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UNIVERSIDADE POTIGUAR – UnP
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - HABILITAÇÃO EM
JORNALISMO
DANIEL FREIRE PEDROSA FILHO
O TORCEDOR DO CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO:
A ALEGRIA RUBRO-NEGRA NAS CRÔNICAS DE JOSÉ LINS
DO REGO, NELSON RODRIGUES E MÁRIO FILHO
NATAL-RN
2012
DANIEL FREIRE PEDROSA FILHO
O TORCEDOR DO CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO:
A ALEGRIA RUBRO-NEGRA NAS CRÔNICAS DE JOSÉ LINS
DO REGO, NELSON RODRIGUES E MÁRIO FILHO
Monografia apresentada à Universidade Potiguar –
UnP como parte dos requisitos para obtenção do
Grau de Bacharel em Comunicação Social com
Habilitação em Jornalismo.
ORIENTADOR: Profº. Me. Gustavo Bittencourt
NATAL-RN
2012
DANIEL FREIRE PEDROSA FILHO
O TORCEDOR DO CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO: A ALEGRIA RUBRO-
NEGRA NAS CRÔNICAS DE JOSÉ LINS DO REGO, NELSON RODRIGUES E MÁRIO
FILHO
Monografia apresentada como exigência parcial
para a obtenção do grau de Bacharel em
Comunicação Social com Habilitação em
Jornalismo, à comissão julgadora da
Universidade Potiguar.
Aprovado em ______/_____/______
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Profº. Me. Gustavo Henrique Ferreira Bittencourt
Orientador
Universidade Potiguar -UnP
_______________________________________________________
Profº. Me. Leonardo Bruno Reis Gamberoni
Universidade Potiguar - UnP
________________________________________________________
Profª. Me. Valéria Pareja Credidio Freire Alves
Universidade Potiguar - UnP
DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado a minha mãe, Gercina, que não se cansa de acreditar na
felicidade. Fé em Deus e pensamento positivo que ELE proverá! Como a senhora mesma diz;
À memória de meu pai, Daniel. Como queria ter te ajudado a alcançar a cura do
alcoolismo;
À minha esposa Valéria, companheira de todos os momentos;
Aos meus filhos Thiago e Yasmim, o amor na forma mais pura. Vocês são o que existe
de mais significativo em minha vida, meu tesouro verdadeiro. Pelo Flamengo sempre!
Às minhas irmãs Manuela e Daniela, juntos, somos mais fortes.
À Lisbela, pela fidelidade.
AGRADECIMENTOS
Ao futebol meu primeiro e permanente amigo. O teu encanto ninguém apaga. Ao
Clube de Regatas do Flamengo minha primeira paixão e amor para a vida inteira. Essas
instituições têm vida imaterial pulsante, alimento para a alma. Ao meu maior ídolo Arthur
Antunes Coimbra, sempre Zico, o cara que serve como modelo profissional e pessoal.
Obrigado por toda alegria que vocês me proporcionaram.
Aos outros inspiradores deste trabalho: Mário Filho, José Lins do Rego e Nelson
Rodrigues. O que vocês produziram com qualidade magistral, nada, nem ninguém, conseguirá
apagar. Pelo pensamento, encaminho a minha gratidão a vocês.
Aos professores que fizeram parte diretamente da produção deste trabalho, sugerindo,
apontando, opinando, discutindo e trazendo contribuição. Obrigado Manoel Pereira, professor
da fase inicial do projeto e, Gustavo Bittencourt, orientador e grande incentivador.
E aos espíritos de luz, sempre por perto para acudir. Amor e proteção que não cessa!
O Flamengo não para porque o Flamengo é uma força em marcha. Seu destino é a eternidade.
Gilberto Cardoso
RESUMO
O trabalho acadêmico tem a proposição de analisar o torcedor de futebol e suas emoções.
