2. série Princípios
Maria José Palo
Doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Teoria Literária pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo Professora Associada do Programa de Pós
Graduação em Literatura e Crítica Literária
Maria Rosa D. Oliveira
Doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Teoria Literária pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária
Literatura infantil
Voz de criança
3. Maria José Palo e Maria Rosa D. Oliveira
Diretor editorial adjunto Fernando Paixão
Coordenadora editorial Gabriela Dias
Editor adjunto Carlos S. Mendes Rosa
Editora assistente Tatiana Corrêa Pimenta
Revisão Ivany Picasso Batista (coord.)
Estagiárias Aline Rezende Mota e Bianca Santana
Arte
Edição Antonio Paulos
Assistente Claudemir Camargo
Capa e projeto gráfico Homem de Mello & Tróia Design
Editoração eletrônica Moacir K. Matsusaki
EDIÇÃO ORIGINAL
Direção Samira Youssef Campedelli e Benjamin Abdala Jr.
Preparação de texto Edison Mendes de Rosa
Arte c projeto gráfico/miolo Antônio do Amaral Rocha
Arte-final René Etiene Ardanuy
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
________________________________________________________
P211L
4.ed.
Paio, Maria José, 1932-
Literatura infantil : voz de criança / Maria José Paio, Maria Rosa D.
Oliveira. – 4ª.ed. - São Paulo : Ática, 2006
80p. - (Princípios : 86)
Inclui bibliografia comentada ISBN 85-08-10305-0
1. Literatura infanto-juvenil - História e crítica. I. Oliveira. Maria Rosa
Duarte de 1946- II. Título. III. Serie.
CDD 809.89282 CDU 82-93.09
ISBN 85 08 10305-0 (aluno) ISBN 85 O8 10306-9 (professor)
2006 4ª. edição - 1ª. Impressão
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Todos os direitos reservados pela Editora Ática, 2006
4. Sumário
1. A literatura e o literário infantil 5
O ser "infantil" da literatura 5
A literatura infantil 9
A função utilitário-pedagógica 13
2. "... E de que serve um livro sem figuras nem diálogos?" 15
Figuras — diálogos c função pedagógica 15
Figuras — diálogos e função estética 17
Três espécies de figuras 19
3. A personagem e seu duplo — a criança 21
A estrutura da personagem-padrão 21
A transformação do estatuto da personagem na literatura infantil 22
A personagem caracterizada pela esfera de ação 22
Inversões nas funções tradicionais da personagem 25
O universo da consciência e a personagem 34
Da verossimilhança ao texto 37
4. Discursos e vozes narrativas 43
O processo comunicativo 43
A oralidade como padrão narrativo 44
Modos de incorporação do padrão de oralidade 45
O léxico oral na sintaxe da escrita 45
Jogos sonoros, visuais e a prontidão para o desempenho oral
e escrito 48
O narrador e a escritura da fala 51
O riso e o universo do avesso 55
No limite da narrativa, a poesia 62
Leitura e oralidade 66
5. Cosmovagar. Revendo o rio. A literatura infantil
em videotexto 69
6. Vocabulário crítico 72
7. Bibliografia comentada 76
5. Nota do revisor: os números que aparecem entre [ ] referem-se a numeração original
das páginas do livro impresso.
6. 1 A literatura e o literário infantil
_____________________________
O ser "infantil" da literatura
O tema literatura infantil leva-nos de imediato à reflexão acerca do
que seja esse "infantil" como qualificativo especificador de determinada
espécie dentro de uma categoria mais ampla e geral do fenômeno literário.
Falar à criança, no Ocidente, pelo menos, é dirigir-se não a uma
classe, já que não detém poder algum, mas a uma minoria que, como
outras, não tem direito a voz, não dita seus valores, mas, ao contrário, deve
ser conduzida pelos valores daqueles que têm autoridade para tal: os
adultos. São esses que possuem saber e experiência suficientes para que a
sociedade lhes outorgue a função de condutores daqueles seres que nada
sabem e, por isso, devem ser-lhes submissos: as crianças.
Estabelece-se, assim, de forma inquestionável e extremamente
natural, um vínculo entre dominador e dominado, que, na verdade,
reproduz, o modelo capitalista de organização social.
Corroborando esse quadro, vem a própria Psicologia da
Aprendizagem, que, ao evidenciar as fases para a [6]completa
maturação das estruturas de pensamento e de todo o conjunto biopsíquico
da criança, acaba por colaborar com a visão de "natural" domínio do adulto,
na medida em que o pensamento infantil ainda não está apto para
inferências, abstratas e generalizadoras, de uma mente logicamente
controlada. É justamente essa carência da lógica racional, esteio para as
estruturas do pensamento ocidental, que faz da criança um ser dependente
para a nossa cultura.
Convém salientar, ainda, que a essa não-competência para a esfera
analítico-conceitual acrescenta-se uma outra: a do domínio do código
verbal assentado na capacidade de simbolização para a qual o pensamento
infantil ainda não tem a competência suficiente, já que lhe falta a posse das
convenções e das regras gerais que lhe dão acesso à significação global.
No entanto, a ausência da abstração é compensada pela presença da
7. concretitude. É preciso lançar mão de estratégias concretas e próximas à
vivência cotidiana da criança, para que, por contigüidade, se possa fazer a
transferência e a aprendizagem do conceito.
Essa é a operação mais simples de pensamento, que vai da
concretitude e do imediatismo das partes para a generalidade e a
globalização do todo. É esse, também, o caminho da Pedagogia, que se
assenta em fases seqüenciais evolutivas, prevendo uma aprendizagem
gradual, linear e contínua.
Colocar a arte literária nesse contexto implica, por sua vez, vê-la
como uma atividade complexa e, por isso, não-natural ao universo da
infância. Traduzi-la para esse nível significa facilitá-la, criar estratégias
para concretizar, ao nível da compreensão infantil, um alto repertório,
como o estético.
É aí que entram a Pedagogia, como meio de adequar o literário às
fases do raciocínio infantil, e o livro, como [7] mais um produto através do
qual os valores sociais passam a ser veiculados, de modo a criar para a
mente da criança hábitos associativos que aproximam as situações
imaginárias vividas na ficção a conceitos, comportamentos e crenças
desejados na vida prática, com base na verossimilhança que os vincula. O
literário reduz-se a simples meio para atingir uma finalidade educativa
extrínseca ao texto propriamente dito, reafirmando um conceito, já do
século XVIII, de A. C. Baumgartner de que "literatura infantil é
primeiramente um problema pedagógico, e não literário".
Essa função utilitário-pedagógica é a grande dominante da
produção literária destinada à infância, e isso desde as primeiras obras
surgidas entre nós. Nada mais do que atender a uma exigência da própria
estrutura da cultura ocidental em relação a seu tradicional conceito do ser
infantil.
Mas a arte tem outros desígnios e desejos. A criança também.
Se lhe falta a completa capacidade abstrativa que a capacite para as
complexas redes analítico-conceituais, sobra-lhe espaço para a vasta mente
instintiva, pré-lógica, inclusiva, integral e instantânea que só opera por
semelhanças, correspondências entre formas, descobrindo vínculos de
similitude entre elementos que a lógica racional condicionou a separar e a
excluir. Correspondências, sinestesias. Todos os sentidos incluídos.
O signo é a coisa de que fala; não há mais vínculo indireto entre
eles (tal qual na construção simbólica), de maneira que, ao invés de
representar, ele, agora, presenta diretamente o próprio objeto de
8. representação. Aqui e agora concretamente à nossa frente.
Não há descrição mais fiel do modo como opera o pensamento
infantil; o mais distante possível de hábitos associativos convencionais,
geral, imotivados e o mais [8] próximo possível de um pensamento
concreto, inclusivo e motivado, em que a nomeação é análoga à coisa
nomeada.
Ser integralmente. Sem separação alguma entre o pensamento e o
objeto de pensar. Atento à qualidade, mesma, daquilo que se observa.
Como a criança ao ver uma pedrinha. Toda ela, ali, sendo pedra com a
pedra. No coração da realidade. Sem a mediação de camadas e camadas de
idéias, conceitos e interpretações.
Para pintar o bambu, é preciso ser o bambu, diria o mestre Zen.
E João Cabral: flor é a palavra flor.
E Décio Pignatari: mostrar um sentimento e não dizer o que ele é —
isto é poesia.
Um signo icônico. Concreto. Análogo ao objeto da representação.
Como no princípio da linguagem.
Por isso que toda arte, literária ou não, é desde sempre concreta.
Exige um pensamento que vá às raízes da realidade e seja, também ele,
concreto. Nesse momento instantâneo de inclusão e de síntese atinge-se,
por analogia, o conceito. Conceito feito figura, imagem, numa relação
direta com a mente que o opera.
Tal como o conceito ancestral de medo associado à imagem do
lobo, que se vê desestruturado por uma simples inversão da própria
palavra: lobo-bolo, em Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque.
Ora, sendo assim, o pensamento infantil está apto para responder à
motivação do signo artístico, e uma literatura que se esteie sobre esse modo
de ver a criança torna-a indivíduo com desejos e pensamentos próprios,
agente de seu próprio aprendizado. A criança, sob esse ponto de vista, não
é nem um ser dependente, nem um "adulto em miniatura", mas é o que é,
na especificidade de sua linguagem que privilegia o lado espontâneo,
intuitivo, analógico e concreto da natureza humana.
[9]
A literatura infantil
9. Desde os primórdios, a literatura infantil surge como uma forma
literária menor, atrelada à função utilitário-pedagógica que a faz ser mais
pedagogia do que literatura.
Contar histórias para crianças sempre expressou um ato de
linguagem de representação simbólica do real direcionado para a aquisição
de modelos lingüísticos. O trabalho com tais signos remete o texto para
alguma coisa fora dele, de modo a resgatar dados de um real verossímil
para o leitor infantil. Este, tratado fisionomicamente sob o "modo de ser"
do adulto, reflete-se para a produção infantil como um receptor engajado
nas propostas da escola e da sociedade de consumo. Deverá, sobretudo,
apreender, via texto literário infantil, a verdade social.
Nesse universo, opera-se por associações mais simples de
pensamento, as de contigüidade, feitas com base na proximidade explícita e
compulsória entre os elementos da cadeia significativa: texto-contexto.
Lógica comandada pelos princípios de sucessividade e de linearidade, o
que corresponde ao resgate do tempo real com base na verossimilhança
pretendida como uma lei absoluta da linguagem discursiva.
Portanto, se considerarmos o arranjo do discurso literário sob a
operação da contigüidade dos signos, em convenção simbólica, mais nos
aproximamos do uso social desse discurso, reforçando as estruturas do
pensamento vigente em educação. Isso, sem discutir o tratamento apontado
pela escola ao decidir as respostas da criança na leitura do texto literário:
passividade e persuasão acompanham a recepção dos modelos da verdade
verossímil; ainda a voz da lei pedagógica em exercício literário.
Os "bastidores" da produção do livro estão ocultos, e à leitura só
resta seguir índices, rastros que desembocam, [10] inevitavelmente, num
ponto terminal: o hábito comportamental que se quer ensinar.
Esse é o caso de todo um tipo de produção para a infância tida por
nova para enfrentar o cotidiano; a chamada literatura "realista" para o
público infantil.
