2. Editorial
Dedicatória
A Jesus Cristo, o logos a que tantos procuravam
Origem de todo conhecimento, todo o bem e toda a verdade.
Há cerca de um ano brotava da colaboração de amigos a iniciativa de promover
um espaço para a reunião de ideias que pareciam diversas, mas que, no entanto,
encontravam-se motivadas por uma intuição comum e que, embora não fosse
efetivamente nova, não encontrava espaço e meios para sua propagação.
Em 1916, o então Arcebispo de Olinda, Dom Sebastião Leme, empunhava como
estandarte forte sua célebre carta pastoral na qual conclamava os católicos a
reunirem-se em prol de um ideal de reordenamento para a hegemonia da Igreja.
Foi sob esta inspiração que nasceu o Scena Crítica, a princípio sob uma égide
mais informal, explorando os novos meios de propagação através das publicações
em nosso sítio.
Estando mais concretizado nosso projeto inicial, decidimos corajosamente evoluir
para uma estrutura mais adequada aos moldes e protocolos acadêmicos, no
intuito de viabilizar um espaço mais seguro e amplo para aqueles que já conosco
colaboram, além daqueles que, porventura, virão a aderir a nossa grege de
colunistas.
O contexto hodierno é paradoxalmente próximo e distante do cenário brasileiro
de 1916. É distante no sentido em que numericamente e efetivamente os
católicos não constituem mais a maioria suprema do conjunto da nação. É
distante também no sentido em que a Igreja se autocompreende e busca se
posicionar.
É próximo, porém, na medida em que os católicos se encontram dispersos e
ávidos por um direcionamento e por um destino a realizar no Brasil,
especialmente no que tange à identidade laical e à oblação de seus talentos em
prol da sociedade eclesial e civil.
Profundamente inspirados pelo humanismo cristão, nós cremos que nossa missão
enquanto católicos neste momento da História, não é de procurar nem almejar a
hegemonia institucional, muito menos o monopólio da cultura, mas sim buscar
promover nos pontos de intercessão com o conjunto da sociedade um
crescimento comum, ainda que salvaguardando suas mútuas autonomias.
Estaremos empenhados no esforço de conjugar as mais diversas áreas do
conhecimento, especialmente das humanidades, em colaborar, propor e
desenvolver temas de relevância à Igreja e à sociedade, sempre no empenho de
salvaguardar a pluralidade de opiniões e posições.
É sob os auspícios do Senhor ressuscitado e de nossos patronos, que neste tempo
pascal apresentamos a primeira edição de nossa revista, na esperança de nos
mantermos firmes sob o nosso signo: amarmos a verdade, a Deus e aos homens.
Filipe Machado
Scena Crítica é uma publicação
trimestral, sem fins lucrativos
scenacritica@gmail.com
scenacritica.wixsite.com
instagram.com/scenacritica
Editor
Filipe Machado
Colaboradores desta edição
Bárbara Bedôr Novo
Barbara Lima
Camila Porfiro
Eduardo Silva
Eliseu Cidade
Haloma Reis
Hélder Luis
Jeremy Boot
Maurício Dias
Pedro Henrique Abreu
Pedro Paulo dos Santos
Rafael Santos
Tainara de Vasconcellos
Telmo Olímpio
Scena Crítica
Filosofia, literatura, artes, cultura
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 2
SCENA
S
3. Júbilo pascal
Ao lançarmos, nestes dias em que se celebra a Páscoa, a
primeira edição da Revista Scena Crítica, o fazemos para
que esse novo projeto surja dessa alegria pascal que deve
tomar conta do coração humano, alegria da certeza de
que os percalços da vida não têm a última palavra sobre a
nossa liberdade, se bem ordenada.
O material que doravante divulgamos é amplo e variado.
Trazendo a "peculiaridade" com tentativa de análise social,
cultural e histórica, Eduardo Silva abre suas Crônicas de
um tempo peculiar de forma instigante. Maurício Dias,
por sua vez, traz ao debate a relação entre economia e
socidade, traçando um panorama sobre o status atual da
questão em seu artigo O ovo e a galinha.
Cumprindo nosso dever de reverenciar os que nos
precederam, a coluna Vox Patroni reverencia Ariano
Suassuna pela voz de Gustavo Corção. Saindo do armorial
e chegando ao clássico greco-romano, encontramos a
análise de Telmo Olímpio a partir da obra homérica,
discorrendo sobre O desejo humano pela glória.
Nada melhor do que um britânico para nos fazer
megulhar na Londes do final do séx. XIX e ali encontrar
Sherlock Holmes, o detetive consultor de Sir Arthur
Doyle, o que Jeremy Boot faz com maestria.
No Dossiê desta primeira edição, Scena Crítica, sempre
atenta ao hoje, apresenta aos leitores o jovem mas
promissor movimento Comunhão Popular e sua proposta
de política social.
Estreando o Caderno de Cinema, Filipe Machado nos traz
um belo percurso sobre as impressões da Igreja acerca da
sétima arte, passando pela amizade entre o cineasta
Pasolini e o jesuíta Fantuzzi até chegar aos inícios da
crítica cinematográfica no Brasil.
Uma das grandes referências filosóficas de Scena Crítica é
Jacques Maritain. E quem o traz nesta edição é Hélder
Luis, com seu artigo Jacques Maritain e a influência do
humanismo na filosofia política brasileira.
Na coluna Livro aberto, Barbara Lima abre para nós O
tesuro escondido, do Cardeal português José Tolentino
Mendonça, traçando um percurso para a busca interior.
Na Ágora, nossa praça de divulgação literária, brilham três
promissores nomes da produção poética: Barbara Bedor,
Haloma Reis e Tainara Vasconcellos, com textos a serem
degustados. Na praça ainda há espaço para Eliseu Cidade
que nos apresenta o conceito de antropoceno no livro
Homo Deus.
Gustavo Corção, além de marcar presença nesta edição no
Vox Patroni, retorna como A esfinge raspada, no
excelente resgate que Pedro Paulo dos Santos faz de sua
figura. Rafael Santos, por sua vez, inaugurando seus
Ensaios do Cotidiano, convida-nos a um olhar sobre o
eros, partindo da perspectiva da esponsalidade.
Camila Porfiro, em seu artigo O judiciário e a opinião
pública, insere-nos no que há de mais atual no cenário
brasileiro acerca da relação entre o poder judiciário e a
voz das ruas. Após dar uma passada no In Scena para
conferir as novidades bibliográficas e os eventos, não deixe
conferir, na coluna O monge Copista, o texto de Pedro
Henrique Abreu, análise sobre o Reino Unido e seu
sistema político.
Como o leitor pode notar, Scena Crítica, conforme indica
o editorial desta edição, procura unir ideias que parecem
diversas, mas que se encontram na motivação comum de
divulgar saberes, sempre com um olhar a partir da
integralidade da pessoa humana.
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Abril-junho 2023 | Scena Crítica 3
4. Í N D I C E
Crônicas de um tempo peculiar, pág. 6
Peculiaridades
A esfinge raspada, pág. 45
Uma urgente recuperação da memória de Gustavo Corção
Ágora, pág. 32
Praça de divulgação literária
Dossiê, pág. 14
Sob Deus com os pobres
Sherlock Holmes, pág. 12
O detetive consultor de Sir Arthur Doyle
O ovo e galinha, pág. 7
Vox patroni, pág. 9
Gustavo Corção: A Ariano Suassuna
O desejo humano pela glória, pág. 11
Caderno de cinema, pág. 14
Do Coliseu ao cinematógrafo
Livro aberto, pág. 14
O tesouro escondido, José Tolentino Mendonça
Ensaios do cotidiano, pág. 45
Eros e esponsalidade
O judiciário e a opinião pública, pág. 45
Uma perspectiva pragmática
In Scena, pág. 45
O monge copista, pág. 45
Em xeque
Jaques Maritain e a influência do
humanismo na política brasieira, pág. 11
5. "E enquanto o verdadeiro homem de letras participa, dolorosa ou
alegremente, de todas as dores ou alegrias dos outros homens de
quem se sente o intérprete e o guia, – deixa a vaidade literária
apenas subsistir, no desejo malsão de aparecer, a ilusão ridícula das
gloríolas e a tola preocupação da publicidade. Essa pseudoliteratura
é o paraíso do individualismo."
A L C E U A M O R O S O L I M A
6. pesar de minha pouca idade, já consigo perceber
perfeitamente que não existe era de ouro. Cada
tempo tem lá seus percalços e seus dramas e seria
ingenuidade demais achar que houve tempo perfeito,
ainda que grande seja a tentação de condenar os dias que
se vive, idealizando um passado que não existiu. Vá lá, não
é fácil olhar para essa década de 20 do séc. XXI e não fazer
comparações com os “dourados” anos 1920.
Buscando um adjetivo que pudesse caracterizar o
presente em que vivo, observo e atuo, achei-o na palavra
“peculiar”. Nela é possível utilizar um tom crítico sem ser
ácido, indicar as particularidades do hoje evitando
comparações anacrônicas, destacar suas contradições sem
pedantismos. Peculiar é o passado que não vivi; e o futuro
que não viverei há de ter as suas próprias peculiaridades.
Mas, como vivo no hic et nunc, no aqui e agora, é dele que
posso falar das peculiaridades com alguma propriedade.
Com isso não quero dizer que ao falar do presente não vá
buscar ajuda no passado. Demonstra grande ignorância
quem queira viver o hoje desprezando o ontem. E tentar
especular, sóbria e objetivamente, sobre o futuro incerto
que nos aguarda, é um exercício natural de quem vive um
dia de cada vez. Portanto, nessas peculiares crônicas que
agora inicio, falarei muito do presente, mais um tanto do
passado e alguma coisa do futuro.
Chesterton, que muito propriamente foi apelidado de “o
príncipe do paradoxo”, dizia que o mundo moderno é pior
do que qualquer sátira que dele se faça. Não sei se a
realidade é realmente pior, mas, de fato, olhando as
notícias, reels e posts que pululam em tempo real em
nossas time lines, parece que vivemos todo dia numa
sátira (e de muito mau gosto na maioria das vezes. Se bem
que parece que há quem goste. É como se diz: há gosto
para tudo).
Não quero que o desavisado leitor pense que sou um
pessimista. Sou totalmente avesso ao pessimismo. Tomo
para mim aquela máxima de Pessoa no Livro do
desassossego: “Ser pessimista é tomar qualquer coisa
como trágico, e essa atitude é um exagero e um
incômodo”. Mas também não sou um ingênuo. In medio
virtus, diriam os escolásticos medievais, seguindo
Aristóteles. Entendo que a melhor posição diante do
mundo é o realismo, procurar ver tudo como se é. E nesse
exercício percebe-se, de fato, que a vida tem lá suas cenas
trágicas. Mas tem também suas cenas heroicas, épicas até,
e isso traz esperança. Não há pessimismo que resista
diante de uma esperança bem fundada, realista, sem nada
de ingenuidade ou sentimentalismo medíocre. Não à toa a
tradição cristã colocou a esperança na mais alta categoria
das virtudes, ditas teologais, junto da fé e da caridade.
Diante dos dias em que vivemos, dias pós-pandêmicos,
com ares de guerra mundial e de crise político-social no
cenário brasileiro, esperança é uma palavra interessante,
ou melhor, peculiar. As vezes surge vazia, numa frase
inocente, ou numa fala de ingenuidade constrangedora,
piegas. Outras vezes, mais classicamente, surge
apanhando na boca dos pessimistas. Já o realista, hoje
animal raro, vê na esperança certa virtude de combustível
que impulsiona o presente ao futuro incerto, amparado
pela experiência do passado.
Mas não é de esperança que trata esse texto. É de
peculiaridades, conjunto de características muito próprias
desses dias, surgidas dos mais diversos apelos, ideias e
tendências que habitam o mundo hodierno.
Peculiaridades boas. Mas também peculiaridades más, não
tenhamos medo de falar. Peculiaridades também
disfarçadas de bem, o que na verdade as fazem más, já
que, como dizia meu velho professor de ética filosófica
(perdoe-me o benevolente leitor por mais esse latinzinho),
bonum ex integra causa – o bem provém de uma causa
íntegra.
E já que o leitor benevolente me perdoou os latinismos
desta crônica, permita-me, então, um pouco de
etimologia. Peculiar vem do latim, peculiaris, aquilo que é
adquirido por pecúlio, por economias. Toda peculiaridade,
portanto, tem um preço. E algumas um preço muito caro.
Vejo que muitos até se endividam existencialmente para
adquirir e manter certas peculiaridades. Talvez na raiz
disso tudo esteja uma sede justa por autenticidade. As
fontes, porém, onde se busca saciar essa sede, parecem-
me um tanto duvidosas.