Como delimitação tem-se o torcedor do clube de maior torcida do Brasil, o Flamengo. Da
consulta profícua a livros, filmes, documentários, programas televisivos, radiofônicos e sítios
eletrônicos, veio o aparato para essa produção acadêmica que se dispõe a revisitar a história
do clube centenário, o papel de seu torcedor, e a pesquisar o que estes três cronistas, José Lins
do Rego, Nelson Rodrigues e Mário Filho, produziram expressivamente abordando o
Flamengo e o seu torcedor.
Sob a particularidade da hermenêutica que se configura como a interpretação de obras
textuais, e tendo o referencial teórico basal do trabalho sustentado em Ruy Castro e Mário
Filho com os seus respectivos, “O Vermelho e o Negro” e “Histórias do Flamengo”, o
trabalho se desenvolveu.
A obra está dividida em quatro capítulos. No primeiro, o futebol, seu surgimento, chegada ao
Brasil e a sua representação social, se estendendo ao papel de sua legião de seguidores, o
torcedor. Em um segundo momento, o Flamengo, a sua história e a atuação de sua torcida.
Em seguida, lançamos olhar sobre o gênero jornalístico-literário, “Crônica”, e à sua
especificação, “esportiva brasileira”. Por último, o torcer pelo Flamengo explicitado nas
crônicas esportivas de José Lins do Rego, Nelson Rodrigues e Mário Filho.
Palavras-chave: Futebol; Torcedor do Flamengo; Crônica esportiva brasileira; Nelson
Rodrigues; José Lins do Rego e Mário Filho.
ABSTRACT
The academic paper has as proposition to analyze football fans and their feelings. As baseline,
we have the supporters of the largest football fan club in Brazil, Flamengo. From fruitful
books, films, documentaries, television and radio programs and site consultation came the
apparatus for this academic paper which proposes revising the history of the century-old club,
the role of its supporters, and researching what these chroniclers, José Lins do Rego, Nelson
Rodrigues e Mario Filho, expressively produced regarding Flamengo and its fans.
Under the particularity of hermeneutics, which constitutes the interpretation of textual works,
and taking the theoretical baseline of the sustained work in Ruy Castro and Mario Filho with
their respective, "The Red and the Black" and "Stories of Flamengo", the paper was
developed.
This paper is divided into four chapters. In the first, football, how it started, its arrival in
Brazil and its social representation, extending it to the role of its legion of followers, the fans.
Following, Flamengo, its history, and its supporters’ participation. Soon after, we look at the
journalistic-literary genre, Chronicle, and also at its “Brazilian- sportive” specification. And
finally, rooting for Flamengo, explained in the sports chronicles of José Lins do Rego, Nelson
and Mario Rodrigues Filho.
Keywords: Football, Flamengo Fans; Brazilian-sportive Chronicle; Nelson Rodrigues,
José Lins do Rego and Mário Filho.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................................9
1.1 CHEGADA NO BRASIL...................................................................................................17
1.2 O TORCEDOR...................................................................................................................25
2.1 A RIVALIDADE NOS CLÁSSICOS.................................................................................57
2.2 ÍDOLOS..............................................................................................................................63
2.3 TÍTULOS............................................................................................................................67
3.1 A CRÔNICA ESPORTIVA BRASILEIRA.......................................................................81
4 O TORCER PELO FLAMENGO NA VISÃO DOS CRONISTAS ESPORTIVOS............87
4.1 A ALEGRIA RUBRO-NEGRA POR JOSÉ LINS DO REGO..........................................91
4.2 A ALEGRIA RUBRO-NEGRA POR NELSON RODRIGUES......................................100
4.3 A ALEGRIA RUBRO-NEGRA POR MÁRIO FILHO...................................................110
REFERÊNCIAS......................................................................................................................129
CRISE EM LARANJÓPOLIS, TRICOLETAS ENTREGAM TUDO DE BANDEJA
PARA SEREM ZOADAS PELO FUDEROSÃO: Disponível em:....................................130
DATAFOLHA. Times de preferência. Disponível em:
<http://datafolha.folha.uol.com.br/folha/datafolha/tabs/futebol_04012010_tb1.pdf> Acessado
em 06 de Maio de 2012...........................................................................................................131
9
INTRODUÇÃO
Analisar, descobrir, entender os motivos que levaram o Clube de Regatas do Flamengo
a ser propagado como o clube mais amado, de maior torcida do Brasil – e, na contramão, um
dos mais odiados - é desafiador e necessário para se fugir do senso comum. Como aceitar as
pesquisas que trazem números impressionantes sobre esse torcedor? Institutos de pesquisa
detentores de grau de confiabilidade como o Datafolha, Ibope, CNT Sensus, Pluri Consultoria
entre outros, atestam: a torcida do Flamengo é a maior do Brasil. Algumas pesquisas indicam,
inclusive, ser a maior do mundo. Checar esta afirmação e encontrar o embasamento que
desencadeou esse crescimento é um ato de compromisso com a veracidade dos fatos.