O que se nomeia por realista, aí, outra coisa não é senão trazer para
o texto um conjunto de temáticas — pobreza, menor abandonado, pais
separados, sexo etc. — vinculadas, por contigüidade, ao contexto social no
qual se pretende inserir a criança. Construção plana, previsível, sem
surpresas, numa linguagem que tem por tarefa, apenas, ser canal expressivo
de valores e de conceitos fundados sobre a realidade social.
Linguagem carregada de ideologia que permeia cada fala do
narrador, cada diálogo das personagens, e tem um destinatário certo: o
10. leitor infantil, cujo pensamento se pretende capturar. Não há possibilidade
de respostas alternativas nesse processo educativo autoritário que só admite
à criança a função de aprendiz passivo frente à voz todo-poderosa do
narrador e de seu enfoque da realidade social.
Seguindo essa trilha, não é preciso dizer, estão os produtos com
menor grau de invenção e de liberdade criativa; perdem em poeticidade o
que ganham em imediatismo e em praticidade.
Temos aqui descrita uma frente literária comum não apenas à
grande parte da produção infantil contemporânea, mas também àquela não-
infantil. Desnecessário se torna falar dessa qualidade literária à margem de
um contexto de produção que se nega a especular sobre a natureza sensível
da linguagem infantil; ao contrário, troca o inventar poético pelo modelo
consumista do discurso literário.
Pound consideraria essa classe da produção literária como sendo a
dos diluidores, "homens que trabalham [11] mais ou menos bem, dentro
do estilo mais ou menos bom de um período. Desses estão cheias as
deleitosas antologias, assim como os livros de canções e a escolha entre
eles é uma questão de gosto".
Tomando-se literário no sentido estrito que lhe dá Jakobson, isto é,
enquanto função poética (projeção do eixo da similaridade sobre o da
contigüidade), assumir a dominante poética nos textos da literatura infantil
é configurar um espaço onde equivalências e paralelismos dominam,
regidos por um princípio de organização basicamente analógico, que opera
por semelhanças entre os elementos. Espaço no qual a linguagem informa,
antes de tudo, sobre si mesma. Linguagem-coisa com carnadura concreta,
desvencilhando-se dos desígnios utilitários de mero instrumental.
Palavra, som e imagem constroem, simultaneamente, uma
mensagem icônica que se faz por inclusão e síntese, sugerindo sentidos
apenas possíveis. É a informação lançada no horizonte precário da arte
feito de "um retalho de impalpável, outro de improvável, cosidos todos
com a agulha da imaginação" (Machado de Assis). Cada coisa, cada ser
pode ter similaridade com outros, redescobrindo o princípio da
correspondência que os integra no todo universal; nesse fugaz instante
entre o dito e o não-dito.
O pensamento infantil é aquele que está sintonizado com esse
pulsar pelas vias do imaginário. E é justamente nisso que os projetos mais
arrojados de literatura infantil investem, não escamoteando o literário, nem
o facilitando, mas enfrentando sua qualidade artística e oferecendo os
11. melhores produtos possíveis ao repertório infantil, que tem a competência
necessária para traduzi-lo pelo desempenho de uma leitura múltipla e
diversificada.
Leitura que segue trilhas, lança hipóteses, experimenta, duvida,
num exercício contínuo de experimentação e descoberta. Como a vida.
[12]
A Pedagogia, por sua vez, sob a égide da função poética seria algo
semelhante à descoberta de Oswald de Andrade:
Aprendi com meu filho de 10 anos que a poesia é a descoberta das
coisas que nunca vi.
Pedagogia que brota do próprio texto que a si ensina, como o sino
de Paulo Leminski:
de som a som
ensino o silêncio
a ser sibilino
de sino em sino
o silêncio ao som
ensino
Investe-se na inteligência e na sensibilidade da criança, agora
sujeito de sua própria aprendizagem e capaz de aprender do e com o texto.
Educação simultânea do par texto-leitor, ambos repertorialmente acrescidos
e modificados no momento da leitura. É por isso que, ao se falar dos textos
de literatura infantil sob a dominante estética, põe-se em risco a própria
categorização de infantil e, mais ainda, do possível gênero de literatura
infantil, já que não se trata mais de falar a esta ou àquela faixa etária de
público, mas assim de operar com determinadas estruturas de pensamento
— as associações por semelhança — comuns a todo ser humano.
É por isso, também, que obras não-elaboradas com a intenção de
falar ao público infantil acabaram por atingi-lo. É o caso de Lewis Carroll e
suas Alices, de Guimarães Rosa em muitos de seus contos, de poemas
concretistas e oswaldianos. E de Leminski, no poema citado.
[13]
Nada mais do que a conscientização da natureza universal da arte
literária, que a liberta desse ou daquele público específico, para propor-se
12. como generalizadora e regeneradora de sentimentos, conforme diria
Charles S. Peirce.
A função utilitário-pedagógica
Dentro do contexto da literatura infantil, a função pedagógica
implica a ação educativa do livro sobre a criança. De um lado, relação
comunicativa leitor—obra, tendo por intermediário o pedagógico, que
dirige e orienta o uso da informação; de outro, a cadeia de mediadores que
interceptam a relação livro—criança: família, escola, biblioteca e o próprio
mercado editorial, agentes controladores de usos que dificultam à criança a
decisão e a escolha do que e como ler.
Extremamente pragmática, essa função pedagógica tem em vista
uma interferência sobre o universo do usuário através do livro infantil, da
ação de sua linguagem, servindo-se da força material que palavras e
imagens possuem, como signos que são, de atuar sobre a mente daquele
que as usa; no caso, a criança.
Esse uso, por sua vez, também se manifesta por uma ação — a
atividade de leitura —, responsável pela decodificação da mensagem,
traduzindo-a em novos signos portadores de sentidos que a mente
apreendeu e, agora, transfere à experiência do usuário, incorporando-os ao
seu modo de pensar, sentir e agir.
Estar sob a dominante utilitário-pedagógica ou poética traz, por
decorrência, duas espécies de uso da informação: do mais unificado ao
mais diversificado. Se o primeiro é possível de ser controlado pela função
pedagógica, o segundo é um desafio a essa função, já que [14] põe em
crise qualquer previsibilidade de uso frente à alta taxa de imprevisibilidade
da mensagem.
Ao uso passivo e consumista se sobrepõe um uso que implica
atividade efetiva da mente receptora, sujeito das conexões que cria, das
sugestões de sentidos que capta e reconstrói em cumplicidade com seu
outro — o livro —, também ele renascendo a cada instante em que se vê
em processo de leitura.
Na história do livro, a história do leitor e de sua leitura, ambas em
permanente processo de reciclagem da informação, marcada de geração em
geração.
Privilegiar o uso poético da informação é também pôr em uso uma
13. nova forma de pedagogia que mais aprende do que ensina, atenta a cada
modulação que a leitura pode descobrir por entre o traçado do texto.
Ensinar breve e fugaz que se concretiza no fluir e refluir do texto, sem
pretensões de ter a palavra final, o sentido, a chave que soluciona o
mistério. Mais do que falar e preencher, o texto ouve e silencia, para que a
voz do seu parceiro, o leitor, possa ocupar espaços e ensinar também.
Redescobre-se, então, o verdadeiro sentido de uma ação pedagógica que é
mais do que ensinar o pouco que se sabe, estar de prontidão para aprender a
vastidão daquilo que não se sabe. A arte literária é um dos caminhos para
esse aprendizado.
À função utilitário-pedagógica só resta um caminho, que a leve ao
verdadeiro diálogo com o ser literário infantil: propor-se enquanto
protopedagogia ou quase-pedagogia, primeira e nascente, capaz de rever-se
em sua estratificação de código dominador do ser literário infantil, para, ao
recebê-lo em seu corpo, banhar-se também na qualidade sensível desse ser
com o qual deve estar em harmônica convivência.
14. [15]
2 ".. .E de que serve um livro sem
figuras nem diálogos?"
____________________________
Figuras — diálogos e função pedagógica
A frase é de Carroll, numa de suas Alices.
O livro infantil, desde seus primórdios, tem procurado responder à
questão, promovendo formas de diálogos entre a imagem — a ilustração —
e o texto verbal. Diálogos nem sempre dialógicos, isto é. dando lugar ao
cruzamento de vozes diversas em sintonia no espaço textual. O mais
comum é o aparente diálogo que, no fundo, esconde um tom único,
monológico, privilegiando a informação construída pelo texto verbal em
detrimento daquela oriunda tio visual. A imagem transforma-se num
simples apêndice ilustrativo da mensagem lingüística.
Entra em cena a função pedagógica, que se utiliza da imagem como
uma estratégia para materializar, determinar e preencher aquilo que poderia
se transformar, pela imaginação do leitor-criança, num campo vago e
impreciso de possíveis construções imagéticas.
Para fazer frente a esse risco, a ilustração surge em momentos
decisivos da estória, ou para mostrar como são as personagens
centrais ........- heróis e vilões — em termos [16] de atributos físicos e
psicológicos, ou para concretizar certas cenas, pontos de tensão da intriga,
que se deseja gravar na memória do receptor.
Não resta dúvida de que é uma forma de dar veracidade à narração,
conferindo à palavra-geral e simbólica um caráter de índice, de existente
real e individualizado. É a conexão, por contigüidade e subordinativa,
texto-ilustração que permite maior eficácia do processo comunicativo,
garantindo que as informações nucleares da narrativa, graças ao estímulo
15. da imagem, criem hábitos associativos tais que sejam inscritos diretamente
no pensamento da criança com o mínimo de esforço e com o menor
dispêndio de energia possível. É esse o caso de uma série de livros infantis,
entre eles o célebre Emília, de Monteiro Lobato, os álbuns de imagens
(Coleção Recreio, Melhoramentos) e os textos da Coleção do Pinto, da
Editora Comunicação.
Emília, por exemplo, já está preenchida imediatamente em nossa
imaginação, assim como todos os demais moradores do sítio do Pica-Pau
Amarelo, pela automatização de um hábito que nos leva a aproximar a já
convencional imagem de Emília — boneca de pano/tranças/olhos de
botões/pintas no rosto/esperta/curiosa e questionadora das normas sociais
— à simples emissão de seu nome.
Quanto aos álbuns de imagens, à semelhança das cartilhas, a
vinculação imagem-palavra permite, também, que se estabeleçam hábitos
associativos que aliam a figura à palavra, cujo significado se pretende
ensinar, na tentativa de introduzir a criança no domínio do código
lingüístico, a fim de cumprir uma finalidade de alfabetização da qual a
representação visual é mero suporte.
Já na Coleção do Pinto, a construção imagética assume, como a
proposta da série, um caráter realista, isto é, de uma representação que
tenta ser mimética à realidade visível, reproduzindo-a em seus atributos
físicos. Mesmo naqueles livros da série que tentam captar o mundo [17]
interior das personagens (Eu vi mamãe nascer e O primeiro canto do galo),
o aparente rompimento com a continuidade do traçado da figura pela
técnica do pontilhamento acaba por se desfazer, na medida em que a
simples união dos pontos recupera a linha. Em todos esses casos
exemplares, avulta como constante a alta definição da imagem, de modo a
não deixar espaço para que outras possibilidades de preenchimento possam
ser feitas pelo olho do leitor-criança.