Aqui, portanto, serei um observador de peculiaridades,
sem deixar de ter as minhas próprias. Sem deixar de estar
de alguma forma imerso e atingido pelas peculiaridades
que formam nossa sociedade. Serão crônicas de um tempo
peculiar, a tratar de certas peculiaridades crônicas.
CRÔNICAS DE UM
TEMPO PECULIAR
PECULIARIDADES
Eduardo Silva, graduado em
História pela UFRRJ e em Filosofia
pela PUC-Rio, encaminha os
estudos também para a literatura e
a teologia, sempre a partir de um
diálogo entre o pensamento
tomista e as diversas correntes
contemporâneas.
Abril/junho 2023 | Scena Crítica 6
A
7. pergunta sobre o que veio primeiro sempre
aparece ao longo da História, seja nas nossas,
pessoais, ou em seu sentido c oletivo. Pode-se
dizer que a ideia de causa e consequência remete para
esta questão. A noção de dialética também, ao seu modo.
O ponto é que o primeiro fator, aquele que gera todas as
demais consequências, é a pedra filosofal de muitos
debates intelectuais.
Tanto Marc Bloch, que discordava da busca pela origem
dos eventos na História, quanto Ernst Mach, que defendia
a posição descritiva dos fenômenos na Física, discordavam
em alguma medida da noção peremptória de causa e
consequência, ainda que em ambientes científicos
distintos.
No debate econômico, a projeção de causa e
consequência tem o seu valor, ganhando contornos cada
vez maiores com a utilização da matemática em sua
metodologia científica, ocorrida com relativa aceleração
especialmente a partir dos anos 1950.
Quero defender uma hipótese pouco usual neste breve
texto: o debate econômico, em especial o veiculado pelas
mídias, mas também o acadêmico, é menos relevante e é
mais consequência do que causa para a resolução de
problemas e a busca por soluções de um determinado
país. E é consequência de outros debates fora da esfera
econômica a que estamos acostumados.
A minha provocação reside em três pontos centrais. O
primeiro, e talvez o mais óbvio, é o de que os debates
econômicos se apropriam dos termos, da linguagem e do
espírito de tempo de cada sociedade.
Vejamos o seguinte exemplo. Hoje vivenciamos uma
hipertrofia das identidades, respaldadas pelo mundo
intelectual e cultural do país. A aceitação desta
enunciação reverberou nos debates econômicos a ponto
de muitos estudos se apropriarem dos termos e formas de
pensar desta questão. Mesmo na mídia, questões
relacionadas ao preconceito e à representatividade fazem
parte da pauta de assuntos de ordem econômica.
Outro exemplo é a utilização do uso de dados utilizados
nos mais diversos setores da sociedade. A economia, em
especial a sua abordagem micro, catapultou estudos em
que a base metodológica passa pela apropriação de
dados, em detrimento de debates teóricos. Na imprensa
há muito vezes um frisson pelo dado econômico mais
recente e a possibilidade de projeção feita pelos mais
diferentes órgãos. É o Zeitgeist dos tempos que vivemos.
O segundo ponto, que vai ao encontro do primeiro, é o de
que a economia é parte da sociedade e não o seu
contrário. O que também parece uma obviedade ao
primeiro olhar, não é tanto se observarmos uma
autonomização do debate econômico em relação a uma
série de outros debates na sociedade.
Há um curioso paradoxo na forma como tem sido
externalizado o debate sobre a economia no Brasil:
enquanto outras áreas da gestão pública, como educação
e ciência, estão sendo sugadas por um economicismo até
então paralisante, a veiculação da política econômica fica
presa em pontos tão exíguos que mesmo os debates na
academia sobre a economia brasileira não aparecem nas
discussões públicas sobre a condução da política
econômica.
É bem verdade que o saber econômico oriundo das
universidades brasileiras, mais heterogêneo e amplo, tem
uma dificuldade notória em se popularizar nos debates
mais cultos do país, em parte porque não há muito
interesse na própria imprensa sobre essas questões, em
parte porque os estudos universitários têm histórica
dificuldade para se popularizar. O próprio campo econô-
mico tem um agravante porque tendeu a se isolar das
demais Ciências Sociais como polo de conhecimento
científico, a ponto de ter seus próprios jargões, semelhante
ao Direito, e contar a história de sua disciplina fora do
escopo dos grandes paradigmas das demais Ciências
Sociais, o que o difere dos demais. A utilização da
matemática com a modelagem econométrica e estatística,
ainda que comecem a aparecer com maior projeção nos
demais campos, também foi um fator determinante para o
seu isolamento nas últimas décadas.
Parte desse movimento também ocorre porque não há
muito interesse em alguns setores da sociedade em um
maior debate sobre a política econômica. Restrita a grupos
cada vez mais enxutos e técnicos, a sua reverberação na
imprensa mais parece buscar uma só visão do que veicular
as várias possibilidades democráticas de se pensar a
economia do país.
Esse samba de uma nota só muitas vezes leva ao ponto já
levantado de que os debates de outras áreas ficam a
mercê dos economistas, além de parecer que todo o
assunto relevante do país tem que passar pelo aval dos
mesmos. A projeção de pensarmos o ramo da saúde, por
exemplo, sem analisarmos a relação custo-benefício e os
gastos públicos parece no atual cenário uma heresia.
Evidente que há relevância em estudos e discussões com
esse viés, mas o problema é pautar quase todo o debate
sobre a saúde do país a partir deste prisma, estabelecendo
uma hierarquia de importância que pouco se traduz na
discussão efetiva sobre o ecossistema da indústria da
saúde, a gestão dos profissionais, a introdução do 5G em
processos disruptivos de análise médica, etc.
Utilizei o exemplo da saúde, mas educação, segurança,
ciência e muitos outros pontos também sofrem desse
apequenamento. A questão é, portanto, de ênfase. Se tem
colocado a economia como mestra maior de assuntos que
ela deveria ser secundária ou nem sequer ter papel
relevante. Não é por acaso que um presidente pode usar o
argumento da economia para permitir a população
circular durante uma pandemia e parte da população
acatar como destino inexorável.
Nesse sentido, o terceiro ponto vai de encontro ao destino
que nos é traçado. Porque o debate sobre a comunidade, a
nação ou o que nós enquanto sociedade queremos ser é,
ou deveria ser, a locomotiva de projeção do país, com o
debate econômico sendo consequência desta primeira
antevisão.
O ovo e a galinha
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 7
A
8. Em outras palavras, o desenvolvimento econômico de um
país depende mais de debates sobre a nação, sobre o que
queremos e o que não queremos ser como país, do que
sobre a taxa de juros, a dívida pública ou o mercado
financeiro. Não quero com isso negar a importância de tais
discussões, mas quero relativizá-las como fatores
primordiais para o sucesso de uma nação. Essa
relativização acontece na medida em que cada país,
quando assume uma postura sobre o que quer como
nação, acaba por observar esses pontos na esteira dos
primeiros, se tornando, portanto, mais consequência do
que causa para a mudança projetada.
Pode parecer estranho à primeira vista, mas uma iniciativa
como a Scena Crítica que procura transmitir textos com
boa qualidade dentro das Ciências Sociais e Humanas tem
um papel mais relevante para a economia do que
possamos supor. Tendo em vista que a economia vem a
reboque de outras forças da sociedade, de ordem
intelectual, empresarial, religiosa e moral, qualquer
iniciativa que tem por objetivo a melhora do debate tem
efeitos na esfera econômica, ainda que pequenos e
secundários.
Vejamos um caso mais concreto. O Brasil foi o segundo
país de maior crescimento econômico no mundo entre as
décadas de 1930 e 1970. Por mais que possamos
reinterpretar esse fato à luz de eventos exógenos, como a
Segunda Guerra Mundial, ou endógenos, como a
duplicação da população brasileira no mesmo período, o
fato é que esse período o país vivenciou um crescimento
bastante significativo e destoante dos seus demais
períodos históricos.
Paralelamente esse foi o período de grandes debates
nacionais em torno da nacionalidade brasileira, sobre o
que seríamos e deveríamos ser como nação. Já na década
de 1930 temos a publicação de Casa Grande & Senzala de
Gilberto Freyre que, à luz dos muitos estudos
antropológicos e sociológicos da época, reinventa a forma
como devemos olhar para o Brasil, afirmando a
importância das culturas indígena e africana na formação
social do Brasil, calcado na mistura de etnias e na
plasticidade social.
Na mesma década Sérgio Buarque de Holanda inicia a sua
trajetória intelectual buscando pensar o Brasil moderno a
partir do legado transmitido durante a colonização
portuguesa. Mesmo em tom crítico, a sua investigação
projeta novos olhares para o enfrentamento do que viria a
ser o Brasil urbano e moderno, mas ainda atrelado às
posturas que remetem para a vida colonial.
Caio Padro Júnior e Celso Furtado foram dois pensadores
do desenvolvimento brasileiro, cada um ao seu modo, e
Ignácio Rangel buscou integrar os ciclos longos do
desenvolvimento capitalista na particularidade brasileira,
com textos inovadores sobre a inflação e a esfera
produtiva do país. E podemos também falar em Darcy
Ribeiro, com a sua proposta de pensar a sociedade
brasileira como um povo novo, que destoa dos demais
pelo caráter miscigenado e pela diversidade.
É um erro pressupor que tais debates não tiveram relação
alguma com o crescimento e desenvolvimento econômico
da época, até porque tais autores e obras são oriundos de
embates que já estavam sendo travados no mundo
intelectual nacional do contexto mencionado. A reflexão
sobre o que queremos ser como coletivo singular é
fundamental para minimamente darmos alguma direção
sobre o nosso futuro em sociedade, e evidentemente tais
pontos têm impacto direto no caminho que queremos
vislumbrar na área econômica. Independente do regime
político, da orientação ideológica e da liderança em
questão, o debate que existiu no Brasil durante esse
período era mais rico, mais focado em questões relevantes
para o país e mais consciente do seu papel do que nos
dias de hoje.
Não quero aqui de maneira alguma menosprezar as
discussões em torno de política industrial, sobre a
estrutura produtiva do país ou mesmo sobre os impostos e
pressões de grandes interesses econômicos na condução
da política econômica – pontos esses que, por sinal,
também aparecem muito pouco nas grandes mídias – mas
defender a hipótese de que os debates sobre o Brasil,
sobre o que somos, sobre a nação que queremos e a
posição do país perante as questões no mundo são os
debates essenciais que redefinem a economia de um país.
As questões econômicas são secundárias a essas e, por
consequência, são mais determinados do que
determinantes.
Não é surpreendente ver que a economia do país patina,
mesmo com todo o economicismo que nos é jogado. Hoje
o debate brasileiro está no nível do risível. Mesmo nos
espaços destinados ao debate público, carecem elementos
afetivos e mesmo alguma criatividade para se pensar o
Brasil. O país perdeu o rumo no qual a sua própria
identidade e existência está em causa frente aos vários
ataques que vem sofrendo nas últimas décadas.
Praticamente não há entendimento entre as divergências
que existem.
Nem a galinha entende o ovo, como já disse Clarisse
Lispector. O ovo, primeira moradia de muitos animais,
fonte de muitas proteínas e eterno rival da galinha sobre
causa e consequência. O ovo tem muito mais variabilidade
do que a galinha, ainda que a galinha seja o primeiro meio
de transporte do ovo. São rivais de peso. Que isso nos
ajude a pensar sobre quem veio primeiro, a economia ou a
sociedade? Talvez nesta última rivalidade não demoremos
muito tempo para achar a resposta.
Abril-junho 2023 | Scena Crítica
Maurício Dias é graduado e mestre
em História pela UERJ e PUC-RJ e
possui formação em Edição e
Montagem Cinematográfica pela
Escola de Cinema Darcy Ribeiro.
Atualmente faz doutorado em
Economia Política pelas
Universidades de Lisboa, Coimbra e
Instituto Universitário de Lisboa,
pesquisando a interação do
pensamento econômico com as
demais áreas das Ciências Sociais.
8
9. a República era o começo do fim do
mundo. E quando nós o cercávamos para
exigir dele uma explicação mais clara, o
bom súdito perene de Dom Sebastião e de
Dom Carlos, com gestos largos e simples,
que devem ser o dos cantores que Homero
compendiou, meu bom português
respondia com olhar iluminado:
— Ai! os meninos não sabem o que é a
gente ver o Rei passar...
E o gesto reticente era a comitiva de um
Rei que passa diante de todas as lendas do
mundo.