Fazendo a “leitura” dessas pesquisas chega-se a depreensão de que o torcedor do
Flamengo trata-se de um verdadeiro fenômeno. E nos leva a uma certeza. O Flamengo é um
cube nacional. O título de “mais querido do Brasil” causa natural curiosidade e daí leva à
indagação e a uma inquietude que me arrasta para o campo da pesquisa. Como esse clube
conseguiu chegar a um patamar de extraordinária altivez? Como a sua torcida se forjou e
cresceu em todo o território nacional? Sempre questionei as unanimidades, aquelas
construções históricas que são moldadas para serem inquebrantáveis. Acredito que em tudo,
em qualquer fato, sempre existe outro viés. Talvez essa característica tenha me levado ao
Jornalismo. Talvez não, tenho certeza.
Antes de estudar para entender tal condição fui sentir a pulsação e energia desse
torcedor. A primeira vez no Maracanã junto daquela massa foi uma experiência extasiante,
indescritível, de me deixar embasbacado, arrepiado, com alegria e fascínio que não se
comparam a nada neste mundo. O barulho, o colorido, a festa e a sensação de estar diante de
uma imensa família, aquela coisa de no momento do gol, quando o abraçar de um estranho, de
vários desconhecidos, se estabelece te deixando “perdido”, pela emoção, e, “resgatado”, no
propósito da união, de uma união única por ser desinteressada, espontânea, isso tudo,
magnetiza.
Esses elementos ficaram estampados na alma, na memória. O “sentir” àquela torcida,
o estar junto a ela, me trazia satisfação e abria a minha percepção para toda simbologia do
grupo, do coletivo, da massa, e da multidão, agregando valor ao meu posicionamento diante
da sociedade. Naquele “meio” eu era mais gente, mais humano, ser social, preenchido, por
assim dizer, e aprendia lições que levaria para sempre.
10
Nesta fase ainda, de adolescência, a leitura, o exercício dela habitualmente, me
atingiu, e a luz possibilitadora do conhecimento irrestrito adentrou meus poros e passou a
clarear o meu ser. Pela leitura, o mundo era meu! Quando me deparava com histórias
envolvendo o futebol e, mais especificamente, o Flamengo, a sua superação, raça, garra, a
alegria rubro-negra, o manto sagrado, sua torcida, essas conotações, eram pontos associativos
sempre abordados. Diante desses textos que inflamavam ainda mais o desejo de descobrir os
motivos que fortaleceram ao longo do tempo a exaltação a este clube eu me via como um
menino na “fantasia” descritiva do real. Era difícil controlar a minha curiosidade, o senso
precoce de questionamento, e a obstinação em apurar, em atingir as raias do entendimento das
razões para este clube se fazer tão especial.
E dentro desse seio da literatura houve um momento mágico, de descoberta. O que
senti quando li uma coletânea de crônicas esportivas de Nelson Rodrigues e o que ele falava
sobre o Flamengo foi algo como um torpor que tomava conta da alma, revelando um universo
futebolístico cheio de poesia e dramaticidade. Aproximava-se do que tinha sentido no
Maracanã no meio daquela massa enlouquecida e “embriagada” de paixão. Era a tradução
exata. Como era possível aquilo? Até aquele momento só havia tido contato com parte da
obra do Nelson Rodrigues, dramaturgo. Ícone neste segmento, e não menos brilhante na
crônica esportiva, através dela, um horizonte novo e belo se abriu a minha frente.