"De que serve um livro sem figuras nem diálogos?" Responderia
esse conjunto de textos da literatura infantil pelo uso pedagógico de figuras
e de diálogos, atendendo a uma finalidade educativa de formação de
hábitos lingüísticos e comportamentais.
16. Figuras — diálogos e função estética
Mas a frase de Carroll tem outra significação. Decifrá-la é
promover uma espécie de diálogo diverso entre ilustração e texto. Poucos
livros infantis entenderam isso, aliás, como não poderia deixar de ser, e os
raros que o fizeram, não há dúvida, investiram num verdadeiro projeto
artístico, simultaneamente gráfico, plástico e literário. Esse é o real
caminho dos inventores no campo da literatura infantil.
Figura passa a designar, agora, um tipo de construção icônica, seja
ela visual, sonora ou verbal, estruturada com base em alguma semelhança
que une a forma qualitativa do signo àquela do objeto que representa.
Figuras que, mais do que representar, desejam ser, presentar os objetos
pertencentes a realidades de outra ordem: aquelas das formas possíveis,
cuja existência se deve ao fato de poderem ser imagináveis, independente
da conformação da experiência e da razão.
[18]
Alice no país das maravilhas é o melhor exemplo disso.
Uma figura: a história que o rato conta a Alice, trazendo nela
inscrita o rabo dos protagonistas, gato-rato, e da ação de perseguição entre
eles que termina na palavra PRATO, em cujo interior é devorado o rato.
E outra, ainda: a professora da falsa Tartaruga, a TORTURUGA,
que já traz incrustada em seu nome a qualidade torturante.
Alice, o Grifo, o Rei e a Rainha de Copas. Figuras, apenas. Não há
modo de vê-los como réplicas do ser humano. Não há como provar sua
existência no contexto extratextual. Simples formas de pensamento feitas
da analogia palavra-som-imagem. Seres de papel que habitam o imaginário
do livro e se transformam em lances vivos para outras formas de
pensamento no instante mágico da leitura.
De Alice, não se tem a definição de uma representação visual, mas,
ao contrário, a baixa definição de uma figura, que é ao mesmo tempo
bruxa, fada, serpente, anã e monstro. Tudo isso e nada disso. Alice é um
poder ser. Sonho dentro de um sonho. Formas de metamorfose tal qual o
diagrama de uma cadeia de pensamentos, na qual ela própria se vê inscrita
como signo. "Quando eu lia contos de fadas, pensava que essas coisas
jamais aconteciam, e cá estou eu metida numa dessas estórias! Deve haver
algum livro escrito sobre mim, deve haver! E quando eu crescer, escreverei
um. . . mas eu já cresci" — e acrescentou, cheia de tristeza: "pelo menos
17. aqui não existe mais espaço para crescer".
Aqui, não há como falar em uso pedagógico de figuras e diálogos,
já que não subsiste um fim utilitário de ensinamento, que faz de ambos
meios expressivos para um objetivo que os ultrapassa. Figuras e diálogos,
aqui, acabam por apontar para si mesmos, para a própria materialidade
[19] do texto como informação. Informação poética em primeiro plano: a
projeção da similaridade sobre a contigüidade; o icônico sobre o simbólico.
Três espécies de figuras
Quanto às figuras, há que dividi-las em três espécies: sonoras,
visuais e verbais. O livro infantil é o espaço para a ocorrência desses três
tipos, cuja sintaxe estrutura a informação artística do texto infantil.
As figuras sonoras constroem-se pela pulsação rítmica das frases
ou, ainda, pela cadência dos acentos fracos--fortes, longos-breves,
agrupando sons tendo por base as semelhanças e as dessemelhanças entre
eles. Trata-se de um ritmo capaz de criar seu próprio objeto, através das
semelhanças e dos contrastes sonoros, ao invés da mera sucessividade de
sons, suportes para a informação lingüística.
A rima (semelhança sonora no início, no meio ou no fim dos
versos), as aliterações (repetições de um mesmo som), os paralelismos
(ritmos que se repetem), as dissonâncias (ritmos dessemelhantes inclusos
num só tempo) são algumas dessas figuras sonoras.
As figuras visuais, por sua vez, terão por objeto a construção de
formas analógicas através da semelhança e do contraste entre linhas,
figuras, planos, cores, espaços. Aí, no universo das próprias possibilidades
de formas visuais, reside a informação que não tem nenhum compromisso
de fidelidade à reprodução dos objetos existentes na realidade visível; ao
contrário, opõe-se a qualquer representação verossímil que tente dar a
ilusão de realidade através da perspectiva e da centralização na linha do
horizonte, que divide o quadro em dois planos básicos: o primeiro, frontal
(figura), e o segundo, secundário e mais distante (fundo).
[20]
Quanto às figuras verbais, centralizam-se, basicamente, em duas:
metáfora e paronomasia. Em ambas, a construção faz-se por relações de
semelhança. Na metáfora a semelhança é auxiliada pelo significado dos
18. termos em conexão, enquanto na paronomasia a semelhança faz-se com
base na materialidade gráfica, sonora e de sentido entre as palavras
envolvidas.
É o caso do nome da personagem RAUL DA FERRUGEM AZUL,
cuja conexão Raul-Ferrugem faz-se tendo por suporte o significado comum
entre ambos — a falta de uso, a inação —, que, afinal, acaba por identificar
o atributo básico da personagem Raul.
Já no nome da professora da falsa tartaruga, a Torturuga, ocorre a
paronomasia, desde que seu atributo já está inscrito na própria
materialidade de seu nome, fundindo-se, assim, nessa "palavra-valise" duas
informações simultâneas: TARTARUGA (que) TORTURA.
Outro momento inventivo de fusão entre os três tipos de
construções figurativas aparece em Chapeuzinho Amarelo, de Chico
Buarque, nesta etapa da narrativa.
Ilustração 1
-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-
-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-
BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO...
Em alternâncias e paralelismos rítmicos, módulos móveis LO-BO,
em múltiplas posições no espaço-página, constroem por analogia a imagem
da devoração do LOBO metamorfoseado na própria palavra BOLO, a ser
"comida" pelo olho, ouvido, boca, pensamento do leitor, integrando
sonoridade, visualidade e sentido. Devoração que leva consigo a associação
simbólica LOBO-MEDO pela construção de um totem desmistificador do
tabu.
19. [21]
3 A personagem
e seu duplo — a criança
_____________________________
A estrutura da personagem-padrão
Desde as ancestrais narrativas de magia, a personagem avulta em
sua forma mais simples, preenchendo algumas funções básicas
determinadas pela intriga.
Essa estrutura das formas narrativas mais rudimentares é o objeto
da primeira grande obra dedicada ao tema; trata-se de Morfologia do conto
maravilhoso, de Vladimir Propp, cuja primeira edição é de 1928, em pleno
formalismo russo,
Propp, estudando os contos de magia oriundos do folclore russo,
determina-lhes os elementos invariantes — as sete funções nucleares que
englobam as esferas de ação das personagens — e os elementos variantes
— os atributos dos seres narrativos.
Traça-se, assim, o estatuto da personagem (agente da narrativa), que
cumpre funções específicas na intriga a partir de um conjunto de ações que
a qualifica como herói, falso herói, agressor, doador, mandante, auxiliar,
pessoa procurada — as sete funções caracterizadas por Propp.
[22]
Modelo que privilegia personagens que cumprem papéis fixos numa
intriga linear, em que a sucessividade domina.
Preenche esse padrão narrativo tradicional grande parte dos textos
da literatura infantil, embora a produção contemporânea, que será o nosso
corpus de análise daqui para a frente, caracterize-se mais por violações a
esse estatuto-base, seguindo a trilha das novas experimentações narrativas
da modernidade literária.
Tomando-se por princípio o coração da narrativa — a personagem,
que se caracteriza por sua esfera de ação, cuja correlação com outras
20. constituirá a intriga — cabe à imagem a função atributiva dos seres
narrativos. Qualificadores mais ou menos determinados e que,
praticamente, seguem duas alternativas: a de composição de uma
representação verossímil correspondente a um ser humano, de sorte a
estimular a projeção e a catarse da criança, ou a de composição de um
perfil, que vá se afastando gradativamente da fidelidade a um modelo
preexistente e fincado na realidade extratexto para se constituir, tal como
Alice, num signo, numa forma de representação, numa imagem cuja vida
brota do texto em sua relação de leitura.
A transformação do estatuto
da personagem na literatura infantil
A personagem caracterizada pela esfera de ação
Centrando-nos na produção literária infantil contemporânea,
podemos acompanhar a metamorfose da construção das personagens,
tomando como ponto de partida aquelas que cumprem o modelo proppiano,
isto é, que se caracterizam pela esfera de ação. É o caso de A ilha perdida,
de M. José Dupré, e de O gênio do crime, de João Carlos Marinho. Em
ambos, a heroicidade é dada a um grupo de [23] crianças, de modo que
temos uma mesma esfera de ação — a do Herói — distribuída entre
diferentes personagens, o que já constituiria uma pequena transformação do
modelo proppiano.
De resto, a intriga desenvolve-se linearmente numa sucessão
funcional, que, no caso de A ilha perdida, vai desde o desejo de deslindar o
mistério pelas crianças até o momento de clímax: a descoberta do enigma-
Simão, o único habitante da ilha que lá vive, envolto num ambiente
paradisíaco e mágico.
Esse é o verdadeiro herói da história, cujos atributos — coragem,
autodeterminação, liberdade, amor à natureza — passam a ser admirados e
copiados por Henrique, a única das crianças a quem o segredo é revelado.
Nesse momento, a atuação da função pedagógica é marcante, já que
através da personagem envia-se à criança, especialmente àquela que, tal
qual Henrique, vive na cidade distanciada do ambiente natural, uma
mensagem que a compele a admirar a natureza e a respeitar os animais.
21. No caso de O gênio do crime, temos uma história estruturada pela
lógica da causalidade, que monta, pista por pista, o referente da heroicidade
de um grupo de meninos detetives em competição com um detetive invicto,
Mr. John Peter Tony, na descoberta de uma fábrica clandestina. As
personagens, numa intrincada perseguição ao vilão, desenvolvem uma ação
narrativa sucessivo-temporal, remetendo o leitor ao referente humano
exemplar: o confronto entre dois gênios — Bolachão (o herói) e o Anão
(falso herói); a inteligência a serviço do Bem X a inteligência a serviço do
Mal.
O ponto de maior tensão da intriga é o momento da luta, a grande
prova da heroicidade (Bolachão X Anão). Dessa prova, Bolachão sai
vitorioso, de modo a ser confirmado como herói, o gênio do crime.
Vitória que se [24] deve não à atuação de algum poder mágico, mas à
força da razão e da inteligência das crianças, que conseguem ludibriar tanto
o gênio da criminalidade como o do desvendamento dos crimes: o detetive
americano.
Uma mensagem que aponta diretamente para a ação da função
pedagógica, ao sobrepor a criança ao adulto que deseja dominá-la.
Nesses dois textos, é mínima a atenção dada à ilustração, que se
restringe a imagens sem nenhuma expressão, limitando-se a reproduzir
convenções de personagens-tipos.
Já em O gato que pulava em sapato, de Fernanda Lopes de
Almeida/Cecília, o trabalho da imagem adquire um valor funcional maior
ao assumir a função narrativa junto ao verbal, de modo a construir a
sucessividade das esferas de ações da personagem — O Gato MIMI -
desde a sua dominação pela dona até a sua libertação, assumindo o código
da espécie dos gatos: subir em telhados, e não em sapatos.