“Ver o Rei passar”. Certo carnaval antigo, há
cem ou duzentos anos dos mil que já
vivi,andava em moda uma canção e
lembra-me bem o impacto violento que
recebi numa esquina quando vi caído no
chão um papel com o nome da canção em
grossas letras: “Que Rei sou eu?”. Deus nos
fez Rei, Homem-Rei, de todas as coisas do
mundo inanimado, do mundo de plantas
odoríferas e animais que voam, correm ou
se arrastam. Mas nós, ai de nós, aonde dei-
Vox patroni
dando voz aos que nos precederam
A ARIANO SUASSUNA
Gustavo Corção, 1971
gago, coisas que aliás logo se viram: mas
creio que ao cabo de poucos minutos todas
as pessoas presentes estavam a sonhar com
um mundo em que a humanidade inteira, e
principalmente os escritores, fossem
canhestros e gagos como Ariano Suassuna;
e creio também que no mesmo breve
tempo Suassuna sentiu que já ganhara o
coração de toda a Permanência — e que a
nota principal daquela grande família que o
ouvia com tanta atenção e alegria é a
amizade, amizade começada na terra e
desabrochada no céu —, e amizade na qual
já se acha solidamente inscrito o rapsodo
que nos trouxe ontem a notícia da
maravilhosa poesia popular que são as
flores e os cardos de nosso amado e sofrido
nordeste.
Ariano Suassuna, numa introdução
improvisada e desordenada, falou de si
mesmo com graça e humildade, como só
sabem fazer as almas dotadas e sofridas
que têm o vivo sentimento do trágico e do
ridículo da vida. Falou-nos de sua composi-
9 Scena Crítica | Abril-junho 2023
T
ivemos quarta-feira passada na Permanência, numa
sala repleta, que quiséramos mais ampla e mais re-
pleta, uma conferência de Ariano Suassuna sobre o
Romanceiro Popular do Nordeste. Depois de uma sábia
apresentação de Gladstone Chaves de Melo que esboçou
um resumo da vida já bem vivida do mais jovem membro
do Conselho Federal de Cultura, e uma interpretação de
seu último grande livro, “A Pedra do Reino’ (Ed. José
Olimpio, 1971), Ariano Suassuna levantou-se, digo melhor,
desengoçou-se e começou por dizer que era canhestro e
ção, de sua heteronomia, entre cujos elementos
predominam o palhaço e o rei que todos somos. E aqui,
para responder ao susto de uma boa senhora que me
telefonara espantada de meu aviso no jornal, onde
anunciava a conferência de “um comunista”, Ariano
Suassuna explicou que era monarquista e que suspeitava
que metade da sala o fosse sem saber, ou sem ousar
confessar. Acrescentou seu horror ao marxismo que o bom
povo do nordeste energicamente repeliu, como o repeliu
também o bom povo camponês da Sibéria. E a
demonstração, como se costuma dizer, estava na cara do
homem menos pedante que em toda minha longa vida já
encontrei. Nós sabemos que há duas espécies da mesma
hedionda deformação do homem, manifestada no
pedantismo: há o pseudo-científico e desidratado
pedantismo dos marxistas, e o floreado pedantismo tão
bem representado pelo professor Cândido Mendes de
Almeida de que já tratamos na quinta-feira. Não logrando
a síntese essencial do cômico e rei, esta casta de retórico
só consegue realizar o hemisfério palhaço de nossa mísera
condição. Suassuna está nos antípodas dessa raça de
anões que em vão se esticam, ele é alto de pernas e de
coração.
Por essa e outras, receio muito pela mantença do regime
(refiro-me à vetusta e quase centenária República) se
aparecerem por aí muitos Suassunas, porque na verdade
verdadeira somos todos nós, e não só os incorrigíveis
franceses que decapitaram sua história, temos nostalgia
de um reinado. Lembro-me de um bom jardineiro
português, talassa, ultramontano, que plantou flores no
jardim de minha infância — flores que ainda perfumam
meus sonhos — e que explicava desolado à minha mãe,
depois do assassinato do Rei Dom Carlos de Portugal, que
xamos esqu nossa coroa? Quisemos ser Rei do Rei, e aqui
estamos nos carnavais da vida, metade-rei metade-
palhaço, a indagarmos aflitos: “Que Rei sou eu?”.
* * *
Deixemos o regime em suas bases e agora vamos ao
Romanceiro que Suassuna nos trouxe. Confesso que até
ontem, talvez por ter nascido no Rocha, nesta metrópole
que há muitos séculos, no tempo em que os animais não
falavam, foi uma cidade maravilhosa, ou por alguma outra
razão com que não atino, nunca dediquei em toda minha
vida a devida atenção — agora friso o termo devida — a esta
casta de cultura, de ascensão humana, de conquista, que
se esconde, como o Romanceiro do Nordeste, sob o
disfarce da pequenez à espera de um Homero que a
transforme em espanto dos milênios. Não quero assustar a
modéstia de Suassuna apontando-o desde já como o
Homero das terras nordestinas que não são mais ásperas
do que as daquela península espantosa que abrigou o
Povo Eleito da Razão, como diz Maritain: direi que ele é o
João Batista de tal Homero, fazendo votos, entretanto, que
sua cabeça não seja pedida por nenhuma Salomé.
Eu disse que o Romanceiro se esconde na pequenez. Suas-
10. CORÇÃO, Gustavo. A
Ariano Suassuna. O Globo,
11 de dezembro de 1971.
suna reagirá contra quem num revés de não pretender
afastar essa cultura como coisa menor, primitiva, infantil,
ou simplesmente telúrica. Não há obra de arte que não
venha do céu, como não há fruto ou erva da terra que não
venha do céu. Será menor por estar mais perto da terra?
Mas essa feição é um modo de estar mais perto do céu.
Como tão bem frisou Suassuna, o que não convém às
obras de engenho e arte é a meia altura.
Torno a dizer que é uma cultura pequena sob a condição
de afastar o termo de todas as conotações pejorativas, e de
aproximá-lo daquela pequenez que Santa Terezinha do
Menino Jesus da Santa Face santificou, demonstrando
assim que ela é uma das tantas formas da grandeza que
neste mundo, aqui e ali, nas mais adversas condições
como no prodigioso caso do Aleijadinho, nos é oferecida já
que somos reis.
E aqui trago ao sábio estudioso que tão modestamente
esconde sua grande cultura algumas cogitações que me
acudiram ontem numa insônia feliz. Aquela estranha
cultura, aquela misteriosa arte “popular” tem duas faces
que sempre se encontram nas mais altas expressões do
espírito humano: a espontaneidade e a elaboração.
Suassuna mostrou num quadro-negro imaginário, com
didática excelente, a elaborada e difícil estrutura do metro
e rima da poética do Romanceiro do Nordeste. Não se
trata de uma pura espontaneidade infantil ou imbecil, que
só produz a gracinha de criança e as enchem hoje a meia
altura do mundo. Trata-se de uma agilidade que vence as
asneiras dos intelectuais que vence uma dificuldade. E
aqui me vem o lema que Rilke e São João da Cruz se
encontram: “Ao homem é mister ater-se sempre ao difícil”.
O brio do homem (a lembrança de sua coroa) está nesse
garbo de se ater ao difícil, de realizar proezas. E o
Romanceiro, longe de ser uma cultura simplesmente
menor, medida em côvados de progresso técnico, ou
mesmo em unidades mais altas das culturas mais
universais, tem essa marca sem a qual não mereceria
efetivamente maior atenção. Tem em comum com os mais
altos momentos da história humana esta invariante
procura da Verdade e do Bem. Suassuna certamente
preferiria, a tão ostensivas e pomposas categorias, os
termos “genuíno” ou “autêntico” que são apelidos da
Verdade; e não me contestará se eu disser que através de
todas as desconcertantes refrações éticas o Romanceiro
revela sempre a procura de um Valor, que é outro apelido
do Bem. Creio que foi Gustave Thibon, o lúcido
colaborador de Itineráires, e amigo de Simone Weil, que
disse ser o homem um animal que valoriza, isto é, que se
move em busca de um Valor, e de um supremo Valor. E
assim sendo, o Romanceiro rompe os limites asfixiantes do
Regional, do folclórico, e já anuncia uma grande, uma
incomparável contribuição universal, trazida por nosso
Nordeste.
Falei-lhes em espontaneidade e elaboração, e outra não é
a composição da vida mística segundo os mais doutos: nos
caminhos da santidade Deus dispôs nossa alma para tra-
balhar de dois modos: o modo elaborado das virtudes e o
modo espontâneo dos dons. Assim também na poesia. E é
por esta marca que, desde a lição ontem recebida de meu
jovem amigo Suassuna, começo a desconfiar da real
grandeza do tesouro ainda meio escondido no
Romanceiro do Nordeste.
Agora peço ao meu amigo Suassuna que pondere o que
vou lhe dizer sobre o que ele nos disse ontem do que
pensa de Santo Tomás e da Teologia em geral. Não
pretendo de modo algum convence-lo de que seja
indispensável à sua vocação o estudo profundo de Santo
Tomás, mas gostaria de conseguir em sua grande
inteligência uma brecha que seria uma pequena janela
aberta para todo um imenso mundo da vida da
inteligência e da fé. De início, e como quem prega um
susto, direi que Santo Tomás está muito mais perto do
Romanceiro, pela espontaneidade dos dons e pela
elaboração das virtudes, pela Verdade e pelo Bem, pela
Autenticidade e pelo Valor, do que do pedantismo com
que inundam hoje o mundo os teólogos da nova teologia
que tanto falam em Povo de Deus sem saberem o que é
Deus e o que é Povo.
Suassuna tratou Santo Tomás de racionalista certamente
sem saber que esse termo se aplica aos Descartes, aos
Kants mas não ao Doutor Angélico. Para não se alongar
demais, porque meu dadá é o Romanceiro da Suma
Teológica direi que é uma ilusão imaginar que Santo
Tomás com a Suma pretendeu achatar o insondável
mistério da Trindade. Pretendeu apenas oferecer às almas
algum arrimo, que sempre precisam, em formular e
esquemas que são apenas pobres arrimos. O autor de A
Pedra do Reino e o paladino do Romanceiro também
pediu um quadro-negro para traçar alguns esquemas úteis
e instrutivos: certamente nenhum de nós na sala julgou
que Suassuna quisesse explicar todo o mistério da alma do
Romanceiro com tais esquemas. Assim também, eu diria
que a Suma Teológica também foi o quadro-negro de que
precisou Santo Tomás para indicar às almas, ao menos, o
roteiro, a direção dos primeiros passos da ascensão da Fé
nos mistérios de Deus três vezes santo.
* * *
Terminando esse longo arrazoado dum agradecimento
ainda mais longo, peço a Ariano Suassuna que aceite
como sua casa o acampamento de amizade religiosa que
nos une na Permanência.
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 10
11. homem grego antigo estava fascinado pelo
desejo da glória. A expectativa de κλέος estava
no idioma helênico mais próximo do que
chamamos de fama, isto, é, o que se ouvirá dizer de você
depois que passar sua vida no plano terreno. Após entrar
na companhia de Caronte, o barqueiro do Hades, quem
falará sobre o homem são suas obras, e estas mesmas
obras é que poderiam garantir um lugar entre os bem-
aventurados no mundo dos mortos.
Certamente, a escatologia grega não é tão animadora
quanto a descrita pela fé cristã, uma vez que por mais
κλέος que um homem possa ter após a sua morte, a falta
do corpo material, das emoções e paixões da vida
material, torna o além um lugar triste e frio para ser
retratado.
De modo a imiscuirmos melhor sobre este desejo humano
de participação do plano divino, que é a glória por exce-
O
lência, podemos pensar em Ícaro, que
corre em direção ao sol, a excelência;
contudo, por ter asas frágeis e desprezar
os conselhos paternos de não voar nem
tão próximo às águas nem tão perto do
sol, acaba por precipitar-se no mar. Se o
mito de Ícaro é um bom panorama do
homem que busca a glória, em Aquiles
temos o próprio homem escolhendo e,
após a morte, avaliando o seu próprio
destino.
Aquiles é um famoso guerreiro por seus
feitos heroicos; especialmente aqueles da
guerra de Troia. O seu dilema está
propriamente na escolha entre a guerra e
a glória imperecível, ou a vida pacífica e o
eterno esquecimento. Algo chamativo na
personalidade desta personagem da
mitologia helênica é preferir a guerra a
uma vida de sossego e paz, como nos
revelam estes versos da Ilíada (IX, 410-416):
perece o meu regresso, mas terei um renome imorredouro;
porém se eu regressar a casa, para a amada terra pátria,
perece o meu renome glorioso, mas terei uma vida longa,
e o termo da morte não virá depressa ao meu encontro.
Esta busca pela glória das batalhas é um fato
controvertido, uma vez que se pode considerar um vício
pela temeridade ou uma virtude pela coragem e bravura.
Aquiles se move do mais alto grau de excelência à níveis
baixos de incivilidade e falta de compaixão. Ao fim da
Ilíada, vê-se um processo de humanização de Aquiles, e
uma reflexão sobre os motivos e resultados da guerra.
É problemático que, embora o mito grego aponte para a
excelência de Aquiles que mereceu de Zeus a recompensa
de habitar na terra dos bem-aventurados, perceba-se, em
várias passagens, Aquiles agindo selvagemente na guerra.