Nelson exclamava ser o Flamengo um fenômeno, uma força da natureza, que venta,
chove, troveja, relampeja. Que cada brasileiro vivo ou morto já havia sido Flamengo por um
instante. Que o seu torcedor era capaz de morrer com o nome Flamengo gravado no coração a
ponta de canivete. Para ele, a alegria rubro-negra não se parecia com nenhuma outra. E dizia
ainda que se Euclides da Cunha fosse vivo teria preferido o Flamengo à Canudos para contar
a história do povo brasileiro. Era muito forte, instigante. Como um tricolor assumido podia
dizer aquelas coisas sobre o rival rubro-negro? O desejo de me aprofundar no quesito
Flamengo para compreendê-lo em sua essência, continuava pedindo passagem. Outros
compromissos, no entanto, postergava essa pesquisa.
O tempo passou. Na faculdade, ao iniciar o direcionamento para a escolha do tema
deste projeto de conclusão, não existia mais dúvida. Havia chegado o momento da pesquisa.
Sobre a história do Clube de Regatas do Flamengo, de sua torcida, iria me debruçar. Em um
primeiro momento seria só o torcedor do rubro-negro carioca. Precisava, porém, criar uma
relação com o jornalismo. Nelson Rodrigues. Surgiu esse nome, esse elo. Para quem possa
não saber, Nelson antes de grande dramaturgo foi durante toda sua vida jornalista e cronista
esportivo, de mãos cheias. A crônica esportiva, portanto, me daria suporte.
11
Durante as leituras específicas para o trabalho, eis que para a minha surpresa, dois
outros nomes me saltam aos olhos, à mente, ao coração. José Lins do Rego – que eu conhecia
por “Riacho Doce” e “Fogo Morto” -, e Mário Filho – que somente o identificava como o
jornalista que dá nome ao estádio do Maracanã. Os dois, também cronistas esportivos de
grande envergadura, que me fizeram, ao primeiro contato com suas crônicas esportivas,
“babar”, ficar de queixo caído, teriam que ter espaço também. Merecido espaço. Um, era
torcedor ardente do Flamengo. O outro, referendado pesquisador, historiador, defensor do
futebol, idealizador e criador de grandes eventos relacionados ao esporte e, de certa forma,
ligado também, ao rubro-negro.
Este trabalho então, no seu ponto central, a torcida do Flamengo, pode-se dizer, é
acalentado há anos. Para desenvolvê-lo de forma criteriosa, séria, respeitável, não existia
lugar melhor, a Universidade. Para isso, era necessário expor o tema ao crivo científico. Tive
o cuidado de não me deixar levar pela emoção e pelo autossugestionamento. Desprendi-me de
qualquer sentimento unilateral que corrompesse os sentidos. Confrontei a produção de vários
autores, e trabalhei de forma racional, analítica científica – em face de reunir tudo a respeito e
criar a minha linha de raciocínio - visando obter resultado satisfatório. Sem ser “xiita”,
radical, no sentido de me manter rigorosamente o tempo todo na razão, me permiti,
entendendo não ser maléfico para o trabalho, em alguns momentos, fluir no sentimento mais
solto, natural, sem, no entanto, fugir da realidade dos fatos.
Aqui estão contidas as nuances, as sutilezas históricas, os acontecimentos fortuitos, as
interpretações e reinterpretações que ajudarão o leitor a encontrar fundamentos para saber o
porquê desse clube, chamado Flamengo, ter uma torcida gigantesca, ímpar, e de ser para este
seu torcedor, além, do “mais querido do Brasil”, um clube de simbolismo que vai sempre
mais além. Mais que uma paixão. É religião. No sentido mais abrangente da palavra, de
religar o maior número possível de pessoas à sua causa.