Para a ação da função pedagógica, a mensagem traduz-se em
termos de uma analogia gato-criança, dona-adulto transferindo à dona,
através do comportamento exemplar de seu gato, uma nova qualificação
frente ao social: "— Aquele é o meu gato. É um ótimo subidor de
telhados".
Tal qual muitos pais em relação a seus filhos. . .
A imagem cumpre a função narrativa, apoiando-se na representação
metonímica da parte pelo todo. É preciso combinar os índices visuais para
se compor o conjunto, quer em termos da caracterização da personagem:
22. afagado pelas mãos da dona
laço cor-de-rosa
MIMI + toucas cor-de-rosa = NÃO-GATO
pires cor-de-rosa para tomar leite
pular em sapato ao invés de subir
em telhado
[25]
quer em termos da representação visual das ações do gato Mimi,
como a subida ao telhado e a queda, por exemplo, construídas pela
repetição da imagem do gatinho em diferentes posições de saltos, de modo
que unindo esses fragmentos o olho do leitor recompõe o pulo e a queda.
O momento decisivo do confronto gato X dona, por exemplo, é
bastante interessante: enquanto no verbal é o diálogo que constrói essa luta,
que é também de dois tons — afirmativo do gato e interrogativo-
exclamativo da dona:
— Aprendi que não sou um verdadeiro gato.
— O quê?
— Onde já se viu gato que sobe em telhado de dois em dois meses?
— Mimi! Que idéias são essas?!!!
— Agora vou subir todos os dias.
— Meu Deus!
no visual constrói-se, por contigüidade, a ação do gato de retirada
do laço cor-de-rosa, que o caracterizava como não-gato, frente ao sapato e
às pernas que apontam para a antagonista-dona.
Cabe à atividade de leitura integrar esses fragmentos verbais-visuais
para reconstruir no conjunto as esferas de ação do herói e de seu oponente.
Inversões nas funções tradicionais
da personagem
É na ruptura com as funções tradicionais da personagem
caracterizada pelo modelo proppiano que se esteia a parte mais
significativa da produção literária contemporânea destinada à infância.
23. [26]
Em simples narrativas como O gato do mato e o cachorro do morro
(Ana Maria Machado/Janine Decot), já se percebe o questionamento aos
hábitos rotineiros desde a capa, na qual imagens do morro e olhos de gato
indiciam a história, entre rabos e folhagens que mantêm entre si analogias
visuais; rabos e olhos encaram o leitor já desejoso de decifrá-los no
encadeamento da narrativa ou no jogo sonoro da rima dominante: mato-
gato, cachorro-morro.
Novos imprevistos ocorrem: dois inimigos ancestrais — gato e
cachorro — são propostos simultaneamente como possíveis heróis da
narrativa:
Era uma vez um mato. Onde morava um gato.
E era outra vez um morro. Onde morava um cachorro.
No entanto, uma pseudo-heroicidade que só se faz no horizonte do
desejo de ambos, esvaziando-se num mero contar vantagem.
Quando o momento decisivo surge — o confronto com o leão — o
combate dá-se com a distribuição dessa função por muitos animais além
dos dois implicados — cão e gato. Uma mesma esfera de ação, a do herói,
é, portanto, partilhada por muitos, enfraquecendo o individual na medida,
mesma, em que fortalece o grupai.
Assim, simultaneamente à função de herói em dispersão, ocorre a
dupla visão de um herói que é o anti-herói; fusão de contrastes.
Em termos de ilustração, dispersão e fusão dos elementos visuais
são as constantes atributivas da imagem, traduzindo por similaridade aquilo
que a esfera funcional das personagens construiu. O melhor exemplo disso
é a própria capa do livro.
[27]
Ilustração 2
24. fusão folhas-mato-olhos gato
(forma) cachorro DISPERSÃO
leão etc
fusão mato-rabos gato
(forma) cachorro
leão etc
No fascinante jogo, imagem e personagem ora se contêm, ora se
dissociam, apontando novos contextos verbovisuais imprevisíveis ao leitor.
O elemento lúdico subjaz no sintagma como um jogo de possíveis
combinatórias entre o olho que vê e o que lê.
A ação imaginária persegue o verbal ao criar signos em diálogo,
embora o discurso pedagógico ainda insista sobre o narrativo, informando
sobre a moral da convivência entre gato e cachorro em sua tradicional
rivalidade:
[28]
Num grande abraço, o gato do mato e o cachorro do morro
descobriram uma coisa boa: brigar pode ser útil, mas para que brigar à toa?
— Quem está na mesma tem que ser amigo.
— E deixar para brigar junto quando vem o inimigo.
Mas a inversão pode se fazer, ainda, numa narrativa apenas visual,
como Filo e Marieta (Eva Furnari).
Agora, é pela contigüidade entre um quadro e outro que a ação de
Filo e Marieta, duas bruxas-fadas, se desenvolve. O estatuto tradicional das
fadas e sua esfera de ação de mandantes ou doadoras do objeto mágico ao
herói são questionados, quer pela imagem das fadas — feias e velhas —
quer pelo uso da vara de condão que, ao invés de as confirmar como fadas,
volta-se contra elas. Fadas que não sabem fazer uso do código das fadas.
Perdem em heroicidade e magia o que ganham em falsa heroicidade e
proximidade às pessoas comuns. Sem auréola, desmistificadas, heroínas
decaídas, pondo em crise, num passe de mágica, a estrutura dos velhos
contos de fadas que povoaram o imaginário das crianças desde tempos
imemoriais.
E é exatamente aí, isto é, o final feliz convencionado pelos
25. tradicionais contos de fadas, que História meio ao contrário (Ana Maria
Machado/Humberto Guimarães) começa. Fim que é começo, ou melhor,
meio para uma história que não sabe bem definir onde é o seu começo,
pondo em crise a causalidade e a sucessividade temporal.
Personagens-padrão — rei, rainha, princesa, príncipe — com
atributos padronizados — casamento e felicidade eterna, desconhecimento
da realidade, construção de aventuras para entreter o tédio e a inação.
No entanto, o estranhamento surge neste modelo por vários
caminhos:
[29]
a) o enigma que ronda o rei durante toda a narrativa — o
responsável pelo roubo do dia — revela-se um pseudo-enigma, fruto da
extrema cegueira da "real visão" tão enclausurada em si a ponto de
desconhecer o mais comum fenômeno da natureza — o ciclo dia-e-noite;
b) "o monstro terrível" — o Dragão Negro e seu olho de luar —,
contra quem o príncipe encantador (e não encantado) deve lutar para livrar
o reino da ameaça eterna do roubo do dia, revela-se mera construção
imaginária, uma figura metafórica elaborada pelo Primeiro Ministro para
ludibriar o rei e entretê-lo na sua pseudo-função de rei;
c) o confronto herói—monstro terrível, que não ocorre, na medida
em que o príncipe, fascinado pelo olho de luar do Dragão, se esquece da
luta e do casamento com a princesa (o eterno prêmio para aquele que
vencesse o dragão) e se apaixona pela Pastora;
d) o casamento príncipe—princesa coroando a esfera de ação do
herói não ocorre e, ao invés disso, a princesa rebela-se contra um
casamento que não deseja e parte para conhecer o mundo para além do
castelo, enquanto o príncipe encantador casa-se com a pastora e
transforma-se num simples vaqueiro.
Em tudo o avesso, contrariando as funções pré-estabelecidas pelas
esferas de ação das personagens dos contos de magia.
Na ilustração, predomina a simultaneidade dos espaços exteriores e
interiores, planos que se distanciam e se fundem, negando a perspectiva
única e convencional, ao mesmo tempo que transporta todo um cenário
histórico medieval para o presente do narrar, recuperando o traçado
primitivo da figura humana miniaturizada em seus detalhes.
[30]
Todavia, o sentido satírico atravessa o visual simbólico, na mesma
proporção em que o narrador nega o valor hierárquico da palavra da
26. autoridade real por meio da palavra de ordem do discurso: tanto a palavra
sofre a inversão, quanto a imagem figurativa que a representa; uma remete-
se contra a outra, gerando o desfazimento do sentido atribuído pela
causalidade histórica — o da heroicidade produzida pelo lendário das
narrativas medievais. O contrário revela-se entre os choques do sintagma
narrativo do passado e do presente — inversão de histórias de reis,
rainhas, príncipes e princesas. Desconstrução de
Ilustração 3
[31]
hierarquias funcionais de personagens cedendo às leis do espaço
textual o direito de gerar suas próprias causas e efeitos.
Na narrativa O rei que não sabia de nada (Ruth Rocha/José Carlos
de Brito), outro exemplo: em abertura, a página clássica do conto
maravilhoso, sob a superfície lúdica do xadrez, colocando em jogo os
valores entre dois tempos e lugares — passado e presente: "Era uma vez
um lugar muito longe daqui". O espaço crítico que se abre entre aquele que
narra e a história levanta-nos, sobretudo, a questão da representação do
modo de ver o objeto e de significá-lo na pessoa do rei. Essa personagem
27. [32]
de representação do poder é ludibriada pelos ministros que fingem
trabalhar, fazendo-se substituir por uma máquina.
Esta, frente à ausência do comando humano, desorganiza-se e o
reino entra em crise. Tal situação, até então desconhecida do rei, vem a lhe
ser revelada quando, em visita ao reino, os cenários artificiais construídos
para enganá-lo caem, sob a ação de uma bola lançada por uma criança:
Cecília; imprevisto que leva à fuga do rei e à conseqüente perda da coroa, o
que o torna um anônimo, desfuncionalizado em sua pseudo-heroicidade.
Apenas como anônimo é que vem a saber do ludibrio até então
vivido, através da personagem-criança Cecília. Esta encarrega-se da
transformação do reino em um parque de diversões, onde a máquina teria a
função adequada.
Cecília e o povo passam a ser os heróis a decidir a vida no reino do
Rei que não sabia de nada. Conseqüentemente, forma-se outro modo de
representar a realidade, agora sob o ponto de vista do povo liderado por
Cecília.
Substituição de poder: das mãos de um grupo dominante para as do
povo, que emerge de sua tradicional posição de dominado. Luta de classes
em ação e a função pedagógica em curso, trazendo de um passado lendário
uma mensagem para o presente: "E o reino foi consertando, consertando, e
até hoje o povo de lá lembra desta história e trabalha contente (. . .)".
28. Quanto à imagem, distorcida pela proporção e pelo humor do seu
traço, revela a representação do "popular", parodiando a nobreza, e, entre
modos de ver o real, executa o jogo da realidade enganosa: o poder e o não-
poder.
Já Raul da Ferrugem Azul (Ana Maria Machado e Patrícia
Gwinner), centra-se na metamorfose da personagem: do enferrujamento ao
desenferrujamento; da esfera do desejo para a do agir. Por isso, Raul da
Ferrugem Azul [33] fecha um ciclo — o da personagem que se caracteriza
por sua esfera de ação — e abre outro — o da personagem que passa a se
caracterizar, também, pelo que deseja, sonha, lembra, imagina, pensa, ou,
ainda, pela esfera atributiva de seu mundo interior. Na medida em que o
espaço da narração abrange a consciência — universo da representação, das
formas de pensamento que são signos, isto é, modos de cifrar e significar o
universo —, a personagem passa a se perceber como representação, signo,
a um passo para ser também o narrador construtor de sua própria história a
um possível leitor. Assim é Raul. Personagem apenas atributiva na primeira
etapa, que tudo podia mas nada fazia, desfuncionalizada em sua esfera de
ação de herói; daí o enferrujamento.