Exemplo disso é o modo como avilta o corpo de Heitor (Il.
XXIV, 14-22):
Assim falei; e ele tomando a palavra respondeu-
me deste modo:
“Não tentes reconciliar-me com a morte, ó
glorioso Odisseu.
Eu preferiria estar na terra, como trabalhador
agrícola de outro, até de homem sem herança e
sem grande sustento,
a reinar sobre todos os mortos falecidos
.
O desejo humano pela glória
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 11
Na verdade me disse minha mãe, Tétis dos
pés prateados,
que um dual destino me leva até ao termo
da morte:
se eu aqui ficar a combater em torno da
cidade de Troia,
mas atrelava ao jugo do carro os céleres corcéis
e arrastava o cadáver de Heitor, que amarrara atrás do carro.
E depois que o arrastara três vezes em torno do túmulo
do falecido filho de Menécio, de novo se deitava na tenda.
Mas deixava Heitor estendido, de cara para baixo na poeira.
Porém Apolo afastava da carne todo o aviltamento, com pena
de Heitor, até na morte. Cobriu-lhe o corpo todo com a égide
dourada, para que Aquiles lhe não dilacerasse a carne ao
arrastá-lo.
Deste modo na sua fúria Aquiles aviltou o divino Heitor.
Além da problemática entre agir ora como herói guerreiro,
ora como homem cruel e impiedoso, no canto XI da
Odisseia, Aquiles parece repensar sua glória em
detrimento da vida terrena. Como se percebe pelos
seguintes versos (Od. XI, 477-491):
Assim falou; a ele dei então a seguinte resposta:
“Aquiles, filho de Peleu, de longe o mais forte dos Aqueus!
Vim para consultar Tirésias, para o caso de me dar
algum conselho sobre como poderei regressar a Ítaca
rochosa.
Pois ainda não cheguei perto da Acaia, nem a minha terra
pisei; mas sofro sempre desgraças, ao passo que não foi,
nem será, nenhum homem mais bem-aventurado que tu, ó
Aquiles!
Pois antes, quando eras vivo, nós Argivos te dávamos honras
iguais às dos deuses; e agora reinas poderosamente sobre os
mortos,
tendo vindo para aqui: não te lamentes por teres morrido, ó
Aquiles.”
O fato de as futuras gerações cantarem a
grandeza de determinado homem, nem
sempre estava associada a elevadas
virtudes morais, como se percebe ao
apreciar a descrição de Aquiles feita por
Homero. De outro lado, entretanto,
percebe-se que o ser humano tem
intrínseco a si um profundo desejo de
participação das realidades eternas, da
excelência divina, enfim, da glória
imorredoura.
Em suma, a figura de Aquiles é bastante
Deste modo até na morte não perdeste o nome,
mas para sempre
a tua fama será excelente entre os homens, ó
Aquiles.
Embora no canto XXIV da Odisseia (93-94),
os versos tornem a enaltecer a grandeza
de Aquiles:
complexa e multifacetada. Seus feitos heroicos na guerra
de Troia o tornaram famoso e o levaram a buscar a glória
imperecível, mas essa busca pela excelência na batalha
também o levou a agir com crueldade e falta de
compaixão. No entanto, em momentos posteriores, como
no canto XI da Odisseia, Aquiles parece repensar sua
busca pela glória e reconhece o valor da vida terrena em
detrimento da imortalidade na terra dos bem-
aventurados. Assim, a figura de Aquiles nos mostra os
diferentes dilemas que podem surgir na busca pela
excelência e pela glória, e como essas questões podem ser
complexas e problemáticas.
Tais questões não ficaram nas narrativas épicas, mas estão
arraigadas no mistério de todo coração humano que
busca a glória.
Telmo Olímpio é mestrando em
Letras Clássicas pela UFPR, bacharel
em Direito pela UFRJ e em Filosofia
pela PUC-RIO
- HOMERO. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal, 2018.
12. ão pode haver muitos leitores que nunca tenham
ouvido falar de Sherlock Holmes. Na verdade, a-
prendi português – ou pelo menos muito vocabulá-
rio – ao ler as suas façanhas nas 'Obras Completas de Sher-
lock Holmes' compradas quando estava de férias em
Portugal há cerca de trinta anos. Como já conhecia as
histórias em inglês, não precisava de um dicionário a cada
cinco minutos para as descodificar. 'O Vale do Terror', 'A
Caixa Macabra', 'O Homem de Lábios Torcidos', 'Um
Escândalo na Boêmia' todos serviram o seu propósito, mas,
mais do que isso, deixou-me com uma apreciação
duradoura destas histórias cativantes e a estranha
colaboração de Holmes, o detetive consultor e seu
assistente Dr. John Watson, criados por Sir Arthur Conan
Doyle.
A adaptação destas histórias (escritas entre 1887 e 1930)
espalhou-se rapidamente por todo o mundo, traduzindo-
se em quase todas as línguas – imagina-se com graus
vários de sucesso. Sei que os primeiros filmes na Rússia,
por exemplo, assumiram prontamente os personagens,
talvez atraídos pela atitude muitas vezes bizarra e
inconformista de Holmes perante a autoridade e
confirmando as características mundiais dos ingleses
como excêntricos incorrigíveis, percorrendo
perpetuamente uma Londres nebulosa e sujeitos a todas
as improváveis sequências de causa e efeito imagináveis. A
vida no século XIX nunca foi assim, mesmo em Londres.
Mesmo na segunda guerra mundial, o caráter de Holmes,
cerca de meio século depois, foi usado para adaptar
histórias bem conhecidas para rastrear e denunciar nazis e
frustrar conspirações contra os aliados por espiões. Há que
dizer que estas pseudo-histórias foram bastante terríveis e
até cómicas na sua produção – especialmente as
produzidas nos EUA e no Canadá. Pode-se ter horas de
diversão contando os erros e solecismos que só países não
ingleses poderiam produzir tão involuntariamente.
Com o advento do rádio e da televisão, uma série de
histórias foram adaptadas, primeiro amplamente no rádio,
particularmente no Reino Unido e nos EUA. Mas na década
de 1980, a Granada TV, no norte da Inglaterra, produziu os
filmes definitivos de Sherlock Holmes com Jeremy Brett no
papel principal. Antes disso, muitos atores tinham tentado
os papéis, mas Brett destacou-se e foi idealmente
adequado em temperamento e caráter para o papel.
A publicação das histórias originais na Revista The Strand
entre 1891 e 1930 foi tão popular, que CononDoyle, o seu
autor, se cansou de todo o negócio e procurou eliminar
Holmes com uma luta final nas Cataratas do Reichenbach
('A Solução Final') Portuguese (Portugal) translation. com
uma última luta terrível até à morte com o arqui-inimigo
Professor Moriarty – até então mencionado apenas como o
'cérebro' por trás de todos os crimes de Londres, mas
nunca visto até aquele episódio. Em teoria, ambos
pareciam morrer na luta, mas tal era o clamor público (The
Strand era um periódico, o que fazia com que os leitores
aguardassem ansiosamente a próxima aventura) que
Conan Doyle foi obrigado a ressuscitar o herói, para seu
aborrecimento. Ele reapareceu - depois de alguns anos
viajando com vários disfarces, passando um tempo com o
Dalai Llama, escalando montanhas e estudando línguas
estrangeiras.
Por fim, disfarçado de livreiro de rua, Holmes visita o Dr.
Watson na sua clínica em Londres e, com um floreio, retira
o seu disfarce e aparece como o próprio Holmes, ao que o
pobre Dr. Watson, persuadido da sua morte, desmaia com
choque e tem de ser reanimado. Isto permitiu que a série
continuasse, o que aconteceu até à década de 1930.
Talvez o sucesso destes contos seja o fato de que o núcleo
sólido do enredo é curto e claro e fácil de se adaptar ao
teatro e, em particular, para as telas. As adaptações de
Granada que mencionei acima, têm uma hora de duração
cada. As histórias mais longas, como o famoso "Cão dos
Baskervilles" preenchem facilmente o tempo de um filme,
mas histórias mais curtas precisam de um pequeno
acolchoamento. A caracterização dos dois protagonistas é
boa, mas as partes do perpetuamente confuso Detetive
Lestrade da Polícia Metropolitana e outros escritórios
menores em outros lugares, precisam de um pouco de
amplificação. O tema é geralmente o mesmo: Holmes vê
através dos detalhes de pistas invisíveis ou sem
importância para os outros e reconstrói eventos que
resolvem o problema e Portuguese (Portugal) translation.
todos os fios são finalmente bem reunidos. O 'Ritual de
Musgrove' tem uma riqueza de personagens: o mordomo
apaixonado, que interpreta um documento de família
antigo, e bastante mais inteligente do que o seu mestre,
usando trigonometria e inteligência nativa, localiza e
encontra os restos da Coroa do decapitado Carlos I da
Guerra Civil Inglesa que estavam escondidos na casa an-
O Detetive Consultor de Sir Arthur Doyle
SHERLOCK HOLMES
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 12
N
13. Casou-se duas vezes: em 1885 com Luisa Hawkins, com
quem teve dois filhos e, depois de ficar viúvo, em 1907
com Jean Lekkie, que lhe deu três filhos. Estranhamente,
nenhum dos seus filhos teve filhos, não tendo, portanto,
descendentes diretos.
Foi nomeado cavaleiro em 1902 por Eduardo VII e foi
candidato ao parlamento duas vezes em 1900 e 1906, mas
sem sucesso. Defendeu várias causas ao longo de sua vida,
algumas políticas, incluindo o seu apoio à primeira Guerra
Mundial. Envolveu-se em processos judiciais, lutado pelo
que entendia como injustiças. Era um maçom convicto.
Entre os seus interesses estranhos estava o Espiritismo,
que após a primeira guerra mundial se tornou popular,
provavelmente procurando algum consolo após a
tremenda perda de vidas. Favoreceu o espiritismo cristão.
Ainda que houvesse muitos truques envolvidos em tais
seções, Conon-Doyle estava bastante convencido da sua
autenticidade, mesmo convencido de alguns dos truques
pelo mágico Houdini. Gostava muito de arquitetura.
Este é um resumo muito breve de um personagem
fascinante que criou um personagem de igual interesse.
Aqueles que desejam se aprofundar no estudo do
personagem, encontrarão muitas fontes online. Aqueles
que vêm a Londres certamente desejarão visitar o museu
na Rua Baker, 221B, onde podem ver o suposto refúgio de
seu herói.
cestral. A sua cúmplice feminina não se impressiona com
os restos enferrujados que descobre e o deixa morrer,
preso na adega. No entanto, a história original é bastante
breve. Outro, 'A Aventura de Silver Blaze' é sobre um
cavalo de corrida encontrado nos pântanos por outro
estábulo de corridas. O cavalo escapou do seu treinador
desonesto (e endividado) que estava prestes a cortar o
tendão do cavalo para perder uma corrida (e assim ganhar
uma aposta). O homem é morto no processo. Inclui uma
série de pistas improváveis que desconcertam
completamente a polícia, mas que Holmes junta com sua
habitual desenvoltura. Recentemente, um livro – "O
estranho do cachorro morto" de Mark Hadden (Record,
2004) – totalmente desconectado da série original – traz
um famoso diálogo entre o Detetive Gregory e Holmes:
– Há algum outro ponto para o qual gostaria de chamar a
minha atenção?
– Ao curioso incidente do cão na noite – responde Holmes.
– Mas, – retorquiu Detetive Gregory – o cão não fez nada
durante a noite.
Ao que Holmes enigmaticamente repreende:
– Este foi o incidente curioso! – O cão não ladrou porque
reconheceu o seu mestre, identificando-o assim.
O próprio Conan Doyle teve um passado interessante.
Nasceu em 1862. Escreveu a sua autobiografia, que pode
ser encontrada online. De uma antiga família católica
irlandesa, que veio para a Grã-Bretanha em 1868, Arthur foi
educado pelos jesuítas em Stoneyhurst, um internato de
certa reputação, que, no entanto, admitiria mais tarde,
também o afastou da Fé Católica.
Estudou medicina na Universidade de Edimburgo (1862-
1881), praticando, depois de formado, no sul da Inglaterra e
passando algum tempo no exterior, incluindo Viena, onde
estudou oftalmologia. Passou a se dedicar às histórias de
Sherlock Holmes em 1892. O personagem foi fortemente
influenciado pelo Dr. Bell que o tinha muito
impressionado em Edimburgo com uma capacidade
particular de diagnosticar e usar a dedução em vez de
apenas os erros do criminoso. No entanto, sentiu o sucesso
de Holmes como prejudicial para o sucesso de seus
romances mais sérios, mas continuou, até que em 1901
tentou matá-lo. No entanto, o público não aceita e as
histórias continuaram a ser lidas com a mesma avidez de
sempre. Holmes aparece em 62 histórias, dentre as quais,
quatro romances.
