cinza, o ar é baço.
Pelo espaço
ecoam doces melodias
que uma criança extrai da concertina.
Não sei se é menino ou se é menina,
só vejo as mãos e os olhos de um negro
penetrante.
Um velho casaco do irmão, talvez do pai
cobre-lhe a cabeça e sobre os ombros cai,
tentando protegê- la do frio que é cortante
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49. É Abril, um Abril de chuva e frio,
o dia é sombrio.
No Céu, um arco íris imenso
cobre a cidade com um halo intenso.
Lá ao fundo o obelisco hirto e só,
recorda o Egipto, e um certo faraó.
Mais além o Arco do Triunfo e la Défense
"Honni soit qui mal y pense".
Para trás, o Louvre e a Catedral
ali à esquerda, sempre monumental,
a torre Eiffel
qual torre de Babel
onde se ouvem os idiomas mais diversos,
são os turistas, por Paris dispersos.
Lá em cima, o Sacré Coeur, Monmartre,
esta é a cidade luz, da boémia e da arte
no país de Renoir, Rodin, Ravel e Sartre,
Belmondo, Godard, Chevalier
do grande Le Corbusier,
de Descartes e Lavoisier,
de Aznavour, Piaff e Juliette
Paris dos Boulevards, de la Vilette,
do centro Pompidou, Beaubourg, Les Halles
do Moulin Rouge e de Pigalle,
da Ópera, da Madalena,
das pontes sobre o Sena.
É Abril, um Abril de chuva e frio.
A música flutua no ar denso
e no Céu, sombrio,
um arco íris imenso.
Tudo isto me fascina e me seduz:
Paris, o som da concertina,
e a dispersão da luz
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50. Xenofobia
Quando era criança
deram-me a boneca
da prima Rebeca
Tinha uma trança
loira, cor do trigo.
Chamei-lhe Constança.
Usava um vestido
que ia até ao chão
e quando a voltava
iii
era a sensação
Eis a Joaninha
com um negro rosto
e negra carapinha.
Vê-la dava gosto.
As duas vestiam
o mesmo vestido,
muito colorido,
e lá se entendiam.
De qual mais gostava
sei que não sabia,
pois tenho a ideia
que a cor não contava,
e a ambas eu queria.
Eu não conhecia.
a xenofobia.
Palavra tão feia,
quem a quer usar
não teve a boneca
da prima Rebeca
p´ra poder brincar
50
51. Normal
Normal.
Pode ou não ser vertical,
a algo é perpendicular.
Pode significar regular
como alguns poliedros,
cubos e tetraedros,
como alguns verbos também
que, outros, defeitos têm,
o que não impede ninguém
de sempre os utilizar
de uma forma natural.
Normal.
Basta apor-lhe só um A
e não normal aí está,
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52. o que nem todos respeitam
por vezes até rejeitam.
É isto a intolerância,
fruto da ignorância,
pois a água, substância
à vida fundamental,
não é lá muito normal.
Durante o aquecimento,
em vez de o volume sofrer
um continuado aumento,
começa por decrescer
até um dado momento,
de máxima densidade,
depois começa a crescer,
quase com normalidade.
Tudo isto é anormal,
e é essa anormalidade
que vai permitir explicar
que se a água congelar
o gelo fique a boiar,
como acontece no mar
duma região polar.
Tal qual como um cobertor,
o gelo, isolador,
cobre o mar com muito amor,
não deixa a água gelar.
A vida dentro do mar
pode assim continuar.
Para a vida é fundamental
e tudo isto, afinal,
porque a água é anormal
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53. Luz
Como deve estar cansada,
direi mesmo extenuada,
sempre, sempre a viajar,
e sem poder descansar,
mudando de direcção,
reflexão e refracção....
Por vezes até nos finta,
viajando pelo Mundo
a três vezes dez à quinta
quilómetros por segundo.
Viaja há quanto tempo,
perscrutando o firmamento ?
Terá muito que contar
se alguém a quiser escutar.
Os físicos e os poetas,
os amantes e os profetas
escutam-na à sua maneira,
mas em toda esta viagem
ela traz uma mensagem
para a humanidade inteira.
Da forma que as coisas vão
poderá acontecer
que ela deixe de correr
e fique tudo em escuridão.