A grande prova do herói: superar o estágio de enferrujamento,
colocando em ação a esfera atributiva de seus desejos e intenções. Tal vem
a ocorrer no final da narrativa, quando Raul confirma sua heroicidade, de
um lado, por sua interferência na intriga em defesa do mais fraco; de outro,
por assumir, agora como narrador, a reconstrução de sua própria história,
feita narrativa nas asas de sua imaginação:
Era uma vez um menino que quando nasceu recebeu de umas
fadas invisíveis uma porção de dons especiais. Tinha voz para
cantar e falar. Tinha mãos para pegar e fazer. Tinha pernas para
andar e correr. Tinha cabeça para inventar e pensar. Mas como ele
morava num lugar onde as pessoas faziam quase tudo para ele,
muitas vezes não era preciso usar esses dons. E alguns deles foram
enferrujando.
Na ilustração, genericamente, ocorre a amplificação, por acréscimo
de atributos, da história narrada pelo verbal. É o caso da representação
visual do enunciado verbal "Raul dorme"; na cena, não apenas Raul dorme,
mas tudo [34] ao seu redor: a lua no céu, o ratinho, os objetos deixados a
um canto, o livro (Isolda, a baleia) a revista (Play Baby — réplica infantil
29. do adulto Play Boy). Integração da personagem ao ambiente. Interior e
exterior organicamente vinculados à semelhança do pensamento infantil,
para o qual tudo pulsa cheio de vida, até mesmo os objetos inanimados.
Raul da Ferrugem Azul, embora ainda mantenha vínculos de
verossimilhança com a imagem da criança-leitora da história, já aponta
para a grande transformação da personagem em direção a seu atributo
básico: o texto.
O universo da consciência e a personagem
A personagem-criança no espaço-tempo de sua consciência não
mais se caracteriza pelo que faz exteriormente, mas pelo que imagina,
deseja, sonha, lembra atributos de seu mundo interior; não uma coisa
depois da outra, mas tudo ao mesmo tempo, nas dimensões de um espaço-
tempo dinâmico e relativo. O que seria disfunção — personagens que não
se definem pela esfera de ação, mas pelos atributos —, aqui, ao contrário, é
função. São os atributos, as qualidades, que passam a funcionalizar as
personagens numa intriga que se rarefaz em termos de acontecimentos em
cadeia para ganhar uma dimensão vertical enquanto qualificação de cada
instante de consciência, justapondo sensações, sentimentos e idéias.
É o caso de narrativas como: O barril (Mirna Pinsky e Rogério
Borges) e O menino que espiava pra dentro (Ana Maria Machado e Flávia
Savary). Na primeira, o contexto verbal constrói atributos em oposição para
as personagens André e sua irmã Júlia, a saber: André — grande, forte,
bonito e inteligente; Júlia — pequenininha, dorminhoquinha, choroninha e
inventiva; ambos desejam marcar sua heroicidade por meio de aventuras
feitas com [35] a imaginação dentro de um barril marrom, grandão e
mágico. Alternadamente, as histórias se sucedem, tal como histórias
mágicas que o gato (que não era galo, mas MUI uma gata criadeira) da
imaginação trazia na cabeça, a partir dos telhados mágicos conhecidos. O
elemento maravilhoso da magia fabular passa a escrever a história vivida
pelas personagens André/Júlia, indiciando para o visual os quadros-cenas
dos eventos heróicos evocados pelo verbal.
Destaca-se uma imagem de cunho simbólico-metafórico, figurando
os eventos: o barril circular, oco e volumoso à semelhança da consciência,
espaço onde interagem formas de pensamento feitas imagens. Entre as
30. imagens criadas, as histórias acontecem também para o leitor-criança, sob o
olhar da gata.
Em O menino que espiava pra dentro, a personagem Lucas tem
como atributo principal e gerador de toda a narrativa a observação,
mediadora entre o ver dentro e fora, entre a consciência e a realidade. A
ação transcorre num constante paralelismo entre imagens reais c
imaginárias, de forma a romper a sucessividade temporal vinculada à
reprodução de um passado lendário — a Bela Adormecida, bruxas,
duendes, gnomos, ladrões — pela incorporação e transformação dessas
imagens na simultaneidade da consciência de Lucas, que funde passado-
presente numa figura que a ilustração capta.
Paralelismos, contrastes, semelhanças. Diagramas começam a ser
traçados dentro do texto; cada vez mais, o que se diz é substituído pelo
modo de dizer, o que implica na escritura, no texto daquele que narra,
seleciona e combina os signos verbais-visuais a partir de um ponto de vista
móvel e relativo.
A personagem vai-se desfazendo enquanto imagem estática,
perdendo contornos de superfície e de linha para penetrar nos meandros
atributivos das formas analógicas de [36] sentimentos, sensações e
emoções. Personagem que é isso e aquilo. Múltiplas facetas, tal qual um
prisma, um caleidoscópio.
Ilustração 4
31. Consciência. Formas de pensamento e de representação. Signos.
Escritura. Texto.
E eis aí como chegamos, sem esforço, ao momento da grande
transformação da personagem e da narrativa, que se vêem na sua
materialidade textual. Essa é a sua natureza. De uma matéria feita de
signos: palavra impressa, som, traço, cor, planos, figuras. Sua vida é a da
escritura-leitura. À semelhança de Virgília machadiana que brota de um
exercício com a palavra.
[37]
Da verossimilhança ao texto
Maneco Caneco Chapéu de Funil (Luís Camargo) inaugura uma
nova linha de construção da personagem. Peça por peça, tal qual a linha de
montagem da indústria, a personagem vai-se estruturando aos olhos do
leitor pela combinação inusitada de objetos de cozinha. Do velho, o novo
uso. Uma personagem — sucata que nos remete à famosa imagem, de
Baudelaire, do artista "coletor de lixo" e da Arte alimentando-se daquilo
que a sociedade de consumo lançou fora; restos recolhidos e pacientemente
recuperados, renovados e transformados em produtos artísticos. 1
Assim também é Maneco Caneco:
Cabeça de caneco.
Ombro de cabide.
Um braço de escumadeira, outro de concha.
Uma mão de escumadeira, outra de concha.
Uma perna de cabo de vassoura, outra de cabo de pá.
"Coroado" por um chapéu.
Chapéu de funil.
Os bastidores da construção da personagem são desvendados aos
olhos da criança, que vê à sua frente "um boneco engraçado"; não uma
réplica sua, mas um brinquedo que foi montado, sem segredos, à sua frente
e que ela pode desmontar e remontar, de agora em diante, na medida em
1
BENJAMIN, Walter. A modernidade. In: A modernidade e os modernos. Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.
32. que também entrar na brincadeira, pondo em ação a sua imaginação
criadora (como a Gata criadeira de O barril). 2
[38]
Ilustração 5
Travestido em leitão-leitor, o público infantil também entra na
história e segue junto à personagem. Cumplicidade geradora de possíveis
aventuras que só ocorrerão nos próximos livros do autor: Panela de arroz e
Bule de café.
Neste, não houve acontecimentos a serem narrados, apenas deu-se
espaço para a construção da personagem — seleção e combinação de
atributos que vão sendo associados por contigüidade na relação verbal—
visual para gerar no conjunto um anti-herói feito de restos de uma
heroicidade perdida.
[39]
A bela borboleta (Ziraldo/Zélio) e Pequeni-ninha (Mirna
Pinsky/Denise Fraifeld) são dois exemplos de textos que, gradativamente, e
cada vez com mais radicalidade, fazem a personagem surgir da própria
materialidade da mensagem.
2
Walter Benjamin percebe argutamente essa fascinação que a criança tem por restos
de objetos, com os quais pode articular brinquedos novos ao invés do brinquedo pronto, que só
lhe propicia a imitação passiva do mundo adulto. Veja-se o próprio texto de W. Benjamin: Rua
de mão única — extratos. In: —. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo,
Summus, 1984.
33. Em A bela borboleta, o estranhamento é gerado desde a leitura da
frase introdutória: "Era uma vez um livro", livro que é personagem de cujo
centro emerge a "bela borboleta" com suas duas asas-folhas multicoloridas.
Esse paralelismo — folhear do livro = vôo da borboleta — é que prende
toda a ação narrativa, que, se de um lado é dada pela convocação de heróis
de antigas estórias infantis para, sob a liderança do Gato-de-Botas,
libertarem a Bela Borboleta presa no meio do livro, de outro é construída
pelo corte cinematográfico das cenas, o que obriga o leitor a combinar
"fotogramas" página a página, reconstituindo, assim, o movimento
narrativo ou, ainda, libertando a bela borboleta através de seu vôo, livre,
por entre o folhear das páginas-asas. O leitor, em substituição ao Gato-de-
Botas na tarefa de libertação da borboleta, tem, repentinamente, a
consciência de que: "— Eu não estou presa, porque cada vez que uma
menina, que gosta do Gato-de-Botas, por exemplo, abre este livro e move
as suas páginas, eu bato as minhas asas!".
Do mesmo modo, as demais personagens convocadas pelo Gato-de-
Botas vêem a borboleta e recebem seu recado funcional de leitura, para a
qual não tinham valor as suas armas obsoletas e anacrônicas (alicates, puas,
tesouras etc), tendo a verossimilhança por suporte. Há que se fazer uso de
uma única arma para se libertar um ser de papel: o toque do olho que o
observa, das mãos que o folheiam, dos pensamentos que o sentem e dos
sentimentos que o pensam no ato da leitura. Aí está a vida do livro, o que
nos faz lembrar das fascinantes palavras de Jorge Luís Borges, que lembra
Emerson:
[40]
Recordo aqui, com prazer, Emerson que disse: uma biblioteca é um
gabinete mágico. Penso que em toda biblioteca há espíritos. E esses são os
espíritos dos mortos que só despertam quando o leitor os busca. Assim o
ato estético não corresponde a um livro. Um livro é um cubo de papel, uma
coisa entre as coisas (...)
(BORGES, Jorge Luís. Camões. O Estado de S. Paulo,
19/abr./1981.)
Estamos assistindo ao nascer do texto. Deixando a verossimilhança
pela consciência de linguagem construtora da personagem. Assim é em
Pequeni-ninha: Maia, a personagem, transforma-se do traçado a lápis, em
letra cursiva de criança, para o traçado da máquina de escrever. Maia aí
34. nasce.
Ilustração 6
[41]
Entre a mão e a máquina, o artesanal e o técnico--industrial, do
produto único à multiplicidade da reprodução técnica.
Emerge da superfície plana do tipo cursivo do lápis e/ou do tipo
regular e homogêneo da máquina de escrever na bidimensionalidade do
papel, para a projeção tridimensional da figura de uma menina
pequenininha que passa a atuar como heroína da estória.