O que foi reunido, apresentado neste trabalho, interessa não somente ao torcedor do
Clube de Regatas do Flamengo. É de interesse para quem gosta de futebol e, mesmo com sua
inclinação para este ou aquele time, pensa sobre o tema, analisa, abre o seu campo de visão,
enxergando assim, também, a história do outro, independente do julgamento que faça.
Justifica-se, inclusive, o seu conteúdo como aceitável a uma minoria que não gosta de futebol,
isto porque, vai muito além desse aspecto único. Trata de Sociedade, Cultura, Psicologia,
História, Comunicação. Trata de gente. Retrata uma instituição que há quase 120 anos mexe
com a emoção do torcedor. Seja amando, ou odiando, o Flamengo é assunto contumaz por
todos os cantos.
12
Amor, paixão, fracasso, superação, alegria, ousadia, coragem. Sentimentos inerentes
ao ser humano. Sorriso e lágrima. Pluralidade. Tudo isso está presente nesse tema. Sobre
esses pilares, a história do Clube de Regatas do Flamengo foi erguida. Inserido na
Comunicação Social, sendo frequentemente pautado no Jornalismo, o Flamengo impressiona
e qualquer investigação que trate de revelar os motivos para essa massificação do tema
Flamengo faz-se pertinente.
1 FUTEBOL, ESPORTE DE MASSA
O futebol, palavra que em sua origem vem a significar alguma coisa do tipo, “chutar
bola”, ocupa consistentemente porção considerável do planeta, seja pela prática do esporte, ou
pela abordagem do assunto, e tem lugar de destaque no item predileção das pessoas. Ele se
caracteriza como a maior paixão esportiva do planeta. O mecanismo que o rege é intrincado.
Um esporte que desperta nas pessoas paixão em doses cavalares necessita de análises
profundas para se chegar aos motivos de sua atração. Ele desemboca em um campo minado
da complexidade humana. O futebol é retrato, imagem da sociedade. O jogar do campo e da
vida são bem semelhantes, acrescenta (JÚNIOR, 2007).
Em países onde o futebol é o esporte mais popular – e são muitos – ele vem a ser mais
que uma atividade esportiva. É representação da vida, de certa maneira. Perceber essa paixão,
reconhecer sua autenticidade, sua profusão, é inteligente, e na proveitosa tarefa de
desconstruir a formatação do esporte visando esmiuçar seus detalhes, embarca-se. Sem pré-
julgamentos que podem nos fazer escorregar, tendo o cuidado diante das verdades
estabelecidas, das opiniões, apreciativas ou depreciativas, e somente com a pretensa missão de
se obter o conhecimento, projeta-se o olhar para examinar suas origens e desvendar seus
enredos.
Posicionando-se como observador dos signos que gravitam na atmosfera do futebol e
que o fazem permear o mundo e as relações humanas, chega-se a conclusão de ser o esporte
elemento fortemente representativo na sociedade brasileira. Jogando luz sobre os fatos, sobre
o homem, é certo encontrar apontamentos de significação para essa prática esportiva que
consiste em conduzir uma bola com os pés, driblando o oponente, e tendo como objetivo
central o assinalar do gol. Entrando de cabeça na simbologia do futebol chegamos a
interpretações esclarecedoras acerca de seu papel social.
O futebol tem um dom próprio. Ele faz as minorias, que estão fora da massa,
sentirem-se parte da multidão. Também afasta qualquer indivíduo da solidão do
13
sentir-se minoritário, dando-lhe uma identidade. A massa ganha uma personalidade
própria, afastando o sentimento de ser apenas mais um. (PEREIRA, 2010, p. 13).
Ele funciona como componente ingente na estrutura macro social e é detentor de
capacidade ímpar de agregar, espalhando enlevo, feitiço, deleite. O futebol explica a
sociedade. É uma instituição nacional. Banhado na metáfora, a associação com a vida se faz.