Transformações
Podem ser físicas e químicas as transformações.
Às segundas chamamos reacções,
mas há as que ocorrem nos corações
e que vão de paixonetas a paixões,
que podem destruir, quais furacões,
que a cinzas podem reduzir, como vulcões,
esperanças, sonhos e ilusões.
Foi isso o que aconteceu
ao meu tetravô Bartolomeu,
que com um enfarte morreu
por causa duma paixão que (não) viveu...
53
54. Amón-Rá
Keops, Kefren, Mikerinos,
as monumentais Pirâmides em Gizé
Eu ali ao lado, em pé,
senti-me menor que um grão de areia
daquela que as pirâmides rodeia
no deserto, uma imensidade,
ali mesmo ao lado da cidade.
Sobrevoar o Egipto é impressionante
Tudo é deserto, apenas junto ao Nilo
uma estreita faixa verdejante.
Navegar no Nilo é emocionante
Karnak, Luxor, Edfu, Kom Ombo,
Assuão, a ilha Elefantina,
assim se navega rio acima.
São vários os templos ao longo das margens,
veleiros deslizam ao sabor das aragens.
Tudo impressiona naquelas paragens.
Assuão lembra o paraíso,
pelo menos é assim que o ajuízo,
uma calma, uma beleza,
todo um encantamento
que não provém só da natureza.
È uma melopeia de inúmeros sons,
são os cheiros e as cores, em infinitos tons.
Ir ao Egipto é recuar muito no tempo
Cleópatra, Ramsés, Tutankhamon
Akhenaton, a rainha Hatschepsut,
deuses e deusas, como a deusa Nut,
o deus Hórus ou o deus Aton,
a deusa Hathor
da alegria e do amor,
Amon Rá, deus dos deuses, deus do Sol,
o mesmo Sol
que, volvidas tantas gerações,
ainda presenteia o Egipto com fotões.
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55. Guerra
Guerra rima com terra e com serra.
Estranhamente, guerra não rima
com dor,
com horror,
com terror,
mas a guerra é um estupor.
Estranhamente, guerra também não rima
com milhões
de vidas desperdiçadas à toa,
com biliões
em dinheiro, seja o dólar ou a coroa,
que vai enriquecer mafiosos,
nem um pouco escrupulosos.
Estranhamente,
guerra que devia rimar com dor,
rima com terra e com serra
que deveriam rimar com flor.
Meninos
Num dia primaveril,
numa escola em Arganil,
meninos de bibe anil,
entoam canções de Abril,
enquanto que no Brasil,
meninos, bem mais de mil,
entregues à sua sorte,
temem o esquadrão da morte
e na ilha de Timor
meninos, também um ror,
envoltos em muita dor
tentam esquecer o horror.
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56. Betão
O menino ouvia, ouvia
enquanto o avô descrevia
o que em pequenino via
sempre que à janela ia.
Via uma floresta densa
que se espraiava, imensa,
árvores grandes, frondosas.
Na floresta havia esquilos,
répteis, batráquios, grilos,
muitas aves, mariposas,
lebres, coelhos e gamos.
O menino ouvia, ouvia,
enquanto o avô descrevia
o que via há muitos anos.
Havia líquenes, fungos,
e meninos de olhos profundos
corriam pela floresta.
Os dias eram de festa,
davam-se grandes passeios
e ali nasciam enleios.
A floresta era pujança,
era vida, era esperança.
Fecha os olhos o menino
e tenta, tenta imaginar.
Chega até a acreditar
que quando os olhos abrir
a floresta vai surgir.
Que grande desilusão!
Abre os olhos o menino
mas só vê o desatino
de uma floresta em betão.
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57. Amosia
Sofro de um estranho mal
que se agrava dia a dia
Já fiz muita endoscopia
raios X, tomografia,
LASER e sonografia,
uma densitometria,
e até cintilografia.
O relatório final,
lacónico, por sinal,
reza apenas na sentença
Desconhecida a doença..
Há dias aconteceu
algo estranho e anormal.
Vi surgir, vindo do céu,
um ser de forma espiral,
com uma voz de metal,
oriundo doutra galáxia.
Falei logo no meu mal,
dele era conhecedor.
Não o disse por falácia
pois donde vinha é banal.
É doença bem estudada
e tem por nome amosia.