Lado a lado, dois projetos se delineiam: o do Narrador construtor de
Maia — a personagem — e o da própria Maia. O primeiro tentando
capturar Maia, controlá-la, ao repetir continuamente: "Estou com vontade
doida de botar a Maia na palma da minha mão". O segundo, o de Maia, que
escapa por entre os dedos--traços-teclas para assumir seu próprio fazer — a
aventura de heroína vestida com saia, chapéu de plumas, sapatos altos,
espada e capa de chuva roxa, no castelo da avó (como uma protagonista de
Os três mosqueteiros).
Planos interdependentes, mas diferenciados. A criação e o objeto
criado: dois em um, dois e um.
Pelo caminho mágico da imaginação (que é o do Narrador),
Pequenininha vivência seu texto livremente, no mesmo ritmo e tempo de
35. quem a escreve, por meio de uma máquina de escrever, retroalimentando
sua história em feedback recriador, de sorte a mantê-la junto a si sempre
"matutando na minha vontade de botar Maia na palma da minha mão. Eu
sei que ela cabe debaixo do meu braço. Cabe direitinho no meu colo. . .
Acho que ela até cabe dentro da minha mão".
Maia constrói e é sua escritora, dando ao leitor a chave de seu
deciframento: a "chave está no seu bolso", também (no desenho feito por
um lápis verde).
Pequeni-ninha (palavra que não cabe inteira em seu nome) é uma
produção que resgata um repertório diversicado [42] do leitor-criança, dele
exigindo a dinamização da imaginação: brincar com Maia, com as coisas
do baú e, principalmente, com o ato de escrever.
Uma questão de tempo e lugar, ali ou aqui, a equacionar fórmulas
imaginárias encadeadoras de fatos, que deixam distante a representação
verossímil para se aproximarem da verdade ficcional.
Caso contrário, como Maia, "nunca que ia brincar com as coisas do
baú". Nem a criança, o leitor.
Referências das ilustrações utilizadas
Ilustração 1, p. 20: planejamento gráfico de Donatella Berlindis.
Extraída de BUARQUE, Chico. Chapeuzinho amarelo. 2. ed. Rio
de Janeiro, Berlendis & Vertecchia, 1980. p. 24-5.
Ilustração 2, p. 27: de Janine Decot. Extraída de MACHADO, Ana
Maria. O gato do mato e o cachorro do morro. 3. ed. São
Paulo, Ática, 1983. capa.
Ilustração 3, p. 30: de José Carlos de Brito. Extraída de ROCHA,
Ruth. O rei que não sabia de nada. Rio de Janeiro, Salamandra,
s.d. p. 28-9.
Ilustração 4, p. 36: de Flávia Savary. Extraída de MACHADO, Ana
Maria. O menino que espiava pra dentro. 3. ed. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1985. p. 23.
36. Ilustração 5, p. 38: de Luís Camargo. Extraída de CAMARGO, LUÍS.
Maneco Caneco Chapéu de Funil. 3. ed. São Paulo, Ática, 1985.
p. 13.
Ilustração 6, p. 40: de Denise Fraifeld. Extraída de PINSKY, Mirna.
Pequini-ninha. Belo Horizonte, Miguilin; Brasília, INL,
1984. p. 3.
37. [43]
4 Discursos e vozes narrativas
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O processo comunicativo
A forma narrativa instaura um processo de comunicação mínimo de
alguém que narra (o Narrador) algo (a Intriga) para alguém (Leitor). É o
modo como se estrutura essa relação significativa Narrador—Mensagem
— —Destinatário que determina o eixo significativo da narrativa. Tudo
depende do foco narrativo ou, ainda, do ponto de vista que o Narrador
assume frente àquilo que narra.
Assim, assumir um ponto de vista mais ou menos próximo do
objeto da narração determinará, necessariamente, diferentes modos de vê-
lo, cifrá-lo, significá-lo. Significação que não está no fato em si, mas no
modo como é preenchido, modulado e comunicado ao Receptor.
No caso da literatura infantil, o foco narrativo participa de duas
naturezas — a verbal e a visual —, ambas tentando uma comunicação, a
mais próxima c direta possível, com a criança, recuperando a tradição de
oralidade do "Era uma vez" dos contos de fada; aquele momento único de
transferência da experiência do Narrador àqueles [44] que o ouvem de
modo a "imprimir na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro
na argila do vaso" 3.
A oralidade como padrão narrativo
3
BENJAMIN, W. O Narrador. In: —. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e
política. São Paulo, Brasiliense, 1985. v. 1.
38. Os textos da literatura infantil pautam-se pelo resgate da oralidade
na escritura, bebendo na fonte originária do ato de narrar.
Mas o que significa, exatamente, um padrão narrativo fundado na
oralidade?
O ato de fala é algo visceral ao ser humano. Anterior à escrita,
guarda muito do "mimetismo": aquele que fala tenta mostrar de forma
imediata ao interlocutor o objeto de sua fala, através de vários canais
simultâneos: palavra, entoação (ritmo), expressão corporal. Essa imagem
inclusiva que a mensagem oral cria atua instantaneamente, de modo a
proporcionar a troca direta de experiências entre os interlocutores.
Por isso, o discurso oral cria uma cena múltipla (verbal e não-
verbal) e inclusiva, na qual o que menos conta é o que se diz, já que tudo
está no modo como se diz e, mais ainda, na tensão dialética entre o dito e o
calado; entre aquilo que a fala articula e a gestualidade desarticula e nega.
Sua vida faz-se na fugacidade do presente, instante em que tudo está não
estando. Discurso precário, um quase-discurso sempre em disponibilidade
para incorporar um novo dado em risco com o acaso.
Decorre daí a pouca sistematização, que propicia, ao nível do
desempenho oral de uma língua, os lances de criação de novas formas de
dizer, experiências que o sistema lingüístico acaba por incorporar
(dialética, língua e fala, ou, ainda, competência e desempenho). Por isso,
[45] ao discurso oral permitem-se a redundância, os desvios das normas
lingüísticas, a informalidade das expressões populares — gíria e trocadilho
—, o paralelismo das estruturas sintáticas e a construção de enunciados
sem ordem hierárquica, pondo em crise a linearidade de princípio, meio e
fim. Afora isso, a marcação rítmica, o tom e a modulação da voz enunciam
junto à palavra simbólica a não-palavra icônica.
No caso da literatura infantil, incorporar ao código escrito esse
atributo de oralidade é, basicamente, substituir a sucessividade, a
hierarquização, a contigüidade, a separação entre os elementos e o cunho
analítico das sistematizações simbólicas pela simultaneidade, coordenação,
similaridade, inclusão e síntese das formas analógicas do pensamento;
formas que só permitem um controle precário por signos de ação (os
índices) ou de semelhança (os ícones).
Enfrentar a oralidade é pôr em crise os tradicionais discursos
literários, tal como o Modernismo e, em certa medida, o próprio
Romantismo já o fizeram. É inaugurar um novo modo de narrar e de
39. escrever. Narrar no mesmo tom e compasso do viver — escreviver —, de
tal forma que não haja mais distância entre quem narra, o que narra e quem
lê. Esse momento de sintonia é o que buscam os textos da literatura
infantil, de modo a construir uma cena inclusiva a pelo menos três vozes —
Narrador, Mensagem e Receptor — que interagem simultaneamente num
intercâmbio de contínuas experiências em reciclagem.
Modos de incorporação do padrão
de oralidade
O léxico oral na sintaxe da escrita
A incorporação da matriz da Oralidade na escritura literária infantil
segue por vários caminhos. O primeiro dele [46] é aquele que se faz ao
nível lexical de uso de termos ou de expressões coloquiais em registros
clássicos de oralidade — diálogo direto/indireto —, muito embora a sintaxe
permaneça vinculada à hierarquização e à linearidade do código escrito.
Um bom exemplo é a produção de Monteiro Lobato, em especial A chave
do tamanho, alegoria construída para analisar as estruturas de poder numa
de suas ocorrências: a guerra (a Primeira Guerra Mundial de 1914). Hitler,
o Governo Americano e o Russo, o Coronelismo brasileiro são
desarticulados por uma mera redução de tamanho; reversão que dá aos
grandes e poderosos a pequenez dos dominados e a estes, subitamente, se
acena com a possibilidade de domínio.
É o discurso alegórico que fornece a chave para o modo como o
Narrador articula a narrativa, lançando mão de esquemas de oralidade —
diminutivos, aumentativos, interjeições, onomatopéias, repetições de certas
expressões, comparações com termos comuns ao universo infantil — para,
sob a forma de diálogos diretos e indiretos, colocar em discussão um
conceito mais geral e abstrato: a simbologia do poder.
Rastreando o texto, alguns fragmentos de oralidade a nível lexical:
"Fiunnn!! Quando Emília abriu os olhos e foi lentamente voltando
da tonteira, deu consigo num lugar nebuloso, assim com ar de
madrugada."
"...Emília, já quase sem fôlego, lavada em suor, saiu do labirinto e
caiu exausta no chão, com um Uf!"
40. "A chuva chegou — chuáááá..." "O algodão está encimíssimo."
"Emília sentiu um friozinho no coração. Começou a desconfiar que
havia feito uma coisa tremenda, a coisa mais tremenda jamais acontecida
no mundo."
[47]
"Pensou, pensou, pensou. Depois resolveu calcular que tamanho
teria."
"E o Visconde cada vez mais longe, com aquelas passadas
gigantescas! Parece que calçou as botas de 7 léguas do pequeno polegar."
"Aquele filósofo ou poeta chinês, já não me lembro, que passou a
noite sonhando que era borboleta, e durante todo o sonho viveu a vida das
borboletas, com idéiazinhas de borboleta, comidinhas de borboleta, tudo
de borboleta, com a maior clareza e perfeição."
"Claro que ele estava entendendo. Quem não entenderia uma
linguagem tão pão-pão-queijo-queijo como aquela?"
"Aquela história de andar com Emília em cima da cabeça estava
'emiliando' o Visconde."
A sintaxe, porém, permanece subordinativa, já que o discurso
narrativo usa a proximidade entre a fala de Emília e a linguagem infantil
como estratégia para capturar o leitor-criança para uma outra significação,
mais ampla e implícita: a crítica a uma ideologia de poder; pedaços do falar
infantil no entremeio de um discurso ideológico.
Por isso, através de Emília, é o Narrador quem denuncia a sua
própria fala:
Pensou, pensou. — Se todas as criaturas ficaram pequeninas como
eu fiquei, então o mundo inteiro deve estar na maior atrapalhação e com
as cabeças tão transformadas quanto a minha. Mas a guerra acabou! Ah,
isso acabou! Pequeninos como eu, os homens não podem mais matar-se
uns aos outros, nem lidar com aquelas terríveis armas de aço. O mais que
poderão fazer é cutucar-se com alfinetes ou espinhos. Já é uma grande
coisa... Pensou, pensou, pensou.
[48]
Entre Emilia e seu discurso, entrelaçam-se estruturas de oralidade
com força simbólica organizada sob a lógica da causalidade. A idéia
central, o Poder e os Poderosos, dimensiona-se pelo conceito de Tamanho,
que aponta para um diálogo com a Alice de Carroll:
41. Aconteceu-me o que às vezes acontecia à Alice no País das
Maravilhas. Ora ficava enorme a ponto de não caber em casas, ora ficava
do tamanho de um mosquito. Eu fiquei pequenininha. Por quê?
Diálogo de superfície a nível de algumas inserções temáticas e
lexicais (certas expressões que Alice construía — "muito estranhíssimo" —
e que Emília reproduz sem o mesmo estranhamento).