Polivalente, Conan Doyle praticou muitos esportes, como
críquete, futebol, golfe, tiro em clubes de tiro, competições
de bilhar, musculação e boxe. A tudo isso se acrescenta o
esqui, em suas viagens à Suíça.
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 13
Ralf
Roletschek
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sign_at_Sherlock_Holmes_Museum_in_Baker_St_221b.jpg
Britânico, servidor público
aposentado, Jeremy Boot dedica-se
à consultoria privada a respeito das
leis do trabalho no meio rural.
Também organiza e canta em
missas celebradas em rito
tradicional, além de ser um
apreciador de histórias de detetive.
Ocasionalmente, escreve para
periodicos no Reino Unido e em
outros países.
14. Dossiê
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 14
"Sob Deus e com os pobres"
s brasileiros hão de concordar
que o ano de 2022 foi intenso.
Vivendo ainda as graves conse-
quências da pandemia do coronavírus,
vendo o avanço de uma crise político-
social com raízes mais longas no tempo,
expressa na polarização e radicalização de
posições, as eleições presidenciais do ano
passado tornaram-se um momento de
tensão nacional. A Igreja, logicamente,
inserida como está na sociedade, não ficou
imune ao ambiente de desconfiança e
oposições partidárias. Em meio ao
aparente caos, surge nas redes sociais um
movimento que logo encontra uma
crescente adesão da parte de católicos
interessados em conhecer o que o
magistério tem a falar em sua doutrina
social, fugindo ao radicalismo de diversos
lados e a interpretações parciais e
arbitrárias. Trata-se do Comunhão Popular,
movimento que em seu manifesto afirma:
“além de ser uma boa nova de salvação e
vida eterna, que redime o ser humano do
pecado, o cristianismo é também uma
poderosa mensagem ética, portadora de
valores humanos únicos, essenciais para a
construção de uma sociedade justa.”
Scena Crítica foi até o fundador do
movimento, o jovem professor de filosofia
Pedro Ribeiro, para conhecer melhor essa
iniciativa que a cada dia tem atraído
católicos, protestantes e corações de boa
vontade interessados no debate político e
social tratado com seriedade e realismo.
1. O que é a Comunhão Popular?
A Comunhão Popular é um movimento
político de inspiração cristã que busca unir
a fidelidade aos valores do Evangelho com
a luta por reformas sociais.
A CP nasce do diagnóstico de que, no
conjunto da sociedade brasileira,
especialmente nos ambientes cristãos,
costuma-se dividir a política em dois
campos. De um lado, a direita liberal-
conservadora, que defende algumas
pautas de costumes caras aos cristãos,
mas que, no entanto, defende também
uma economia sem a participação do
Estado, negando debates importantes
sobre a desigualdade social e a realidade
dos pobres. De outro lado, temos uma
esquerda progressista e identitária, que é
normalmente social-democrata em termos
econômicos, mas que defende
perspectivas inaceitáveis para os cristãos
como as pautas morais, por exemplo, a
legalização do aborto e as questões de
gênero.
Ora, a enorme maioria da população
brasileira, formada por pessoas de fé e
pobres, não consegue se identificar com
essa dicotomia. Infelizmente, em toda
eleição, os cristãos têm sido forçados a
decidir entre os seus valores e a sua sobre-
vivência. A CP vem romper com isso.
Buscamos, ao mesmo tempo e com a
mesma ênfase, encarnar tanto uma defesa
firme dos valores morais da tradição cristã
quanto o enfrentamento dos graves
problemas sociais do país. Lutamos por
uma defesa integral da Doutrina Social da
Igreja, que vá do nascituro no ventre
materno até o necessitado que se debate
na fome. Daí o nosso lema: “Sob Deus e
com os pobres!”.
Outro diferencial nosso é que não temos
padrinhos políticos. Não nascemos
inseridos na estrutura partidária nem
ocupamos cargos públicos. Somos pessoas
comuns, movidas por convicções sinceras.
E acreditamos que essas não são apenas
nossas, mas da larga maioria do povo
brasileiro.
2. Por que a denominação “Comunhão
Poupular”?
A ideia original era de que o nome fosse
“Juntos”, por inspiração do Insieme, um
partido italiano liderado pelo Stefano
Zamagni, presidente do Pontifício
Conselho para as Ciências Sociais. Porém,
depois descobrimos que, no Brasil, o nome
“Juntos” já estava sendo utilizado por um
movimento estudantil ligado ao PSOL.
Então, tivemos de procurar outro nome.
“Comunhão” serve para enfatizar que não
somos um partido, mas um movimento
suprapartidário, construído a partir dos
laços de amizade entre os seus membros.
E “Popular” aponta tanto para o nosso
compromisso na luta contra a
desigualdade social quanto para o nosso
elemento patriótico, de valorização da
cultura e da identidade brasileira. Além do
mais, é também uma referência carinhosa
aos antigos partidos democratas-cristãos,
que muitas vezes eram chamados de
populares.
3. Existe uma equivalência entre a
Comunhão Popular e a Democracia
Cristã?
Eu diria que a Comunhão Popular é um
esforço de reconstrução da Democracia
Cristã, adaptado ao nosso tempo e lugar.
Se entendermos a Democracia Cristã em
um sentido estrito, partidário, das siglas
que usam esse nome, não. Mas no sentido
amplo, da grande tradição democrata-
cristã que se inicia no século XIX com o
Beato Frederico Ozanam, então sim,
somos um movimento democrata-cristão,
ou ao menos uma tentativa de traduzi-la
para o Brasil de hoje. A matriz do nosso
pensamento é esta, ao mesmo tempo que
somos influenciados por várias outras
correntes, como o trabalhismo brasileiro, o
distributismo, a social-democracia, o
próprio conservadorismo, e até mesmo
uma influência mais remota do tradiciona-
O
15. Abril-junho 2023 | Scena Crítica 15
lismo ibérico.
4. A quem você atribuiria
historicamente os direitos do
pensamento social cristão no Brasil?
Creio que tivemos várias correntes
políticas influenciadas pela Doutrina
Social da Igreja. O trabalhismo brasileiro
associado ao Vargas, por exemplo,
certamente possui essa influência. O
Alberto Pasqualini, principal teórico do
trabalhismo brasileiro, era fortemente
influenciado pela DSI. Citava os
documentos do Magistério em diversos
escritos. Também o presidente João
Goulart, em seu famoso discurso da
Central do Brasil, cita o Papa João XXIII. E
a própria legislação trabalhista de Vargas,
consagrada na CLT, tem uma forte
inspiração na doutrina social cristã. Alceu
Amoroso Lima e outros intelectuais do
Centro Dom Vital influenciaram muito na
sua redação.
Ainda assim, acredito que o movimento
brasileiro mais fiel aos anseios sociais da
doutrina católica foi o antigo Partido
Democrata Cristão (1945-1965). O fundador
do PDC, que era um pequeno partido, foi o
professor paulistano Cesarino Júnior, um
negro, primeiro catedrático do direito do
trabalho na história do Brasil. Mas a
fundação também está ligada, como não
poderia deixar de ser, ao Centro Dom Vital,
na pessoa do Dr. Alceu, ainda que ele
nunca tenha se filiado.
A principal liderança democrata-cristã na
história nacional foi o André Franco
Montoro, presidente do PDC no começo
dos anos 60, quando o partido alcançou
sua máxima expansão, mas foi forçado ao
fechamento, como todos os outros, por
decreto da ditadura militar. O Montoro se
tornou, inclusive, uma grande figura da
resistência ao regime instaurado em 1964.
Nos anos 80, foi eleito governador do
estado de São Paulo e se tornou o grande
promotor do movimento Diretas já. Com o
fim da ditadura e a redemocratização, já
no fim da vida, Montoro foi um dos
membros-fundadores do PSDB, levando
para ele alguns outros democratas-cristãos
das antigas, como o grande político e
pensador mineiro Edgar de Godói da
Mata-Machado
Eu resumiria da seguinte maneira: o
Trabalhismo foi o movimento político
brasileiro que melhor expressou a
Doutrina Social da Igreja em seus aspectos
socioeconômicos; já o antigo PDC foi o
que melhor encarnou a DSI em sua
totalidade, privilegiando inclusive o que
hoje chamamos de pauta de costumes.
5. Quais as influências teóricas da
Comunhão Popular, especialmente no
pensamento brasileiro?
Temos algumas influências determinantes.
Em primeiro lugar e antes de tudo, o
padre jesuíta Fernando Bastos de Ávila,
que eu julgo sinceramente o maior
especialista em DSI da história brasileira.
Ele que foi minha porta de entrada para a
DSI, quando tinha 15 anos de idade, e é
ser aplicado de acordo com as realidades
locais. Se nos detivermos apenas nos
princípios objetivos da DSI, acabamos por
cair em uma visão demasiadamente
formalista que ignora nossas
especificidades. Especialmente no caso de
uma nação como a nossa, em posição de
fragilidade no cenário internacional, o
elemento nacionalista se torna urgente.
Em nosso mergulho nas raízes do Brasil,
identificamos em alguns autores chaves:
Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e, sobretudo,
Ariano Suassuna, que é inclusive nosso
patrono oficial. Apesar de não ter sido um
sociólogo de ofício, o autor do “Auto da
Compadecida” soube traduzir como
poucos a essência da alma brasileira.
6. Quando se iniciou o movimento? Qual
a pertinência dele no momento
histórico brasileiro e no ambiente
eclesial?
Eu, pessoalmente, já tenho um trabalho de
divulgação da DSI há muitos anos, seja em
artigos publicados em jornais, seja em
cursos ministrados, seja pela atuação nas
redes sociais. Assim, ao longo dos últimos
anos, consegui agregar de modo orgânico
um grupo de pessoas entusiastas do tema.
Muitas vezes, sobretudo na proximidade
das eleições, essas pessoas me cobravam
saber quando os ideais que eu
disseminava iriam para a prática, como
eles ingressariam na política de fato. No
entanto, nunca me entusiasmei pela ideia
de um projeto pessoal.
Foi quando aconteceu algo mais ou menos
casual, mas bastante determinante. Em
2021, eu estava escrevendo um artigo para
uma revista acadêmica espanhola, sobre a
relação entre a Doutrina Social da Igreja e
o cooperativismo. Foi quando soube da
existência do Insieme, o partido político
italiano liderado pelo Stefano Zamagni, do
qual falei algumas perguntas atrás. Ao
saber do partido, de modo muito
espontâneo, acessei meu Facebook e
escrevi uma postagem, dizendo como era
constrangedor ver na Itália um homem
octogenário usando do pouco tempo que
lhe resta para empreender um projeto
político de inspiração cristã, enquanto no
Brasil ninguém toma esta empreitada para
si.
Pois o post teve uma repercussão
inesperada! Rapidamente, dezenas de
pessoas se apresentaram, dizendo que
queriam sim levar adiante um movimento
como aquele em nosso país. Parte dessas
pessoas, obviamente, depois se desligou
da iniciativa, mas outros também
chegaram com o tempo e o processo em
si já havia sido iniciado. Em janeiro de
2022, ou seja, cerca de 2 meses e meio
após a repercussão do texto nas redes
sociais, a Comunhão Popular já era uma
realidade de fato. Com base em muitas
reuniões e intensos debates internos,
tínhamos enfim um manifesto fundador,
um nome, um logotipo, um site, uma
estrutura organizativa. Em março do ano
passado, começamos nossas ações nas
redes sociais. No fim do mesmo ano,
obtivemos mais de 1200 votos, lançando
dois candidatos – um a deputado federal
no Rio e um a deputado estadual no
Paraná.
Sobre o momento histórico em que
surgimos, penso que o ambiente era o
mais propício. Havia – e há, ainda hoje –
uma demanda reprimida dos cristãos
brasileiros por darem uma expressão mais
consequente à sua fé, sem mutilações de
direita ou de esquerda. Além do mais, o
ano de 2022, por se de eleição
presidencial, favoreceu bastante nosso
crescimento.
Sobre o ambiente da Igreja, penso que ele
é, ao mesmo tempo, receptivo e
desconfiado em relação a uma proposta
como a nossa. Receptivo porque há, como
disse, uma demanda reprimida, inclusive
do clero. Na medida em que une a defesa
dos valores cristãos como a luta por
reformas sociais, a CP responde a essa
demanda. Por outro lado, a sociedade
brasileira atual está muito polarizada, e a
Igreja, infelizmente, não é uma exceção.
Como busca superar as alternativas
existentes, que consideramos falhas, a CP
uma de minhas referências permanentes,
inclusive do ponto de vista pessoal. Padre
Ávila fundou o segundo departamento de
sociologia da história do Brasil, na PUC
Rio; foi membro do Pontifício Conselho
Justiça e Paz, do Vaticano; atuou como
assessor especial da CNBB durante o
regime militar, influindo muito na
percepção social dos bispos; foi eleito para
a Academia Brasileira de Letras. Enfim, ele
consagrou a sua vida a pensar a doutrina
social cristã e sua aplicação na realidade
brasileira.
A propósito, a Comunhão Popular também
bebe muito dos grandes intérpretes do
Brasil. Um movimento político de
inspiração cristã feito para o nosso país
necessita de um certo viés nacionalista, no
sentido de que a DSI não é uma receita
fechada, mas um conjunto de princípios a
16. Abril-junho 2023 | Scena Crítica 16
é frequentemente incompreendida e
atacada de ambos os lados. Uns nos
chamam de petistas disfarçados, outros de
bolsonaristas enrustidos. Para nós, isso é a
confirmação de que estamos no caminho
certo.
Não temos nenhuma pretensão
triunfalista. Não nos consideramos os
únicos intérpretes autorizados da Doutrina
Social da Igreja, ou coisa que o valha. Mas
estamos convencidos de que a
reconstrução do nosso país, se quer partir
da DSI, tem que ultrapassar as alternativas
vigentes.
7. Como você avalia o magistério do
Papa Francisco? Ele de algum modo
influencia os rumos da CP?
Francisco é uma referência fundamental
para nós. Seu pontificado possui várias
marcas muito interessantes. Do ponto de
vista da Doutrina Social, que é o que mais
nos interessa, destacaria dois elementos.
Primeiro, a defesa intransigente da
unidade entre os valores do Evangelho e a
necessidade de reformas sociais – algo
que, como já disse várias vezes, é a razão
da existência da CP. Em segundo lugar, a
ênfase no concreto. Francisco é,
inegavelmente, um teólogo de menor
fôlego do que Bento XVI e João Paulo II,
mas tem uma capacidade incrível, maior
do que os outros dois, de conectar os
grandes princípios universais da DSI com a
realidade do aqui e agora. É desse senso
do concreto que nascem ideias tão
instigantes quanto as de cultura do
encontro, periferias existenciais, etc. Em
especial, a CP bebe muito do conceito de
“Colonização Ideológica”, elaborado pelo
Santo Padre com o objetivo de mostrar
que várias pautas ditas progressistas,
como a legalização do aborto, são, além
de imorais, uma imposição econômica e
social dos povos desenvolvidos sobre as
nações pobres, violentando suas crenças,
valores e costumes.
8. Pode fazer uma breve avaliação sobre
o governo recém-empossado?
O governo Lula III é ainda muito recente, e,
nesse pouco tempo, creio que foram feitos
mais gestos simbólicos do que ações
efetivas. Dentre os gestos simbólicos,
alguns foram positivos, outros negativos.
No aspecto negativo, destacaria a saída do
pacto de Genebra, onde se firmava, ainda
que formalmente, um compromisso
internacional contra a agenda do aborto.
Em sentido positivo, creio que um bom
exemplar foi o fortalecimento dos órgãos
que tratam da política indígena, reunidos
agora até mesmo sob a estrutura de um
ministério.
O grande problema, porém, é que nas
decisões mais substanciais, o governo se
mostra hesitante, titubeante, sem
convicção. Há muito discurso e pouco ato.
Durante a campanha, por exemplo, Lula
acertadamente criticou o modo como se
fez a privatização da Eletrobrás. Uma vez
empossado, contudo, não tomou
Dossiê
nenhuma medida para reverter o fato. Da
mesma forma, para além de algumas
trocas de farpa com o presidente do
Banco Central, o governo ainda não tomou
nenhuma medida significativa no que
tange à política de juros, que é um
problema crônico do país. Se Lula está
realmente convencido da necessidade de
enfrentar o presidente do BC, por que não
tenta forçar sua demissão, ao invés de só
fazer discurso?
Para um governo que se elegeu sob a
égide de afirmar-se uma antítese do que
vivemos nos últimos quatro anos no Brasil,
há uma falta de firmeza na tomada de
posições. Vejo o governo desorientado
sobre quais são suas reais prioridades.
17. CADERNO
CINEMA
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 17
Do Coliseu ao cinematógrafo
As impressões de uma Instituição
bimilenar sobre o Cinema Moderno
Impressões do Magistério
o referir à relação da Igreja Católica com o cinema
moderno, imediatamente se recordará a encíclica de
1936, Vigilanti Cura, do Papa Pio XI, que marca a pri-
meira menção do magistério eclesiástico à questão.
Com Vigilanti Cura, o primeiro passo estabelecido nessa
relação não parecia cobrir a questão do cinema na inteireza
da sua complexidade; na verdade, se estava levando em conta
primordialmente aspectos ligados ao conteúdo moral das
obras e à legitimação dos órgão encarregados da censura e
classificação dos filmes, especialmente centrado no cinema
norte-americano.
Já com o Concílio Vaticano II a perspectiva irá se transformar e
tornar mais cauta ao cinema em uma concepção mais positiva
e atenta ao fenômeno na sua totalidade. Será no Decreto Inter
Mirifica sobre os meios de comunicação social de novembro
de 1963 que chegaremos a uma sentença e a um apelo de
atenção ao fenômeno:
DE
Como não convém absolutamente aos filhos da Igreja
suportar insensivelmente que a doutrina da salvação seja
obstruída e impedida por dificuldades técnicas ou por
gastos, certamente volumosos, que são próprios destes
meios, este sagrado Concílio chama a atenção para a
obrigação de sustentar e auxiliar os diários católicos, as
revistas e iniciativas cinematográficas, as estações e
transmissões radiofônicas e televisivas, cujo fim principal é
divulgar e defender a verdade, e prover à formação cristã
da sociedade humana (Inter Mirfica, n. 17).
E ainda mais adiante:
Mateus. Surpreende ainda mais no prólogo da película a
dedicatória da obra ao Papa João XXIII.
É certo que o Concílio institucionalizou uma prática já
comum nos meios de ação do laicato, que organizavam
com periodicidade grupos de análise fílmica que apesar
de em seus primórdios padecerem dos mesmos objetivos
de resguardar a moral e contribuir com a censura, com o
passar dos anos transferiram a finalidade para a primazia
da crítica e da análise artística cada vez mais apurada.
Como em outros momentos da história, o clero italiano
dos anos 1960, especialmente os jesuítas, pareciam muito
mais abertos a compreender e apreciar o mundo em
transformação do que muitos setores reacionários do
laicato, que contavam com o patrocínio desta mesma
hierarquia, talvez mais motivados pela prudência, senso
institucional e manutenção do status quo do que pela
convicção pessoal. Pasolini ao enfrentar dificuldades para
o lançamento de sua adaptação do Evangelho encontrou o
patrocínio do ultraconservador Cardeal Siri de Gênova,
como relata Luis Antonio Vadico:
Talvez não seja tão difícil intuir o porquê de uma ação
como essa. Seria reducionista pensar que o clero,
especialmente o alto clero, que contava com uma
privilegiada formação intelectual fosse se fechar a uma
evidente obra-prima como a de Pasolini por mero capricho
ideológico. Ainda que neste período não se pudesse dar o
devido reconhecimento oficial e público por parte das
altas esferas eclesiásticas, este não tardaria por vir.
No mesmo período em que estava ocorrendo toda esta
efervescência nos ambientes culturais e também da
produção de cinema, estava sendo gerado no seio dos
jesuítas aquele que se tornaria futuramente o crítico mais
longínquo do caderno de cinema do L’Osservatore
Romano, o padre Virgilio Fantuzzi, S.J. que, futuramente,
seria responsável por conceder o reconhecimento e a
cidadania a Pasolini e a outros autores na mais alta
redação da cristandade.
Fantuzzi aos 27 anos, ainda seminarista, teve seu primeiro
encontro com Pasolini. Em entrevistas o jesuíta recordava
que desde a primeira ocasião em que assistiu O Evangelho
segundo Mateus, notava a ocorrência de uma contradição:
Quando pediu apoio financeiro do grupo ‘Pro civitate
Christiana’, seu diretor procurou o conselho do poderoso e
conservador arcebispo de Gênova, Giussepe Siri que,
surpreendentemente, encorajou-o a promover o projeto de
Pasolini (Vadico, 2016).
Todavia, como a eficácia do apostolado em toda a nação
requer unidade de propósitos e de esforços, este sagrado
Concílio estabelece e manda que em
toda a parte se constituam e se apoiem,
por todos os meios, secretariados
nacionais para os problemas da
imprensa, do cinema, da .rádio e da
televisão. A missão destes secretariados
será de velar por que a consciência dos
fiéis se forme rectamente sobre o uso
destes meios e estimular e organizar
tudo o que os católicos realizem neste
campo (Inter Mirifica 21).
Seria interessante procurar compreender a
evolução da relação eclesial em seu
modus pós-conciliar na mesma esteira em
que se avançou na compreensão dos
diversos temas de relevância social
durante este período. Parece haver uma
saída de um relativo pessimismo e até de
uma pré indisposição para um otimismo
receptivo, e por vezes ingênuo.
A Crítica Católica
Em 1964 o diretor italiano Pier Paolo
Pasolini, um reconhecido marxista,
surpreendeu ao empreender um longa-
metragem sobre a vida de Jesus Cristo a
partir da narrativa do Evangelho de São
A
18. Abril-junho 2023 | Scena Crítica 18
não poderia um homem não reconhecer a filiação divina de
Jesus Cristo e ao mesmo tempo exacerbar na tela tanta
“emoção religiosa”.
Deve ser mencionado no contexto da relação
Igreja/Cinema e também no contexto da própria história
da crítica cinematográfica no Brasil o caderno de cinema
da revista A Ordem do Centro Dom Vital que por anos
contou com a colaboração do acadêmico Otávio de Farias,
o primeiro a aventurar-se no Brasil em uma história e
teoria do cinema.
O caderno de cinema da revista A Ordem antecipou em
algumas décadas um interesse que se tonaria frequente
nos cineclubes da Ação Católica apenas nos anos 1940 e
1950. A capacidade firme de análise de Otávio de Farias fez
com que conseguisse analisar de forma contundente os
grandes movimentos de um cinema ainda embrionário.
Mas isto já é assunto para uma outra edição.
Bibliografia:
- DECRETO INTER MIRIFICA. Documentos do Concílio Vaticano II.
São Paulo: Paulus, 1997.
- VADICO, Antonio. O campo do filme religioso: Cinema, religião e
sociedade. São Paulo: Paco Editorial, 2016.
- FANTUZZI, Virgilio. Fantuzzi: Pasolini, regista del sacro.
Alessandro Zaccuri. Avvenire, Itália, 29/10/2015. Disponível em:
<https://www.avvenire.it/agora/pagine/pasolini-regista-del-sacro>.
Acesso em 9/03/2023.
- GUSMÃO, M.; SANTOS, R. Cinema e católicos no Brasil: entre a
ação pastoral-religiosa e a ação cultural-educacional. Alceu, Rio
de Janeiro, v. 15, n. 30, p. 146-167, jan./jun. 2015.
Durante la conferenza stampa alla Mostra del cinema di
Venezia, rispondendo alla domanda diretta di un
giornalista, Pasolini aveva affermato di non credere che
Gesù fosse il Figlio di Dio. Ecco, per me questa
affermazione non poteva andare d’accordo con il film che
avevo visto. C’era una contraddizione insanabile tra
l’emozione (religiosa, oltre che estetica) suscitata dal
Vangelo secondo Matteo e quell’affermazione del regista.
Ero giovane, lo ripeto, e molto zelante. Più che altro, volevo
capire (FANTUZZI, 2015).
Fantuzzi é um dos que advoga sobre a hipótese de um
Pasolini crente ainda que nunca tenha se pronunciado
sobre isso explicitamente, mas pelo contrário, se
manifestado sempre, nesta temática, como convicto
agnóstico. Mas este fato revela mais sobre Fantuzzi do que
sobre Pasolini. Durante os anos em que esteve a cargo do
caderno de cinema do L’Observatore Romano, Fantuzi
dedicou-se a vasculhar e encontrar o transcendente
metafísico onde poucos poderiam achá-lo, sem que para
isso fizesse malabarismos e conjecturações disparatadas.
Os artigos de Fantuzzi ajudavam a ver Deus que está
secreto, mas ao mesmo tempo evidente na arte. Pelos seus
textos e colaborações se pode constatar o Deus de Fellini,
de Bergman, de Rosellini, de Kieslowśki e de tantos mais
que por muito aparecem sob o véu da subjetividade
autoral e pedem o incentivo da tradução.