A vida não traz paralelos com uma partida de futebol? Certamente. No campo de nossas
existências, com as faltas, sofridas e cometidas; as marcações cerradas que impomos; os
deslocamentos para fugir do indesejado; as alegrias; tristezas; vitórias, derrotas, glórias, e
ostracismo, diante desses adventos, nos deparamos com situações que nos impelem a tomar
decisões bem projetadas, suprimindo riscos, e conduzindo ao sucesso. O futebol pode ser
visto como uma analogia da vida e muito do que ocorre nele traz traços desta vida que fomos
escalados a jogar.
A experiência futebol parece ser, de fato, uma experiência divertida, o registro da
ilusão, aquilo que Benjamin um dia chamou de ‘aura’. O futebol é a prova viva da
necessidade de demonstrar afeto e de transformar a realidade num instante. A
efemeridade do futebol impressiona ainda mais no momento do gol, em que nada
parece fora de lugar. Mas os pilares que sustentam a concepção de espetáculo do
futebol vão além das conquistas históricas [...]. (LOYOLA apud FREIRE, 2007, p.
98).
E quando surgiu? Como surgiu? Que desejo o inspirou? Quando se busca referências
sobre a origem do futebol histórias diversas saltitam aos nossos olhos e ouvidos. Nenhuma
delas com base de registro oficial que ateste a veracidade. Como afirmam muitos estudiosos
do assunto, é impossível determinar um momento exato em que o futebol deu o ar de sua
graça na história da humanidade.
Uma dessas narrativas, nos conta que na China, durante o período de 2000 a.C.,
guerreiros tiveram a ideia macabra de, após derrotarem o inimigo, decepar-lhe o crânio e
passar a chutá-lo visando ultrapassar a demarcação de dois paus fincados no chão. Com o
tempo, se aprimorou essa diversão que passou a ser um exercício militar disciplinador e
bastante competitivo, chamado Tsu Chu, que significava morfologicamente “chutar a bola”.
Ocorre uma mudança. E para melhor. Não mais se utilizava a cabeça do inimigo – substituída
por bola de couro com enchimento de crina.
A primeira forma documentada de futebol que se tem notícia vem da China, com o
Tsu Chu, que em chinês significa ‘lançar com o pé’ (tsu) uma bola recheada de
couro (Chu). O esporte, criado para fins de treinamento militar, foi desenvolvido por
Yang Tsé, integrante da guarda do imperador da dinastia Xia, em 2197 a.C.
(UNZELTE, 2009, p. 10).
14
Importado pelos japoneses, no século II a.C., o Tsu Chu mudou de nome sendo
chamado de “Kemari”, palavra japonesa para definir, da mesma forma que no chinês, a
prática de “chutar a bola”. No Japão ele deixa de ter um caráter de competitividade e passa a
ser um cerimonial. Na América Central, no século 900 a.C., sob o nome de Tlachitli –
espetáculo – um suposto antepassado do futebol também é identificado. Ocorria em um pátio
que separava dois templos e consistia em não deixar a bola tocar o chão. Ela, a bola, tinha de
ser introduzida em aros.
[...] os japoneses pretendiam provar que, muito antes de ser regulamentado pelos
ingleses, o futebol já era conhecido no oriente, pelo nome de Kemari (Ke = chutar;
Mari = bola). [...]. Patrocinado e difundido pelos imperadores Engi e Tenrei, esse
tipo de futebol não contava pontos e nele se proibia qualquer contato corporal entre
os participantes. (UNZELTE, 2009, p. 12).
Na cultura europeia, três atividades vêm a ser mencionadas como centelha inicial do
futebol. Na Grécia, o Epyskiros, século IV a.C. Jogado em campo retangular, com bola que
tinha no seu interior areia e com o objetivo de fazê-la ultrapassar certa demarcação. “Por volta
de 850 a.C., Homero havia escrito um livro sobre esse tipo de esporte “[...]. O parente mais
próximo do futebol era o epyskiros, disputado com os pés, em campo retangular, por duas
equipes de nove jogadores”. (UNZELTE, 2009, p. 12).
A partir da influência do Epyskiros surge em Roma, século III a.C., o Haspastum.