Jogos sonoros, visuais e a prontidão
para o desempenho oral e escrito
Outro modo de a escritura da literatura infantil incorporar a matriz
de oralidade na enunciação faz-se na Coleção gato e rato. Aí é o ritmo
recorrente, em enunciados simples e repetitivos, um dos condutores da
mensagem, que visa não só o desempenho oral, mas também o escrito, pelo
domínio de estruturas frasais simples e preparatórias da Alfabetização. A
função pedagógica cumprindo seu papel.
A imagem, por sua vez, funde-se à cena, completando a narração ao
oferecer novos elementos para o olho que vê, mas não lê.
Um exemplo: O trem (Mary e Eliardo França). O narrador-criança
que também é personagem, tal como o leitor, da viagem pelo trem-livro.
Vovô e eu vamos passear de trem (...)
— Chi! chi! chi! ... chu! chu! chu! ... chi! chi! chi! ...
O trem sai devagarinho: Choque! Choque!
[49]
A roda rodando, rodando sem parar, vai correndo pelo campo:
choque-choque! Choque-choque!
O trem construído concretamente na fusão olho-ouvido-mão
cumpre seu caminho, na medida em que as cenas verbo-visuais se sucedem
e o leitor, virando as páginas, também vai, por etapas contíguas, fazendo a
viagem do princípio ("o trem chega apitando") ao fim ("o trem pára na
estação. Como foi gostoso passear de trem!").
Treinamento da seqüência, da conexão contígua das partes que
conduzem ao todo, operação essencial para o domínio do código
42. lingüístico, em que é a combinação dos fonemas em sílabas, destas em
palavras e das palavras em frases que gera o enunciado, à semelhança do
caminho que o trem percorre:
/chi/chu/choque/
/roda/rodando
/trem/
/parar/
Nesse sentido, a função narrativa serve-se de elementos da matriz
oral para efetivar um desempenho lingüístico no presente de leitura.
Cabem, ainda, nessa modalidade produções como: Um tigre, dois
tigres, três tigres (Neusa Pinsard Caccese e Eva Furnari) e Estória em 3
atos (Bartolomeu Campos Queirós e Igor Balbachevsky).
A primeira já traz no título a ênfase à oralidade, num jogo sonoro
que exercita o desempenho da vibrante /re/. O livro compõe-se de uma
sucessão de parlendas selecionadas do folclore popular; ditos já
convencionais cuja significação brota no momento em que são oralizados
como jogos sonoros nas brincadeiras infantis.
É a ilustração, porém, que tendo a parlenda por objeto vai enunciá-
la sob outro ponto de vista.
[50]
Ilustração 7
No
43. fragmento selecionado, o já tradicional:
Rei
Capitão
Soldado
Ladrão
Moça bonita
Do meu coração
numa cadência rítmica bem marcada e previsível, é "oralizado"
pela imagem, de modo a fundir numa peça de [51] roupa — símbolo do
poder militar — a hierarquia social prevista na seqüência. O ladrão, como
um botão a mais previsto na substituição do paradigma do poder, mesmo
ausente (pela concretização do roubo que funcionaliza o ladrão), deixa a
marca de sua presença transgressora da norma social, à semelhança da
imagem que concretiza visualmente a transgressão a uma forma de discurso
tão cristalizada quanto a parlenda.
Em Estória em 3 atos, no jogo entre palavras que se desenham e
desenhos que se escrevem, o ensino, em três atos, dos procedimentos de
comutação, supressão e acréscimo de sílabas dentro de três palavras-chave:
GATO, PATO, RATO. Operações geradoras de frases narrativas simples,
as quais se pretendem alvos do desempenho oral e escrito do receptor-
criança.
O narrador e a escritura da fala
Escrever como se fala; eis aí a tarefa a que se coloca o narrador do
texto literário-infantil para captar o repertório do seu público numa
comunicação direta e envolvente.
Obras como O que os olhos não vêem e O rei que não sabia de
nada (Ruth Rocha e José Carlos de Brito) operam nesse sentido:
Havia uma vez um rei ele gostava bastante,
num reino muito distante Mas um dia, coisa estranha!
que vivia em seu palácio Como foi que aconteceu?
com toda a corte reinante. Com tristeza do seu povo
Reinar pra ele era fácil Nosso rei adoeceu (...)
44. (O que os olhos não vêem)
A cadência rítmica, o encadeamento por frases de estruturação
simples e repetitiva, as modulações exclamativo-interrogativas, a
integração na mensagem (nosso rei) são marcas que concretizam a captura
de traços de [52] oralidade no corpo da escritura que muito se aproxima das
formas populares do Cordel.
No espaço-tempo narrativo ouve-se, apenas, uma voz — a do
Narrador — que fala pelas personagens em diálogos indiretos ou, até
mesmo, pelo Leitor, enunciando possíveis interferências que faria. Ponto de
vista fixo, de sorte a orientar toda a escritura para o Remetente-Narrador
em relação direta à sua proposta ideológica de crítica ao Poder.
Comportamento similar ocorre em O rei que não sabia de nada, em
que os conectores — aí, então, e, mas — vão modulando o falar do
narrador e o atento ouvir do leitor. Isso apoiado por expressões do universo
popular. Vocativos (Meu Deus!), negações que afirmam e afirmações que
negam (Não é?, Mas sabe?, Pois bem!, E agora?, Essa não!), que vão
construindo o fio narrativo por contigüidade.
Novamente, a repetição do esquema: a personagem Cecília fala em
nome do Rei e ambos em nome do Narrador, que fala em nome de uma
crítica ao Poder.
Em A casa da madrinha (Lygia Bojunga e Regina Yolanda), a
oralidade desempenha uma função matricial, servindo de apoio sintático à
história de Alexandre. O desenvolvimento dessa matriz de construção
narrativa, por sua vez, é retroalimentada permanentemente pelo ritmo
sonoro, que, de pausa em pausa, atinge as fronteiras do trabalho poético da
linguagem:
Atenção! Atenção! Vocês já viram um pavão? Aposto que não.
Ainda mais um pavão como o meu: ele fala, ele dança, ele sabe
fazer mágica, ele é genial!
Observa-se a construção recorrente da sonoridade e seus efeitos
resgatados pela frase narrativa em verso falseado na contigüidade: "O
pessoal olhou o chapéu. De lona. Bem velho. No chão".
[53]
A construção arquitetônica da narrativa, à semelhança da casa da
madrinha, oferece o espaço para um processo de geração de histórias que se
45. imbricam em novas histórias num processo de narrar sem fim, que se
prolifera por múltiplos narradores: Alexandre, o Pavão, Augusto, Vera. Por
isso, a casa não está nem aqui, nem ali, mas na suporposição de narrações
cosidas pelo elemento mágico de A casa da madrinha: "pequena, branca,
com quatro janelas no alto do morro, pequeno, bem redondo, bem no fim
da estrada, todo tapado de flor". Imagens que se auto-encobrem, de sorte a
desfazer qualquer referência determinada por verossimilhança externa.
Por entre a multiplicidade de vozes narrativas, no entanto, uma
constante emerge do modo de narrar: a proliferação da imaginação criadora
em diálogo constante com a do leitor, aquele que sabe ampliar seu sentido,
apreender a qualidade da forma e acabá-la, para logo desmanchá-la ante a
chegada de novas possibilidades de imagens.
Nessa fluidez da matéria imaginativa, tudo — personagens e
histórias — tende a desaparecer:
— Tô indo m'embora. Vou mesmo pela estrada. Se eu for seguindo
toda a vida eu acabo chegando lá na casa de minha madrinha.
— É que ... sei lá, toda a vida é tão comprido.
— Eu te escrevo assim que chegar. Se abraçaram. Forte,
depressa.
Alexandre pendurou a mala no ombro e foi andando; o Pavão
emparelhou com ele. Foram sumindo e sumindo! e aí sumiram de vez
numa dobra do caminho.
Na dobra da própria página, por entre as pausas do olhar, o leitor
vai construindo a seqüência da narrativa em sua imaginação, "seguindo
sua estrada, comprida, comprida" [54] , até fazer sumir a última frase da
história, na sua mágica casa da madrinha.
Em Raul da Ferrugem Azul (Ana Maria Machado e Patrícia
Gwinner), a incorporação da oralidade se faz via monólogo direto e
indireto, no reduto da consciência da personagem. D.ois discursos se
entrecruzam e se refletem — o do Narrador e o da Personagem:
E se despediu. Mas a idéia de um mais velho era boa. Só que ele
não tinha irmão. E não ia conversar um negócio desses com o irmão dos
outros. Pai? Mãe? Professor? Se ninguém tinha reparado nada, não valia
a pena perder tempo com eles. Também, ele sempre tinha conversado
muito com gente grande. E agora também estava crescendo e descobrindo
46. que isso nem sempre valia a pena. Ou valia? Quem sabe? Raul nunca
conseguia encontrar direito as respostas. Quanto mais pensava mais
achava era pergunta.
A constante tensão gerada pelo discurso do Narrador entre o ouvir e
o pensar sobre o problema constrói o monólogo-diálogo de Raul, fundindo
as duas modalidades, direta e indireta. O narrador ora permite que Raul fale
de si próprio, ora fala por ele em terceira pessoa; um disfarce para a
apresentação do conflito de consciência da personagem.
Essa técnica do fluxo da consciência dá ao Narrador a função de
articular a linguagem-conflito diretamente das formas de pensamento da
personagem Raul, incapaz de organizá-las. Na busca de seu sentido de
tempo ou de sua finalidade comunicativa, Raul deixa a livre associação por
aquela regrada pelo encadeamento da sua história:
— Fui ver o Preto Velho.
— Como é que foi? Ele te ajudou?
— Ajudou.
Aí ela não agüentou mais e perguntou:
— Que é que era, Raul?
[55]
E ele:
— Era uma estória que eu não entendia e não sabia como
continuava. Mas agora eu já sei. Toda a vida me contou estórias. Hoje
quem conta sou eu.
A habilidade de enunciar sua própria consciência através da
estrutura narrativa lendária revela a passagem do nível inconsciente e pré-
verbal para o consciente presentificado no ato narrativo e transferido ao
leitor, num convite para prosseguir o ciclo confirmador da raiz de
oralidade:
Entrou pelo pé do pato, saiu pelo pé do pinto. Quem quiser que
conte cinco.
Mas se você contar uma, pelo menos, eu já fico satisfeito. E você
mais ainda.
47. O riso e o universo do avesso
O riso é uma forma popular de subverter padrões; os chistes e as
piadas confirmam isso. Daí o vínculo de oralidade que carregam gêneros
como a sátira e a comédia. É de Mikhail Bakhtin, em sua obra de 1929 —
Problemas da poética de Dostoiévski —, a percepção de que o riso, numa
festa popular como o carnaval, tem uma significação ambivalente de morte
e nascimento; negação de alguns aspectos de uma verdade e afirmação de
outros. Inscrito na Literatura, o riso carnavalesco instaura um tipo de
construção chamada "paródia", essencialmente dialógica por operar no
mínimo com duas vozes ou duas matrizes textuais simultaneamente: aquela
que é objeto da ação de inversão paródica e aquela que realiza
propriamente essa reversão. Não se trata de anular uma pela outra, mas de
mantê-las vivas simultaneamente no mesmo espaço narrativo, no diálogo
conflitante e tenso dos contrastes. Diálogo no qual a voz do leitor é
essencial para atualizar [56] essa operação paródica na relação opositiva
entre o modelo passado e a nova versão presente.