Epílogo
No Brasil as organizações da Ação Católica que se
dedicavam ao estudo crítico das obras cinematográficas se
desenvolveu ao ponto de gerar um fenômeno conhecido
como cineclubismo. Se poderia considerar o projeto Igreja
em relação ao cinema em três frentes levando em
consideração o método clássico da Ação Católica:
O jesuíta Virgilio Fantuzzi e Pasolini
https://www.avvenire.it/agora/pagine/addio-a-padre-fantuzzi-il-gesuita-amico-di-fellini-e-pasolini
1. Havia uma ação ampla, de censura e classificação,
baseada na consideração dos efeitos negativos do cinema
como meio de comunicação de massas e concorrente da
Igreja; 2. Havia um direcionamento para ações restritas (no
sentido não-massivo ou para grupos limitados), baseado na
consideração dos efeitos positivos do cinema como meio
de formação/educação, de caráter artístico e cultural; e 3.
Para contornar a má influência do cinema ou para
aproveitar as suas potencialidades, era necessária uma
educação do público. E, para que essa educação se
efetivasse, era necessária a competência dos seus agentes-
mediadores: as ações de censura e classificação
demandavam uma competência para ver e julgar por parte
dos que compunham o grupo censor; do mesmo modo,
para que as ações de formação fossem implementadas, era
necessária uma determinada “habilitação” dos que
atuariam como educadores (SILVEIRA; SANTOS, 2015).
Com especialização em roteiro pela
Escola de Cinema Darcy Ribeiro,
Filipe Machado é bacharel em
filosofia pela PUC-Rio e licenciado
em História. Atualmente suas
pesquisas estão centradas nos
autores que compuseram a cena
intelectual católica do século XX
com especial ênfase em Gustavo
Corção.
Crônica cinematográfica de Octávio de Farias na
revista A Ordem.
19. Jacques Maritain
e a influência do humanismo na filosofia política brasileira
acques Maritain teve uma carreira filosófica intensa
e admirável. Ele escreveu sobre uma enorme varie-
dade de temas. Suas reflexões filosóficas dividem-se
basicamente em duas fases: a primeira, onde ele se
dedicou principalmente no campo da metafísica; e a
segunda, onde passou a se dedicar ao tema da filosofia
política. A migração de fase ocorreu quando Maritain
sofreu pelos terríveis conflitos políticos oriundos,
principalmente, da ascensão do nazismo e do fascismo
totalitários; e também a partir de um convite do Papa Pio
XI que, ao recebê-lo numa audiência particular no
Vaticano, convidou-o a considerar também o tema da
política em suas reflexões filosóficas.
Neste contexto e partindo do conteúdo de seis aulas
realizadas na Universidade de Santander na Espanha, em
agosto de 1934, Jacques Maritain publicou o livro
Humanismo Integral (1936) – considerado por muitos a
obra-prima do seu pensamento, exercendo influência em
nível mundial, nos anos 30. Nesta obra, o autor nos
apresenta a visão de um humanismo que valoriza as três
dimensões do homem: material, psíquica e espiritual. Tal
visão se diferencia do humanismo antropocêntrico, o qual
rejeita a dimensão espiritual do homem e o apresenta
como o centro do universo, como um fim em si mesmo.
Assim, ao contrário das concepções puramente
antropocêntricas do ser humano, Maritain propõe a
instauração de um novo conceito humanista, inspirado no
Evangelho: teocêntrico. Neste conceito, o homem é
chamado à santidade, é destinado à eternidade e, dessa
J
forma, luta
incansavelmente pela
transformação das
realidades sócio
temporais da
sociedade. Espindola
(2018, p. 8)
compartilha da
mesma visão e resume
essa originalidade de
Maritain, dizendo: “O
humanismo perde seu
vício antropocêntrico
em lugar de um
Humanismo
Teocêntrico, enraizado
em Deus, portanto,
Integral, pois é Nele
mesmo que o homem
tem suas raízes,
Humanismo da
Encarnação, pois salva
da morte eterna pelo
sacrifício de Cristo”.
Assim, este novo
homem, tem a missão
de santificar o mundo
profano em suas
diversas dimensões,
dentre elas a política.
A partir de uma
profunda análise dos
diversos regimes polí-
ticos e seus princípios fundamentais, Jacques Maritain
verificou a superioridade da democracia perante os outros
regimes, pois, segundo ele, é nela que se podem realizar
plenamente os princípios evangélicos, a fraternidade, a
liberdade, o respeito à dignidade humana e a luta pelo
bem comum. Maritain, conforme o ensinamento do
filósofo Henri Bergson, afirma que a grandeza da
democracia está em possuir “essência evangélica”, ou seja,
os seus princípios encontram em Deus o seu fundamento
último. O bom regime democrático é formado de um
corpo político composto por cidadãos organizados por leis
justas, que se inspiram nos valores cristãos, nas virtudes
humanas e morais. É por isso que o filósofo afirmou: “uma
reta experiência política só se pode desenvolver nos povos,
se as paixões e a razão neles se orientam por um sólido
fundamento de virtudes coletivas, pela fé, pela honra, pela
sede de justiça” (MARITAIN, 1957, p. 74), caso contrário, a
democracia se corromperá.
A doutrina política de Maritain se encontra principalmente
nas obras Cristianismo e Democracia (1943) e O Homem e
o Estado (1951). A primeira nasceu no período de seu exílio
nos Estados Unidos após o início da Segunda Guerra
Mundial, período este no qual os regimes totalitários se
alastravam pelo mundo. Sabendo disso, Maritain viu a
urgência de se propor um novo modelo de governo que
não permitisse a transgressão e o desprezo aos direitos
humanos, à igualdade e à liberdade dos povos, mas, antes,
fosse um governo “do povo, pelo povo e para o povo”
(MARITAIN, 1957, p. 81). A segunda obra pode ser conside-
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 19
20. Partiu dele [...] a reabilitação da democracia em face de
uma filosofia cristã rigorosamente ortodoxa, como o
tomismo. [...] Os direitos do homem, o conceito autêntico
de trabalho, a justiça social, a coincidência do regime
democrático com os postulados fundamentais do
cristianismo, foram temas então amplamente analisados
pelo luminoso pensamento de Maritain, que representava
um caminho novo na solução da crise política social
contemporânea (POZZOLI; LIMA, 2012, p. 167).
cês estava no auge de sua fama intelectual; mesmo ano
em que publicou sua obra prima Humanismo Integral.
Alceu Amoroso não teve uma atuação direta na política,
com cargos assumidos no governo, porém, ele foi o
articulador e primeiro secretário-geral da Liga Eleitoral
Católica (LEC), em 1932; colaborou na fundação do Partido
Democrata Cristão (PDC), em 1945, e influenciou inúmeros
líderes católicos, os quais passaram a atuar diretamente na
política. Suas palavras são preciosas para compreender a
grande importância do pensamento de Jacques Maritain:
que tem por objetivo promover a sabedoria ética e política
e formar uma opinião organizada em nível mundial.
A partir disso, considerando o caos político que assolou a
América Latina no século passado, decorrente da atuação
de regimes totalitários, uma geração de políticos surgiu
com o intuito de lutar pelo ideário da democracia cristã,
por princípios que promovam o bem comum, a dignidade
da pessoa humana, a igualdade e a fraternidade. Estes
princípios foram defendidos incansavelmente por Jacques
Maritain e, por este motivo, o filósofo se tornou a principal
voz das democracias cristãs neste continente. Várias
personalidades políticas, como o presidente Eduardo F.
Montalva do Chile, o presidente Rafael Caldera da
Venezuela, e o senador brasileiro – que por pouco não se
tornou também presidente da república – André Franco
Montoro “encontram na Filosofia de Maritain respostas
para a crise axiológica [ou crise de valores] do homem
contemporâneo e uma alternativa às ideologias do
momento” (POZZOLI; LIMA, 2012, p. 100).
Dos países latino-americanos, um dos mais influenciados
pela filosofia política cristã de Jacques Maritain foi o Brasil.
Nesta nação, ocorreram, a partir dos anos 20, inúmeros
conflitos e crises políticas que afetaram a ordem e a
esperança do povo brasileiro. Guilherme José Santini, no
livro Presença de Maritain, declara:
rada a mais profunda e abrangente
quanto ao tema da política. Nela são
estabelecidos, primeiramente, os
conceitos autênticos de nação, corpo
político, estado, povo, soberania.
Com isto, Maritain pretende
esclarecer à sociedade a definição
verdadeira, isenta de ambiguidades e
distorções, de conceitos
fundamentais à nossa existência e
convivência, para que não se
perpetue a calamidade presente no
período moderno. Mais adiante, o
filósofo dedica um capítulo
específico à democracia, no qual ele
analisa as condições de sua
existência e propõe uma democracia
de caráter pluralista e personalista,
que tem como fim último a
promoção do bem comum. No final
da obra, após uma análise das
relações entre a Igreja e o Estado,
Maritain apresenta o ideal de um
governo mundial unificado, o qual
possui em sua estrutura um
Conselho Consultivo Supranacional,
Na capital paulista, após receber uma sólida formação na
Faculdade de São Bento, fundamentada antes de tudo na
doutrina tomista, os jovens amigos André Franco Montoro
e Rubens Padin – futuramente Dom Cândido Padin –
tiveram seus destinos transformados quando entraram em
contato com a filosofia política de Jacques Maritain.
Franco Montoro foi “um dos expoentes primazes da
Democracia Cristã no Brasil, ajudando a fundar o PDC”
(POZZOLI; LIMA, 2012, p. 103). Na conjuntura política
brasileira, ele teve uma atuação muito fecunda e
exemplar. Exerceu os cargos de vereador, prefeito,
deputado estadual e federal, governador de São Paulo,
senador, ou seja, desempenhou quase todos os cargos
políticos, com exceção à presidência da república, de cuja
candidatura desistiu por seu grande gesto de humildade
ao considerar Tancredo Neves o político mais adequado
para o contexto brasileiro dos anos 80.
Como consta no livro Ensaios em Homenagem a Franco
Montoro (2001), em seus discursos “sempre estava presente
a frase de Maritain: ‘Apesar de suas imperfeições e de seus
limites, a democracia é o único caminho por onde passam
as energias progressivas da história humana’” (POZZOLI;
SOUZA, 2001, p. 63). No ano 1992, Franco Montoro e Dom
Cândido Padin fundaram o Instituto Jacques Maritain do
Brasil (IJMB), com o objetivo de promover estudos e a
divulgação dos princípios humanistas e democráticos
propostos por Maritain. Para isso, até hoje a instituição
realiza seminários, publicações de livros e artigos,
pesquisas, dentre outras atividades que difundem a doutri-
Maritain fornecia o instrumento teórico sob medida que
permitia fazer a costura com linha firme de cristianismo e
democracia. Quem dos discípulos de Maritain não teve o
coração incendiado ao ler as páginas memoráveis em que o
filósofo demonstra ser a democracia de essência
evangélica? (POZZOLI; LIMA, 2012, p. 219).
Dos brasileiros influenciados por Maritain, certamente o
maior deles é Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde).
Sua atuação foi incomparável entre a militância intelectual
católica a partir do século XX. Nascido no Rio de Janeiro,
em 1883, se tornou escritor, professor, pensador e crítico
literário. Assumiu em 1928 a presidência do Centro Dom
Vital, associação de leigos católicos, fundada por Jackson
Figueiredo, com o objetivo de defender a fé cristã na
sociedade. Foi neste período em que Alceu se tornou o
maior discípulo e divulgador do pensamento de Maritain
no Brasil, ao inspirar muitos católicos com a sua atuação
exemplar.
No ano de 1936, Alceu conseguiu inclusive fazer com que
Maritain, retornando à França após o pronunciamento de
algumas conferências na Argentina, passasse rapidamente
pelo Brasil e proferisse palestras no Centro Dom Vital e na
Academia de Letras. Foi neste período que o filósofo fran-
Abril-junho 2023 | Scena Crítica 20
21. Abril-junho 2023 | Scena Crítica
na maritainiana pelo Brasil.
Em Minas Gerais, outro político profundamente marcado
pela filosofia política de Maritain é Edgar Godoi da Mata-
Machado. Nascido em Diamantina, no ano 1913, percorreu
uma notória carreira na política, na filosofia, no jornalismo
e no direito. Dentro da política, atuou como secretário de
estado, deputado estadual, deputado federal e senador.
Seu testemunho exemplar na política influenciou uma
geração de brasileiros. Mata-Machado foi duramente
perseguido durante a ditadura militar, tendo inclusive o
seu mandato cassado e perdido os seus direitos políticos
por 10 anos, devido à incansável luta que fez contra o
autoritarismo opressor do povo brasileiro.
Mata-Machado está entre os maiores discípulos de
Jacques Maritain no Brasil, com quem trocou algumas
correspondências pessoais. A formação intelectual de
Edgar é de raiz tomista. Sendo Maritain um dos maiores
expoentes do neotomismo do século XX, foi nele que o
mineiro encontrou os princípios democrático-cristãos que
se tornaram o fundamento de sua atuação política. Edgar
dá o seu testemunho pessoal quanto à importância de
Jacques Maritain para o Brasil: “para minha geração,
Maritain foi não apenas um mestre de doutrina, mas um
exemplo humano. Ele deu testemunho da autenticidade
de sua fé e do seu amor em cada um dos menores e dos
maiores movimentos de nossa época” (POZZOLI; LIMA,
2012, p. 203).
Além destas personalidades, muitos outros brasileiros
foram profundamente influenciados, direta ou
indiretamente, pela filosofia política de Jacques Maritain.
Citaremos aqui alguns deles: Sobral Pinto, Hamílton
Nogueira, San Tiago Dantas, Milton Campos, Gustavo
Corção, Pedro Aleixo, Magalhães Pinto, João Camilo,
Hargreaves, dentre outros.
Dessa forma, compreendendo a grande repercussão da
filosofia política de Maritain no contexto político brasileiro,
uma pergunta que não se cala é porque sua doutrina é tão
esquecida e pouco falada no Brasil ainda hoje? Pozzebon
(1996, p. 8-9) diz que:
No entanto, apesar das incompreensões, enfatiza-se o
testemunho do professor universitário brasileiro Antonio
de Rezende Silva:
Maritain fornecia o instrumento teórico sob medida que
permitia fazer a costura com linha firme de cristianismo e
democracia. Quem dos discípulos de Maritain não teve o
coração incendiado ao ler as páginas memoráveis em que o
filósofo demonstra ser a democracia de essência
evangélica? (POZZOLI; LIMA, 2012, p. 219).
Assim sendo, verifica-se a necessidade de se conhecer,
aprofundar e divulgar a filosofia de Jacques Maritain no
Brasil, visto a sua grande contribuição à nossa nação. Isto
consiste numa proposta mais do que justa.
21
Irmão Helder de Maria é um jovem
religioso da Comunidade dos
Irmãozinhos da Divina e Trina
Ternura (Guarapuava, PR). Formou-
se bacharel em Filosofia pela
Claretiano em 2020 e atualmente
cursa bacharelado em Teologia pela
mesma instituição.
No Brasil, Jacques Maritain (1882-1973) foi mal lido e pouco
compreendido. Estudiosos do pensamento luso-brasileiro
chamaram atenção para o fato de sua influência entre nós
ter sido predominantemente religiosa e política, muito
mais que filosófica. [...] Seus adeptos do Rio de Janeiro
polemizaram longamente com seus detratores,
representantes do tradicionalismo do Recife. Nos anos
sessenta, [...] Maritain foi substituído por Mounier no papel
de guia religioso e político da intelectualidade brasileira. A
publicação em 1967 do livro O camponês do Garona,
erroneamente interpretado como uma “guinada à direita”
que negava a obra anterior de Maritain, deu pretexto a que
fosse esquecido por quase todos os seus antigos
seguidores. Esta interpretação, que pretende opor O
camponês do Garona ao Humanismo Integral, é sinal claro
de que a obra de Maritain foi lida muito mais do ponto de
vista religioso e político que filosófico. Indica também que
a obra do filósofo não foi lida no seu conjunto.
22. interior que tanto se busca? Tal questionamento, que
parece banal à primeira vista, descobre-se fundamental
para que saibamos o que estamos procurando antes do
início de qualquer jornada. O peregrino, que Tolentino
abordará mais ao final de sua obra, não poderá iniciar
caminho algum sem antes saber o que se procura e o
objetivo de tal empreitada.
Os temas oração e conversão são os primeiros a surgir no
texto. Tal escolha não é arbitrária, uma vez que ambos são
pilares importantes para o desenvolvimento de qualquer
cristão, seja ele nascido ou converso. É na oração que se
encontra o silêncio, aquele que permite que não
venhamos a nos distrair com o externo e nos permite
escutar os sons de dentro.
Tolentino expõe que é o silêncio que proporciona tais
questionamentos com maior clareza e lucidez, pois que é
o exercício do tentar descolar-se da realidade material e
terrena e buscar no nosso relacionamento com Cristo,
A busca por ser inteiro se diverge na lógica material e
espiritual, explica Tolentino. No plano material existe,
quase sempre, uma terceirização do trabalho de formar-se
único, inteiro. Buscarmos nos outros recursos para que
esse projeto da construção de si mesmo seja mais fácil,
mais palatável e menos dolorido. Não seria, portanto, esse
o caminho totalmente inverso daquele feito por Cristo?
Nas três décadas vividas com os homens, em momento
algum Jesus se colocou como aquele que buscava o fácil,
muito menos nos passou a ideia de que a caminhada no
tempo da Graça seria sempre um grande processo
prazeroso consigo mesmo. Foi ele mesmo o tentado, o
flagelado, o traído; como poderíamos nós entender nossa
matéria humana fora do aspecto da adversidade?
A busca, dirá Tolentino, mostra-se o encontro no silêncio,
no amor e na conversão real do coração. O interior é tudo
aquilo que organizamos para que nós e Cristo possamos,
enfim, fazer morada.
Livro aberto
O TESOURO ESCONDIDO
José Tolentino Mendonça
a obra O Tesouro escondido: para uma busca inte-
rior, do cardeal, poeta e teólogo português José
Tolentino Mendonça, encontramos um convite para
entendermos que o longo caminho da descoberta
humana sobre si mesmo é também uma jornada de
conexão e religação à essência do próprio Cristo. Em seus
inúmeros títulos publicados, o cardeal trabalha temas
caros ao homem moderno sob uma perspectiva sensível,
traduzindo com maestria tópicos filosóficos que tocam em
profundidade o coração do cristão. Em suas explanações
na obra aqui abordada, Tolentino inicia seu texto tocando
justamente naquilo que, em geral, causa incômodo a
muitos: nós mesmos.
Na conjuntura social, política, econômica e global da
atualidade não é incomum encontrarmos
questionamentos diversos acerca de Deus e de nós
mesmos sobre nossa fé. Certamente tal feito não é, de
forma alguma, surpresa a Nosso Senhor; mas não deixa de
ser algo que necessita de nossa atenção para além da
consciência de que isto existe. No momento presente
muito se questiona e muito se busca pelo interior. Há um
sem-número de pessoas ao redor do globo dispostas a
tentar auxiliar o outro na busca do caminho inverso,
introspectivo e silencioso da quietude do ser que habita a
matéria corpórea humana. No entanto, quanto dessa
busca interior para o cristão está, de fato, alinhado a
Cristo?
Devemos recordar diariamente que carregamos conosco
uma fé que leva o nome de seu mestre, Jesus Cristo.
Parece óbvio nos atentarmos no ordinário sobre a
necessidade de toda e qualquer busca humana estar
pautada naquilo dispensado a nós através da Graça.
Porém, é a partir do entendimento de que há hoje uma
busca incessante pelo descobrimento da essência e
daquilo que se esconde em nosso íntimo que devemos
entender se esta jornada empreende-se na simples alegria
da conquista pessoal e do ego ou se de fato nos promove
um crescer interno também para com nossa fé.
É neste sentido que encontramos o trabalho de José
Tolentino Mendonça que, com sensibilidade ímpar, se
encarrega de trazer questionamentos e reflexões sobre o
interior do homem à luz da Graça e do Cristo, que natural-
mente deveriam fazer parte
de todo e qualquer
empreendimento de
autoconhecimento do
cristão.
Em um primeiro momento
nos deparamos sobre a
questão primordial para o
entendimento dessa obra:
sabemos, de fato, do que
somos feitos e o que é esse
22
Abril-junho 2023 | Scena Crítica
MEDONÇA, José Tolentino. O tesouro escondido: para
uma busca interior. São Paulo: Paulinas, 2012.
Barbara Lima é historiadora e
graduanda em Letras/Inglês. De
interesses múltiplos, busca na
multipotencialidade o equilíbrio
entre felicidade e ofício.
N
João
Porfírio/Observador
23. Ágοrα
Praça de divulgação literária
23
Abril-junho 2023 | Scena Crítica
Amor conjugado
Eu amava,
mas meu pretérito era imperfeito.
Você não me amou.
Se nossos tempos fossem os mesmos,
nos amaríamos.
Nosso futuro sairia do pretérito
e caminharia rumo ao futuro do presente.
Mas imaginar ter te amado foi só ilusão.
Não fiquei só,
e nem de ti ausente,
pois é impossível ser feliz com o pronome errado.
Tu amas a ti mesmo mais que a alguém.
Eu amarei a mim e a quem quiser conjugar
No tempo e no modo certo,
o verbo amar.
Bábara Bedôr Novo é moradora do bairro de
Irajá, subúrbio carioca. Bacharel em
Biomedicina pela UNIRIO, é autora de Ecos do
interior (Multifoco, 2020), coletânea de poemas
que tomaram forma durante o seu
deslocamento no transporte público entre a
casa e a faculdade.
Fases
Como lua minguei por ti.
A ausência do seu amor
arrancou-me um pedaço.
Como lua enchi de mim.
Reconstruí caco por caco
a única parte que importava.
Como lua
cresci sem ti.
E descobri que sua falta não mais me falta.
Como lua,
e como gente,
renasci no que me importa.
O amor não morre em um,
renasce em diferentes fases.
antes que o pavio do afeto se apague por completo
antes que o amor derreta como sorvete no verão
do rio de janeiro
me diga
se te amar foi um erro
questiono sempre ao universo, à vida, se nosso
encontro foi planejado. se sim, quem planejou que
eu sofresse tanto pela sua partida? enfrentar as
facetas do abandono foi amargo, ainda é, e
provavelmente nunca vai deixar de ser. esses dias,
num domingo preguiçoso e feliz, senti saudades
suas. visitei o lugar em que te deixei há muito
tempo, que quase não lembrava mais onde era, e
constatei o que não tinha coragem de admitir: não
te amo mais. e imaginei que doeria admitir isso,
mas não dói. não é mais incômodo. a dor que você
me causou me anestesiou de tal forma que decidi
não mais te amar. talvez meu coração tenha se
esquecido disso por uma fração de segundo, por
isso a saudade. eu não ando bem de memória.
o pavio do afeto se apagou. o amor derreteu. nasci
com o desejo intríseco de te amar
incondicionalmente até o fim dos meus dias, mas
não pude realizá-lo. me perguntei por muito tempo
o que faria com todo o amor que construí por você
ao longo dos anos, e o que fiz foi o seguinte: nada.
ele se desconstruiu assim como foi construído e deu
lugar à algo infinitamente melhor.
vivi o luto e reconstruí meu mundo sem você
te amar não foi um erro.
mas deixar de te amar me libertou
agora posso
e consigo
te esquecer
Haloma Reis, nascida e criada no Rio de
Janeiro, católica, tem no sangue o amor pela
poesia, livros, gatos, café e arco e flecha.
La mélancolie
Sinto chegando perto da minha orelha seus
lábios suaves. E um sussurro qualquer lembra
um acontecimento. Sorrio largo, rostos se
acariciando em intensa conexão. Memórias
de dias bons, coração em chamas. Flash de
momentos ruins, coração no chão. Viramos e
nos beijamos entre um turbilhão de
pensamentos. Pronto!
Do abraço agradável e pele macia, ao beijo
de traição e início de uma passageira dor.
Quando ela vem me pega desprevenida.
Nunca bate a porta ou manda um recado,
apenas aparece e é sempre a mesma coisa.
Tão sutil que se instala sem ser percebida,
mas é notada em meio ao alvoroço. Os sinais,
talvez negligenciados, ecoam nos ouvidos de
quem só deseja um pouco de paz.
Ela me prometeu memórias... O passado.
Prometeu que seria como antes. De olhos
fechados pensei ter voltado lá, naqueles dias
felizes. Mas se tornou apenas um enfadonho e
pesado abraço que nunca acaba. Eu queria
ver o mundo, mas voltei apenas para a minha
própria desgraça. Ela me prometeu a vida,
mas me jogou direto na sarjeta da
melancolia.
Mãos escorrendo sobre o cabelo. Lágrimas
descendo pelos olhos. Uma enorme cobrança.
Calma, respira - são as únicas coisas que
consigo falar depois que ela já fez o seu show.
As perguntas sobre como aquilo foi acontecer
se tornaram rotina. E a impotência de quem
sempre acha que já venceu, também. O ciclo
vicioso sem fim.
As palavras de amor logo viram dor. E dois
segundos de brecha no pensamento abrem
aquela porta que nunca foi batida. O barulho
do salto a anunciou, mas só podia ficar se
fosse bem-vinda. Apelou então para as
memórias-meu ponto fraco-, para que assim
fosse entendido que ela havia chegado. Não
descansa até encontrar e poucos minutos são
suficientes para ela.
Prazer, diz ela, Melancolia.
Tainara de Vasconcellos é historiadora e
fotógrafa, nascida no Rio de Janeiro. Entre fotos
e palavras, usa a arte para revelar ao mundo um
pouco de si.