Sabe-se ser provocada
por vírus de nome amor
e bactéria poesia.
É de fácil solução,
basta usar medicação,
KXcalomelanos.
Não a trouxe na bagagem
e a fórmula não quis dizer
Porém, ficou de a trazer
já na próxima viagem,
daqui a mil milhões de anos.
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58. Poeta
Isto de se ser poeta
é pior que uma peçonha,
é uma peste medonha
que o corpo e a mente infecta
Num turbilhão de emoções
o sangue arde, crepita,
o corpo sua, tirita,
a mente toda se agita
em tremendas convulsões.
Sob uma angústia infinita
e a sensação de abandono,
perde-se a fome e o sono,
cuida-se de ensandecer.
Depois de dura agonia,
após a obra nascer
e o poema virar flor,
surge uma branda acalmia.
Mas ao poeta, coitado,
sem forças, desalentado,
banhado em mental suor,
só lhe apetece morrer
ou então permanecer
em estado de torpor.
Elasticidade
Não sei se obedece à lei de Hooke ou não,
mas é elástico o coração.
Uns são muito elásticos, outros não.
Uns têm o amor como bandeira
podem amar a humanidade inteira,
outros vão amando aqui e além,
outros amam sempre alguém
e há os que nunca amam ninguém.
Tem que haver uma razão
para tanta desigualdade.
Só vejo uma explicação,
a constante de elasticidade
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59. Balcãs
A guerra dos Balcãs
é, aliás, como todas as guerras,
irracional.
Tentam fugir dela
a criança, o homem, a mulher bela.
A guerra dos Balcãs
é, aliás, como todas as guerras,
brutal.
Tenta fugir da guerra dos Balcãs
aquele ancião cheio de cãs.
A guerra dos Balcãs
é, aliás, como todas as guerras,
sensacional.
Na comunidade internacional
pode ver-se em qualquer telejornal
e homens e mulheres falam dela na rua
E a guerra ?
Ah, a guerra, essa continua...
Internet
Através da Internet,
a estrada da informação,
escrevi ao primo João,
casado com a prima Arlete,
que nasceu no Maranhão
e vive lá no Japão.
O seu e-mail escrevi
-o endereço electrónico-
e logo a seguir recebi
a resposta do nipónico,
que afinal é brasileiro.
Maravilhosa invenção!
Pensar eu que o electrão,
com ajuda do fotão,
é um grande mensageiro
em toda esta transmissão,
que numa fracção de segundo
liga entre si todo o mundo!
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60. Castro
Em mato de urze, de giesta, de carrasco,
fica ali escondido, abandonado, o castro,
castelo dos mouros, como o povo diz,
de onde, quem sabe,
uma moura donzela
fugiu para Castela
num belo alazão
enquanto soprava o vento suão.
Partiu com um mouro, ou partiu com cristão?
De livre vontade ou partiu infeliz?
Quem sabe,
não descenderia da moura donzela
minha bisavó, de seu nome Ana
que era castelhana
fugida da guerra, da luta intestina
entre um tal D. Carlos e D. Cristina?
Quem sabe?
Pergunto ao carrasco,
mas não existia, ao tempo, no castro.
Questiono o rio que corre no fundo,
mas a água de outrora
correu, foi embora,
perdeu-se no mundo.
Amor
É belo o amor quando acontece
e torna-se sublime, se floresce.
Mas se dá fruto, para além da flor,
não há adjectivos para o amor.
Uma nova palavra, um termo novo urge inventar
com perfume de luar,
e som de esperança,
com cor de bem-aventurança,
com volteios de ninfa em etérea dança.
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63. Meninos _______________________________________ 55
Betão _________________________________________ 56
Amosia ________________________________________ 57
Poeta _________________________________________ 58
Elasticidade __________________________________ 58
Balcãs ________________________________________ 59
Internet ______________________________________ 59
Castro ________________________________________ 60
Amor __________________________________________ 60
i
É assim designado, por vezes, o narciso cuja campânula
central é amarela e em que as pétalas exteriores são
brancas
ii
de António Nobre
iii
quando eu era criança brinquei com uma boneca que tinha
duas cabeças opostas, uma branca, outra negra. . Quando
exibia uma, a outra ficava coberta pelo vestido.
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