Algumas produções literárias infantis acenam nessa direção, como é
o caso de História meio ao contrário (Ana Maria Machado e Humberto
Guimarães) e Chapéuzinho Amarelo (Chico Buarque e Donatella
Berlendis).
Eles eram um rei e uma rainha de um reino muito distante e
encantado. Para casar com ela, ele tinha enfrentado mil perigos,
derrotado monstros, sido ajudado por uma fada, tudo aquilo que a gente
conhece das histórias antigas que as avós contavam e que os livros trazem
cheios de figuras bonitas e coloridas. Depois viveram felizes para sempre.
Isso era o mais difícil de tudo. Viver feliz para sempre não é fácil,
não.
Duas matrizes textuais em diálogo: aquela do passado dos contos de
fada e esta, que o leitor tem presente em suas mãos, pondo em risco a
estabilidade da "felicidade eterna" numa preparação para o grande
momento de subversão do modelo institucionalizado.
Essa inversão dá-se na relação entre dois tons de discurso — o do
narrador e o das personagens "reais" —, em passagens como esta:
48. Daí a pouco, um criado veio lá de dentro:
— Majestade, Dona Rainha está chamando. Disse para Vossa
Majestade vir logo tomar seu real banho, que a real banheira já está cheia
e a real água vai acabar esfriando.
O Rei olhou para ele, olhou para o sol tão bonito se pondo no céu,
sentiu a brisa gostosa do fim da tarde e descobriu que estava com preguiça
de tomar banho. Deu suas ordens ao criado:
— Diga à Rainha que não estou com vontade de tomar [57] banho
agora. Pode jogar a água fora. Vou ficar aqui fora mais um pouquinho
olhando a tarde.
(...) Lá dentro, com o recado do Rei, a Rainha chamou a
princesinha, e as duas trataram de ir começando a jantar, sentadas à real
mesa, no real salão de banquetes, todo iluminado com dezenas de reais
lustres de cristal, enquanto os reais músicos tocavam belas melodias.
O tom de falsete dado ao diálogo pela tensão entre as falas do
criado, do Rei e do Narrador vai destronizando a figura real, a exemplo de
uma "coroação" bufa, concretizando-se no próprio discurso do Narrador
pela repetição do qualificativo "real", que acaba por esvaziá-lo e invertê-lo.
Ambivalência que se recupera em outras situações discursivas, tais como a
descrição do enigma (o mito lendário do Dragão Negro, ladrão do Dia) que
não é enigma (a simples sucessão Dia-Noite); ou, ainda, a força da velha
imagem do gigante das histórias de Magia, aqui invertida e transformada
em gigante adormecido, sutil sugestão a um Brasil convocado também a
acordar de seu "sono eterno em berço esplêndido", de modo a saltar da
forma envelhecida e emblemática do Hino Nacional para a ação
transformadora da realidade. Sentidos paralelos que a sagacidade de uma
leitura atenta e não-adormecida é capaz de apreender, no diálogo com o
texto; subjacente ao dito, o entredito.
O riso, embora reduzido, começa a se esboçar para se fazer sonoro e
claro no auge tragicômico do desespero real:
— Fechem todas as saídas! Ponham barreira em todas as estradas!
Cerquem o reino inteiro! Revistem todas as casas, vasculhem todos os
cantos! Exijo que os ladrões sejam presos!
Aí foi uma correria. Uns saíam para um lado, outros se
despencavam pelas escadas. Ouviam-se toques de clarim convocando
soldados, barulho de passos de gente correndo [58] , relinchos de cavalos
49. no pátio. E no meio de tudo, a voz calma da Rainha, tentando entender
exatamente qual era o problema do seu adorado Rei.
— Majestadinha do meu coração, conta para mim, conta...
Que foi que aconteceu, meu real amor?
Tanto ela insistiu que o Rei, finalmente, conseguiu urrar:
— Uma coisa horrível! Roubaram o dia!
"Carnavalização" dialógica que acaba por aproximar os contrastes,
tornando familiar e próximo o distante, de modo a fundir num elo
envolvente as múltiplas vozes da mensagem do passado lendário ao
presente do ato de narrar e ler. Uma cena que propõe a raiz oral pela
inversão paródica da forma narrativa.
Similar procedimento ocorre em Chapeuzinho Amarelo (Chico
Buarque e Donatella Berlendis). Também aqui, uma matriz vinculada ao
passado literário-infantil — Chapeuzinho Vermelho-Lobo-Medo —, é
invertida no jogo trocadilhesco, com a palavra-chave Lobo revertida em
Bolo, num autêntico destronamento bufo que atinge a um só tempo tanto a
imagem lendária do lobo, "que nunca se via, que morava lá para longe, do
outro lado da montanha num buraco da Alemanha, cheio de teia de aranha
numa terra estranha, que vai ver que o tal do Lobo nem existia", quanto o
valor simbólico-convencional da palavra que expressa essa imagem
conceituai, também ela destronizada pela não-palavra icônica e motivada.
É pelo trocadilho que se incorporam à escritura os jogos orais dos
"códigos secretos", tão ao gosto da infância, que se amplificam ao final, na
brincadeira de Chapeuzinho:
Mesmo quando está sozinha,
inventa uma brincadeira.
E transforma em companheiro
cada medo que ela tinha:
[59]
o raio virou orrái,
barata é tabará,
a bruxa virou xabru
e o diabo é bodiá.
Lição aprendida da transformação do velho em novo. Chapeuzinho,
ao invés de ser devorada, devora, antropofagicamente, seu outro — o lobo
50. — transformando o tabu em totem. Assim como a inversão trocadilhesca
que invade, também, a imagem.
Ilustração 8
[60]
No jogo contrastivo figura-fundo, a sombra projetada pela silhueta
de Chapeuzinho também sugere seu opositor —• o lobo — com a boca
aberta pronta para abocanhá-la.
A paródia, porém, tem outros caminhos que não apenas a via do
avesso. Num sentido lato, paródia (do grego "pára" = junto e "odé" = ode,
canto) pode ser entendida como "canto paralelo" (essa é a interpretação que
Haroldo de Campos dá ao termo), envolvendo qualquer espécie de
multiplicação de vozes. Nesse caso, além do procedimento da inversão,
apontado por Bakhtin, ocorre também o da amplificação (detectado por
Lucrécia Ferrara em A estratégia dos signos), que implica desfazer/ refazer
um modelo instituído por acréscimos de novos atributos em irradiações que
o presente ao passado envia, amplificando-lhe o espaço-tempo de sua
ocorrência.
Esse é o caso de produções como A bela borboleta (Ziraldo/Zélio) e
o Pequeno planeta perdido (Ziraldo/ Mino). Na primeira, os modelos
comunicacionais — o par escritura-leitura — do passado narrativo de O
51. Gato--de-Botas, Branca de Neve e os sete anões, Peter Pan e O patinho
feio são refuncionalizados, na medida em que o procedimento da
linguagem técnica do cinema interfere no ato narrativo. Suprimem-se os
conectores próprios da matriz artesanal da oralidade (daí, então, nisso, aí,
depois, . . .), garantidores da continuidade do fio narrativo e da captura da
atenção do leitor àquilo que lhe é narrado. Ao invés disso, o "corte" a cada
virar de página propõe ao olho-mão-sentimento-pensamento-ação do leitor
infantil a remontagem do movimento narrativo pelo encadeamento das
cenas-fotogramas.
Dois modelos narrativos em confronto: o artesanal, de raiz fincada
na oralidade, e o técnico, fruto da civilização industrial.
O narrador reduz sua fala, economiza palavras e usa da linguagem
imagética e do movimento para traduzir seus [61] pontos de vista de forma
inclusiva e instantânea. Assim:
Proximidade ao objeto narrado = close ou 1.° plano da imagem
Distanciamento do objeto narrado = panorâmica ou plano geral
Poderio de uma personagem como o Gato-de-Botas = foco
narrativo da camera ao nível do "chão" da página, em movimento para
cima, em direção à parte superior do corpo da personagem.
A projeção do código cinematográfico sobre o literário-infantil é
uma forma de a gestualidade, a fusão e a simultaneidade das formas orais
penetrarem no espaço narrativo, porém agora amplificadas pelo atributo
tecnológico que, do presente, reverbera ao artesanal do passado e o
transforma, revitalizando-o.
Já em O pequeno planeta perdido, ao traçado tradicional do "era
uma vez" (apenas uma variante confirmadora: "certa vez enviaram um
homem ao espaço em direção a um planeta perdido") acoplam-se termos (o
léxico) do universo das comunicações interplanetárias (combustível,
foguete, galáxia, astronauta, astronave, freqüência, computadores,
videoclipes, cassetes, headphone, escritório espacial). Ainda a contigüidade
operando e a fascinação da linha narrativa, que visa recuperar a
emotividade de uma estória de amor num contexto de tecnologia espacial.
O que interessa nesse livro, porém, é um procedimento que atinge a
dialogia paródica pela bricolagem, uma espécie de amplificação de certos
usos habituais de objetos utilitários do cotidiano (a laranja e o pão, nesse
livro; os utensílios de cozinha, em Maneco Caneco) que, ao serem retirados
do seu contexto original para uma inserção em outro (laranja-planeta
perdido; pão-foguete), passam a emitir novas freqüências significativas,
52. graças à combinatoria com os demais elementos do espaço no qual [62]
irão conviver. Não se trata de anular o uso primeiro, mas, ao contrário, de
acrescentar-lhe outro, de modo que à leitura se oferecem ambos fundidos
num produto disforme e estranho, capaz de cumprir funções díspares.
No projeto gráfico-visual, a combinatória de diversos materiais e
procedimentos técnicos de reprodução, tais como fotografia, tomadas
cinematográficas de camera, desenho-caricatura e balões de estórias em
quadrinhos, compõe uma nova cena a partir de velhos materiais.
No texto verbal, a bricolagem manifesta-se num fragmento como o
que segue:
Mandem livros para ele! disseram os intelectuais.
O livro caindo n'alma é germe que faz a palma, é chuva que faz o
mar (...)
Uma noite, porém, a Terra acordou com a voz do astronauta
falando pro Mundo:
"Potius male sectus quam solus!" (Silvius)
ou
"Na solidão é que estamos mais sós." (Byron)
ou
"Serás triste se fores só!" (Ovídio)
ou
"Ó solidão! Onde estão os teus encantos?" (Cowper)
ou
"Socorro!!!" (Robinson Crusoe)
A partir da superposição de citações, apropriação da fala de outrem,
amplifica-se a carga significativa de um discurso que, pela bricolagem,
acena com a crítica à erudição emblemática e vazia.
No limite da narrativa, a poesia
Na produção literária infantil salta um texto — O gato (Norma
Freire e Cláudio Zirotti) — que, pela sua elaboração [63] de linguagem,
põe em questão os limites do par narrativa-poesia. Ruptura própria da
modernidade literária, em que há muito a prosa poética é uma realidade.
Enredo não há. A não ser modulações de saltos a intervalos mais ou menos
altos, mais ou menos profundos, de um gato no mundo: