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Arte e Tecnologia no Brasil: Uma Introdução (1950-2000)


Esta é uma primeira tentativa de mapear a produção artística brasileira no campo de
intersecção entre arte, ciência e tecnologia, desde os seus primórdios nos anos 1950 até o
final do século XX (para efeito de precisão no recorte temporal, fixou-se como limite a
produção brasileira tornada pública até o dia 31 de dezembro de 2000). Esse campo
bastante amplo abrange a produção genericamente enquadrada como arte eletrônica, termo
mais difundido mas bastante impreciso, uma vez que nem tudo o que se inclui nessa área
foi produzido com recursos eletrônicos e, por outro lado, nem toda arte produzida com
recursos eletrônicos pode ser incluída na categoria arte e tecnologia (um romance, por
exemplo, não necessariamente está circunscrito a esse âmbito criativo apenas porque foi
escrito num computador). Evidentemente, como toda pesquisa em fase inicial, ela deve
conter imprecisões e lacunas, que serão corrigidas com o tempo, com a discussão
especializada e com o acréscimo da colaboração de outros pesquisadores. Para efeito de
organização dos dados acumulados, distribuímos a produção desse período não
exatamente em escolas ou tendências, visto que essas divisões são ainda pouco precisas,
mas em torno de conceitos. Esses conceitos procuram dar conta das grandes linhas de
força das poéticas tecnológicas no Brasil, em torno das quais se aglutinaram os artistas.
Eles não têm validade universal (em outros países, os conceitos devem ser diferentes), mas
expressam, no nosso modo de ver, o modo como se manifestou a relação entre arte e
tecnologia no Brasil em seus primeiros 50 anos. Esses conceitos são:
1) Arte-comunicação
2) Arte em Meios Digitais
3) Arte Holográfica
4) Arte na Rede
5) Hibridismos/intermídias
6) Interação arte-ciência
7) Música Eletroacústica
8) Poesia e Novas Tecnologias
9) Vídeo-arte e vídeo-instalação
Se é verdade que toda arte é feita com os meios de seu tempo, as artes chamadas
eletrônicas representam a expressão mais avançada da criação artística atual e aquela que
melhor exprime sensibilidades e saberes do homem desta virada de milênio. Bach compôs
fugas para cravo, Stockhausen texturas sonoras para sintetizadores eletrônicos. O desafio
enfrentado por ambos os compositores foi exatamente o mesmo: extrair o máximo das
possibilidades musicais de dois instrumentos recém-inventados e que davam forma à
sensibilidade acústica de suas respectivas épocas. Edgar Degas, que nasceu quase
simultaneamente com a invenção da fotografia, utilizou intensivamente essa tecnologia, não
apenas para estudar o comportamento da luz, que ele traduzia em técnica impressionista,
mas também em suas esculturas, para congelar corpos em movimento com o mesmo
frescor com que o fazia o rapidíssimo obturador da câmera. A série fundante de Marcel
Duchamp Nu descendant l'escalier é uma aplicação direta da cronofotografia de Étienne
Jules Marey (precursora da cinematografia), com que o artista travou contato através de seu
irmão Raymond, cronofotógrafo do Hospital da Salpêtrière, em Paris. Por que então o artista
de nosso tempo recusaria o vídeo, o computador, a Internet, os programas de modelação,
processamento e edição de imagem, a engenharia genética?
Difícil saber exatamente quando começam as artes eletrônicas ou tecnológicas. Mesmo
antes do videotape estar disponível para a intervenção artística, alguns criadores como o
alemão Wolf Vostell e o coreano Nam June Paik já produziam arte alterando os circuitos
eletrônicos de aparelhos de televisão ou distorcendo suas imagens com a ajuda de ímãs
poderosos. A vídeo-arte surge oficialmente no começo dos anos 60, com a disponibilização
comercial do Portapack (gravador portatil de videotape) e graças sobretudo ao gênio
indomesticável de Paik. Mas se a televisão puder ser incluída no âmbito das artes
eletrônicas, teremos de acrescentar à galeria de seus pioneiros nomes como o do húngaro-
americano Ernie Kovacs e do francês Jean-Christophe Averty, que introduziram na televisão
a autoria e a criação artística, além de terem sido os primeiros a explorar largamente a
linguagem do novo meio, razão porque alguns autores os consideram os verdadeiros
criadores da vídeo-arte, antes mesmo de Vostel e Paik.
Mas a utilização de computadores na arte é mais antiga. Recursos informáticos para a
produção, manipulação e exibição de imagens já estavam disponíveis na década de 50,
graças ao surgimento de monitores capazes de exibir gráficos e de plotters para imprimi-los.
Embora esses recursos tenham sido implementados prioritariamente para a visualização
matemática e científica, muito cedo alguns artistas souberam tirar proveito deles para a
exploração de uma nova visualidade dentro das artes plásticas. Os primeiros trabalhos
artísticos produzidos com o auxílio de computadores utilizavam ainda máquinas analógicas
para gerar as imagens, osciloscópios de raios catódicos para exibi-las e películas
cinematográficas para registrá-las. Assim é que, em 1952, Ben F. Laposky, nos EUA, e
Herbert W. Franke, na Áustria, conceberam respectivamente suas Abstrações Eletrônicas e
seus Oscilogramas, consideradas as primeiras obras da computer art. Mas foi a partir de
1962, com o desenvolvimento, por Ivan Sutherland, de um completo sistema interativo de
desenho por computador, o Sketchpad, que começaram a aparecer os primeiros trabalhos
                                             2
artísticos produzidos inteiramente em computadores digitais. Os pioneiros dessa segunda
fase foram os alemães Georg Nees e Frieder Nake, os norte-americanos John Whitney ,
Michael Noll e K. C. Knowlton e o húngaro Bela Julesz.
É preciso considerar ainda que, embora a expressão arte eletrônica seja mais
genericamente utilizada para referir-se a trabalhos realizados no âmbito das artes visuais,
num sentido mais amplo ela poderia abarcar também a música, que foi a primeira arte a
explorar recursos eletrônicos. A musique concrète, que utilizava técnicas de edição
eletrônica, foi criada na França em 1948, por Pierre Schaeffer, enquanto a música eletrônica
surgiu na Alemanha em 1950, com Karlheinz Stockhausen. Os músicos também foram os
primeiros a utilizar computadores: o grego Iannis Xenakis, por exemplo, já os empregava
desde o início dos anos 1950 para gerar valores musicais aleatórios, criando assim a
chamada música estocástica.
No Brasil, as artes eletrônicas surgem bastante pioneiramente a partir dos anos 1950, com
as experiências ópticas de Abraham Palatinik e, já nos anos 1960, as imagens geradas em
computador por Waldemar Cordeiro. Este último, particularmente, foi uma figura de projeção
internacional no âmbito da computer art, além de ter dado uma dimensão crítica às obras
computadorizadas, com o acréscimo às imagens do comentário social. Desse tempo para
cá, o acervo brasileiro de obras eletrônicas não cessa de crescer. A música eletroacústica
surge já anos 1950, com as primeiras experiências de Reginaldo Carvalho. A vídeo-arte
aparece no começo dos anos 1970. A explosão ocorre nos anos 1980, com o aparecimento
das obras de telecomunicação (que utilizavam fax, vídeo-texto, slow scan TV e, mais tarde,
Internet), o florescimento da holografia, a generalização do uso de computadores, os
trabalhos nas áreas de multimídia, visualização matemática (fractais, por exemplo), web art,
instalações interativas, além das experiências com sky art (Wagner Garcia), telerobótica
(Eduardo Kac) e, finalmente, no final dos anos 1990, as primeiras obras de fusão da
eletrônica com a biologia (próteses corporais, vida artificial, arte transgênica).
Naturalmente, as técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o artista para
conceber, construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem
mediações inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderia substituir por quaisquer
outras. Eles estão carregados de conceitos, eles têm uma história, eles derivam de
condições produtivas bem determinadas. As artes eletrônicas, como qualquer arte
fortemente determinada pela mediação técnica, colocam o artista diante do desafio
permanente de se contrapor ao determinismo tecnológico, de recusar o projeto industrial já
embutido nas máquinas e aparelhos, evitando assim que sua obra resulte simplesmente
num endosso dos objetivos de produtividade da sociedade tecnológica. Longe de se deixar
escravizar pelas normas de trabalho, pelos modos estandardizados de operar e de se


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relacionar com as máquinas, longe ainda de se deixar seduzir pela festa de efeitos e clichês
que atualmente dominam o entretenimento de massa, o artista digno desse nome busca se
reapropriar das tecnologias eletrônicas numa perspectiva inovadora, fazendo-as trabalhar
em benefício de suas idéias estéticas.
Hoje, cada vez mais, os artistas lançam mão do computador para construir suas imagens,
suas músicas, seus textos, seus ambientes; o vídeo é agora uma presença quase inevitável
em qualquer instalação; a incorporação interativa das respostas do público se transformou
numa constante em qualquer proposta artística que se pretenda atualizada e em sintonia
com o estágio atual da cultura. De repente, nos damos conta de uma multiplicação
vertiginosa ao nosso redor de trabalhos realizados com pesada mediação tecnológica. Mais
do que nunca, chegou a hora de traçar uma diferença nítida entre o que é, de um lado, a
mera produção industrial de desenhos agradáveis para as mídias de massa e, de outro, a
busca de uma ética e uma estética para a era tecnológica.


                                                                         Arlindo Machado




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Arte em Meios Digitais


A utilização de computadores para a produção, manipulação e exibição de imagens
apenas se tornou possível a partir da década de 50, graças ao surgimento de
monitores capazes de exibir gráficos e de plotters para imprimi-los. Embora esses
recursos   tenham    sido   implementados   prioritariamente   para   a   visualização
matemática e científica, muito cedo alguns artistas souberam tirar proveito deles
para a exploração de uma nova visualidade dentro das artes plásticas. Os primeiros
trabalhos artísticos produzidos com o auxílio de computadores utilizavam ainda
máquinas analógicas para gerar as imagens, osciloscópios de raios catódicos para
exibi-las e películas cinematográficas para registrá-las. Assim é que, em 1952, Ben
F. Laposky, nos Estados Unidos, e Herbert W. Franke, na Áustria, conceberam,
respectivamente, suas Abstrações Eletrônicas e seus Oscilogramas, considerados
as primeiras imagens da computer art. Mas foi a partir de 1962, com o
desenvolvimento, por Ivan Sutherland, de um completo sistema interativo de
desenho por computador, o Sketchpad, que começaram a aparecer os primeiros
trabalhos artísticos produzidos inteiramente com computadores digitais. Os pioneiros
dessa segunda fase foram os alemães Georg Nees e Frieder Nake, os norte-
americanos Michael Noll e K. C. Knowlton e o húngaro Bela Julesz, este último
também o inventor das imagens estereoscópicas produzidas por meio de padrões de
pontos randômicos.


Embora grande parte dos pioneiros da computer art, nos anos 60 e 70, tenha sido
formada por europeus e norte-americanos, pela razão óbvia de que viviam em
contextos científicos em que a pesquisa com informática estava mais desenvolvida,
um brasileiro ocupou um lugar importante entre os inventores desse campo de
criação artística. Trata-se de Waldemar Cordeiro, artista que, ao incorporar as
imagens digitais ao seu trabalho, já era reconhecido nacional e internacionalmente
sobretudo por sua produção no campo da arte concreta. Trabalhando em conjunto
com o físico italiano Giorgio Moscati, Cordeiro foi importante também por ter dado
uma dimensão crítica à computer art, acrescentando às imagens o comentário
social.
De um modo geral, entende-se por computer art um conjunto bastante diversificado
de procedimentos, atitudes e estratégias da arte e do artista com relação ao
computador. Num primeiro sentido, o computador pode ser encarado como uma
ferramenta para a geração e o tratamento das imagens. Uma vez produzidas,
modeladas (no caso das imagens tridimensionais) e eventualmente animadas e
sonorizadas, as imagens são transferidas para outro suporte (papel, tela, filme,
vídeo) e exibidas nas formas tradicionais em galerias de arte ou salas de projeção.
Na verdade, são raros os casos em que o computador é utilizado estritamente como
ferramenta, como se fosse um pincel ou uma paleta mais sofisticados. Muito
freqüentemente, o trabalho do artista acaba sendo contaminado por alguns
processos formadores próprios da informática, de modo que o resultado final não
poderia jamais ser obtido de outra forma. Entre os artistas brasileiros que poderiam
ser incluídos nessa classificação, podemos citar Irene Faiguenboim, André Vallias,
Julio Plaza, Walter Silveira, Lenora de Barros, Arnaldo Antunes e alguns trabalhos
de Carlos Fadon Vicente.


Numa segunda acepção, é o computador que cria a obra, a partir de um programa
de criação previamente concebido pelo artista. Nesse caso, é possível que a forma
final de exibição seja também o circuito tradicional da arte, mas a diferença está no
fato de as decisões sobre o que fazer e como fazer serem tomadas pelo próprio
computador. O artista, nesse caso, apenas prevê um conjunto de possibilidades de
comportamento do computador, em geral utilizando conceitos de inteligência
artificial. Como não poderia deixar de ser, a maioria dos realizadores deste grupo
pertence a uma classe muito especial de artistas, aquela dotada também de
competência científica e tecnológica, acumulando talentos ao mesmo tempo nas
artes plásticas e nas ciências exatas. Emanuel Dimas de Melo Pimenta, Tânia Fraga
e Suzete Venturelli poderiam ser incluídos nessa classificação.


Numa terceira acepção, o computador, ou mais exatamente o seu monitor, é o
próprio suporte de exibição do trabalho. A presença física da máquina no espaço de
exibição é requerida porque esse tipo de trabalho utiliza os recursos interativos do
computador e incorpora criativamente a resposta do espectador. Já em 1982, Nelson

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Max criou Carla's Island, uma paisagem tridimensional gerada em tempo real pelo
computador cujos parâmetros podiam ser alterados pela audiência durante a
exibição. Na década de 90, Jeffrey Shaw construiu várias instalações interativas que
podiam ser navegadas em tempo real pelo visitante. Em The Legible City (1990), por
exemplo, o visitante, sentado numa bicicleta dotada de sensores, podia viajar por
uma "cidade" construída por meio de uma arquitetura literária tridimensional e, ao
mesmo tempo, ler as frases que se formavam ao longo do deslocamento. A
evolução inevitável desse tipo de trabalho seria a incorporação de recursos de
realidade virtual aos ambientes instalativos (por exemplo, nos trabalhos de Scott
Fischer) e a utilização das redes telemáticas (Internet) como estrutura para a
concepção de obras potenciais (que possibilitam um grande número de ocorrências
diferenciadas) e capazes de incorporar a participação do espectador. Nessa última
categoria, pode-se citar o trabalho de Eduardo Kac, criador dos telerrobôs ou robôs
que podem ser dirigidos remotamente, de qualquer parte do mundo, pela World
Wide Web. Além de Kac, pode-se também citar, no Brasil, os trabalhos de André
Vallias, Emanuel Dimas de Melo Pimenta, Tânia Fraga, Suzete Venturelli e alguns
trabalhos de Carlos Fadon Vicente.


Embora a expressão computer art seja mais genericamente utilizada para referir-se
a trabalhos realizados no âmbito das artes visuais, num sentido mais amplo ela
poderia abarcar também a computer music e a literatura assistida por computador.
No primeiro caso, seria inevitável mencionar o uso de computadores pelo grego
Iannis Xenakis para gerar valores musicais aleatórios (a chamada música
estocástica) e a incorporação do computador à orquestra sinfônica, pelo francês
Pierre Boulez, em Répons (1980), além da contribuição de compositores tão
diversos, tais como Vladimir Ussachevsky, os irmãos Colin e David Matthews e Tod
Machover, este último inventor de instrumentos computadorizados, conhecidos como
hiperinstrumentos (vide bloco Música Eletroacústica). Na área da literatura, o alemão
Max Bense, o italiano Nanni Balestrine, o português Pedro Barbosa e o grupo
francês Oulipo (Ouvroir de Littérature Potencielle) obtiveram os melhores resultados
na geração automática de textos artificiais, graças ao processamento pelo
computador das regras fonêmicas, morfológicas, semânticas e sintáticas de uma
língua (vide bloco Poesia e Novas Tecnologias).


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Entre os eventos relacionados com a segunda edição do megaevento Arte Cidade,
em São Paulo (1994), destaca-se a publicação de um CD-ROM com experiências
criativas no campo da multimídia. Não se trata certamente do primeiro, mas sem
dúvida esse CD-ROM está entre os primeiros no plano mundial a voltar-se
exclusivamente para questões relativas à criação artística com multimídia. Para
entender por que os computadores, de repente, começaram a ser cada vez mais
requisitados na produção de arte precisamos, em primeiro lugar, entender o modo
de operação dos sistemas digitais. As memórias de acesso aleatório dos
computadores     bem como      os   dispositivos    de   armazenamento     não-lineares
(disquetes, discos rígidos, CD-ROMs, CD-Is, laserdiscs), possibilitam uma
recuperação interativa dos dados armazenados, ou seja, eles permitem que o
processo de leitura seja cumprido como um percurso, definido pelo leitor-operador,
ao longo de um universo textual em que todos os elementos são dados de forma
simultânea. Com os mais recentes formatos de armazenamento das informações
computacionais, o receptor pode entrar no dispositivo audiovisual a partir de
qualquer ponto, seguir para qualquer direção e retornar a qualquer "endereço" já
percorrido.


A disponibilidade instantânea de todas as possibilidades articulatórias do texto
audiovisual favorece uma arte da combinatória, uma arte potencial, em que, ao invés
de se ter uma "obra" acabada, se tem apenas seus elementos e suas leis de
permutação definidas por um algoritmo combinatório. A "obra" agora se realiza
exclusivamente no ato de leitura e em cada um desses atos ela assume uma forma
diferente, embora, no limite, inscrita no potencial dado pelo algoritmo. Cada leitura é,
num certo sentido, a primeira e a última. O texto audiovisual já não é mais a marca
de um sujeito (visto que o sujeito que o realiza é um outro: o leitor-usuário), mas um
campo em que o sujeito enunciador apenas fornece o programa e o sujeito
atualizador realiza parte de suas possibilidades.


No CD-ROM Arte Cidade, temos várias experiências nessa direção. Ana Muylaert,
por exemplo, realiza uma pequena peça de ficção em que o usuário determina, até
certo ponto, as conexões que vão definir a trama. Já Artur Matuck coloca o usuário

                                           4
como personagem principal de uma viagem cujos incidentes dependem de certa
forma das ações desse personagem no interior da trama. Em alguns casos, o
trabalho é concebido como um campo de possibilidades, no qual o espectador-
interactor deve fazer suas escolhas para visualizar algum tipo de resultado. Artur
Lescher fornece material para que o usuário construa espirais rotativas à maneira de
Marcel Duchamp, e é ele - usuário - quem determina o número de espirais, o
diâmetro e a velocidade de rotação. Regina Silveira, por sua vez, deixa que o
receptor decida o ponto de vista sob o qual serão visualizadas suas metamorfoses
de objetos domésticos. Onde termina o trabalho do autor e onde começa o do
receptor?


Uma das vias mais férteis de experimentação apontadas no CD-ROM é a da poesia
audiovisual. Trabalhos como os de Walter Silveira, Tadeu Knudsen, Lenora de
Barros e Guto Lacaz deixam patente a influência marcante da poesia concreta sobre
a produção de toda uma geração de artistas e poetas brasileiros contemporâneos.
Essa geração procura explorar textos iconizados que sejam adequados não apenas
aos novos suportes possibilitados pela eletrônica e pela informática, mas também
adequados à nova sensibilidade dos homens e mulheres do fim de século XX. Ao
desgarrar-se do papel, a poesia ganha um impacto novo e se faz moeda corrente no
fluxo de energias da paisagem urbana. No CD-ROM, pode-se encontrar, por
exemplo, um poema-jogo de Walter Silveira, que é uma espécie de atualização
eletrônica do antigo jogo da forca. O poema só se torna legível se você acerta as
letras que o compõem. O maior desafio, porém, está na proposta radical de Otavio
Donasci. Como se fosse um hacker, Donasci faz desencadear um "vírus" que
compromete os trabalhos de todos os outros artistas.


Um dos maiores desafios que se apresentam aos artistas que trabalham com
imagens digitais é saber explorar a imagem adequada ao tamanho, resolução e
características da tela do monitor. Gostaríamos de chamar a atenção para o trabalho
exemplar de Carlos Fadon Vicente nesse sentido. Explorando com extremo cuidado
a cor-luz do monitor, as possibilidades de combinação de cores na resolução
proposta, os contrastes entre fundo e frente, a tensão entre controle e acaso na
navegação e a perfeita adequação entre imagem e música, Fadon produz um


                                         5
trabalho sofisticado, de muito bom gosto, que deverá servir de farol a futuras
gerações de argonautas.


Entre os artistas-inventores que se propuseram a enfrentar o desafio das mídias
digitais, José Wagner Garcia também aparece como um pioneiro no Brasil. Depois
de ter experimentado com o videodisco interativo durante vários anos, o seu primeiro
trabalho mais acabado nessa direção foi A Pele da Imagem, inicialmente
apresentado na mostra Arte Cidade 2 e depois distribuído como trabalho
independente em CD-ROM. Trata-se de uma proposta (a rigor, a primeira formulada
no Brasil) de cinema digital interativo, entendido como tal um cinema concebido
numa forma combinatória e permutacional, em que as imagens e os sons estão
ligados entre si por elos probabilísticos móveis, que podem ser configurados pelos
usuários de diferentes maneiras, de modo a compor obras instáveis em quantidades
quase infinitas. Com o auxílio de um joystick, mouse ou com as setas de direção do
teclado do computador, o espectador-usuário pode navegar dentro do mar de
possibilidades que o CD-ROM lhe oferece e construir a sua própria narrativa.




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Arte-Comunicação


Uma impressionante antevisão da web art ou net art (que abordamos de modo
específico no bloco Arte na Rede) foi experimentada nas duas últimas décadas do
século XX, no terreno da chamada arte-comunicação, ou seja, naqueles trabalhos
artísticos baseados na transmissão de textos, sons e imagens de um ponto a outro
do planeta, por meio de telefone, fax, slow-scan, satélites e televisão. A Internet é
um desenvolvimento bastante recente da telemática (ela começou a se desenvolver
a partir de 1994), mas os trabalhos com arte-comunicação são bastante anteriores.
O primeiro movimento da história da arte a valorizar a comunicação transnacional foi
a arte postal, e não poderíamos deixar de citá-la como uma espécie de pré-história
da arte-comunicação. Reunindo artistas de diferentes nacionalidades para
experimentar novas possibilidades e intercambiar trabalhos numa rede livre e
paralela ao mercado oficial das artes, a mail art foi a primeira modalidade de evento
a tratar como arte a comunicação em rede e em grande escala. Mas as diferenças
que existem entre as primeiras experiências com arte postal e a posterior arte
telemática são a intermediação da eletrônica e as conseqüências advindas da
adesão a essa tecnologia: alta velocidade de comunicação a distâncias planetárias,
procedimentos instantâneos de comunicação, utilização de suportes imateriais, além
do surgimento de questões novas para a arte, como a ubiqüidade, o tempo real, a
interatividade, a dissolução da autoria, etc.


No Brasil, vários artistas trabalharam explorando as possibilidades poéticas das
redes de comunicação e aqui vamos destacar apenas as experiências e os eventos
principais. Consta que, em 31 de outubro de 1980, foi realizado o primeiro contato
via fax entre artistas brasileiros: uma comunicação entre Paulo Bruscky (no Recife) e
Roberto Sandoval (em São Paulo). No ano seguinte, a 16ª Bienal Internacional de
São Paulo apresenta o seu Núcleo I de produção artística configurada em sistemas
de expressão e comunicação que utilizavam novas mídias. Nesse contexto, a arte
postal também foi incluída. Na carta-convite assinada por Walter Zanini, curador da
Bienal, essa modalidade artística foi definida como "um sistema de arte novo criado
para a intercomunicação entre artistas".


Nesse período, começa também a experiência do videotexto brasileiro. A idéia de
juntar telefone e televisor para formar um novo veículo de informações surgiu em
vários países, adaptando-se a diversas tecnologias de transmissão. O Brasil
resolveu adotar o sistema francês (minitel) em 1982 e, já na fase inicial, alguns
artistas tiveram acesso a essa tecnologia, entre eles Nelson das Neves, que nessa
época trabalhava na Companhia Telefônica de São Paulo, Telesp, empresa que
implantou o sistema em São Paulo. Em 1982, também em São Paulo, Julio Plaza
coordenou e participou do projeto artístico Arte pelo Telefone: videotexto, com
Carmela Gross, Lenora de Barros, Leon Ferrari, Mário Ramiro, Omar Khouri, Paulo
Leminski, Roberto Sandoval, entre outros. Essa exposição foi contemporânea à
primeira exibição em videotexto realizada em Nova York, sob organização de Martim
Niesenhold, com apoio da New York University.


Em 1983, foi realizada a exposição Arte e Videotexto, no projeto Novos Media da 17ª
Bienal Internacional de São Paulo, mais uma vez organizada por Julio Plaza. Essa
exposição fazia parte do projeto de mesmo nome que previa vários níveis de
participação: edição eletrônica de trabalhos de arte apresentados como tais por seus
autores; laboratório de linguagem nos códigos visual e escrito, incluindo narrativas
infantis e experiências didáticas; e edição do Bienal-informativo (jornal eletrônico da
Bienal) para veiculação de informações pertinentes à exposição e seus arquivos,
assim como para o registro dos percursos e roteiros para visitantes. A proposta foi
inovadora sob diferentes aspectos, mas especialmente porque aproveitou a
estrutura do videotexto, quer dizer, sua penetração por meio de terminais
domésticos, via cabo telefônico. Isso fez com que a mostra de videotexto penetrasse
inclusive nas casas daqueles que não têm o costume de visitar a Bienal. Essa foi a
primeira vez que a Bienal mostrou arte nas residências de São Paulo: arte on-line.
Vários foram os artistas participantes, distribuídos entre os oito tópicos: Arte Visual:
Ana Aly, Anna Carreta, Leda Catunda, Alex Flemming, Walter Garcia, Carmela
Gross, Nelson das Neves, Sérgio Romagnolo, Ana Maria Tavares; Arte Poesia:
Lenora de Barros, Samira Chalhub, Omar Khouri, Paulo Leminski, Philadelpho


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Menezes, Paulo Miranda, Alice Ruiz; Arte Narrativa: Maria Inês dos Santos Duarte,
Carlos Gardin, Maria Aparecida Junqueira, Maria dos Prazeres Mendes, Maria Rosa
Duarte de Oliveira, Maria José Palo, Leon Ferrari, Paulo Garcez, Amador Ribeiro
Neto, Lucia Santaella; Arte sobre Arte: Julio Plaza, Regina Silveira; Arte sobre o
Meio: Vera Chaves Barcellos, Wagner Garcia, Nina Moraes, Mônica Nador; Interarte:
Eduardo Duar, Adriana Freire, Jac Leirner, Rozélia Medeiros, Mário Ramiro;
Tradução: Mônica Costa; e Você É Crítico: Julio Plaza. Em Você É Crítico, o usuário
podia, por intermédio de terminais de videotexto, expressar seu ponto de vista sobre
a mostra de videotexto ou sobre qualquer aspecto da 17ª Bienal Internacional de
São Paulo.


Ainda em 1983, José Wagner Garcia e Mário Ramiro criaram Clones - Uma Rede de
Rádio, Televisão e Videotexto. Esse trabalho baseava-se na simultaneidade da
transmissão e recepção das representações de um objeto em três diferentes
sistemas. Uma instalação em que terminais de videotexto, monitores de TV, rádio e
alto-falantes foram agrupados em uma sala circular no MIS, São Paulo, com a
recepção sincronizada das três transmissões. Os nove terminais de videotexto
conectados a nove diferentes linhas telefônicas apresentavam um elemento gráfico -
uma barra vermelha horizontal, que passava de um monitor a outro. A mesma barra
horizontal era recebida de uma transmissão de TV ao vivo, movendo-se na
superfície da tela do monitor de TV instalado no MIS. Uma representação acústica
desse mesmo objeto, baseada no som produzido por uma barra de aço caindo
horizontalmente e batendo no chão, era ouvida nos alto-falantes, captada por meio
de programa de rádio.


José Wagner Garcia, em 1984, apresenta o projeto Ptyx - Conexão Simultânea, um
trabalho que conectou o Centro Cultural São Paulo e a Galeria de Arte Paulo
Figueiredo. Contou com a participação de Vânia Bastos (voz) e Wilson Sukorski
(som). A partir da instalação de baffles, especialmente projetados para o evento,
com irradiação sonora de 30 graus, formando um conjunto de nove peças na forma
de semicubo-octaedral, criava-se um corredor acústico para o deslocamento, por
ressonância, do som emitido por uma taça de cristal, quebrada pelo grito agudo da
cantora Vânia Bastos, numa freqüência de 652.7 Hz. Em Ptyx, o percurso evocava a


                                         3
explosão (da taça) e a construção (da imagem) na imaterialidade da informação e
discutia a formação desta informação, dependendo de dois lugares distintos.


Em 1985, houve uma grande retrospectiva dos trabalhos de arte-comunicação, da
mail art ao videotexto, na exposição Arte: Novos Meios/Multimeios - Brasil 70/80,
que aconteceu na Faap, em São Paulo. Ali foram apresentados, entre outros, os
projetos Fac-Similarte, de Paulo Bruscky e Roberto Sandoval; Caricaturas e A Arte
na Trama Eletrônica, videotexto de Rodolfo Cittadino; Arte em Videotexto, de Julio
Plaza, com participação de Alex Flemming, Alice Ruiz, Augusto de Campos,
Carmela Gross, Julio Plaza, Leon Ferrari, Lenora de Barros, Maria José Palo,
Mônica Costa, Omar Khouri, Lucia Santaella, Paulo Leminski e Paulo Miranda.


Entre os eventos importantes de 1985, deve-se acrescentar ainda o fato de a
Livraria Nobel do Rio de Janeiro ter aberto uma galeria permanente de arte em
videotexto, denominada Arte On-Line. Nela colaboraram vários artistas cariocas,
inclusive Eduardo Kac.


Em 1984, Eduardo Kac havia concebido, no Rio de Janeiro, o projeto Cyborg, que
envolvia três galerias e objetos controlados remotamente. Este projeto, infelizmente,
acabou não se realizando devido a obstáculos técnicos que o envolviam, mas Kac
não desistiu de suas pesquisas com telepresença e acabou desenvolvendo vários
projetos semelhantes depois, por ocasião de sua residência nos Estados Unidos.
Mas, ainda em 1986, Eduardo Kac projetou um robô controlado por rádio, para
participar da exposição Brasil High Tech, realizada no Centro Empresarial do Rio de
Janeiro sob curadoria do próprio Kac e de Flávio Ferraz. Kac usou um rôbo
antropomórfico com sete pés de altura como uma espécie de anfitrião, que
conversava com os visitantes da exposição. A voz do robô, transmitida via rádio, era
uma voz humana. Durante esse mesmo evento, o robô foi usado numa performance
telerrobótica realizada com Otavio Donasci, em que o robô interagia com uma
videocriatura deste artista. O robô foi construído por Cristovão Batista da Silva.
Nessa mesma exposição, com curadoria dos mesmos Eduardo Kac e Flávio Ferraz,
vários artistas participaram de uma mostra de arte em videotexto: Gino Zaniboni



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Netto, Julio Plaza, Nelson das Neves, Rodolfo Cittadino, Rose Zangirolami, além dos
próprios Eduardo Kac e Flávio Ferraz.


Outra tecnologia de transmissão de informação a longas distâncias bastante
utilizada por artistas foi a SSTV (slow-scan television). Em 14 de outubro de 1986, a
Sky Art Conference, evento conjunto entre o Center for Advanced Visual Studies,
CAVS, em Boston, coordenado por Otto Piene, e a ECA/USP, coordenada por José
Wagner Garcia, foi provavelmente a primeira transmissão com slow-scan no Brasil.


Em agosto de 1987, Eduardo Kac projetou ainda o Faxelástico, como parte da
exposição Luz Elástica, no MAM/RJ. O Faxelástico foi uma espécie de "faxfilme":
participantes foram convidados a enviar seqüências de imagens, formando um
faxfilme que se editava a si mesmo, de acordo com a ordem de recebimento das
seqüências.


O Instituto de Pesquisas em Arte e Tecnologia, Ipat, foi formado por um grupo de
artistas que pesquisavam novas mídias e seus objetivos centravam-se na relação
entre a arte e as novas tecnologias. Esse instituto (formado por Artur Matuck, Paulo
Laurentiz, Milton Sogabe, Anna Barros, Carlos Fadon Vicente, Julio Plaza, entre
outros) organizou diversos eventos de arte e comunicação, utilizando videotexto,
SSTV e fax. Em 1988, realizou-se o intercâmbio de imagens via slow-scan entre o
Ipat e o Digital Art Exchange Group, DAX, da Carnegie-Mellon University, em
Pittsburgh. O evento, chamado Intercities: SP/Pittsburgh, foi coordenado em São
Paulo por Artur Matuck e Paulo Laurentiz e em Pittsburgh por Bruce Breland. Entre
as participações, deve-se destacar o projeto Still Life/Alive, de Carlos Fadon Vicente.


Entre 1987 e 1988, Eduardo Kac elaborou "esboços para dois pequenos telerrobôs",
para serem controlados por participantes de duas cidades distantes. A idéia era
permitir a um participante de uma cidade controlar um telerrobô na outra cidade, e
vice-versa. Nesse projeto, Kac contou com a consultoria do engenheiro Wellington
Pinheiro. As idéias exploradas nesse trabalho serviram de base para o
desenvolvimento do seu próximo projeto, Ornitorrinco. Mas falaremos sobre esse
projeto no bloco Arte na Rede, pois ele se estendeu até 1996.

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Em 8 de abril de 1988, realizou-se um diálogo via fax e canal de TV, ao vivo, entre
Mário Ramiro, em São Paulo, e Eduardo Kac, no Rio de Janeiro. Chamava-se
Retrato Suposto - Rosto Roto. Conectando o meio público da televisão com o meio
privado do fax, este trabalho criou um sistema de feedback baseado na troca e
transformação contínua das imagens. Mário Ramiro estava em São Paulo, nos
estúdios da TV Cultura, e se conectava com Kac, através de fax, em seu estúdio, no
Rio de Janeiro. A base desse trabalho era explorar a operação em tempo real da
utilização do fax, um meio dialógico, no contexto de um programa de televisão, um
sistema unidirecional de comunicação de massa.


Em fevereiro de 1989, no projeto Faxarte I, realizou-se um intercâmbio via fax entre
a ECA/USP e o Instituto de Artes da Unicamp, IA/Unicamp, coordenado por Artur
Matuck (da ECA) e Paulo Laurentiz (do IA/Unicamp). Alguns meses depois, os
estudantes dessas mesmas universidades participaram do Faxarte II, sob a
coordenação de Artur Matuck, Shirley Miki e Gilbertto Prado. Entre os artistas
participantes estavam Anna Barros, Artur Matuck, Gilbertto Prado, Marco do Valle,
Milton Sogabe, Paulo Laurentiz e Regina Silveira, entre outros.


Carlos Fadon e Eduardo Kac criam também em 1989 Three-City Link, utilizando a
tecnologia de slow-scan TV e conectando artistas em Boston (Dana Moser), Chicago
(Kac e Fadon) e Pittsburgh (o DAX). A experiência consistiu em conectar os
artistas por meio de um sistema de conferência telefônica three-way, de modo a
permitir trocar imagens e interagir sobre as imagens recebidas e gerar uma reflexão
visual sobre as relações entre o espaço urbano e o espaço telemático.


Ainda em 1989, entre os dias 11 e 15 de dezembro, as primeiras imagens via fax
foram intercambiadas no projeto City Portraits, concebido por Karen O’Rourke, entre
o grupo Art-Réseaux de Paris e outros artistas residentes nas cidades de Düsseldorf,
Filadélfia e Campinas. Entre os artistas brasileiros, destacam-se as participações de
Gilbertto Prado, que no período encontrava-se na base em Paris, Paulo Laurentiz,
que coordenava o pólo transmissor em Campinas, ao lado de Milton Sogabe, Renato
Hildebrand e Anna Barros, entre outros, e em Chicago encontravam-se Carlos

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Fadon Vicente, Irene Faiguenboin e Eduardo Kac. Essa foi a primeira fase desse
projeto e sua proposta era: pares de imagens (fotos e outros documentos da cidade
de cada um) eram enviados e os participantes eram convidados a perfazer os
caminhos e estabelecer retratos de cidades que não conheciam. A circulação da
informação fazia com que os artistas, que enviaram informações de suas cidades, a
redescobrissem por meio da visão de outros. A proposta teve como objetivo o
aproveitamento da bidirecionalidade e da interatividade dos meios telemáticos,
procurando explorar a imaginação dos artistas de cada cidade, além de projetar
cidades imaginárias, a partir de imagens enviadas pelos outros parceiros da rede.


Em 28 de fevereiro de 1990, o projeto de Paulo Laurentiz L’Oeuvre du Louvre levou
artistas brasileiros a "invadir", durante o período de carnaval, com envio de fax, o
Museu do Louvre, em Paris. Os artistas participantes foram Anna Barros, Lúcio
Kume, Mário Ishikawa, Milton Sogabe, Paulo Laurentiz e Regina Silveira. Esse
evento tinha como princípio norteador o conceito do Museu Imaginário de André
Malraux. Apropriando-se de reproduções de obras do Museu do Louvre, artistas
brasileiros executaram trabalhos, comentando, traduzindo ou mesmo citando essas
referências. A coletânea produzida passou a compor o material transmitido.


Para celebrar o Dia da Terra, o grupo DAX, situado na Carnegie-Mellon University,
Pittsburgh, organizou o projeto Earthday 90 Global Telematic Network & Impromptu.
Foram estabelecidos contatos via slow-scan e fax entre artistas das cidades de
Viena, Lisboa, Campinas, São Paulo, Boston, Baltimore, Pittsburgh, Chicago,
Vancouver e Los Angeles. Esse evento foi realizado nos dias 21 e 22 de abril de
1990. As curadorias ficaram a cargo de Bruce Breland, do DAX Group, no pólo
principal na Carnegie-Mellon University; Carlos Fadon Vicente e Eduardo Kac, na
The School of the Art Institute of Chicago; e Paulo Laurentiz, no IA/Unicamp. Em
Campinas, com infra-estrutura que contava com três linhas exclusivas no
Departamento de Multimeios do IA/Unicamp, duas para transmissão de sinais de
SSTV e uma para fax, os artistas brasileiros se reuniram para enviar suas propostas
e interagir com as que chegavam, elaborando trabalhos com os recursos do local.
Entre os artistas brasileiros participantes podemos citar André Petry, Anna Barros,
Artemis Moroni, Artur Matuck, Carlos Bottesi, Carlos Fadon Vicente, Eduardo Kac,


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Elisabeth Bento, Ernesto Mello, Eunice da Silva, Gilbertto Prado, Hermes Renato
Hildebrand, Irene Faiguenboim, Mário Ramiro, Milton Sogabe e Paulo Laurentiz.


Poéticas Instantâneas foi um projeto isolado de intercâmbio via fax entre as cidades
de Campinas e Porto Alegre, coordenado por André Petry, entre os dias 10 e 11 de
dezembro de 1990.


Na passagem do ano de 1990 para 1991, Paulo Laurentiz coordenou o projeto No
Time, teletransmissão artística entre Brasil (IA/Unicamp) e Japão (College of Arts of
Kyoto). Esse projeto consistiu em transmissão via computador/modem e fax de uma
série de trabalhos gráficos e sonoros, elaborados pelos artistas anteriormente e
durante as doze horas do evento. A proposta foi trabalhar no período de diferença
de fuso horário entre os dois países. Assim, quando o Brasil entrava no ano de
1991, o Japão já estava em pleno meio-dia desse ano. O evento começou ao meio-
dia de 31 de dezembro de 1990 e terminou à meia-noite desse mesmo dia (hora de
Brasília). Os trabalhos gráficos e sonoros eram elaborados e decodificados pelo
computador. Participaram desse evento Paulo Laurentiz e Milton Sogabe, nos
trabalhos gráficos, e José Augusto Mannis e Eiko Akiyama, nos trabalhos sonoros.


Em maio de 1991, foi realizado o fax-evento Connect, concebido por Gilbertto Prado,
que permitia a pessoas localizadas em diferentes locais do planeta realizar
simultaneamente um trabalho artístico comum em tempo real. Os participantes
trabalhavam simultaneamente sobre o papel, em movimento que circulava nas
diferentes localidades produzindo um trabalho único e partilhado numa relação/ação
direta e integrada. As primeiras ações aconteceram em maio de 1991 entre Paris
(Université de Paris I - Centre Saint-Charles) e Pittsburgh (Carnegie-Mellon
University - Studio for Creative Inquiry). E, em novembro de 1991, entre Paris (Art-
Réseaux) e São Paulo (Centro Cultural Oswald de Andrade - Workshop Projeto
Reflux - 21ª Bienal Internacional de São Paulo).


Ainda em 1991, realizou-se o projeto Telesthesi, de Artur Matuck, com a produção
de um texto interativo por rede de computador (correio eletrônico), com o apoio do
The Studio for Creative Inquiry de Pittsburgh e da Universidade de São Paulo. E, em

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13 de agosto do mesmo ano, tivemos o Faxelástico, um projeto de Eduardo Kac,
como parte da exposição Luz Elástica, no MAM/RJ.


De setembro a dezembro de 1991, por ocasião da 21ª Bienal Internacional de São
Paulo, Artur Matuck concebeu e coordenou o projeto Reflux. Ele propôs ligações
telemáticas entre vários nós e convidou os participantes a interagir também com
seus projetos - os influxs. Entre os trabalhos apresentados, podemos citar Langterra
- Dymaximal Territory, de Artur Matuck e Robert Rogers, do The Studio for Creative
Inquiry, de Pittsburgh; Traces, de Gilbertto Prado, Art-Réseaux, de um grupo de
artistas de Paris; e Clothfax, uma performance-fax de Otavio Donasci.


De 22 a 25 de outubro de 1992, tivemos, no MAC/USP, o evento Proto Arte
Telemática, coordenado por Artur Matuck, com participação de vários artistas, entre
eles Madalena Bernardes e Otavio Donasci.


No Rio Grande do Sul, em maio de 1994, Diana Domingues, Ana Mery de Carli e
Fabiana de Lucena coordenaram um projeto de rede de comunicação utilizando fax.
O evento se chamou Em Contato e foi realizado na Universidade de Caxias do Sul.


Em junho de 1994, a mostra Via Fax teve a participação de diversos artistas do Rio
de Janeiro, de São Paulo, Belo Horizonte, Nova York, Porto Alegre e do Recife, no
Museu do Telephone, no Rio de Janeiro.


Entre os dias 21 de outubro e 11 de novembro de 1994, Eduardo Kac organizou o
projeto ElasticFax 2, no Center for Contemporary Art, na University of Kentucky,
Lexington (Estados Unidos). Artistas de todo o mundo foram convidados, via
Internet, a transmitir imagens seqüenciais, para formar as seqüências de um filme de
fax auto-organizado. A máquina de fax foi posicionada na altura dos olhos, para criar
a sensação de um imenso projetor, com as imagens passando. Ao mesmo tempo,
criou-se a sensação de uma "queda-d’água", com as imagens formando padrões
ondulados ao cairem no chão.




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A partir desse momento, o que era a arte-comunicação se transfigura em net art ou
arte na rede (vide o bloco Arte na Rede).




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Hibridismo/Intermídias


Expressões como hibridismo, mestiçagem ou poética das passagens começaram a
ser utilizadas na exposição Passages de l'Image, organizada em Paris, em 1990, por
Raymond Bellour e outros, para referir-se à dissolução das fronteiras entre os
suportes e as linguagens, bem como também à reciclagem dos materiais que
circulam nos meios de comunicação. As imagens são compostas agora a partir de
fontes as mais diversas: parte é fotografia ou cinema, parte é desenho, parte é
vídeo, parte é texto produzido em geradores de caracteres e parte é modelo gerado
em computador. Por sua vez, os sons são ora registros brutos ou processados, ora
sínteses produzidas em computador e ora o resultado de um "sampleamento"
(edição e metamorfose de amostras gravadas). Na série Connexio, de Diana
Domingues, por exemplo, cada plano é um híbrido, constituído de figuras em
migração permanente, onde já não se pode mais determinar a natureza de cada um
de seus elementos constitutivos, tamanha é a mistura, a sobreposição, o
empilhamento de procedimentos diversos, sejam eles antigos, sejam modernos,
sofisticados ou elementares, tecnológicos ou artesanais.


Segundo Ítalo Calvino, a multiplicidade exprime um modo de conhecimento do
homem contemporâneo, onde o mundo é visto e representado como uma "rede de
conexões", uma trama de relações de uma complexidade inextricável. Recursos
recentes de edição digital permitem, por exemplo, jogar para dentro da tela uma
quantidade quase infinita de imagens e sons simultâneos, para fazê-los
combinarem-se em arranjos inesperados, como que atualizando a idéia de uma
montagem "vertical" ou "polifônica", formulada por Serguei Eisenstein nos anos 40. A
técnica mais utilizada consiste em abrir "janelas" dentro do quadro para nelas inserir
novas imagens e, ao mesmo tempo, multiplicar as fontes sonoras em vários canais
de som. Toda a arte eletrônica que segue a trilha aberta por Nam June Paik e todas
as modalidades computadorizadas de multimídia apontam hoje para a possibilidade
de uma nova "gramática" dos meios audiovisuais, que consiste em superpor tudo
(múltiplas imagens, múltiplos textos, múltiplos sons), ou imbricar as fontes umas nas
outras, fazendo-as acumular infinitamente dentro do quadro. Trata-se, segundo
alguns, de uma estética da saturação, do excesso (a máxima concentração de
informação num mínimo de espaço-tempo) e também da instabilidade (ausência
quase absoluta de qualquer integridade estrutural ou de qualquer sistematização
temática ou estilística), mas essa também pode ser uma maneira mais adequada de
representar a complexidade.


O universo das artes eletrônicas apresenta-se de forma múltipla, variável, instável,
complexa e ocorre numa variedade infinita de manifestações. A eletrônica pode hoje
estar presente em esculturas, instalações multimídias, ambientes, performances,
intervenções urbanas, até mesmo em peças de teatro, salas de concerto e shows
musicais, conforme se pode verificar de forma bastante enfática na obra
performática de artistas como Renato Cohen, Bia Medeiros (e seu grupo Corpos
Informáticos) e Artemis Moroni (e seu grupo *.*), ou nas instalações e performances
de Anna Barros e Josely Carvalho. As obras eletrônicas podem, portanto, existir
associadas a outras modalidades artísticas, a outros meios, a outros materiais, a
outras formas de espetáculo. Como conseqüência dessa generalização da imagem e
do som eletrônicos, os artistas que os praticam, bem como os públicos para os quais
se dirigem, tornam-se cada vez mais heterogêneos, sem qualquer referência
padronizada, perfazendo hábitos culturais em expansão, circuitos de exibição
efêmeros e experimentais, que resultam em verdadeiros quebra-cabeças para os
fanáticos da especificidade. Eis porque falar de arte eletrônica significa colocar-se
fora de qualquer território institucionalizado. Trata-se de enfrentar o desafio e a
resistência de um objeto híbrido, em expansão, fundamentalmente impuro, de
identidades múltiplas, que tende a se dissolver camaleonicamente em outros objetos
ou a incorporar seus modos de constituição.


A imagem e o som eletrônicos invadem hoje todos os setores da produção cultural,
comprometendo todas as especificidades. A tela eletrônica representa agora o local
de convergência de todos os novos saberes e das sensibilidades emergentes que
perfazem o atual panorama da visualidade. Nesse estado de coisas que agora se
configura, a imagem perde cada vez mais os seus traços materiais, a sua
corporeidade, a sua substância, para se transfigurar em alguma coisa que não existe
senão no estado virtual, desmaterializada em fluxos de corrente elétrica. Como


                                         2
acontece com nossas imagens mentais, aquelas que brotam do imaginário, as
imagens eletrônicas são fantasmas de luz que habitam um mundo sem gravidade e
que só podem ser invocadas por alguma máquina de "leitura", atualizadora de suas
potencialidades visíveis.




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Arte na Rede


Nos anos 80, o artista britânico David Hockney produziu um pequeno escândalo em
São Paulo, quando a obra por ele concebida para participar de uma das edições da
Bienal foi enviada por fax, por causa de uma celeuma envolvendo as pesadas
despesas com transporte e seguro. Estávamos então apenas iniciando a discussão
da "desmaterialização da arte", ainda sob o impacto da polêmica exposição de obras
"imateriais" (Les Immatériaux) organizada por Jean-François Lyotard no Centro
Pompidou de Paris em 1985, e a idéia de uma obra "teletransportada" soava
estranha aos nossos hábitos perceptivos fortemente marcados pela presença de
objetos físicos "únicos" no espaço de exposição. No limite, se as obras se
desmaterializam e se multiplicam, não faz mais sentido pensar num espaço físico
para expô-las, ou num lugar para onde o público deveria se dirigir em períodos
preestabelecidos. Elas poderiam ser recebidas em casa pelos mais variados meios,
como o telefone, o videofone, o fax, o rádio e a televisão, ou ser "acessadas" por
meio de redes telemáticas como a Internet.


Talvez a Bienal do futuro não aconteça mais num prédio instalado no Parque
Ibirapuera, que abre as suas portas uma vez a cada dois anos para uma celebração
coletiva. A Bienal do futuro poderia ser uma rede de conexões entre artistas e
instituições que fazem trabalhos criativos, não localizada em lugar algum,
disponibilizada para o acesso público e organizada por um corpo de curadores
espalhados por todo o mundo. Organizar uma exposição poderia significar interligar
várias experiências que já acontecem no campo "desmaterializado" das redes
telemáticas, oferecendo ao visitante (agora chamado de usuário) conceitos ou
idéias-chave que permitam compreender determinados campos de acontecimentos.
Visitar a Bienal poderia significar simplesmente ligar o computador e apontar o
browser para o seu endereço eletrônico.


A web art ou net art é o setor mais recente dentro do sempre mutante campo das
artes eletrônicas. Ela representa uma fusão da arte-comunicação com a arte digital.
Historicamente, a arte-comunicação utilizou recursos predominantemente não
digitais (mail art, fax, telefone, slow-scan TV, etc.) ou semidigitais (videotexto) para
estabelecer contatos de comunicação, enquanto as artes digitais não lidavam ainda
com o conceito de comunicação. A web art, num certo sentido, dá continuidade à
idéia de comunicação, mas agora dentro de um contexto nitidamente digital e
valendo-se dessa gigantesca rede mundial de computadores chamada Internet. Ela
já permite hoje experimentar uma antevisão desse futuro próximo em que a Bienal -
e também as galerias, os centros culturais - poderão existir em forma virtual.


Em junho de 1992, destacamos o projeto Moone: La Face Cachée de la Lune, de
Gilbertto Prado, construção de desenhos e imagens em tela, partilhada em direto,
via Rede Numérica de Serviços Integrados, RNSI, entre os Cafés Électroniques de
Paris e a 9ª Documenta, Kassel, Alemanha. O objetivo era construir, com parceiros
distantes (e eventualmente desconhecidos), uma imagem híbrida e composta em
tempo real. Utilizou-se o princípio de tela partilhada, que permite a construção de
imagens simultaneamente em rede, com participantes em locais distantes. Quando
se trabalha com esse dispositivo, pode-se ter a mesma imagem em diferentes
monitores para trabalhá-la a distância, da mesma forma que o movimento dos
mouses é partilhado em tempo real.


De 20 a 25 de agosto de 1994, durante o 5th International Symposium on Electronic
Art, a participação do *.* (asterisco-ponto-asterisco, grupo formado por Artemis
Moroni, José Augusto Mannis e Paulo Gomide Cohn) apresentou o projeto The
Electronic Carnival, diálogo e construção de personagens via Internet.


Em 3 de setembro do mesmo ano, aconteceu o Telage 94, um intercâmbio de
imagens e sons, via modem, projeto coordenado por Carlos Fadon Vicente, em São
Paulo, por Eduardo Kac, em Lexington (Estados Unidos), por Irene Faiguenboim, no
Recife, e por Gilbertto Prado, em Campinas. Entre os participantes, podemos
também citar Renato Hildebrand e Silvia Laurentiz. O Telage 94 fez parte do
megaevento Arte Cidade 2: a cidade e seus fluxos, organizado por Nelson Brissac
Peixoto, em 1994. A proposta foi criar uma trama eletrônica de conexões entre
diferentes cidades, que se tecia entre as diferentes imagens processadas. Uma



                                           2
imagem distinta era introduzida em cada ponto do circuito e retrabalhada pelos
demais participantes.


De 1989 até 1996, Kac desenvolveu o projeto Ornitorrinco. Em 1989, ele começou a
trabalhar com Ed Bennett em Chicago e dessa parceria foi projetado, testado e
construído o Ornitorrinco, um telerrobô que podia ser controlado a partir de longas
distâncias. A primeira experiência desse projeto aconteceu em 1990, num link entre
as cidades do Rio de Janeiro e de Chicago. Do Rio de Janeiro, Kac controlava o
Ornitorrinco em Chicago, via conexão telefônica. Depois dessa primeira experiência,
muitas outras aconteceram, utilizando o mesmo conceito desse trabalho.
Ornitorrinco ficou então o nome dado tanto aos trabalhos de arte de telepresença em
andamento quanto ao telerrobô que os realizava.


Por princípio, os eventos do Ornitorrinco envolviam duas localidades distintas,
porém, nada impedia que mais pólos estivessem conectados. Um ou mais membros
do público navegavam por instalação ou local remoto, pressionando teclas de
telefone comum ou clicando o mouse do computador. Recebiam, então, feedback
visual sob a forma de imagens fixas ou em movimento, em tela de computador ou
monitor de vídeo. Freqüentemente ocorriam encontros de comunicação via Internet,
não com trocas verbais ou orais, mas por meio de ritmos resultantes do
envolvimento dos participantes de uma experiência compartilhada no mesmo meio.
Os visitantes, nas palavras do autor, experimentavam juntos, no mesmo corpo, um
lugar   longínquo   e   inventado   sob   perspectiva   impessoal,   que   suspendia
temporariamente as noções de identidade, localização geográfica e presença física.


Entre os vários eventos envolvendo o Ornitorrinco, podemos citar os que se seguem.
Em 1992, acontece o Ornitorrinco in Copacabana: uma estação pública de
telepresença estava posicionada no McCormick Place, na Conferência Siggraph de
1992, e dali se podia controlar o Ornitorrinco em ambiente especialmente criado na
The School of the Art Institute of Chicago. Em 1993, o Ornitorrinco on the Moon foi
apresentado entre a The School of the Art Institute of Chicago e The Kunstlerhaus
(Graz, Áustria), durante a exposição austríaca Beyond Borders. Em 1994,
Ornitorrinco in Eden foi experimentado num evento de telepresença na Internet.

                                          3
Existiam duas estações públicas de telepresença, uma em Seattle e outra em
Lexington. O Ornitorrinco estava em um ambiente no Departamento de Arte e
Tecnologia na The School of the Art Institute of Chicago. Esses três pólos estavam
ligados via ligação telefônica por 3-vias, para controle de movimento em tempo real.
As cidades estavam também conectadas pela Internet via tecnologia CU-See-Me,
que retransmitia constantemente as mudanças de pontos de vista do ambiente do
robô. Usuários de várias cidades americanas e de outros países (incluindo Finlândia,
Canadá, Alemanha e Irlanda) podiam acessar e assistir ao que se passava no
espaço (registrado pelo movimento do robô) em Chicago, pelo ponto de vista do
Ornitorrinco.


Em 1996, surge o Ornitorrinco in the Sahara, um evento de telepresença dialógica
criado para a Bienal de St. Petersburg, na Rússia. A topologia desse evento estava
baseada no uso de duas linhas telefônicas separadas. Uma linha conectava o
Museu de História de St. Petersburg ao Departamento de Arte e Tecnologia da The
School of the Art Institute of Chicago. A segunda linha conectava este Departamento
em Chicago à The Aldo Castillo Gallery.


A primeira curadoria de web art no Brasil foi feita por Ricardo Ribenboim e Ricardo
Anderáos para a 24ª Bienal Internacional de São Paulo, que ocorreu em 1998. Ela
ofereceu ao público de qualquer parte do mundo a oportunidade de fazer um outro
tipo de visita à Bienal, em que nem os artistas nem o público precisavam se deslocar
fisicamente até São Paulo. Numa primeira acepção, a curadoria consistiu em propor
uma coleção de links que permitiam dar forma, consistência e acesso a um conjunto
já bastante expressivo de experiências artísticas que estavam acontecendo naquele
momento na web. Não apenas trabalhos brasileiros foram indicados, mas também
trabalhos de artistas internacionais já consagrados, com é o caso do grupo Jodi
(abreviatura de Joan Heemskerk e Dirk Paesmans), referência inevitável em
qualquer antologia de web art. Os trabalhos foram agrupados em torno de conceitos,
que permitiam distinguir diferentes perspectivas estéticas e existenciais. A interface
proposta dava a impressão de um organismo vivo em permanente mutação e se
apresentava como um work in progress, capaz de assimilar inclusive a colaboração



                                          4
dos visitantes no preenchimento dos conceitos com indicações de novos sites ou
modificação dos já existentes.


A idéia de organizar o acesso e a navegação em torno de conceitos tem a sua razão
de ser. A web é hoje uma gigantesca e caótica acumulação de sites, páginas, frames
e links, com conteúdos, formas gráficas e interfaces de toda espécie, abrangendo do
melhor ao pior, do confiável ao desconfiável, do déjà-vu ao absolutamente
imprevisível. Mais do que em qualquer outro campo de experiências, a web
necessita de bússolas e faróis, que permitam tornar produtiva a tarefa de navegação
e sobretudo atracar em porto seguro. Quando o que se busca é apenas informação,
um bom mecanismo de procura (search) pode ser suficiente. Mas quando se trata de
descobrir propostas e atitudes inventivas, é preciso que os próprios instrumentos
sejam também criativos e abertos à irrupção do improvável. Uma curadoria
adequada às experiências criativas na web deve, portanto, ter expertise suficiente
para descobrir a interface adequada, capaz de permitir a navegação num ambiente
que não é mais apenas um banco de dados. Se a web é realmente um organismo
vivo, em contínuo movimento e metamorfose, com sites surgindo, desaparecendo ou
se transformando a todo momento, não é preciso muito esforço para perceber que
os seus mecanismos de pesquisa e navegação devem ter a mesma mobilidade.


Por outro lado, a curadoria de Ribenboim e Anderáos inovou também por incorporar
trabalhos encomendados especificamente para essa seleção.


É o caso de Valetes em Slow-Motion, de Kiko Goifman e Jurandir Müller, sobre o
tema dos encarcerados, que pode ser considerada uma das experiências brasileiras
mais ousadas feitas no terreno da web art, tanto do ponto de vista da forma como do
conteúdo. Contando com a colaboração de Alberto Blumenschein (webmaster) e
Silvia Laurentiz (ambiente tridimensional interativo em formato VRML), o trabalho
permitiu uma reflexão densa sobre a vida nas prisões e a psicologia dos detentos,
abrindo a possibilidade inclusive de um contato ao vivo (através da tecnologia CU-
See-Me) entre os visitantes da Bienal "virtual" e os detentos do Presídio da Papuda,
em São Sebastião (DF), em dias e horários previamente marcados. Na verdade, o
trabalho de Goifman e Müller explora ironicamente a idéia de controle a distância (o

                                         5
conceito através do qual ele pode ser acessado é "monitoramento"), alertando para
a possibilidade de uma vigilância universal através da web.


Na 24ª Bienal Internacional de São Paulo, foi apresentado também o projeto-
instalação Colunismo, de Gilbertto Prado. A instalação consistia em um "portal", com
duas webcams conectadas à rede Internet, que eram disparadas por sensores
dispostos no espaço físico da instalação pela passagem dos visitantes. Uma vez
capturada em tempo real essa imagem local, ela era mesclada com outras (de um
banco de imagens sobre o olhar estrangeiro, sobre a antropofagia, a pop art,
cidades e outras categorias) e disponibilizada via Internet para todo o planeta.
Outros participantes, fisicamente distantes, via webcam, podiam observar o espaço
e a geração de novas imagens locais. Esse trabalho esteve exposto também na
mostra City Canibal, no Paço das Artes, em São Paulo, de 4 de setembro a 31 de
outubro de 1998.


Com o florescimento da web art, o acesso remoto à Bienal ou a qualquer outro
evento artístico está deixando de ser uma possibilidade marginal para se tornar a
própria natureza das próximas montagens. Se no futuro os parangolés se
transformarem em wearable computers (computadores de vestir) e os objetos
relacionais forem desmaterializados em ambientes de realidade virtual, a Bienal,
mesmo deslocalizada, ainda terá uma razão para existir: ela continuará
representando o esforço sempre necessário de concentrar a criatividade dispersa e
difundir no tecido social as experiências humanas de liberdade.


Ainda neste mesmo ano, Tânia Fraga organizou (e participou de) o projeto Xmantic
na Web, aceito em concurso da Unesco realizado em 1998. A proposta do projeto
era criar um link multicultural entre povos de culturas distintas. Assim, procuraram-se
analogias entre os xamãs das culturas tribais e os equivalentes em outras culturas
ocidentais contemporâneas. Xmantic na Web é o primeiro resultado do Laboratório
Virtual de Pesquisa em Arte (criado em 1996) da Universidade Federal de Brasília,
onde artistas, estudantes e pesquisadores entram em contato com o mundo para
criar um diálogo multicultural no campo da arte telemática.



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Interação Arte-Ciência


Nas últimas décadas do século XX, generalizou-se em vários campos do
conhecimento a suspeita de que as fronteiras, tão categoricamente traçadas no
século anterior, entre arte, ciência e tecnologia já não se sustentavam com o mesmo
vigor. Algumas exposições ocorridas em áreas de interseção de interesses têm
colocado em evidência o arbítrio das velhas dicotomias. É o caso de Les
Immatériaux, exposição organizada em 1985 por Jean-François Lyotard, no Centro
Pompidou de Paris, e que exibia imagens (e eventualmente também sons, objetos)
derivadas da pesquisa científica ou da atividade tecnológica como sendo objetos de
fruição estética. A idéia é que determinados aparelhos ou instrumentos usados no
diagnóstico médico, na engenharia de projetos, na simulação de processos
industriais ou no sensoriamento remoto do espaço produzem imagens insólitas, que
podem, eventualmente, apresentar interesse no plano estético, pelo seu poder de
evocação intelectual, emotiva ou sensorial. Alguns artistas particularmente sensíveis
às qualidades estéticas das imagens cientíticas, médicas ou industriais têm
procurado se aproximar dos recursos tecnológicos utilizados na ciência e na
engenharia para efetivar uma utilização intensiva desses meios, com vista a explorar
as liberdades do imaginário e as conseqüências em termos de invenção estética. As
iconografias científica, médica e tecnológica já são hoje referências constantes no
imaginário do homem contemporâneo. Nesse sentido, as intervenções da técnica e
da ciência podem ser tomadas como acontecimentos culturais de pleno direito. Mas
talvez fosse possível ir um pouco mais além, observando também o trabalho singular
de certos criadores (que nem sabemos mais se são "artistas", "engenheiros",
"cientistas" ou "homens de mídia"), que fazem emergir possibilidades insuspeitadas
ao utilizarem de forma intensiva ou transgressiva os recursos enunciadores
colocados à sua disposição pelas máquinas. Talvez estejamos caminhando rumo à
evidência de que, no fim das contas, as práticas da ciência, da técnica e da arte não
sejam assim tão diferentes entre si. Afinal, como observou Paul Caro em A Ciência e
a Imagem, um especialista moderno em química é um pouco também um escultor,
sobretudo quando deve construir as intrincadas arquiteturas das moléculas
orgânicas ou das estruturas cristalinas, assim como também há algo de ficcionista
no pesquisador de física nuclear, que deve, num certo sentido, "adivinhar" a vida das
partículas e reconstruir a história íntima do comportamento dos átomos.


Sabemos que a palavra grega para designar os fenômenos artísticos era techné, de
onde deriva tecnologia. Os gregos antigos não faziam qualquer distinção de princípio
entre a arte e a técnica e esse pressuposto atravessou boa parte da história da
cultura ocidental até pelo menos o Renascimento. Para homens como Leonardo da
Vinci, Albrecht Dürer ou Piero della Francesca, pintar uma tela, estudar a anatomia
humana ou a geometria euclidiana, ou ainda projetar o esquema técnico de uma
máquina constituíam uma só e mesma atividade intelectual. E se prestarmos
atenção, a arte de nosso tempo também não deixou de refletir problemas
emergentes do universo das técnicas e das ciências. Cézanne e movimentos como o
impressionismo, o construtivismo, o serialismo, De Stijl, Bauhaus, a arte concreta, a
música eletrônica, a op art e a arte cinética se mostram afinados e coerentes com o
estágio correspondente do pensamento científico e tecnológico. Pode-se afirmar que
a arte desse século encontra-se numa relação de simetria com o saber de seu
tempo, tal como estiveram a arte clássica grega em relação à geometria euclidiana,
ou a dos séculos posteriores em relação à cosmologia medieval. O próprio
conhecimento científico parece também viver agora o seu state of the art, libertando-
se de uma "realidade objetiva" absoluta e determinista e passando a governar-se
pelas mesmas noções de caos e acaso com que trabalham os artistas. Muitos dos
trabalhos mais recentes estão demonstrando que se torna cada vez mais difícil fazer
uma distinção categórica entre objetos originários da imaginação artística, da
investigação científica e da invenção tecno-industrial. Muitos produtos derivam, aliás,
de uma interação de talentos e de investimentos das três áreas. Ademais, a
experiência tem demonstrado que os artistas que obtiveram melhores resultados
trabalhando com tecnologias são pessoas capazes de intervir na própria engenharia
das máquinas, produzindo o hardware e o software necessário para dar forma às
suas idéias estéticas.


Apesar de o Brasil ocupar uma posição apenas marginal em termos de investigação
científica e tecnológica, se compararmos com a América do Norte, Europa e alguns
países da Ásia, tivemos aqui uma geração importantíssima de criadores que


                                          2
operaram na confluência da arte/ciência/tecnologia. Essa tradição remonta a dois
pioneiros, que hoje são considerados os "pais" dessa síntese tecnopoética no Brasil:
Abraham Palatnik e Waldemar Cordeiro. O primeiro, de sólida formação técnica
(especializou-se em motores a explosão em Telaviv), introduziu na pintura e
escultura as mais sofisticadas tecnologias de seu tempo, como as chamadas
"máquinas cinecromáticas" de controlar o movimento, o magnetismo e a luz, tendo
sido considerado o introdutor da arte cinética na América Latina. O segundo,
emergido no bojo do movimento concretista dos anos 50/60, foi o primeiro, no Brasil,
a utilizar o computador como instrumento heurístico e como o elemento catalisador
de uma nova dimensão para a arte. Cordeiro foi também o responsável pela
organização da primeira exposição e conferência avançada sobre a síntese de arte,
ciência e tecnologia no Brasil, chamada Arteônica (1971). Por essa razão, ele é
considerado o introdutor desse campo de expressão artística no país e quem mais
lhe deu notoriedade e legitimidade.


Várias gerações de artistas deram continuidade à linhagem aberta por Palatnik e
Cordeiro, a partir principalmente da década de 80. Entre os nomes que se
notabilizaram nesse período, podemos citar, em primeiro lugar, Mário Ramiro, um
artista inquieto que começa produzindo intervenções na paisagem urbana, junto do
grupo 3 NÓS 3 (com Hudinilson Jr. e Rafael França), segue introduzindo a
fotocopiadora nos trabalhos artísticos (novamente junto de Hudinilson Jr.), descobre
as imensas possibilidades abertas pelas tecnologias de telecomunicação (vide bloco
Arte/Comunicação) e, finalmente, passa a aplicar em sua arte conceitos assimilados
diretamente da física, tais como a levitação de objetos por magnetismo compensado;
os campos de calor gerados ao redor dos objetos, que lhe permitiam produzir
"esculturas térmicas", impossíveis de se ver, mas fáceis de sentir por meio da
sensibilidade do corpo; e a fotografia Schlieren, que capta as ondas de calor ao
redor dos corpos quentes.


Por sua vez, José Wagner Garcia, depois de estagiar no Center for Advanced Visual
Studies, CAVS, do Massachusetts Institute of Technology, MIT, trouxe ao Brasil as
idéias relacionadas com a sky art, uma corrente artística que busca elaborar obras
efêmeras no céu, com projeções de raios laser, bombardeamento de nuvens com pó


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químico colorido ou iridescente, arco-íris artificiais, ou ainda sinais eletromagnéticos
codificados e enviados para as estrelas. A síntese do trabalho de Garcia está na
trilogia Sky: Life, Body and Mind (1988).


Eduardo Kac, um pioneiro na aplicação artística de um amplo leque de novas
tecnologias (holografia, computação gráfica, net art), dedicou-se intensamente, na
virada dos anos 80/90, à pesquisa e aplicação prática da robótica, em colaboração
com o projetista de hardware norte-americano Ed Bennett (vide o bloco Arte na
Rede). Na década de 90, o grupo que faz aplicações artísticas de conceitos
científicos cresceu bastante, com a adesão de uma nova geração de criadores, em
que se pode incluir artistas como Anna Barros, Gilbertto Prado, Renato Cohen,
Milton Sogabe, Marcelo Dantas e grupos como *.*, SCIArts e Corpos Informáticos.


Numa perspectiva um pouco diferente, mais dirigida à ironia ou à paródia, deve-se
citar ainda a contribuição insólita de dois franco-atiradores. O primeiro é Guto Lacaz,
mais intimamente conhecido como o "Professor Pardal" das artes plásticas, por
dedicar-se à invenção de máquinas inúteis ou estúpidas, aparelhos ou dispositivos
paradoxais e auto-destrutivos, além de toda sorte de engenharia primitiva e
quixotesca, cuja finalidade última é a crítica da religião da produtividade e da
eficiência, que embasa a atual civilização tecnológica. O segundo é Otavio Donasci,
uma espécie de bricoleur tupiniquim, que criou um dos híbridos de maior sucesso no
terreno das poéticas tecnológicas: a videocriatura, um monitor de TV colocado, por
meio de armações de ferro, em cima de um ator escondido sob mantos pretos. Cada
tela de monitor, ligada por cabos a um gravador de vídeo (alguns protótipos utilizam
a transmissão sem fio), nos mostra a imagem de um rosto recitando monólogos ou
dialogando ao vivo com o público ou com outras videocriaturas. O resultado é uma
espécie de Mr. Hyde ou monstro de Frankenstein, metade gente e metade vídeo,
que circula pela cena arrastando seus cabos e atormentando os espectadores. Tudo
muito low tech, feito com equipamento doméstico de vídeo e recursos artesanais,
improvisado à maneira brasileira, com os conhecimentos de eletrônica que Donasci
foi adquirindo na prática.




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Uma derivação muito particular da síntese entre arte e ciência é o recente interesse
dos artistas por questões de natureza biológica. Já houve um período em que todos
nós proclamamos o advento de uma "revolução eletrônica", uma época em que os
artistas, cientistas e pensadores em sintonia com o seu tempo acreditaram que os
computadores e as redes telemáticas constituiriam certamente o próximo ambiente
das novas formas culturais, ou os motivos mais prementes para uma mudança
radical dos próprios conceitos de arte e cultura. Hoje, porém, quando tudo é, num
certo sentido, "eletrônico", quando escritores, pintores, compositores e fotógrafos se
sentam diante de um computador para criar seus trabalhos, e mais freqüentemente
para criá-los dentro de um enfoque tradicional, talvez tenha chegado a hora de
perguntar se expressões como "cultura digital" e "arte eletrônica" significam ainda
alguma coisa distintiva ou designam um específico campo de acontecimentos.


Nos últimos anos, artistas estrangeiros como Orlan e Stelarc se dedicaram à
discussão cultural e política da possibilidade de ultrapassar o humano por meio de
radicais intervenções cirúrgicas, de interfaces entre a carne e a eletrônica, ou ainda
de próteses robóticas para complementar ou expandir as potencialidades do corpo
biológico. Mais que apenas antecipar profundas mudanças em nossa percepção, em
nossa concepção de mundo e na reorganização de nossos sistemas sociopolíticos,
esses pioneiros anteciparam transformações fundamentais em nossa própria
espécie. Essas transformações poderão inclusive alterar nosso código genético e
reorientar o processo darwiniano de evolução.


Hoje, uma gama cada vez maior de artistas está reorientando seu trabalho na
direção de um novo paradigma dentro desse rótulo impreciso das "artes eletrônicas".
Entre eles, na ponta desse movimento recentíssimo, estão três artistas brasileiros:
Eduardo Kac, Diana Domingues e José Wagner Garcia. Esses criadores, que já
foram pioneiros na aplicação artística de um largo espectro de novas tecnologias,
estão explorando agora as novas dimensões de criatividade abertas pela nova
biologia. Na tentativa de redirecionar a discussão e a prática da arte, eles estão
focalizando suas obras mais recentes na direção de uma arte que incorpora
conquistas recentes da biologia, focalizando questões relacionadas com a vida
artificial, a ecologia da biotecnosfera, entre outras tantas coisas.


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Um importante marco simbólico dessa tendência aconteceu no dia 11 de novembro
de 1997, na Casa das Rosas, em São Paulo. Nesse dia, Eduardo Kac implantou no
interior de seu próprio tornozelo um microchip contendo um número de identificação
de nove caracteres e o registrou num banco de dados norte-americano, utilizando a
Internet como meio. O microchip é, na verdade, um transponder utilizado na
identificação animal em substituição à antiga marcação com ferro quente. Como tal,
ele contém um capacitor e uma bobina, todos lacrados hermeticamente em vidro
biocompatível, para evitar a rejeição do organismo. O número memorizado no chip
pode ser recuperado por meio de um tracker (scanner portátil que gera um sinal de
rádio e energiza o microchip, fazendo-o transmitir de volta o seu número inalterável e
irrepetível). A implantação do chip no tornozelo do artista tem um sentido simbólico
muito preciso, pois era nesse local que os negros foram marcados a ferro, durante o
período da escravidão no Brasil. A intervenção de Kac toca em pontos difíceis e
incômodos da discussão ética, filosófica e científica a respeito do futuro da
humanidade. É possível ler o significado do implante como um alerta sobre formas
de vigilância e controle sobre o ser humano que poderão ser adotadas num futuro
próximo. Mas também se pode ler a experiência de Kac numa outra perspectiva,
como sintoma de uma mutação biológica que deverá acontecer proximamente,
quando memórias digitais forem implantadas em nossos corpos para complementar
ou substituir as nossas próprias memórias. Os demais trabalhos de Kac no campo
da interseção arte/biologia estão comentados no verbete referente ao artista.


Já Diana Domingues tira proveito do fato de viver numa familia de médicos, em
que a discussão biológica é uma constante. A obra mais recente de Domingues está,
tal como a de Kac, voltada inteiramente para a discussão das questões abertas no
novo fronte biológico. NA instalação My Body, My Blood , 1997 (da série TRANS-E),
apresentada originalmente no 8th International Symposium on Electronic Art (Isea
97), em Chicago, temos um ambiente sensorizado que permite aos corpos dos
visitantes dialogar com dispositivos eletrônicos. Imagens projetadas numa tela, sons
de batidas de coração na pista sonora e o movimento de um líquido vermelho
(significando sangue, como uma oferta em rituais xamânicos) são alterados pelas
pessoas e pelas máquinas simultaneamente. O movimento errático dos visitantes é


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capturado pelos sensores infravermelhos e enviado às máquinas. Algoritmos de
redes neurais interpretam os movimentos humanos e modificam os dados
apresentados aos visitantes. Aos poucos, comprendendo o que as máquinas estão,
num certo sentido, "comunicando", os visitantes mudam de posição ou provocam
movimentos deliberados para ver como o computador vai responder. Depois de
algum tempo de mútua "aprendizagem", ambos entram numa situação de simbiose e
comunicação. Todas as demais obras de Domingues incluídas nessa série (TRANS-
E) vão na mesma direção: uso intensivo de imagens médicas (ecografias,
termografias, raios X, ressonância magnética, tomografias computadorizadas),
ruídos de freqüência cardíaca tomados dos próprios visitantes por meio de
microfones hipersensíveis, simulação do funcionamento de órgãos humanos, uma
verdadeira viagem pelo interior das vísceras humanas, onde o visitante passa a ser
parte constitutiva da instalação. Outros trabalhos de Domingues no campo de
interseção arte/biologia estão comentados no verbete referente à artista.


Ultimanente, o trabalho de José Wagner Garcia também tem-se orientado numa
direção vizinha à de Kac e Domingues, na direção da vida artificial, envolvendo não
exatamente o corpo humano, mas a vida na sua acepção mais larga. Light Automata
(1997), por exemplo, é a recriação de uma alga bioluminescente por meio da síntese
holográfica. Os trabalhos de Garcia relacionados com a interseção arte/ciência,
inclusive arte/biologia, estão comentados no verbete do artista.


Depois da generalização dos happenings, das performances e das instalações,
depois de questionar o cubo branco dos museus e saltar para o espaço público,
depois de empregar todas as espécies de máquinas e aparatos tecnológicos, depois
ainda de discutir a tragédia da condição humana e de colocar a nu os
constrangimentos, as segregações, os interditos derivados do sexo, da raça, da
origem geográfica e da condição socioeconômica, depois de ter experimentado tudo
isso, os novos artistas parecem agora reorientar a sua arte para a discussão da
própria condição biológica da espécie.




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Poesia e Novas Tecnologias


Nos países de expressão portuguesa, as primeiras idéias sobre uma poesia em
sintonia com a era das mídias e das novas tecnologias começam a ser esboçadas a
partir de meados dos anos 50, graças à intervenção do grupo brasileiro Noigandres
(Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos), criador da poesia
concreta, e nos anos 60, com o surgimento do grupo português PO.EX, que
abrangia cerca de uma dezena de poetas reunidos ao redor de Melo e Castro.
Dessa época para cá, a idéia de uma poesia de feição radicalmente contemporânea,
capaz de lançar mão dos novos recursos escriturais, não cessa de ganhar adeptos.
Um fato digno de atenção, no que diz respeito a essa poesia, é a sua particular
expansão em nosso país e a vitalidade das experiências que foram aí
desenvolvidas, a ponto de ser praticamente impossível hoje, em qualquer parte do
mundo, conceber uma mostra ou uma antologia dessa nova poesia verbo-áudio-
moto-visual sem que a presença brasileira seja considerada. Se isso pode parecer
normal, atentemos entretanto ao fato de que muitos países, mesmo entre os mais
industrializados e com maior hegemonia da mídia, ainda não despertaram para as
possibilidades de uma poesia da era da televisão e do computador.


O grande desafio agora é dar conta da mutação mais importante que está
acontecendo neste momento e que corresponde à migração do texto do papel para
a tela. Até há pouco tempo, as categorias teóricas invocadas pelos analistas ainda
se ressentiam de uma forte raiz gutenberguiana, ou seja, ainda pressupunham o
poema como um objeto materializado numa página impressa, mesmo que utilizando
fartamente os recursos de grafismo, tipologia e cromatismo dos caracteres,
espacialização do texto e colagem de materiais extraídos de fontes diversas. Mesmo
no plano da fatura poética, recursos tecnológicos como o computador eram
invocados apenas para a geração de textos, mas o destino final do poema era
mesmo a página estática do livro. Agora, no ambiente novo da tela, alguns
procedimentos antes impensáveis como parte do repertório poético passam a ser
incorporados ao poema, como é o caso do movimento da palavra (ou do texto como
um todo) no seu suporte de materialização e da sincronização do texto-imagem com
o texto-som.


O movimento é o elemento retórico mais próprio aos meios cinemáticos e, a rigor, as
primeiras utilizações criativas de textos animados se dão no cinema mudo, quando
os cineastas aprenderam a tirar melhor proveito expressivo dos intertítulos
colocados entre as imagens. No panorama da língua portuguesa, a incorporação do
movimento ao texto poético seguiu um desenvolvimento próprio. Já no âmbito da
poesia concreta, a idéia de um texto-em-movimento ou de um texto cinético foi
cogitada em diversos momentos, mesmo que, na prática, essa poesia ainda
continuasse presa ao suporte fixo do livro. Alguns poemas produzidos no âmbito
dessa escola (como Velocidade, de Ronaldo Azeredo, ou Vai e Vem, de José Lino
Grünnewald) parecem querer saltar do papel, animar-se e ganhar asas no espaço
tridimensional. Quando, em 1995, Ricardo Araújo decidiu animar em computador
alguns poemas de Augusto de Campos (SOS, Poema-Bomba), Haroldo de Campos
(Parafísica), Décio Pignatari (Femme), Arnaldo Antunes (Dentro) e Julio Plaza (Arco-
Íris no Ar Curvo), a tarefa foi grandemente facilitada pelo fato de a animação já estar
praticamente "projetada" nos poemas originais, cabendo ao animador a tarefa mais
ou menos natural de fazer acontecer as possibilidades motoras a que as obras já
apontavam. E no que diz respeito à sincronização do som com a imagem, é preciso
considerar que o grupo Noigandres manteve-se o tempo todo em estreita ligação
com os compositores de vanguarda e também com criadores da área mais avançada
da música popular, e dessa aproximação nasceriam grande número de trabalhos em
parceria, fazendo dialogar a forma visual com a forma sonora da poesia. Faltava,
porém, dar o passo seguinte e partir para uma poesia midiática completa, capaz de
saltar do papel para a tela dos novos meios.


Este salto seria dado inicialmente com a utilização, por alguns poetas, de duas
tecnologias eletrônicas: o gerador de caracteres e o videotexto. O gerador de
caracteres é uma máquina inventada prioritariamente para inserir textos (com
diferentes tipologias, tamanhos e cores) sobre a imagem de vídeo e tem sido
extensivamente utilizada pela televisão para compor os créditos dos programas,
para legendar filmes ou colocar títulos e subtítulos nos trabalhos. Nos anos 80, o


                                          2
poeta Melo e Castro teve a idéia de lançar mão do gerador de caracteres para
produzir poemas animados, pensados especificamente para veiculação na televisão.
Na verdade, já em 1968, Melo e Castro havia realizado um pequeno videopoema de
pouco menos de 3 minutos de duração, denominado Roda Lume, que chegou
mesmo a ser colocado no ar, no ano seguinte, pela Rádio e Televisão Portuguesa,
RTP, num programa de informação literária. Depois, mais exatamente em 1985,
quando a Universidade Aberta de Lisboa adquiriu um dispositivo completo de
geração de caracteres e edição em vídeo, Melo e Castro foi convidado a
desenvolver ali um projeto de videopoesia denominado Signagens, que acabou por
se constituir numa das referências mais importantes da atual poesia que utiliza
recursos tecnológicos. Nos anos 90, Melo e Castro migra para o Brasil e continua a
desenvolver aqui, só que agora utilizando o computador, os seus projetos do
videopoema e do infopoema.


Paralelamente, estava sendo implantado experimentalmente em São Paulo o
sistema de videotexto (uma mistura de telefone e microcomputador, que foi uma
espécie de antecessor da telemática e da Internet), para o qual um grupo de poetas
e artistas foi convidado a propor trabalhos especificamente concebidos. A primeira
mostra de trabalhos produzidos para esse meio (organizada por Julio Plaza) foi
disponibilizada na rede paulistana de videotexto já em 1982, no mesmo ano de
implantação do sistema. Embora o videotexto permitisse também trabalhar com
imagens, a baixa definição de sua tela o tornava um meio mais adequado à redação
de textos (como, aliás, o seu próprio nome o sugere), mas esse texto podia passar
por qualquer espécie de transformação cromática ou cinética e, nesse sentido, ele
ganhava propriedades até então exclusivas da imagem videográfica. E mais: por se
tratar de um sistema de comunicação bidirecional, o videotexto permitia também
incorporar ao poema as respostas do leitor e, nesse sentido, explorar os primeiros
rascunhos de uma escrita interativa, que depois seria levada às últimas
conseqüências pelo hipertexto e pelo hiperpoema.


Atualmente, o computador e o vídeo (em geral integrados) constituem os dispositivos
mais solicitados pelos novos poetas para gerar textos animados. Existem
basicamente duas maneiras de enfocar o problema. Numa primeira, o computador é


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encarado como uma ferramenta de trabalho, com a qual se pode gerar textos de
qualquer configuração visual, tanto no plano bidimensional como no espaço
tridimensional, e em seguida animá-los com qualquer sorte de coreografia que a
imaginação for capaz de conceber. A animação é gerada pelo computador quadro a
quadro e, em seguida, gravada em vídeo. Este último é, portanto, o dispositivo final
de exibição. Esse é o approach escolhido por Arnaldo Antunes (autor da coletânea
de trinta videopoemas denominada Nome, de 1993, a única lançada comercialmente
no mercado brasileiro de livros e vídeos), por Melo e Castro em sua produção mais
recente (Infografitos, Sonhos de Geometria, 1993) e também a opção do primeiro
experimento brasileiro com videopoesia: Pulsar (1984), poema de Augusto de
Campos, animado em computador por Wagner Garcia e Mário Ramiro, com música
de Caetano Veloso. A outra alternativa é utilizar como dispositivo final de exibição o
próprio computador com que se construiu o poema, de modo a poder lançar mão de
recursos que só este possibilita, como a estrutura em aberto do poema, a navegação
não-linear ao longo do texto e a participação interativa do leitor. Neste caso, o
poema deve ser distribuído diretamente através de meios digitais, como disquetes e
CD-ROMs, ou então deve ser acessado eletronicamente, pelas redes telemáticas
(Internet, por exemplo). Walter Silveira, Lenora de Barros e Tadeu Knudsen fizeram
algumas experiências interessantes nesse sentido, publicadas e distribuídas
comercialmente na antologia em CD-ROM Arte Cidade: a Cidade e Seus Fluxos,
mas a exploração mais sistemática e mais avançada dessa possibilidade está sendo
conduzida por Eduardo Kac, brasileiro que vive atualmente em Chicago (Estados
Unidos) e que concebe os seus poemas alternativamente em português e em inglês,
ou então misturando as duas línguas.


A primeira modalidade de movimento com que se pode trabalhar nos meios
eletrônicos e digitais é aquela determinada pela edição. Por estar inserido num meio
de natureza cinemática, o texto aparece ao leitor num fluxo temporal: cada uma de
suas partes começa, se desenvolve e acaba em tempos determinados pela edição.
Em geral, no meio eletrônico não se expõe o texto inteiro ao leitor de uma só vez: ele
pode ser apresentado aos poucos, frase por frase, palavra por palavra, ou mesmo
letra por letra. A tela não é um lugar confortável para ler grandes volumes de texto,
razão porque, até por adequação ao meio, a edição acaba sendo a melhor maneira


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de construir um enunciado, parte por parte, ao longo de um certo intervalo temporal.
Os cortes determinam, portanto, a duração do texto na tela e o ritmo imposto pela
sucessão dos vários planos textuais. A duração tem relação direta com a legibilidade
do texto: ela pode ser tão curta que impossibilite a própria leitura, ou tão lenta a
ponto de o texto continuar a se impor ao leitor mesmo depois de terminada a leitura.
Insect.Desperto, de Eduardo Kac, e Não Tem Que, de Arnaldo Antunes, são
exemplos de poemas em que a legibilidade é propositalmente dificultada pela
velocidade com que o texto é apresentado na tela. Neste caso, a leitura efetuada
pelo leitor é necessariamente fragmentária e evocativa, decorrendo das palavras que
este último consiga captar aleatoriamente e dos sentidos que for capaz de construir
com elas. Se o texto permanece na tela um tempo maior que o necessário para a
leitura, duas razões podem ser invocadas para explicá-lo: ou se quer dar ênfase aos
aspectos mais propriamente icônicos (textura, forma, cor) daquilo que se oferece na
tela, bem como também aos recursos musicais ou vocais que estão sendo
trabalhados na trilha sonora, ou então se espera do leitor alguma reação física para
continuar, caso típico dos hiperpoemas de Eduardo Kac (Secret, Storms, etc.), que
só evoluem à medida que o leitor interage com eles, efetuando suas escolhas de
letras, de palavras ou de direção para a qual o texto deve desdobrar-se.


Já o ritmo tem mais afinidades com a estrutura musical do que com a estrutura
métrica do modelo poético convencional e, em muitos casos, ele é realmente
determinado pela música com que o poema é em geral sincronizado. Ele pode ser
um ritmo pulsante, determinado por tambores primitivos, que fazem aparecer e
desaparecer sincronizadamente as palavras na tela (como no Objectotem, 1985, de
Melo e Castro), ou um ritmo mais irregular e frenético, como no Se Não Se, de
Arnaldo Antunes, em que as letras de vários abecedários se revezam velozmente
num painel, mas se congelam bruscamente quando formam uma palavra que
coincide com aquela cantada na trilha sonora. Os ritmos também são grandemente
incrementados pelo estilo dos cortes: em geral, ritmos mais rápidos pedem corte
seco ou passagens através de cortinas rápidas, enquanto ritmos mais lentos são
melhor obtidos por meio de fusões, superposições ou passagens através de
escurecimento (fade out) e clareamento (fade in) da tela.




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Outra forma de o texto ser apresentado ao leitor é por seu rolamento na tela (no
sentido vertical ou horizontal), recurso muito usado pela televisão para a
apresentação dos créditos. Pensemos no caso de Cidade, poema concreto de
Augusto de Campos, que consiste numa única palavra quilométrica, constituída pela
imbricação dos radicais de várias palavras terminadas em -cidade. Esse poema, tão
difícil de se adequar à forma impressa (uma vez que, na concepção original do autor,
o seu único "verso" não pode ser quebrado em linhas sucessivas, mas deve ser
escrito numa única e longuíssima linha), encontra na tela o seu meio de
apresentação mais adequado, graças ao processo de rolamento horizontal,
conforme se pode verificar nas versões em filme (de Tata Amaral), em vídeo (de
Walter Silveira) e em painel eletrônico (do próprio Augusto de Campos). Pessoa, de
Arnaldo Antunes, parece ser um dos melhores exemplos de uso criativo do
rolamento horizontal: o poema, que trata do fenecimento de todas as coisas e de
todas as idéias, passa correndo na tela, numa velocidade que quase ultrapassa o
limite da legibilidade, ao mesmo tempo que vai sendo expandido por uma zoom-in,
enquanto, na direção contrária, corre um fundo manuscrito intrincado e ilegível,
evocador de todo o ruído verborrágico do homem.


Ainda no que diz respeito ao movimento do texto, é preciso considerar a imensa
gama de possibilidades de metamorfose que a(s) palavra(s) pode(m) sofrer na tela.
Uma vez que, num meio cinemático, as formas não precisam ser necessariamente
fixas, mas podem estar em permanente mutação ao longo de um intervalo de tempo,
o processo de transformação das palavras constitui um recurso precioso para o
poeta que lida com novos meios. No vídeo ou no computador, as palavras podem
sofrer   transformações   na   sua   estrutura   interna   (forma,   cor,   textura)   e
podem transformar-se em outras palavras ou em imagens puras, sem referência
verbal. Processos de metamorfose podem ser obtidos com simples fusão de dois
textos diferentes, ou projetando quadro a quadro uma animação, ou ainda lançando
mão em computador de algoritmos especificamente concebidos para esse fim, como
por exemplo o Morph, utilizado por Arnaldo Antunes em vários videopoemas de sua
antologia Nome.




                                         6
Entre as várias possibilidades de transformar uma palavra ou texto, as que têm
rendido os resultados mais surpreendentes nos novos processos poéticos são
aquelas em que a linguagem transita entre o sentido e o não-sentido, ou entre o
verbal e o icônico. No primeiro caso, palavras e frases bem definidas quanto ao
aspecto material ou quanto ao seu significado verbal podem se dissolver ou se
desmanchar no espaço, até se converterem em ruído puro. Em Ideovídeo (1988), de
Melo e Castro, por exemplo, as palavras que são dadas a ler na tela estão sendo
continuamente encobertas por novas camadas textuais e corroídas por anamorfoses
ou quaisquer outros processos de dissolução. As palavras surgem, se desintegram e
ressurgem novamente modificadas, num movimento que vai da pura transparência
verbal à absoluta opacidade significante. No infopoema Accident, de Eduardo Kac,
os "versos" estão sendo continuamente "sugados" por uma espécie de atrator
estranho ou buraco negro, que desintegra sua coerência verbal. Porém, no caos
gerado pelo desmembramento do texto, novas palavras podem surgir a partir do
aglutinamento aleatório das partes despregadas de outras palavras e novos sentidos
podem emergir da turbulência verbal.


A metamorfose talvez mais emblemática das novas formas poéticas é aquela que
faz a transição da palavra à imagem e vice-versa. Na verdade, um dos desafios
centrais de toda a poesia contemporânea tem sido colocar em operação uma
ambigüidade básica da palavra escrita, que é ter uma função icônica, ou seja, ser
imagem antes de mais nada, dotada de forma, textura, dimensão e cor, mas ao
mesmo tempo ter também uma função simbólica, determinada pelos seus
significados verbais. O poeta, aqui quase confundido com o artista plástico e o
cineasta, trabalha nessa zona de indiferenciação ou de reversibilidade entre o
simbólico da palavra e o icônico da imagem e pode tirar partido da transição entre
uma condição e outra. Em certos trabalhos de Eduardo Kac (por exemplo, a série
Erratum, disponível na Web), é quase impossível distinguir uma palavra da imagem
que lhe serve de "fundo", porque traços da palavra estão no fundo e traços do fundo
estão na palavra. Igualmente, em Ar, de Arnaldo Antunes, as palavras que
constituem o videopoema são recortadas da própria imagem de fundo e guardam
portanto traços da imagem de onde foram arrancadas. Quando se aproximam do
primeiro plano da tela, elas perdem sua legibilidade e as imagens que as constituem


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  • 1. Arte e Tecnologia no Brasil: Uma Introdução (1950-2000) Esta é uma primeira tentativa de mapear a produção artística brasileira no campo de intersecção entre arte, ciência e tecnologia, desde os seus primórdios nos anos 1950 até o final do século XX (para efeito de precisão no recorte temporal, fixou-se como limite a produção brasileira tornada pública até o dia 31 de dezembro de 2000). Esse campo bastante amplo abrange a produção genericamente enquadrada como arte eletrônica, termo mais difundido mas bastante impreciso, uma vez que nem tudo o que se inclui nessa área foi produzido com recursos eletrônicos e, por outro lado, nem toda arte produzida com recursos eletrônicos pode ser incluída na categoria arte e tecnologia (um romance, por exemplo, não necessariamente está circunscrito a esse âmbito criativo apenas porque foi escrito num computador). Evidentemente, como toda pesquisa em fase inicial, ela deve conter imprecisões e lacunas, que serão corrigidas com o tempo, com a discussão especializada e com o acréscimo da colaboração de outros pesquisadores. Para efeito de organização dos dados acumulados, distribuímos a produção desse período não exatamente em escolas ou tendências, visto que essas divisões são ainda pouco precisas, mas em torno de conceitos. Esses conceitos procuram dar conta das grandes linhas de força das poéticas tecnológicas no Brasil, em torno das quais se aglutinaram os artistas. Eles não têm validade universal (em outros países, os conceitos devem ser diferentes), mas expressam, no nosso modo de ver, o modo como se manifestou a relação entre arte e tecnologia no Brasil em seus primeiros 50 anos. Esses conceitos são: 1) Arte-comunicação 2) Arte em Meios Digitais 3) Arte Holográfica 4) Arte na Rede 5) Hibridismos/intermídias 6) Interação arte-ciência 7) Música Eletroacústica 8) Poesia e Novas Tecnologias 9) Vídeo-arte e vídeo-instalação Se é verdade que toda arte é feita com os meios de seu tempo, as artes chamadas eletrônicas representam a expressão mais avançada da criação artística atual e aquela que melhor exprime sensibilidades e saberes do homem desta virada de milênio. Bach compôs fugas para cravo, Stockhausen texturas sonoras para sintetizadores eletrônicos. O desafio
  • 2. enfrentado por ambos os compositores foi exatamente o mesmo: extrair o máximo das possibilidades musicais de dois instrumentos recém-inventados e que davam forma à sensibilidade acústica de suas respectivas épocas. Edgar Degas, que nasceu quase simultaneamente com a invenção da fotografia, utilizou intensivamente essa tecnologia, não apenas para estudar o comportamento da luz, que ele traduzia em técnica impressionista, mas também em suas esculturas, para congelar corpos em movimento com o mesmo frescor com que o fazia o rapidíssimo obturador da câmera. A série fundante de Marcel Duchamp Nu descendant l'escalier é uma aplicação direta da cronofotografia de Étienne Jules Marey (precursora da cinematografia), com que o artista travou contato através de seu irmão Raymond, cronofotógrafo do Hospital da Salpêtrière, em Paris. Por que então o artista de nosso tempo recusaria o vídeo, o computador, a Internet, os programas de modelação, processamento e edição de imagem, a engenharia genética? Difícil saber exatamente quando começam as artes eletrônicas ou tecnológicas. Mesmo antes do videotape estar disponível para a intervenção artística, alguns criadores como o alemão Wolf Vostell e o coreano Nam June Paik já produziam arte alterando os circuitos eletrônicos de aparelhos de televisão ou distorcendo suas imagens com a ajuda de ímãs poderosos. A vídeo-arte surge oficialmente no começo dos anos 60, com a disponibilização comercial do Portapack (gravador portatil de videotape) e graças sobretudo ao gênio indomesticável de Paik. Mas se a televisão puder ser incluída no âmbito das artes eletrônicas, teremos de acrescentar à galeria de seus pioneiros nomes como o do húngaro- americano Ernie Kovacs e do francês Jean-Christophe Averty, que introduziram na televisão a autoria e a criação artística, além de terem sido os primeiros a explorar largamente a linguagem do novo meio, razão porque alguns autores os consideram os verdadeiros criadores da vídeo-arte, antes mesmo de Vostel e Paik. Mas a utilização de computadores na arte é mais antiga. Recursos informáticos para a produção, manipulação e exibição de imagens já estavam disponíveis na década de 50, graças ao surgimento de monitores capazes de exibir gráficos e de plotters para imprimi-los. Embora esses recursos tenham sido implementados prioritariamente para a visualização matemática e científica, muito cedo alguns artistas souberam tirar proveito deles para a exploração de uma nova visualidade dentro das artes plásticas. Os primeiros trabalhos artísticos produzidos com o auxílio de computadores utilizavam ainda máquinas analógicas para gerar as imagens, osciloscópios de raios catódicos para exibi-las e películas cinematográficas para registrá-las. Assim é que, em 1952, Ben F. Laposky, nos EUA, e Herbert W. Franke, na Áustria, conceberam respectivamente suas Abstrações Eletrônicas e seus Oscilogramas, consideradas as primeiras obras da computer art. Mas foi a partir de 1962, com o desenvolvimento, por Ivan Sutherland, de um completo sistema interativo de desenho por computador, o Sketchpad, que começaram a aparecer os primeiros trabalhos 2
  • 3. artísticos produzidos inteiramente em computadores digitais. Os pioneiros dessa segunda fase foram os alemães Georg Nees e Frieder Nake, os norte-americanos John Whitney , Michael Noll e K. C. Knowlton e o húngaro Bela Julesz. É preciso considerar ainda que, embora a expressão arte eletrônica seja mais genericamente utilizada para referir-se a trabalhos realizados no âmbito das artes visuais, num sentido mais amplo ela poderia abarcar também a música, que foi a primeira arte a explorar recursos eletrônicos. A musique concrète, que utilizava técnicas de edição eletrônica, foi criada na França em 1948, por Pierre Schaeffer, enquanto a música eletrônica surgiu na Alemanha em 1950, com Karlheinz Stockhausen. Os músicos também foram os primeiros a utilizar computadores: o grego Iannis Xenakis, por exemplo, já os empregava desde o início dos anos 1950 para gerar valores musicais aleatórios, criando assim a chamada música estocástica. No Brasil, as artes eletrônicas surgem bastante pioneiramente a partir dos anos 1950, com as experiências ópticas de Abraham Palatinik e, já nos anos 1960, as imagens geradas em computador por Waldemar Cordeiro. Este último, particularmente, foi uma figura de projeção internacional no âmbito da computer art, além de ter dado uma dimensão crítica às obras computadorizadas, com o acréscimo às imagens do comentário social. Desse tempo para cá, o acervo brasileiro de obras eletrônicas não cessa de crescer. A música eletroacústica surge já anos 1950, com as primeiras experiências de Reginaldo Carvalho. A vídeo-arte aparece no começo dos anos 1970. A explosão ocorre nos anos 1980, com o aparecimento das obras de telecomunicação (que utilizavam fax, vídeo-texto, slow scan TV e, mais tarde, Internet), o florescimento da holografia, a generalização do uso de computadores, os trabalhos nas áreas de multimídia, visualização matemática (fractais, por exemplo), web art, instalações interativas, além das experiências com sky art (Wagner Garcia), telerobótica (Eduardo Kac) e, finalmente, no final dos anos 1990, as primeiras obras de fusão da eletrônica com a biologia (próteses corporais, vida artificial, arte transgênica). Naturalmente, as técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o artista para conceber, construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem mediações inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderia substituir por quaisquer outras. Eles estão carregados de conceitos, eles têm uma história, eles derivam de condições produtivas bem determinadas. As artes eletrônicas, como qualquer arte fortemente determinada pela mediação técnica, colocam o artista diante do desafio permanente de se contrapor ao determinismo tecnológico, de recusar o projeto industrial já embutido nas máquinas e aparelhos, evitando assim que sua obra resulte simplesmente num endosso dos objetivos de produtividade da sociedade tecnológica. Longe de se deixar escravizar pelas normas de trabalho, pelos modos estandardizados de operar e de se 3
  • 4. relacionar com as máquinas, longe ainda de se deixar seduzir pela festa de efeitos e clichês que atualmente dominam o entretenimento de massa, o artista digno desse nome busca se reapropriar das tecnologias eletrônicas numa perspectiva inovadora, fazendo-as trabalhar em benefício de suas idéias estéticas. Hoje, cada vez mais, os artistas lançam mão do computador para construir suas imagens, suas músicas, seus textos, seus ambientes; o vídeo é agora uma presença quase inevitável em qualquer instalação; a incorporação interativa das respostas do público se transformou numa constante em qualquer proposta artística que se pretenda atualizada e em sintonia com o estágio atual da cultura. De repente, nos damos conta de uma multiplicação vertiginosa ao nosso redor de trabalhos realizados com pesada mediação tecnológica. Mais do que nunca, chegou a hora de traçar uma diferença nítida entre o que é, de um lado, a mera produção industrial de desenhos agradáveis para as mídias de massa e, de outro, a busca de uma ética e uma estética para a era tecnológica. Arlindo Machado 4
  • 5. Arte em Meios Digitais A utilização de computadores para a produção, manipulação e exibição de imagens apenas se tornou possível a partir da década de 50, graças ao surgimento de monitores capazes de exibir gráficos e de plotters para imprimi-los. Embora esses recursos tenham sido implementados prioritariamente para a visualização matemática e científica, muito cedo alguns artistas souberam tirar proveito deles para a exploração de uma nova visualidade dentro das artes plásticas. Os primeiros trabalhos artísticos produzidos com o auxílio de computadores utilizavam ainda máquinas analógicas para gerar as imagens, osciloscópios de raios catódicos para exibi-las e películas cinematográficas para registrá-las. Assim é que, em 1952, Ben F. Laposky, nos Estados Unidos, e Herbert W. Franke, na Áustria, conceberam, respectivamente, suas Abstrações Eletrônicas e seus Oscilogramas, considerados as primeiras imagens da computer art. Mas foi a partir de 1962, com o desenvolvimento, por Ivan Sutherland, de um completo sistema interativo de desenho por computador, o Sketchpad, que começaram a aparecer os primeiros trabalhos artísticos produzidos inteiramente com computadores digitais. Os pioneiros dessa segunda fase foram os alemães Georg Nees e Frieder Nake, os norte- americanos Michael Noll e K. C. Knowlton e o húngaro Bela Julesz, este último também o inventor das imagens estereoscópicas produzidas por meio de padrões de pontos randômicos. Embora grande parte dos pioneiros da computer art, nos anos 60 e 70, tenha sido formada por europeus e norte-americanos, pela razão óbvia de que viviam em contextos científicos em que a pesquisa com informática estava mais desenvolvida, um brasileiro ocupou um lugar importante entre os inventores desse campo de criação artística. Trata-se de Waldemar Cordeiro, artista que, ao incorporar as imagens digitais ao seu trabalho, já era reconhecido nacional e internacionalmente sobretudo por sua produção no campo da arte concreta. Trabalhando em conjunto com o físico italiano Giorgio Moscati, Cordeiro foi importante também por ter dado uma dimensão crítica à computer art, acrescentando às imagens o comentário social.
  • 6. De um modo geral, entende-se por computer art um conjunto bastante diversificado de procedimentos, atitudes e estratégias da arte e do artista com relação ao computador. Num primeiro sentido, o computador pode ser encarado como uma ferramenta para a geração e o tratamento das imagens. Uma vez produzidas, modeladas (no caso das imagens tridimensionais) e eventualmente animadas e sonorizadas, as imagens são transferidas para outro suporte (papel, tela, filme, vídeo) e exibidas nas formas tradicionais em galerias de arte ou salas de projeção. Na verdade, são raros os casos em que o computador é utilizado estritamente como ferramenta, como se fosse um pincel ou uma paleta mais sofisticados. Muito freqüentemente, o trabalho do artista acaba sendo contaminado por alguns processos formadores próprios da informática, de modo que o resultado final não poderia jamais ser obtido de outra forma. Entre os artistas brasileiros que poderiam ser incluídos nessa classificação, podemos citar Irene Faiguenboim, André Vallias, Julio Plaza, Walter Silveira, Lenora de Barros, Arnaldo Antunes e alguns trabalhos de Carlos Fadon Vicente. Numa segunda acepção, é o computador que cria a obra, a partir de um programa de criação previamente concebido pelo artista. Nesse caso, é possível que a forma final de exibição seja também o circuito tradicional da arte, mas a diferença está no fato de as decisões sobre o que fazer e como fazer serem tomadas pelo próprio computador. O artista, nesse caso, apenas prevê um conjunto de possibilidades de comportamento do computador, em geral utilizando conceitos de inteligência artificial. Como não poderia deixar de ser, a maioria dos realizadores deste grupo pertence a uma classe muito especial de artistas, aquela dotada também de competência científica e tecnológica, acumulando talentos ao mesmo tempo nas artes plásticas e nas ciências exatas. Emanuel Dimas de Melo Pimenta, Tânia Fraga e Suzete Venturelli poderiam ser incluídos nessa classificação. Numa terceira acepção, o computador, ou mais exatamente o seu monitor, é o próprio suporte de exibição do trabalho. A presença física da máquina no espaço de exibição é requerida porque esse tipo de trabalho utiliza os recursos interativos do computador e incorpora criativamente a resposta do espectador. Já em 1982, Nelson 2
  • 7. Max criou Carla's Island, uma paisagem tridimensional gerada em tempo real pelo computador cujos parâmetros podiam ser alterados pela audiência durante a exibição. Na década de 90, Jeffrey Shaw construiu várias instalações interativas que podiam ser navegadas em tempo real pelo visitante. Em The Legible City (1990), por exemplo, o visitante, sentado numa bicicleta dotada de sensores, podia viajar por uma "cidade" construída por meio de uma arquitetura literária tridimensional e, ao mesmo tempo, ler as frases que se formavam ao longo do deslocamento. A evolução inevitável desse tipo de trabalho seria a incorporação de recursos de realidade virtual aos ambientes instalativos (por exemplo, nos trabalhos de Scott Fischer) e a utilização das redes telemáticas (Internet) como estrutura para a concepção de obras potenciais (que possibilitam um grande número de ocorrências diferenciadas) e capazes de incorporar a participação do espectador. Nessa última categoria, pode-se citar o trabalho de Eduardo Kac, criador dos telerrobôs ou robôs que podem ser dirigidos remotamente, de qualquer parte do mundo, pela World Wide Web. Além de Kac, pode-se também citar, no Brasil, os trabalhos de André Vallias, Emanuel Dimas de Melo Pimenta, Tânia Fraga, Suzete Venturelli e alguns trabalhos de Carlos Fadon Vicente. Embora a expressão computer art seja mais genericamente utilizada para referir-se a trabalhos realizados no âmbito das artes visuais, num sentido mais amplo ela poderia abarcar também a computer music e a literatura assistida por computador. No primeiro caso, seria inevitável mencionar o uso de computadores pelo grego Iannis Xenakis para gerar valores musicais aleatórios (a chamada música estocástica) e a incorporação do computador à orquestra sinfônica, pelo francês Pierre Boulez, em Répons (1980), além da contribuição de compositores tão diversos, tais como Vladimir Ussachevsky, os irmãos Colin e David Matthews e Tod Machover, este último inventor de instrumentos computadorizados, conhecidos como hiperinstrumentos (vide bloco Música Eletroacústica). Na área da literatura, o alemão Max Bense, o italiano Nanni Balestrine, o português Pedro Barbosa e o grupo francês Oulipo (Ouvroir de Littérature Potencielle) obtiveram os melhores resultados na geração automática de textos artificiais, graças ao processamento pelo computador das regras fonêmicas, morfológicas, semânticas e sintáticas de uma língua (vide bloco Poesia e Novas Tecnologias). 3
  • 8. Entre os eventos relacionados com a segunda edição do megaevento Arte Cidade, em São Paulo (1994), destaca-se a publicação de um CD-ROM com experiências criativas no campo da multimídia. Não se trata certamente do primeiro, mas sem dúvida esse CD-ROM está entre os primeiros no plano mundial a voltar-se exclusivamente para questões relativas à criação artística com multimídia. Para entender por que os computadores, de repente, começaram a ser cada vez mais requisitados na produção de arte precisamos, em primeiro lugar, entender o modo de operação dos sistemas digitais. As memórias de acesso aleatório dos computadores bem como os dispositivos de armazenamento não-lineares (disquetes, discos rígidos, CD-ROMs, CD-Is, laserdiscs), possibilitam uma recuperação interativa dos dados armazenados, ou seja, eles permitem que o processo de leitura seja cumprido como um percurso, definido pelo leitor-operador, ao longo de um universo textual em que todos os elementos são dados de forma simultânea. Com os mais recentes formatos de armazenamento das informações computacionais, o receptor pode entrar no dispositivo audiovisual a partir de qualquer ponto, seguir para qualquer direção e retornar a qualquer "endereço" já percorrido. A disponibilidade instantânea de todas as possibilidades articulatórias do texto audiovisual favorece uma arte da combinatória, uma arte potencial, em que, ao invés de se ter uma "obra" acabada, se tem apenas seus elementos e suas leis de permutação definidas por um algoritmo combinatório. A "obra" agora se realiza exclusivamente no ato de leitura e em cada um desses atos ela assume uma forma diferente, embora, no limite, inscrita no potencial dado pelo algoritmo. Cada leitura é, num certo sentido, a primeira e a última. O texto audiovisual já não é mais a marca de um sujeito (visto que o sujeito que o realiza é um outro: o leitor-usuário), mas um campo em que o sujeito enunciador apenas fornece o programa e o sujeito atualizador realiza parte de suas possibilidades. No CD-ROM Arte Cidade, temos várias experiências nessa direção. Ana Muylaert, por exemplo, realiza uma pequena peça de ficção em que o usuário determina, até certo ponto, as conexões que vão definir a trama. Já Artur Matuck coloca o usuário 4
  • 9. como personagem principal de uma viagem cujos incidentes dependem de certa forma das ações desse personagem no interior da trama. Em alguns casos, o trabalho é concebido como um campo de possibilidades, no qual o espectador- interactor deve fazer suas escolhas para visualizar algum tipo de resultado. Artur Lescher fornece material para que o usuário construa espirais rotativas à maneira de Marcel Duchamp, e é ele - usuário - quem determina o número de espirais, o diâmetro e a velocidade de rotação. Regina Silveira, por sua vez, deixa que o receptor decida o ponto de vista sob o qual serão visualizadas suas metamorfoses de objetos domésticos. Onde termina o trabalho do autor e onde começa o do receptor? Uma das vias mais férteis de experimentação apontadas no CD-ROM é a da poesia audiovisual. Trabalhos como os de Walter Silveira, Tadeu Knudsen, Lenora de Barros e Guto Lacaz deixam patente a influência marcante da poesia concreta sobre a produção de toda uma geração de artistas e poetas brasileiros contemporâneos. Essa geração procura explorar textos iconizados que sejam adequados não apenas aos novos suportes possibilitados pela eletrônica e pela informática, mas também adequados à nova sensibilidade dos homens e mulheres do fim de século XX. Ao desgarrar-se do papel, a poesia ganha um impacto novo e se faz moeda corrente no fluxo de energias da paisagem urbana. No CD-ROM, pode-se encontrar, por exemplo, um poema-jogo de Walter Silveira, que é uma espécie de atualização eletrônica do antigo jogo da forca. O poema só se torna legível se você acerta as letras que o compõem. O maior desafio, porém, está na proposta radical de Otavio Donasci. Como se fosse um hacker, Donasci faz desencadear um "vírus" que compromete os trabalhos de todos os outros artistas. Um dos maiores desafios que se apresentam aos artistas que trabalham com imagens digitais é saber explorar a imagem adequada ao tamanho, resolução e características da tela do monitor. Gostaríamos de chamar a atenção para o trabalho exemplar de Carlos Fadon Vicente nesse sentido. Explorando com extremo cuidado a cor-luz do monitor, as possibilidades de combinação de cores na resolução proposta, os contrastes entre fundo e frente, a tensão entre controle e acaso na navegação e a perfeita adequação entre imagem e música, Fadon produz um 5
  • 10. trabalho sofisticado, de muito bom gosto, que deverá servir de farol a futuras gerações de argonautas. Entre os artistas-inventores que se propuseram a enfrentar o desafio das mídias digitais, José Wagner Garcia também aparece como um pioneiro no Brasil. Depois de ter experimentado com o videodisco interativo durante vários anos, o seu primeiro trabalho mais acabado nessa direção foi A Pele da Imagem, inicialmente apresentado na mostra Arte Cidade 2 e depois distribuído como trabalho independente em CD-ROM. Trata-se de uma proposta (a rigor, a primeira formulada no Brasil) de cinema digital interativo, entendido como tal um cinema concebido numa forma combinatória e permutacional, em que as imagens e os sons estão ligados entre si por elos probabilísticos móveis, que podem ser configurados pelos usuários de diferentes maneiras, de modo a compor obras instáveis em quantidades quase infinitas. Com o auxílio de um joystick, mouse ou com as setas de direção do teclado do computador, o espectador-usuário pode navegar dentro do mar de possibilidades que o CD-ROM lhe oferece e construir a sua própria narrativa. 6
  • 11. Arte-Comunicação Uma impressionante antevisão da web art ou net art (que abordamos de modo específico no bloco Arte na Rede) foi experimentada nas duas últimas décadas do século XX, no terreno da chamada arte-comunicação, ou seja, naqueles trabalhos artísticos baseados na transmissão de textos, sons e imagens de um ponto a outro do planeta, por meio de telefone, fax, slow-scan, satélites e televisão. A Internet é um desenvolvimento bastante recente da telemática (ela começou a se desenvolver a partir de 1994), mas os trabalhos com arte-comunicação são bastante anteriores. O primeiro movimento da história da arte a valorizar a comunicação transnacional foi a arte postal, e não poderíamos deixar de citá-la como uma espécie de pré-história da arte-comunicação. Reunindo artistas de diferentes nacionalidades para experimentar novas possibilidades e intercambiar trabalhos numa rede livre e paralela ao mercado oficial das artes, a mail art foi a primeira modalidade de evento a tratar como arte a comunicação em rede e em grande escala. Mas as diferenças que existem entre as primeiras experiências com arte postal e a posterior arte telemática são a intermediação da eletrônica e as conseqüências advindas da adesão a essa tecnologia: alta velocidade de comunicação a distâncias planetárias, procedimentos instantâneos de comunicação, utilização de suportes imateriais, além do surgimento de questões novas para a arte, como a ubiqüidade, o tempo real, a interatividade, a dissolução da autoria, etc. No Brasil, vários artistas trabalharam explorando as possibilidades poéticas das redes de comunicação e aqui vamos destacar apenas as experiências e os eventos principais. Consta que, em 31 de outubro de 1980, foi realizado o primeiro contato via fax entre artistas brasileiros: uma comunicação entre Paulo Bruscky (no Recife) e Roberto Sandoval (em São Paulo). No ano seguinte, a 16ª Bienal Internacional de São Paulo apresenta o seu Núcleo I de produção artística configurada em sistemas de expressão e comunicação que utilizavam novas mídias. Nesse contexto, a arte postal também foi incluída. Na carta-convite assinada por Walter Zanini, curador da
  • 12. Bienal, essa modalidade artística foi definida como "um sistema de arte novo criado para a intercomunicação entre artistas". Nesse período, começa também a experiência do videotexto brasileiro. A idéia de juntar telefone e televisor para formar um novo veículo de informações surgiu em vários países, adaptando-se a diversas tecnologias de transmissão. O Brasil resolveu adotar o sistema francês (minitel) em 1982 e, já na fase inicial, alguns artistas tiveram acesso a essa tecnologia, entre eles Nelson das Neves, que nessa época trabalhava na Companhia Telefônica de São Paulo, Telesp, empresa que implantou o sistema em São Paulo. Em 1982, também em São Paulo, Julio Plaza coordenou e participou do projeto artístico Arte pelo Telefone: videotexto, com Carmela Gross, Lenora de Barros, Leon Ferrari, Mário Ramiro, Omar Khouri, Paulo Leminski, Roberto Sandoval, entre outros. Essa exposição foi contemporânea à primeira exibição em videotexto realizada em Nova York, sob organização de Martim Niesenhold, com apoio da New York University. Em 1983, foi realizada a exposição Arte e Videotexto, no projeto Novos Media da 17ª Bienal Internacional de São Paulo, mais uma vez organizada por Julio Plaza. Essa exposição fazia parte do projeto de mesmo nome que previa vários níveis de participação: edição eletrônica de trabalhos de arte apresentados como tais por seus autores; laboratório de linguagem nos códigos visual e escrito, incluindo narrativas infantis e experiências didáticas; e edição do Bienal-informativo (jornal eletrônico da Bienal) para veiculação de informações pertinentes à exposição e seus arquivos, assim como para o registro dos percursos e roteiros para visitantes. A proposta foi inovadora sob diferentes aspectos, mas especialmente porque aproveitou a estrutura do videotexto, quer dizer, sua penetração por meio de terminais domésticos, via cabo telefônico. Isso fez com que a mostra de videotexto penetrasse inclusive nas casas daqueles que não têm o costume de visitar a Bienal. Essa foi a primeira vez que a Bienal mostrou arte nas residências de São Paulo: arte on-line. Vários foram os artistas participantes, distribuídos entre os oito tópicos: Arte Visual: Ana Aly, Anna Carreta, Leda Catunda, Alex Flemming, Walter Garcia, Carmela Gross, Nelson das Neves, Sérgio Romagnolo, Ana Maria Tavares; Arte Poesia: Lenora de Barros, Samira Chalhub, Omar Khouri, Paulo Leminski, Philadelpho 2
  • 13. Menezes, Paulo Miranda, Alice Ruiz; Arte Narrativa: Maria Inês dos Santos Duarte, Carlos Gardin, Maria Aparecida Junqueira, Maria dos Prazeres Mendes, Maria Rosa Duarte de Oliveira, Maria José Palo, Leon Ferrari, Paulo Garcez, Amador Ribeiro Neto, Lucia Santaella; Arte sobre Arte: Julio Plaza, Regina Silveira; Arte sobre o Meio: Vera Chaves Barcellos, Wagner Garcia, Nina Moraes, Mônica Nador; Interarte: Eduardo Duar, Adriana Freire, Jac Leirner, Rozélia Medeiros, Mário Ramiro; Tradução: Mônica Costa; e Você É Crítico: Julio Plaza. Em Você É Crítico, o usuário podia, por intermédio de terminais de videotexto, expressar seu ponto de vista sobre a mostra de videotexto ou sobre qualquer aspecto da 17ª Bienal Internacional de São Paulo. Ainda em 1983, José Wagner Garcia e Mário Ramiro criaram Clones - Uma Rede de Rádio, Televisão e Videotexto. Esse trabalho baseava-se na simultaneidade da transmissão e recepção das representações de um objeto em três diferentes sistemas. Uma instalação em que terminais de videotexto, monitores de TV, rádio e alto-falantes foram agrupados em uma sala circular no MIS, São Paulo, com a recepção sincronizada das três transmissões. Os nove terminais de videotexto conectados a nove diferentes linhas telefônicas apresentavam um elemento gráfico - uma barra vermelha horizontal, que passava de um monitor a outro. A mesma barra horizontal era recebida de uma transmissão de TV ao vivo, movendo-se na superfície da tela do monitor de TV instalado no MIS. Uma representação acústica desse mesmo objeto, baseada no som produzido por uma barra de aço caindo horizontalmente e batendo no chão, era ouvida nos alto-falantes, captada por meio de programa de rádio. José Wagner Garcia, em 1984, apresenta o projeto Ptyx - Conexão Simultânea, um trabalho que conectou o Centro Cultural São Paulo e a Galeria de Arte Paulo Figueiredo. Contou com a participação de Vânia Bastos (voz) e Wilson Sukorski (som). A partir da instalação de baffles, especialmente projetados para o evento, com irradiação sonora de 30 graus, formando um conjunto de nove peças na forma de semicubo-octaedral, criava-se um corredor acústico para o deslocamento, por ressonância, do som emitido por uma taça de cristal, quebrada pelo grito agudo da cantora Vânia Bastos, numa freqüência de 652.7 Hz. Em Ptyx, o percurso evocava a 3
  • 14. explosão (da taça) e a construção (da imagem) na imaterialidade da informação e discutia a formação desta informação, dependendo de dois lugares distintos. Em 1985, houve uma grande retrospectiva dos trabalhos de arte-comunicação, da mail art ao videotexto, na exposição Arte: Novos Meios/Multimeios - Brasil 70/80, que aconteceu na Faap, em São Paulo. Ali foram apresentados, entre outros, os projetos Fac-Similarte, de Paulo Bruscky e Roberto Sandoval; Caricaturas e A Arte na Trama Eletrônica, videotexto de Rodolfo Cittadino; Arte em Videotexto, de Julio Plaza, com participação de Alex Flemming, Alice Ruiz, Augusto de Campos, Carmela Gross, Julio Plaza, Leon Ferrari, Lenora de Barros, Maria José Palo, Mônica Costa, Omar Khouri, Lucia Santaella, Paulo Leminski e Paulo Miranda. Entre os eventos importantes de 1985, deve-se acrescentar ainda o fato de a Livraria Nobel do Rio de Janeiro ter aberto uma galeria permanente de arte em videotexto, denominada Arte On-Line. Nela colaboraram vários artistas cariocas, inclusive Eduardo Kac. Em 1984, Eduardo Kac havia concebido, no Rio de Janeiro, o projeto Cyborg, que envolvia três galerias e objetos controlados remotamente. Este projeto, infelizmente, acabou não se realizando devido a obstáculos técnicos que o envolviam, mas Kac não desistiu de suas pesquisas com telepresença e acabou desenvolvendo vários projetos semelhantes depois, por ocasião de sua residência nos Estados Unidos. Mas, ainda em 1986, Eduardo Kac projetou um robô controlado por rádio, para participar da exposição Brasil High Tech, realizada no Centro Empresarial do Rio de Janeiro sob curadoria do próprio Kac e de Flávio Ferraz. Kac usou um rôbo antropomórfico com sete pés de altura como uma espécie de anfitrião, que conversava com os visitantes da exposição. A voz do robô, transmitida via rádio, era uma voz humana. Durante esse mesmo evento, o robô foi usado numa performance telerrobótica realizada com Otavio Donasci, em que o robô interagia com uma videocriatura deste artista. O robô foi construído por Cristovão Batista da Silva. Nessa mesma exposição, com curadoria dos mesmos Eduardo Kac e Flávio Ferraz, vários artistas participaram de uma mostra de arte em videotexto: Gino Zaniboni 4
  • 15. Netto, Julio Plaza, Nelson das Neves, Rodolfo Cittadino, Rose Zangirolami, além dos próprios Eduardo Kac e Flávio Ferraz. Outra tecnologia de transmissão de informação a longas distâncias bastante utilizada por artistas foi a SSTV (slow-scan television). Em 14 de outubro de 1986, a Sky Art Conference, evento conjunto entre o Center for Advanced Visual Studies, CAVS, em Boston, coordenado por Otto Piene, e a ECA/USP, coordenada por José Wagner Garcia, foi provavelmente a primeira transmissão com slow-scan no Brasil. Em agosto de 1987, Eduardo Kac projetou ainda o Faxelástico, como parte da exposição Luz Elástica, no MAM/RJ. O Faxelástico foi uma espécie de "faxfilme": participantes foram convidados a enviar seqüências de imagens, formando um faxfilme que se editava a si mesmo, de acordo com a ordem de recebimento das seqüências. O Instituto de Pesquisas em Arte e Tecnologia, Ipat, foi formado por um grupo de artistas que pesquisavam novas mídias e seus objetivos centravam-se na relação entre a arte e as novas tecnologias. Esse instituto (formado por Artur Matuck, Paulo Laurentiz, Milton Sogabe, Anna Barros, Carlos Fadon Vicente, Julio Plaza, entre outros) organizou diversos eventos de arte e comunicação, utilizando videotexto, SSTV e fax. Em 1988, realizou-se o intercâmbio de imagens via slow-scan entre o Ipat e o Digital Art Exchange Group, DAX, da Carnegie-Mellon University, em Pittsburgh. O evento, chamado Intercities: SP/Pittsburgh, foi coordenado em São Paulo por Artur Matuck e Paulo Laurentiz e em Pittsburgh por Bruce Breland. Entre as participações, deve-se destacar o projeto Still Life/Alive, de Carlos Fadon Vicente. Entre 1987 e 1988, Eduardo Kac elaborou "esboços para dois pequenos telerrobôs", para serem controlados por participantes de duas cidades distantes. A idéia era permitir a um participante de uma cidade controlar um telerrobô na outra cidade, e vice-versa. Nesse projeto, Kac contou com a consultoria do engenheiro Wellington Pinheiro. As idéias exploradas nesse trabalho serviram de base para o desenvolvimento do seu próximo projeto, Ornitorrinco. Mas falaremos sobre esse projeto no bloco Arte na Rede, pois ele se estendeu até 1996. 5
  • 16. Em 8 de abril de 1988, realizou-se um diálogo via fax e canal de TV, ao vivo, entre Mário Ramiro, em São Paulo, e Eduardo Kac, no Rio de Janeiro. Chamava-se Retrato Suposto - Rosto Roto. Conectando o meio público da televisão com o meio privado do fax, este trabalho criou um sistema de feedback baseado na troca e transformação contínua das imagens. Mário Ramiro estava em São Paulo, nos estúdios da TV Cultura, e se conectava com Kac, através de fax, em seu estúdio, no Rio de Janeiro. A base desse trabalho era explorar a operação em tempo real da utilização do fax, um meio dialógico, no contexto de um programa de televisão, um sistema unidirecional de comunicação de massa. Em fevereiro de 1989, no projeto Faxarte I, realizou-se um intercâmbio via fax entre a ECA/USP e o Instituto de Artes da Unicamp, IA/Unicamp, coordenado por Artur Matuck (da ECA) e Paulo Laurentiz (do IA/Unicamp). Alguns meses depois, os estudantes dessas mesmas universidades participaram do Faxarte II, sob a coordenação de Artur Matuck, Shirley Miki e Gilbertto Prado. Entre os artistas participantes estavam Anna Barros, Artur Matuck, Gilbertto Prado, Marco do Valle, Milton Sogabe, Paulo Laurentiz e Regina Silveira, entre outros. Carlos Fadon e Eduardo Kac criam também em 1989 Three-City Link, utilizando a tecnologia de slow-scan TV e conectando artistas em Boston (Dana Moser), Chicago (Kac e Fadon) e Pittsburgh (o DAX). A experiência consistiu em conectar os artistas por meio de um sistema de conferência telefônica three-way, de modo a permitir trocar imagens e interagir sobre as imagens recebidas e gerar uma reflexão visual sobre as relações entre o espaço urbano e o espaço telemático. Ainda em 1989, entre os dias 11 e 15 de dezembro, as primeiras imagens via fax foram intercambiadas no projeto City Portraits, concebido por Karen O’Rourke, entre o grupo Art-Réseaux de Paris e outros artistas residentes nas cidades de Düsseldorf, Filadélfia e Campinas. Entre os artistas brasileiros, destacam-se as participações de Gilbertto Prado, que no período encontrava-se na base em Paris, Paulo Laurentiz, que coordenava o pólo transmissor em Campinas, ao lado de Milton Sogabe, Renato Hildebrand e Anna Barros, entre outros, e em Chicago encontravam-se Carlos 6
  • 17. Fadon Vicente, Irene Faiguenboin e Eduardo Kac. Essa foi a primeira fase desse projeto e sua proposta era: pares de imagens (fotos e outros documentos da cidade de cada um) eram enviados e os participantes eram convidados a perfazer os caminhos e estabelecer retratos de cidades que não conheciam. A circulação da informação fazia com que os artistas, que enviaram informações de suas cidades, a redescobrissem por meio da visão de outros. A proposta teve como objetivo o aproveitamento da bidirecionalidade e da interatividade dos meios telemáticos, procurando explorar a imaginação dos artistas de cada cidade, além de projetar cidades imaginárias, a partir de imagens enviadas pelos outros parceiros da rede. Em 28 de fevereiro de 1990, o projeto de Paulo Laurentiz L’Oeuvre du Louvre levou artistas brasileiros a "invadir", durante o período de carnaval, com envio de fax, o Museu do Louvre, em Paris. Os artistas participantes foram Anna Barros, Lúcio Kume, Mário Ishikawa, Milton Sogabe, Paulo Laurentiz e Regina Silveira. Esse evento tinha como princípio norteador o conceito do Museu Imaginário de André Malraux. Apropriando-se de reproduções de obras do Museu do Louvre, artistas brasileiros executaram trabalhos, comentando, traduzindo ou mesmo citando essas referências. A coletânea produzida passou a compor o material transmitido. Para celebrar o Dia da Terra, o grupo DAX, situado na Carnegie-Mellon University, Pittsburgh, organizou o projeto Earthday 90 Global Telematic Network & Impromptu. Foram estabelecidos contatos via slow-scan e fax entre artistas das cidades de Viena, Lisboa, Campinas, São Paulo, Boston, Baltimore, Pittsburgh, Chicago, Vancouver e Los Angeles. Esse evento foi realizado nos dias 21 e 22 de abril de 1990. As curadorias ficaram a cargo de Bruce Breland, do DAX Group, no pólo principal na Carnegie-Mellon University; Carlos Fadon Vicente e Eduardo Kac, na The School of the Art Institute of Chicago; e Paulo Laurentiz, no IA/Unicamp. Em Campinas, com infra-estrutura que contava com três linhas exclusivas no Departamento de Multimeios do IA/Unicamp, duas para transmissão de sinais de SSTV e uma para fax, os artistas brasileiros se reuniram para enviar suas propostas e interagir com as que chegavam, elaborando trabalhos com os recursos do local. Entre os artistas brasileiros participantes podemos citar André Petry, Anna Barros, Artemis Moroni, Artur Matuck, Carlos Bottesi, Carlos Fadon Vicente, Eduardo Kac, 7
  • 18. Elisabeth Bento, Ernesto Mello, Eunice da Silva, Gilbertto Prado, Hermes Renato Hildebrand, Irene Faiguenboim, Mário Ramiro, Milton Sogabe e Paulo Laurentiz. Poéticas Instantâneas foi um projeto isolado de intercâmbio via fax entre as cidades de Campinas e Porto Alegre, coordenado por André Petry, entre os dias 10 e 11 de dezembro de 1990. Na passagem do ano de 1990 para 1991, Paulo Laurentiz coordenou o projeto No Time, teletransmissão artística entre Brasil (IA/Unicamp) e Japão (College of Arts of Kyoto). Esse projeto consistiu em transmissão via computador/modem e fax de uma série de trabalhos gráficos e sonoros, elaborados pelos artistas anteriormente e durante as doze horas do evento. A proposta foi trabalhar no período de diferença de fuso horário entre os dois países. Assim, quando o Brasil entrava no ano de 1991, o Japão já estava em pleno meio-dia desse ano. O evento começou ao meio- dia de 31 de dezembro de 1990 e terminou à meia-noite desse mesmo dia (hora de Brasília). Os trabalhos gráficos e sonoros eram elaborados e decodificados pelo computador. Participaram desse evento Paulo Laurentiz e Milton Sogabe, nos trabalhos gráficos, e José Augusto Mannis e Eiko Akiyama, nos trabalhos sonoros. Em maio de 1991, foi realizado o fax-evento Connect, concebido por Gilbertto Prado, que permitia a pessoas localizadas em diferentes locais do planeta realizar simultaneamente um trabalho artístico comum em tempo real. Os participantes trabalhavam simultaneamente sobre o papel, em movimento que circulava nas diferentes localidades produzindo um trabalho único e partilhado numa relação/ação direta e integrada. As primeiras ações aconteceram em maio de 1991 entre Paris (Université de Paris I - Centre Saint-Charles) e Pittsburgh (Carnegie-Mellon University - Studio for Creative Inquiry). E, em novembro de 1991, entre Paris (Art- Réseaux) e São Paulo (Centro Cultural Oswald de Andrade - Workshop Projeto Reflux - 21ª Bienal Internacional de São Paulo). Ainda em 1991, realizou-se o projeto Telesthesi, de Artur Matuck, com a produção de um texto interativo por rede de computador (correio eletrônico), com o apoio do The Studio for Creative Inquiry de Pittsburgh e da Universidade de São Paulo. E, em 8
  • 19. 13 de agosto do mesmo ano, tivemos o Faxelástico, um projeto de Eduardo Kac, como parte da exposição Luz Elástica, no MAM/RJ. De setembro a dezembro de 1991, por ocasião da 21ª Bienal Internacional de São Paulo, Artur Matuck concebeu e coordenou o projeto Reflux. Ele propôs ligações telemáticas entre vários nós e convidou os participantes a interagir também com seus projetos - os influxs. Entre os trabalhos apresentados, podemos citar Langterra - Dymaximal Territory, de Artur Matuck e Robert Rogers, do The Studio for Creative Inquiry, de Pittsburgh; Traces, de Gilbertto Prado, Art-Réseaux, de um grupo de artistas de Paris; e Clothfax, uma performance-fax de Otavio Donasci. De 22 a 25 de outubro de 1992, tivemos, no MAC/USP, o evento Proto Arte Telemática, coordenado por Artur Matuck, com participação de vários artistas, entre eles Madalena Bernardes e Otavio Donasci. No Rio Grande do Sul, em maio de 1994, Diana Domingues, Ana Mery de Carli e Fabiana de Lucena coordenaram um projeto de rede de comunicação utilizando fax. O evento se chamou Em Contato e foi realizado na Universidade de Caxias do Sul. Em junho de 1994, a mostra Via Fax teve a participação de diversos artistas do Rio de Janeiro, de São Paulo, Belo Horizonte, Nova York, Porto Alegre e do Recife, no Museu do Telephone, no Rio de Janeiro. Entre os dias 21 de outubro e 11 de novembro de 1994, Eduardo Kac organizou o projeto ElasticFax 2, no Center for Contemporary Art, na University of Kentucky, Lexington (Estados Unidos). Artistas de todo o mundo foram convidados, via Internet, a transmitir imagens seqüenciais, para formar as seqüências de um filme de fax auto-organizado. A máquina de fax foi posicionada na altura dos olhos, para criar a sensação de um imenso projetor, com as imagens passando. Ao mesmo tempo, criou-se a sensação de uma "queda-d’água", com as imagens formando padrões ondulados ao cairem no chão. 9
  • 20. A partir desse momento, o que era a arte-comunicação se transfigura em net art ou arte na rede (vide o bloco Arte na Rede). 10
  • 21. Hibridismo/Intermídias Expressões como hibridismo, mestiçagem ou poética das passagens começaram a ser utilizadas na exposição Passages de l'Image, organizada em Paris, em 1990, por Raymond Bellour e outros, para referir-se à dissolução das fronteiras entre os suportes e as linguagens, bem como também à reciclagem dos materiais que circulam nos meios de comunicação. As imagens são compostas agora a partir de fontes as mais diversas: parte é fotografia ou cinema, parte é desenho, parte é vídeo, parte é texto produzido em geradores de caracteres e parte é modelo gerado em computador. Por sua vez, os sons são ora registros brutos ou processados, ora sínteses produzidas em computador e ora o resultado de um "sampleamento" (edição e metamorfose de amostras gravadas). Na série Connexio, de Diana Domingues, por exemplo, cada plano é um híbrido, constituído de figuras em migração permanente, onde já não se pode mais determinar a natureza de cada um de seus elementos constitutivos, tamanha é a mistura, a sobreposição, o empilhamento de procedimentos diversos, sejam eles antigos, sejam modernos, sofisticados ou elementares, tecnológicos ou artesanais. Segundo Ítalo Calvino, a multiplicidade exprime um modo de conhecimento do homem contemporâneo, onde o mundo é visto e representado como uma "rede de conexões", uma trama de relações de uma complexidade inextricável. Recursos recentes de edição digital permitem, por exemplo, jogar para dentro da tela uma quantidade quase infinita de imagens e sons simultâneos, para fazê-los combinarem-se em arranjos inesperados, como que atualizando a idéia de uma montagem "vertical" ou "polifônica", formulada por Serguei Eisenstein nos anos 40. A técnica mais utilizada consiste em abrir "janelas" dentro do quadro para nelas inserir novas imagens e, ao mesmo tempo, multiplicar as fontes sonoras em vários canais de som. Toda a arte eletrônica que segue a trilha aberta por Nam June Paik e todas as modalidades computadorizadas de multimídia apontam hoje para a possibilidade de uma nova "gramática" dos meios audiovisuais, que consiste em superpor tudo (múltiplas imagens, múltiplos textos, múltiplos sons), ou imbricar as fontes umas nas outras, fazendo-as acumular infinitamente dentro do quadro. Trata-se, segundo
  • 22. alguns, de uma estética da saturação, do excesso (a máxima concentração de informação num mínimo de espaço-tempo) e também da instabilidade (ausência quase absoluta de qualquer integridade estrutural ou de qualquer sistematização temática ou estilística), mas essa também pode ser uma maneira mais adequada de representar a complexidade. O universo das artes eletrônicas apresenta-se de forma múltipla, variável, instável, complexa e ocorre numa variedade infinita de manifestações. A eletrônica pode hoje estar presente em esculturas, instalações multimídias, ambientes, performances, intervenções urbanas, até mesmo em peças de teatro, salas de concerto e shows musicais, conforme se pode verificar de forma bastante enfática na obra performática de artistas como Renato Cohen, Bia Medeiros (e seu grupo Corpos Informáticos) e Artemis Moroni (e seu grupo *.*), ou nas instalações e performances de Anna Barros e Josely Carvalho. As obras eletrônicas podem, portanto, existir associadas a outras modalidades artísticas, a outros meios, a outros materiais, a outras formas de espetáculo. Como conseqüência dessa generalização da imagem e do som eletrônicos, os artistas que os praticam, bem como os públicos para os quais se dirigem, tornam-se cada vez mais heterogêneos, sem qualquer referência padronizada, perfazendo hábitos culturais em expansão, circuitos de exibição efêmeros e experimentais, que resultam em verdadeiros quebra-cabeças para os fanáticos da especificidade. Eis porque falar de arte eletrônica significa colocar-se fora de qualquer território institucionalizado. Trata-se de enfrentar o desafio e a resistência de um objeto híbrido, em expansão, fundamentalmente impuro, de identidades múltiplas, que tende a se dissolver camaleonicamente em outros objetos ou a incorporar seus modos de constituição. A imagem e o som eletrônicos invadem hoje todos os setores da produção cultural, comprometendo todas as especificidades. A tela eletrônica representa agora o local de convergência de todos os novos saberes e das sensibilidades emergentes que perfazem o atual panorama da visualidade. Nesse estado de coisas que agora se configura, a imagem perde cada vez mais os seus traços materiais, a sua corporeidade, a sua substância, para se transfigurar em alguma coisa que não existe senão no estado virtual, desmaterializada em fluxos de corrente elétrica. Como 2
  • 23. acontece com nossas imagens mentais, aquelas que brotam do imaginário, as imagens eletrônicas são fantasmas de luz que habitam um mundo sem gravidade e que só podem ser invocadas por alguma máquina de "leitura", atualizadora de suas potencialidades visíveis. 3
  • 24. Arte na Rede Nos anos 80, o artista britânico David Hockney produziu um pequeno escândalo em São Paulo, quando a obra por ele concebida para participar de uma das edições da Bienal foi enviada por fax, por causa de uma celeuma envolvendo as pesadas despesas com transporte e seguro. Estávamos então apenas iniciando a discussão da "desmaterialização da arte", ainda sob o impacto da polêmica exposição de obras "imateriais" (Les Immatériaux) organizada por Jean-François Lyotard no Centro Pompidou de Paris em 1985, e a idéia de uma obra "teletransportada" soava estranha aos nossos hábitos perceptivos fortemente marcados pela presença de objetos físicos "únicos" no espaço de exposição. No limite, se as obras se desmaterializam e se multiplicam, não faz mais sentido pensar num espaço físico para expô-las, ou num lugar para onde o público deveria se dirigir em períodos preestabelecidos. Elas poderiam ser recebidas em casa pelos mais variados meios, como o telefone, o videofone, o fax, o rádio e a televisão, ou ser "acessadas" por meio de redes telemáticas como a Internet. Talvez a Bienal do futuro não aconteça mais num prédio instalado no Parque Ibirapuera, que abre as suas portas uma vez a cada dois anos para uma celebração coletiva. A Bienal do futuro poderia ser uma rede de conexões entre artistas e instituições que fazem trabalhos criativos, não localizada em lugar algum, disponibilizada para o acesso público e organizada por um corpo de curadores espalhados por todo o mundo. Organizar uma exposição poderia significar interligar várias experiências que já acontecem no campo "desmaterializado" das redes telemáticas, oferecendo ao visitante (agora chamado de usuário) conceitos ou idéias-chave que permitam compreender determinados campos de acontecimentos. Visitar a Bienal poderia significar simplesmente ligar o computador e apontar o browser para o seu endereço eletrônico. A web art ou net art é o setor mais recente dentro do sempre mutante campo das artes eletrônicas. Ela representa uma fusão da arte-comunicação com a arte digital. Historicamente, a arte-comunicação utilizou recursos predominantemente não
  • 25. digitais (mail art, fax, telefone, slow-scan TV, etc.) ou semidigitais (videotexto) para estabelecer contatos de comunicação, enquanto as artes digitais não lidavam ainda com o conceito de comunicação. A web art, num certo sentido, dá continuidade à idéia de comunicação, mas agora dentro de um contexto nitidamente digital e valendo-se dessa gigantesca rede mundial de computadores chamada Internet. Ela já permite hoje experimentar uma antevisão desse futuro próximo em que a Bienal - e também as galerias, os centros culturais - poderão existir em forma virtual. Em junho de 1992, destacamos o projeto Moone: La Face Cachée de la Lune, de Gilbertto Prado, construção de desenhos e imagens em tela, partilhada em direto, via Rede Numérica de Serviços Integrados, RNSI, entre os Cafés Électroniques de Paris e a 9ª Documenta, Kassel, Alemanha. O objetivo era construir, com parceiros distantes (e eventualmente desconhecidos), uma imagem híbrida e composta em tempo real. Utilizou-se o princípio de tela partilhada, que permite a construção de imagens simultaneamente em rede, com participantes em locais distantes. Quando se trabalha com esse dispositivo, pode-se ter a mesma imagem em diferentes monitores para trabalhá-la a distância, da mesma forma que o movimento dos mouses é partilhado em tempo real. De 20 a 25 de agosto de 1994, durante o 5th International Symposium on Electronic Art, a participação do *.* (asterisco-ponto-asterisco, grupo formado por Artemis Moroni, José Augusto Mannis e Paulo Gomide Cohn) apresentou o projeto The Electronic Carnival, diálogo e construção de personagens via Internet. Em 3 de setembro do mesmo ano, aconteceu o Telage 94, um intercâmbio de imagens e sons, via modem, projeto coordenado por Carlos Fadon Vicente, em São Paulo, por Eduardo Kac, em Lexington (Estados Unidos), por Irene Faiguenboim, no Recife, e por Gilbertto Prado, em Campinas. Entre os participantes, podemos também citar Renato Hildebrand e Silvia Laurentiz. O Telage 94 fez parte do megaevento Arte Cidade 2: a cidade e seus fluxos, organizado por Nelson Brissac Peixoto, em 1994. A proposta foi criar uma trama eletrônica de conexões entre diferentes cidades, que se tecia entre as diferentes imagens processadas. Uma 2
  • 26. imagem distinta era introduzida em cada ponto do circuito e retrabalhada pelos demais participantes. De 1989 até 1996, Kac desenvolveu o projeto Ornitorrinco. Em 1989, ele começou a trabalhar com Ed Bennett em Chicago e dessa parceria foi projetado, testado e construído o Ornitorrinco, um telerrobô que podia ser controlado a partir de longas distâncias. A primeira experiência desse projeto aconteceu em 1990, num link entre as cidades do Rio de Janeiro e de Chicago. Do Rio de Janeiro, Kac controlava o Ornitorrinco em Chicago, via conexão telefônica. Depois dessa primeira experiência, muitas outras aconteceram, utilizando o mesmo conceito desse trabalho. Ornitorrinco ficou então o nome dado tanto aos trabalhos de arte de telepresença em andamento quanto ao telerrobô que os realizava. Por princípio, os eventos do Ornitorrinco envolviam duas localidades distintas, porém, nada impedia que mais pólos estivessem conectados. Um ou mais membros do público navegavam por instalação ou local remoto, pressionando teclas de telefone comum ou clicando o mouse do computador. Recebiam, então, feedback visual sob a forma de imagens fixas ou em movimento, em tela de computador ou monitor de vídeo. Freqüentemente ocorriam encontros de comunicação via Internet, não com trocas verbais ou orais, mas por meio de ritmos resultantes do envolvimento dos participantes de uma experiência compartilhada no mesmo meio. Os visitantes, nas palavras do autor, experimentavam juntos, no mesmo corpo, um lugar longínquo e inventado sob perspectiva impessoal, que suspendia temporariamente as noções de identidade, localização geográfica e presença física. Entre os vários eventos envolvendo o Ornitorrinco, podemos citar os que se seguem. Em 1992, acontece o Ornitorrinco in Copacabana: uma estação pública de telepresença estava posicionada no McCormick Place, na Conferência Siggraph de 1992, e dali se podia controlar o Ornitorrinco em ambiente especialmente criado na The School of the Art Institute of Chicago. Em 1993, o Ornitorrinco on the Moon foi apresentado entre a The School of the Art Institute of Chicago e The Kunstlerhaus (Graz, Áustria), durante a exposição austríaca Beyond Borders. Em 1994, Ornitorrinco in Eden foi experimentado num evento de telepresença na Internet. 3
  • 27. Existiam duas estações públicas de telepresença, uma em Seattle e outra em Lexington. O Ornitorrinco estava em um ambiente no Departamento de Arte e Tecnologia na The School of the Art Institute of Chicago. Esses três pólos estavam ligados via ligação telefônica por 3-vias, para controle de movimento em tempo real. As cidades estavam também conectadas pela Internet via tecnologia CU-See-Me, que retransmitia constantemente as mudanças de pontos de vista do ambiente do robô. Usuários de várias cidades americanas e de outros países (incluindo Finlândia, Canadá, Alemanha e Irlanda) podiam acessar e assistir ao que se passava no espaço (registrado pelo movimento do robô) em Chicago, pelo ponto de vista do Ornitorrinco. Em 1996, surge o Ornitorrinco in the Sahara, um evento de telepresença dialógica criado para a Bienal de St. Petersburg, na Rússia. A topologia desse evento estava baseada no uso de duas linhas telefônicas separadas. Uma linha conectava o Museu de História de St. Petersburg ao Departamento de Arte e Tecnologia da The School of the Art Institute of Chicago. A segunda linha conectava este Departamento em Chicago à The Aldo Castillo Gallery. A primeira curadoria de web art no Brasil foi feita por Ricardo Ribenboim e Ricardo Anderáos para a 24ª Bienal Internacional de São Paulo, que ocorreu em 1998. Ela ofereceu ao público de qualquer parte do mundo a oportunidade de fazer um outro tipo de visita à Bienal, em que nem os artistas nem o público precisavam se deslocar fisicamente até São Paulo. Numa primeira acepção, a curadoria consistiu em propor uma coleção de links que permitiam dar forma, consistência e acesso a um conjunto já bastante expressivo de experiências artísticas que estavam acontecendo naquele momento na web. Não apenas trabalhos brasileiros foram indicados, mas também trabalhos de artistas internacionais já consagrados, com é o caso do grupo Jodi (abreviatura de Joan Heemskerk e Dirk Paesmans), referência inevitável em qualquer antologia de web art. Os trabalhos foram agrupados em torno de conceitos, que permitiam distinguir diferentes perspectivas estéticas e existenciais. A interface proposta dava a impressão de um organismo vivo em permanente mutação e se apresentava como um work in progress, capaz de assimilar inclusive a colaboração 4
  • 28. dos visitantes no preenchimento dos conceitos com indicações de novos sites ou modificação dos já existentes. A idéia de organizar o acesso e a navegação em torno de conceitos tem a sua razão de ser. A web é hoje uma gigantesca e caótica acumulação de sites, páginas, frames e links, com conteúdos, formas gráficas e interfaces de toda espécie, abrangendo do melhor ao pior, do confiável ao desconfiável, do déjà-vu ao absolutamente imprevisível. Mais do que em qualquer outro campo de experiências, a web necessita de bússolas e faróis, que permitam tornar produtiva a tarefa de navegação e sobretudo atracar em porto seguro. Quando o que se busca é apenas informação, um bom mecanismo de procura (search) pode ser suficiente. Mas quando se trata de descobrir propostas e atitudes inventivas, é preciso que os próprios instrumentos sejam também criativos e abertos à irrupção do improvável. Uma curadoria adequada às experiências criativas na web deve, portanto, ter expertise suficiente para descobrir a interface adequada, capaz de permitir a navegação num ambiente que não é mais apenas um banco de dados. Se a web é realmente um organismo vivo, em contínuo movimento e metamorfose, com sites surgindo, desaparecendo ou se transformando a todo momento, não é preciso muito esforço para perceber que os seus mecanismos de pesquisa e navegação devem ter a mesma mobilidade. Por outro lado, a curadoria de Ribenboim e Anderáos inovou também por incorporar trabalhos encomendados especificamente para essa seleção. É o caso de Valetes em Slow-Motion, de Kiko Goifman e Jurandir Müller, sobre o tema dos encarcerados, que pode ser considerada uma das experiências brasileiras mais ousadas feitas no terreno da web art, tanto do ponto de vista da forma como do conteúdo. Contando com a colaboração de Alberto Blumenschein (webmaster) e Silvia Laurentiz (ambiente tridimensional interativo em formato VRML), o trabalho permitiu uma reflexão densa sobre a vida nas prisões e a psicologia dos detentos, abrindo a possibilidade inclusive de um contato ao vivo (através da tecnologia CU- See-Me) entre os visitantes da Bienal "virtual" e os detentos do Presídio da Papuda, em São Sebastião (DF), em dias e horários previamente marcados. Na verdade, o trabalho de Goifman e Müller explora ironicamente a idéia de controle a distância (o 5
  • 29. conceito através do qual ele pode ser acessado é "monitoramento"), alertando para a possibilidade de uma vigilância universal através da web. Na 24ª Bienal Internacional de São Paulo, foi apresentado também o projeto- instalação Colunismo, de Gilbertto Prado. A instalação consistia em um "portal", com duas webcams conectadas à rede Internet, que eram disparadas por sensores dispostos no espaço físico da instalação pela passagem dos visitantes. Uma vez capturada em tempo real essa imagem local, ela era mesclada com outras (de um banco de imagens sobre o olhar estrangeiro, sobre a antropofagia, a pop art, cidades e outras categorias) e disponibilizada via Internet para todo o planeta. Outros participantes, fisicamente distantes, via webcam, podiam observar o espaço e a geração de novas imagens locais. Esse trabalho esteve exposto também na mostra City Canibal, no Paço das Artes, em São Paulo, de 4 de setembro a 31 de outubro de 1998. Com o florescimento da web art, o acesso remoto à Bienal ou a qualquer outro evento artístico está deixando de ser uma possibilidade marginal para se tornar a própria natureza das próximas montagens. Se no futuro os parangolés se transformarem em wearable computers (computadores de vestir) e os objetos relacionais forem desmaterializados em ambientes de realidade virtual, a Bienal, mesmo deslocalizada, ainda terá uma razão para existir: ela continuará representando o esforço sempre necessário de concentrar a criatividade dispersa e difundir no tecido social as experiências humanas de liberdade. Ainda neste mesmo ano, Tânia Fraga organizou (e participou de) o projeto Xmantic na Web, aceito em concurso da Unesco realizado em 1998. A proposta do projeto era criar um link multicultural entre povos de culturas distintas. Assim, procuraram-se analogias entre os xamãs das culturas tribais e os equivalentes em outras culturas ocidentais contemporâneas. Xmantic na Web é o primeiro resultado do Laboratório Virtual de Pesquisa em Arte (criado em 1996) da Universidade Federal de Brasília, onde artistas, estudantes e pesquisadores entram em contato com o mundo para criar um diálogo multicultural no campo da arte telemática. 6
  • 30. Interação Arte-Ciência Nas últimas décadas do século XX, generalizou-se em vários campos do conhecimento a suspeita de que as fronteiras, tão categoricamente traçadas no século anterior, entre arte, ciência e tecnologia já não se sustentavam com o mesmo vigor. Algumas exposições ocorridas em áreas de interseção de interesses têm colocado em evidência o arbítrio das velhas dicotomias. É o caso de Les Immatériaux, exposição organizada em 1985 por Jean-François Lyotard, no Centro Pompidou de Paris, e que exibia imagens (e eventualmente também sons, objetos) derivadas da pesquisa científica ou da atividade tecnológica como sendo objetos de fruição estética. A idéia é que determinados aparelhos ou instrumentos usados no diagnóstico médico, na engenharia de projetos, na simulação de processos industriais ou no sensoriamento remoto do espaço produzem imagens insólitas, que podem, eventualmente, apresentar interesse no plano estético, pelo seu poder de evocação intelectual, emotiva ou sensorial. Alguns artistas particularmente sensíveis às qualidades estéticas das imagens cientíticas, médicas ou industriais têm procurado se aproximar dos recursos tecnológicos utilizados na ciência e na engenharia para efetivar uma utilização intensiva desses meios, com vista a explorar as liberdades do imaginário e as conseqüências em termos de invenção estética. As iconografias científica, médica e tecnológica já são hoje referências constantes no imaginário do homem contemporâneo. Nesse sentido, as intervenções da técnica e da ciência podem ser tomadas como acontecimentos culturais de pleno direito. Mas talvez fosse possível ir um pouco mais além, observando também o trabalho singular de certos criadores (que nem sabemos mais se são "artistas", "engenheiros", "cientistas" ou "homens de mídia"), que fazem emergir possibilidades insuspeitadas ao utilizarem de forma intensiva ou transgressiva os recursos enunciadores colocados à sua disposição pelas máquinas. Talvez estejamos caminhando rumo à evidência de que, no fim das contas, as práticas da ciência, da técnica e da arte não sejam assim tão diferentes entre si. Afinal, como observou Paul Caro em A Ciência e a Imagem, um especialista moderno em química é um pouco também um escultor, sobretudo quando deve construir as intrincadas arquiteturas das moléculas orgânicas ou das estruturas cristalinas, assim como também há algo de ficcionista
  • 31. no pesquisador de física nuclear, que deve, num certo sentido, "adivinhar" a vida das partículas e reconstruir a história íntima do comportamento dos átomos. Sabemos que a palavra grega para designar os fenômenos artísticos era techné, de onde deriva tecnologia. Os gregos antigos não faziam qualquer distinção de princípio entre a arte e a técnica e esse pressuposto atravessou boa parte da história da cultura ocidental até pelo menos o Renascimento. Para homens como Leonardo da Vinci, Albrecht Dürer ou Piero della Francesca, pintar uma tela, estudar a anatomia humana ou a geometria euclidiana, ou ainda projetar o esquema técnico de uma máquina constituíam uma só e mesma atividade intelectual. E se prestarmos atenção, a arte de nosso tempo também não deixou de refletir problemas emergentes do universo das técnicas e das ciências. Cézanne e movimentos como o impressionismo, o construtivismo, o serialismo, De Stijl, Bauhaus, a arte concreta, a música eletrônica, a op art e a arte cinética se mostram afinados e coerentes com o estágio correspondente do pensamento científico e tecnológico. Pode-se afirmar que a arte desse século encontra-se numa relação de simetria com o saber de seu tempo, tal como estiveram a arte clássica grega em relação à geometria euclidiana, ou a dos séculos posteriores em relação à cosmologia medieval. O próprio conhecimento científico parece também viver agora o seu state of the art, libertando- se de uma "realidade objetiva" absoluta e determinista e passando a governar-se pelas mesmas noções de caos e acaso com que trabalham os artistas. Muitos dos trabalhos mais recentes estão demonstrando que se torna cada vez mais difícil fazer uma distinção categórica entre objetos originários da imaginação artística, da investigação científica e da invenção tecno-industrial. Muitos produtos derivam, aliás, de uma interação de talentos e de investimentos das três áreas. Ademais, a experiência tem demonstrado que os artistas que obtiveram melhores resultados trabalhando com tecnologias são pessoas capazes de intervir na própria engenharia das máquinas, produzindo o hardware e o software necessário para dar forma às suas idéias estéticas. Apesar de o Brasil ocupar uma posição apenas marginal em termos de investigação científica e tecnológica, se compararmos com a América do Norte, Europa e alguns países da Ásia, tivemos aqui uma geração importantíssima de criadores que 2
  • 32. operaram na confluência da arte/ciência/tecnologia. Essa tradição remonta a dois pioneiros, que hoje são considerados os "pais" dessa síntese tecnopoética no Brasil: Abraham Palatnik e Waldemar Cordeiro. O primeiro, de sólida formação técnica (especializou-se em motores a explosão em Telaviv), introduziu na pintura e escultura as mais sofisticadas tecnologias de seu tempo, como as chamadas "máquinas cinecromáticas" de controlar o movimento, o magnetismo e a luz, tendo sido considerado o introdutor da arte cinética na América Latina. O segundo, emergido no bojo do movimento concretista dos anos 50/60, foi o primeiro, no Brasil, a utilizar o computador como instrumento heurístico e como o elemento catalisador de uma nova dimensão para a arte. Cordeiro foi também o responsável pela organização da primeira exposição e conferência avançada sobre a síntese de arte, ciência e tecnologia no Brasil, chamada Arteônica (1971). Por essa razão, ele é considerado o introdutor desse campo de expressão artística no país e quem mais lhe deu notoriedade e legitimidade. Várias gerações de artistas deram continuidade à linhagem aberta por Palatnik e Cordeiro, a partir principalmente da década de 80. Entre os nomes que se notabilizaram nesse período, podemos citar, em primeiro lugar, Mário Ramiro, um artista inquieto que começa produzindo intervenções na paisagem urbana, junto do grupo 3 NÓS 3 (com Hudinilson Jr. e Rafael França), segue introduzindo a fotocopiadora nos trabalhos artísticos (novamente junto de Hudinilson Jr.), descobre as imensas possibilidades abertas pelas tecnologias de telecomunicação (vide bloco Arte/Comunicação) e, finalmente, passa a aplicar em sua arte conceitos assimilados diretamente da física, tais como a levitação de objetos por magnetismo compensado; os campos de calor gerados ao redor dos objetos, que lhe permitiam produzir "esculturas térmicas", impossíveis de se ver, mas fáceis de sentir por meio da sensibilidade do corpo; e a fotografia Schlieren, que capta as ondas de calor ao redor dos corpos quentes. Por sua vez, José Wagner Garcia, depois de estagiar no Center for Advanced Visual Studies, CAVS, do Massachusetts Institute of Technology, MIT, trouxe ao Brasil as idéias relacionadas com a sky art, uma corrente artística que busca elaborar obras efêmeras no céu, com projeções de raios laser, bombardeamento de nuvens com pó 3
  • 33. químico colorido ou iridescente, arco-íris artificiais, ou ainda sinais eletromagnéticos codificados e enviados para as estrelas. A síntese do trabalho de Garcia está na trilogia Sky: Life, Body and Mind (1988). Eduardo Kac, um pioneiro na aplicação artística de um amplo leque de novas tecnologias (holografia, computação gráfica, net art), dedicou-se intensamente, na virada dos anos 80/90, à pesquisa e aplicação prática da robótica, em colaboração com o projetista de hardware norte-americano Ed Bennett (vide o bloco Arte na Rede). Na década de 90, o grupo que faz aplicações artísticas de conceitos científicos cresceu bastante, com a adesão de uma nova geração de criadores, em que se pode incluir artistas como Anna Barros, Gilbertto Prado, Renato Cohen, Milton Sogabe, Marcelo Dantas e grupos como *.*, SCIArts e Corpos Informáticos. Numa perspectiva um pouco diferente, mais dirigida à ironia ou à paródia, deve-se citar ainda a contribuição insólita de dois franco-atiradores. O primeiro é Guto Lacaz, mais intimamente conhecido como o "Professor Pardal" das artes plásticas, por dedicar-se à invenção de máquinas inúteis ou estúpidas, aparelhos ou dispositivos paradoxais e auto-destrutivos, além de toda sorte de engenharia primitiva e quixotesca, cuja finalidade última é a crítica da religião da produtividade e da eficiência, que embasa a atual civilização tecnológica. O segundo é Otavio Donasci, uma espécie de bricoleur tupiniquim, que criou um dos híbridos de maior sucesso no terreno das poéticas tecnológicas: a videocriatura, um monitor de TV colocado, por meio de armações de ferro, em cima de um ator escondido sob mantos pretos. Cada tela de monitor, ligada por cabos a um gravador de vídeo (alguns protótipos utilizam a transmissão sem fio), nos mostra a imagem de um rosto recitando monólogos ou dialogando ao vivo com o público ou com outras videocriaturas. O resultado é uma espécie de Mr. Hyde ou monstro de Frankenstein, metade gente e metade vídeo, que circula pela cena arrastando seus cabos e atormentando os espectadores. Tudo muito low tech, feito com equipamento doméstico de vídeo e recursos artesanais, improvisado à maneira brasileira, com os conhecimentos de eletrônica que Donasci foi adquirindo na prática. 4
  • 34. Uma derivação muito particular da síntese entre arte e ciência é o recente interesse dos artistas por questões de natureza biológica. Já houve um período em que todos nós proclamamos o advento de uma "revolução eletrônica", uma época em que os artistas, cientistas e pensadores em sintonia com o seu tempo acreditaram que os computadores e as redes telemáticas constituiriam certamente o próximo ambiente das novas formas culturais, ou os motivos mais prementes para uma mudança radical dos próprios conceitos de arte e cultura. Hoje, porém, quando tudo é, num certo sentido, "eletrônico", quando escritores, pintores, compositores e fotógrafos se sentam diante de um computador para criar seus trabalhos, e mais freqüentemente para criá-los dentro de um enfoque tradicional, talvez tenha chegado a hora de perguntar se expressões como "cultura digital" e "arte eletrônica" significam ainda alguma coisa distintiva ou designam um específico campo de acontecimentos. Nos últimos anos, artistas estrangeiros como Orlan e Stelarc se dedicaram à discussão cultural e política da possibilidade de ultrapassar o humano por meio de radicais intervenções cirúrgicas, de interfaces entre a carne e a eletrônica, ou ainda de próteses robóticas para complementar ou expandir as potencialidades do corpo biológico. Mais que apenas antecipar profundas mudanças em nossa percepção, em nossa concepção de mundo e na reorganização de nossos sistemas sociopolíticos, esses pioneiros anteciparam transformações fundamentais em nossa própria espécie. Essas transformações poderão inclusive alterar nosso código genético e reorientar o processo darwiniano de evolução. Hoje, uma gama cada vez maior de artistas está reorientando seu trabalho na direção de um novo paradigma dentro desse rótulo impreciso das "artes eletrônicas". Entre eles, na ponta desse movimento recentíssimo, estão três artistas brasileiros: Eduardo Kac, Diana Domingues e José Wagner Garcia. Esses criadores, que já foram pioneiros na aplicação artística de um largo espectro de novas tecnologias, estão explorando agora as novas dimensões de criatividade abertas pela nova biologia. Na tentativa de redirecionar a discussão e a prática da arte, eles estão focalizando suas obras mais recentes na direção de uma arte que incorpora conquistas recentes da biologia, focalizando questões relacionadas com a vida artificial, a ecologia da biotecnosfera, entre outras tantas coisas. 5
  • 35. Um importante marco simbólico dessa tendência aconteceu no dia 11 de novembro de 1997, na Casa das Rosas, em São Paulo. Nesse dia, Eduardo Kac implantou no interior de seu próprio tornozelo um microchip contendo um número de identificação de nove caracteres e o registrou num banco de dados norte-americano, utilizando a Internet como meio. O microchip é, na verdade, um transponder utilizado na identificação animal em substituição à antiga marcação com ferro quente. Como tal, ele contém um capacitor e uma bobina, todos lacrados hermeticamente em vidro biocompatível, para evitar a rejeição do organismo. O número memorizado no chip pode ser recuperado por meio de um tracker (scanner portátil que gera um sinal de rádio e energiza o microchip, fazendo-o transmitir de volta o seu número inalterável e irrepetível). A implantação do chip no tornozelo do artista tem um sentido simbólico muito preciso, pois era nesse local que os negros foram marcados a ferro, durante o período da escravidão no Brasil. A intervenção de Kac toca em pontos difíceis e incômodos da discussão ética, filosófica e científica a respeito do futuro da humanidade. É possível ler o significado do implante como um alerta sobre formas de vigilância e controle sobre o ser humano que poderão ser adotadas num futuro próximo. Mas também se pode ler a experiência de Kac numa outra perspectiva, como sintoma de uma mutação biológica que deverá acontecer proximamente, quando memórias digitais forem implantadas em nossos corpos para complementar ou substituir as nossas próprias memórias. Os demais trabalhos de Kac no campo da interseção arte/biologia estão comentados no verbete referente ao artista. Já Diana Domingues tira proveito do fato de viver numa familia de médicos, em que a discussão biológica é uma constante. A obra mais recente de Domingues está, tal como a de Kac, voltada inteiramente para a discussão das questões abertas no novo fronte biológico. NA instalação My Body, My Blood , 1997 (da série TRANS-E), apresentada originalmente no 8th International Symposium on Electronic Art (Isea 97), em Chicago, temos um ambiente sensorizado que permite aos corpos dos visitantes dialogar com dispositivos eletrônicos. Imagens projetadas numa tela, sons de batidas de coração na pista sonora e o movimento de um líquido vermelho (significando sangue, como uma oferta em rituais xamânicos) são alterados pelas pessoas e pelas máquinas simultaneamente. O movimento errático dos visitantes é 6
  • 36. capturado pelos sensores infravermelhos e enviado às máquinas. Algoritmos de redes neurais interpretam os movimentos humanos e modificam os dados apresentados aos visitantes. Aos poucos, comprendendo o que as máquinas estão, num certo sentido, "comunicando", os visitantes mudam de posição ou provocam movimentos deliberados para ver como o computador vai responder. Depois de algum tempo de mútua "aprendizagem", ambos entram numa situação de simbiose e comunicação. Todas as demais obras de Domingues incluídas nessa série (TRANS- E) vão na mesma direção: uso intensivo de imagens médicas (ecografias, termografias, raios X, ressonância magnética, tomografias computadorizadas), ruídos de freqüência cardíaca tomados dos próprios visitantes por meio de microfones hipersensíveis, simulação do funcionamento de órgãos humanos, uma verdadeira viagem pelo interior das vísceras humanas, onde o visitante passa a ser parte constitutiva da instalação. Outros trabalhos de Domingues no campo de interseção arte/biologia estão comentados no verbete referente à artista. Ultimanente, o trabalho de José Wagner Garcia também tem-se orientado numa direção vizinha à de Kac e Domingues, na direção da vida artificial, envolvendo não exatamente o corpo humano, mas a vida na sua acepção mais larga. Light Automata (1997), por exemplo, é a recriação de uma alga bioluminescente por meio da síntese holográfica. Os trabalhos de Garcia relacionados com a interseção arte/ciência, inclusive arte/biologia, estão comentados no verbete do artista. Depois da generalização dos happenings, das performances e das instalações, depois de questionar o cubo branco dos museus e saltar para o espaço público, depois de empregar todas as espécies de máquinas e aparatos tecnológicos, depois ainda de discutir a tragédia da condição humana e de colocar a nu os constrangimentos, as segregações, os interditos derivados do sexo, da raça, da origem geográfica e da condição socioeconômica, depois de ter experimentado tudo isso, os novos artistas parecem agora reorientar a sua arte para a discussão da própria condição biológica da espécie. 7
  • 37. Poesia e Novas Tecnologias Nos países de expressão portuguesa, as primeiras idéias sobre uma poesia em sintonia com a era das mídias e das novas tecnologias começam a ser esboçadas a partir de meados dos anos 50, graças à intervenção do grupo brasileiro Noigandres (Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos), criador da poesia concreta, e nos anos 60, com o surgimento do grupo português PO.EX, que abrangia cerca de uma dezena de poetas reunidos ao redor de Melo e Castro. Dessa época para cá, a idéia de uma poesia de feição radicalmente contemporânea, capaz de lançar mão dos novos recursos escriturais, não cessa de ganhar adeptos. Um fato digno de atenção, no que diz respeito a essa poesia, é a sua particular expansão em nosso país e a vitalidade das experiências que foram aí desenvolvidas, a ponto de ser praticamente impossível hoje, em qualquer parte do mundo, conceber uma mostra ou uma antologia dessa nova poesia verbo-áudio- moto-visual sem que a presença brasileira seja considerada. Se isso pode parecer normal, atentemos entretanto ao fato de que muitos países, mesmo entre os mais industrializados e com maior hegemonia da mídia, ainda não despertaram para as possibilidades de uma poesia da era da televisão e do computador. O grande desafio agora é dar conta da mutação mais importante que está acontecendo neste momento e que corresponde à migração do texto do papel para a tela. Até há pouco tempo, as categorias teóricas invocadas pelos analistas ainda se ressentiam de uma forte raiz gutenberguiana, ou seja, ainda pressupunham o poema como um objeto materializado numa página impressa, mesmo que utilizando fartamente os recursos de grafismo, tipologia e cromatismo dos caracteres, espacialização do texto e colagem de materiais extraídos de fontes diversas. Mesmo no plano da fatura poética, recursos tecnológicos como o computador eram invocados apenas para a geração de textos, mas o destino final do poema era mesmo a página estática do livro. Agora, no ambiente novo da tela, alguns procedimentos antes impensáveis como parte do repertório poético passam a ser incorporados ao poema, como é o caso do movimento da palavra (ou do texto como
  • 38. um todo) no seu suporte de materialização e da sincronização do texto-imagem com o texto-som. O movimento é o elemento retórico mais próprio aos meios cinemáticos e, a rigor, as primeiras utilizações criativas de textos animados se dão no cinema mudo, quando os cineastas aprenderam a tirar melhor proveito expressivo dos intertítulos colocados entre as imagens. No panorama da língua portuguesa, a incorporação do movimento ao texto poético seguiu um desenvolvimento próprio. Já no âmbito da poesia concreta, a idéia de um texto-em-movimento ou de um texto cinético foi cogitada em diversos momentos, mesmo que, na prática, essa poesia ainda continuasse presa ao suporte fixo do livro. Alguns poemas produzidos no âmbito dessa escola (como Velocidade, de Ronaldo Azeredo, ou Vai e Vem, de José Lino Grünnewald) parecem querer saltar do papel, animar-se e ganhar asas no espaço tridimensional. Quando, em 1995, Ricardo Araújo decidiu animar em computador alguns poemas de Augusto de Campos (SOS, Poema-Bomba), Haroldo de Campos (Parafísica), Décio Pignatari (Femme), Arnaldo Antunes (Dentro) e Julio Plaza (Arco- Íris no Ar Curvo), a tarefa foi grandemente facilitada pelo fato de a animação já estar praticamente "projetada" nos poemas originais, cabendo ao animador a tarefa mais ou menos natural de fazer acontecer as possibilidades motoras a que as obras já apontavam. E no que diz respeito à sincronização do som com a imagem, é preciso considerar que o grupo Noigandres manteve-se o tempo todo em estreita ligação com os compositores de vanguarda e também com criadores da área mais avançada da música popular, e dessa aproximação nasceriam grande número de trabalhos em parceria, fazendo dialogar a forma visual com a forma sonora da poesia. Faltava, porém, dar o passo seguinte e partir para uma poesia midiática completa, capaz de saltar do papel para a tela dos novos meios. Este salto seria dado inicialmente com a utilização, por alguns poetas, de duas tecnologias eletrônicas: o gerador de caracteres e o videotexto. O gerador de caracteres é uma máquina inventada prioritariamente para inserir textos (com diferentes tipologias, tamanhos e cores) sobre a imagem de vídeo e tem sido extensivamente utilizada pela televisão para compor os créditos dos programas, para legendar filmes ou colocar títulos e subtítulos nos trabalhos. Nos anos 80, o 2
  • 39. poeta Melo e Castro teve a idéia de lançar mão do gerador de caracteres para produzir poemas animados, pensados especificamente para veiculação na televisão. Na verdade, já em 1968, Melo e Castro havia realizado um pequeno videopoema de pouco menos de 3 minutos de duração, denominado Roda Lume, que chegou mesmo a ser colocado no ar, no ano seguinte, pela Rádio e Televisão Portuguesa, RTP, num programa de informação literária. Depois, mais exatamente em 1985, quando a Universidade Aberta de Lisboa adquiriu um dispositivo completo de geração de caracteres e edição em vídeo, Melo e Castro foi convidado a desenvolver ali um projeto de videopoesia denominado Signagens, que acabou por se constituir numa das referências mais importantes da atual poesia que utiliza recursos tecnológicos. Nos anos 90, Melo e Castro migra para o Brasil e continua a desenvolver aqui, só que agora utilizando o computador, os seus projetos do videopoema e do infopoema. Paralelamente, estava sendo implantado experimentalmente em São Paulo o sistema de videotexto (uma mistura de telefone e microcomputador, que foi uma espécie de antecessor da telemática e da Internet), para o qual um grupo de poetas e artistas foi convidado a propor trabalhos especificamente concebidos. A primeira mostra de trabalhos produzidos para esse meio (organizada por Julio Plaza) foi disponibilizada na rede paulistana de videotexto já em 1982, no mesmo ano de implantação do sistema. Embora o videotexto permitisse também trabalhar com imagens, a baixa definição de sua tela o tornava um meio mais adequado à redação de textos (como, aliás, o seu próprio nome o sugere), mas esse texto podia passar por qualquer espécie de transformação cromática ou cinética e, nesse sentido, ele ganhava propriedades até então exclusivas da imagem videográfica. E mais: por se tratar de um sistema de comunicação bidirecional, o videotexto permitia também incorporar ao poema as respostas do leitor e, nesse sentido, explorar os primeiros rascunhos de uma escrita interativa, que depois seria levada às últimas conseqüências pelo hipertexto e pelo hiperpoema. Atualmente, o computador e o vídeo (em geral integrados) constituem os dispositivos mais solicitados pelos novos poetas para gerar textos animados. Existem basicamente duas maneiras de enfocar o problema. Numa primeira, o computador é 3
  • 40. encarado como uma ferramenta de trabalho, com a qual se pode gerar textos de qualquer configuração visual, tanto no plano bidimensional como no espaço tridimensional, e em seguida animá-los com qualquer sorte de coreografia que a imaginação for capaz de conceber. A animação é gerada pelo computador quadro a quadro e, em seguida, gravada em vídeo. Este último é, portanto, o dispositivo final de exibição. Esse é o approach escolhido por Arnaldo Antunes (autor da coletânea de trinta videopoemas denominada Nome, de 1993, a única lançada comercialmente no mercado brasileiro de livros e vídeos), por Melo e Castro em sua produção mais recente (Infografitos, Sonhos de Geometria, 1993) e também a opção do primeiro experimento brasileiro com videopoesia: Pulsar (1984), poema de Augusto de Campos, animado em computador por Wagner Garcia e Mário Ramiro, com música de Caetano Veloso. A outra alternativa é utilizar como dispositivo final de exibição o próprio computador com que se construiu o poema, de modo a poder lançar mão de recursos que só este possibilita, como a estrutura em aberto do poema, a navegação não-linear ao longo do texto e a participação interativa do leitor. Neste caso, o poema deve ser distribuído diretamente através de meios digitais, como disquetes e CD-ROMs, ou então deve ser acessado eletronicamente, pelas redes telemáticas (Internet, por exemplo). Walter Silveira, Lenora de Barros e Tadeu Knudsen fizeram algumas experiências interessantes nesse sentido, publicadas e distribuídas comercialmente na antologia em CD-ROM Arte Cidade: a Cidade e Seus Fluxos, mas a exploração mais sistemática e mais avançada dessa possibilidade está sendo conduzida por Eduardo Kac, brasileiro que vive atualmente em Chicago (Estados Unidos) e que concebe os seus poemas alternativamente em português e em inglês, ou então misturando as duas línguas. A primeira modalidade de movimento com que se pode trabalhar nos meios eletrônicos e digitais é aquela determinada pela edição. Por estar inserido num meio de natureza cinemática, o texto aparece ao leitor num fluxo temporal: cada uma de suas partes começa, se desenvolve e acaba em tempos determinados pela edição. Em geral, no meio eletrônico não se expõe o texto inteiro ao leitor de uma só vez: ele pode ser apresentado aos poucos, frase por frase, palavra por palavra, ou mesmo letra por letra. A tela não é um lugar confortável para ler grandes volumes de texto, razão porque, até por adequação ao meio, a edição acaba sendo a melhor maneira 4
  • 41. de construir um enunciado, parte por parte, ao longo de um certo intervalo temporal. Os cortes determinam, portanto, a duração do texto na tela e o ritmo imposto pela sucessão dos vários planos textuais. A duração tem relação direta com a legibilidade do texto: ela pode ser tão curta que impossibilite a própria leitura, ou tão lenta a ponto de o texto continuar a se impor ao leitor mesmo depois de terminada a leitura. Insect.Desperto, de Eduardo Kac, e Não Tem Que, de Arnaldo Antunes, são exemplos de poemas em que a legibilidade é propositalmente dificultada pela velocidade com que o texto é apresentado na tela. Neste caso, a leitura efetuada pelo leitor é necessariamente fragmentária e evocativa, decorrendo das palavras que este último consiga captar aleatoriamente e dos sentidos que for capaz de construir com elas. Se o texto permanece na tela um tempo maior que o necessário para a leitura, duas razões podem ser invocadas para explicá-lo: ou se quer dar ênfase aos aspectos mais propriamente icônicos (textura, forma, cor) daquilo que se oferece na tela, bem como também aos recursos musicais ou vocais que estão sendo trabalhados na trilha sonora, ou então se espera do leitor alguma reação física para continuar, caso típico dos hiperpoemas de Eduardo Kac (Secret, Storms, etc.), que só evoluem à medida que o leitor interage com eles, efetuando suas escolhas de letras, de palavras ou de direção para a qual o texto deve desdobrar-se. Já o ritmo tem mais afinidades com a estrutura musical do que com a estrutura métrica do modelo poético convencional e, em muitos casos, ele é realmente determinado pela música com que o poema é em geral sincronizado. Ele pode ser um ritmo pulsante, determinado por tambores primitivos, que fazem aparecer e desaparecer sincronizadamente as palavras na tela (como no Objectotem, 1985, de Melo e Castro), ou um ritmo mais irregular e frenético, como no Se Não Se, de Arnaldo Antunes, em que as letras de vários abecedários se revezam velozmente num painel, mas se congelam bruscamente quando formam uma palavra que coincide com aquela cantada na trilha sonora. Os ritmos também são grandemente incrementados pelo estilo dos cortes: em geral, ritmos mais rápidos pedem corte seco ou passagens através de cortinas rápidas, enquanto ritmos mais lentos são melhor obtidos por meio de fusões, superposições ou passagens através de escurecimento (fade out) e clareamento (fade in) da tela. 5
  • 42. Outra forma de o texto ser apresentado ao leitor é por seu rolamento na tela (no sentido vertical ou horizontal), recurso muito usado pela televisão para a apresentação dos créditos. Pensemos no caso de Cidade, poema concreto de Augusto de Campos, que consiste numa única palavra quilométrica, constituída pela imbricação dos radicais de várias palavras terminadas em -cidade. Esse poema, tão difícil de se adequar à forma impressa (uma vez que, na concepção original do autor, o seu único "verso" não pode ser quebrado em linhas sucessivas, mas deve ser escrito numa única e longuíssima linha), encontra na tela o seu meio de apresentação mais adequado, graças ao processo de rolamento horizontal, conforme se pode verificar nas versões em filme (de Tata Amaral), em vídeo (de Walter Silveira) e em painel eletrônico (do próprio Augusto de Campos). Pessoa, de Arnaldo Antunes, parece ser um dos melhores exemplos de uso criativo do rolamento horizontal: o poema, que trata do fenecimento de todas as coisas e de todas as idéias, passa correndo na tela, numa velocidade que quase ultrapassa o limite da legibilidade, ao mesmo tempo que vai sendo expandido por uma zoom-in, enquanto, na direção contrária, corre um fundo manuscrito intrincado e ilegível, evocador de todo o ruído verborrágico do homem. Ainda no que diz respeito ao movimento do texto, é preciso considerar a imensa gama de possibilidades de metamorfose que a(s) palavra(s) pode(m) sofrer na tela. Uma vez que, num meio cinemático, as formas não precisam ser necessariamente fixas, mas podem estar em permanente mutação ao longo de um intervalo de tempo, o processo de transformação das palavras constitui um recurso precioso para o poeta que lida com novos meios. No vídeo ou no computador, as palavras podem sofrer transformações na sua estrutura interna (forma, cor, textura) e podem transformar-se em outras palavras ou em imagens puras, sem referência verbal. Processos de metamorfose podem ser obtidos com simples fusão de dois textos diferentes, ou projetando quadro a quadro uma animação, ou ainda lançando mão em computador de algoritmos especificamente concebidos para esse fim, como por exemplo o Morph, utilizado por Arnaldo Antunes em vários videopoemas de sua antologia Nome. 6
  • 43. Entre as várias possibilidades de transformar uma palavra ou texto, as que têm rendido os resultados mais surpreendentes nos novos processos poéticos são aquelas em que a linguagem transita entre o sentido e o não-sentido, ou entre o verbal e o icônico. No primeiro caso, palavras e frases bem definidas quanto ao aspecto material ou quanto ao seu significado verbal podem se dissolver ou se desmanchar no espaço, até se converterem em ruído puro. Em Ideovídeo (1988), de Melo e Castro, por exemplo, as palavras que são dadas a ler na tela estão sendo continuamente encobertas por novas camadas textuais e corroídas por anamorfoses ou quaisquer outros processos de dissolução. As palavras surgem, se desintegram e ressurgem novamente modificadas, num movimento que vai da pura transparência verbal à absoluta opacidade significante. No infopoema Accident, de Eduardo Kac, os "versos" estão sendo continuamente "sugados" por uma espécie de atrator estranho ou buraco negro, que desintegra sua coerência verbal. Porém, no caos gerado pelo desmembramento do texto, novas palavras podem surgir a partir do aglutinamento aleatório das partes despregadas de outras palavras e novos sentidos podem emergir da turbulência verbal. A metamorfose talvez mais emblemática das novas formas poéticas é aquela que faz a transição da palavra à imagem e vice-versa. Na verdade, um dos desafios centrais de toda a poesia contemporânea tem sido colocar em operação uma ambigüidade básica da palavra escrita, que é ter uma função icônica, ou seja, ser imagem antes de mais nada, dotada de forma, textura, dimensão e cor, mas ao mesmo tempo ter também uma função simbólica, determinada pelos seus significados verbais. O poeta, aqui quase confundido com o artista plástico e o cineasta, trabalha nessa zona de indiferenciação ou de reversibilidade entre o simbólico da palavra e o icônico da imagem e pode tirar partido da transição entre uma condição e outra. Em certos trabalhos de Eduardo Kac (por exemplo, a série Erratum, disponível na Web), é quase impossível distinguir uma palavra da imagem que lhe serve de "fundo", porque traços da palavra estão no fundo e traços do fundo estão na palavra. Igualmente, em Ar, de Arnaldo Antunes, as palavras que constituem o videopoema são recortadas da própria imagem de fundo e guardam portanto traços da imagem de onde foram arrancadas. Quando se aproximam do primeiro plano da tela, elas perdem sua legibilidade e as imagens que as constituem 7