“Influenciados pelos gregos, os romanos também bateram a sua bolinha. O Haspastum – o
jogo da pequena bola”. (CARMONA e POLI, 2006, p. 22). Sua configuração era a de
aprimorar o aspecto atlético dos soldados e desenvolver uma estruturação tática. No século I
a.C., se desvencilha da exclusiva esfera militar e se populariza. Possivelmente, o Haspastum
foi introduzido pelas tropas romanas nas ilhas britânicas. Os diferentes jogos com bola
praticados na Inglaterra, inclusive o futebol moderno, teriam derivado dele, defendem
teóricos.
Uma tese dá conta de que em Florença – da fase Renascentista – atribuía-se ao
Haspastum a origem de um jogo com bola, praticado desde o século XIV, chamado Cálcio.
Termo consagrado e até hoje proferido pelos italianos para denominar o futebol. O Cálcio
possuía características de ser um jogo urbano praticado no principal espaço público da cidade
(Piazza Santa Croce); tinha número fixo de jogadores; utilização de uniforme; aplicação de
regras; a figura do árbitro, e posicionamento dos jogadores em certas áreas do campo.
Praticado por indivíduos de todas as classes sociais, na segunda metade do século XVI muda
de cara. Passa a segregar as camadas mais pobres e torna-se exclusividade da nobreza. Em
15
apontamentos históricos percebe-se o quão apreciado era o esporte. Mesmo com a barreira
aristocrática, muita gente do povo se entusiasmava em acompanhar o evento. Existem relatos
que estimava em 40 mil o número de espectadores que acompanhavam cada partida, explicita
(CARRILHO, 2010).
Outro apontamento discorre sobre uma manifestação esportiva ocorrida na França,
século XII, o Soule – do latim Solea (calçado). O Soule viria a ser uma prática com bola,
certamente jogada com os pés – associação com “calçado” - e que tinha muitas variações
dependendo da região. “As conquistas romanas semearam filhos do Haspastum pelo mundo.
Na região da atual França, os habitantes célticos pré-romanos tinham um jogo de bola
conhecido como Seault. Do cruzamento das duas tradições surgiu o soule”. (CARMONA e
POLI, 2006, p.23).
Para maioria dos estudiosos, o futebol moderno teve sua origem na Inglaterra.
Caminhando de mãos dadas com a afirmação do poderio e da autoridade britânica pelo
mundo, o futebol desempenhou papel de destaque na proliferação desta condição inglesa. A
propagação pelo mundo do esporte, o futebol, dentre outros de origem britânica, se deu
sustentada por essa ascendência cultural inglesa e na associação à cultura ocidental cristã.
O futebol então, ligado à Inglaterra, faz enxergar nisso uma roupagem que mostra a
Revolução Industrial empreendendo no esporte alguns conceitos marcantes de suas
características, e de sua influência pelo mundo. Aspectos de um, foram desencadeados no
outro. Competição, produtividade, igualdade de chances, supremacia do mais hábil,
especialização de funções, quantificação de resultados, fixação de regras. Essas pontuações se
aplicam a ambos. Pode-se detectar pelo estabelecimento de regras políticas que a Inglaterra,
experimentando o intenso desenvolvimento das instituições, visava à organização da
sociedade. Através do fortalecimento das instituições formais e da deflagração de
regulamentações, se ordenaria bem o jogo social. Instituições servem para reger a própria
sociedade. O progresso do capitalismo exigiu um avanço no desempenho das instituições.
Para (CARRILHO, 2010), instrumento de demarcação do predomínio britânico pelo
mundo, o futebol foi envolvido pelo propósito colonizador de servir através do chamado
cristianismo britânico, entre 1820 e 1900, como autoafirmador nacionalista. Com eficaz
concepção pedagógica de desenvolvimento da estrutura moral da elite britânica, e atestador do
poderio inglês, ao se inserir em outros países o futebol e a sua aplicação era de suma
importância para proporcionar força ao corpo, consistência ao espírito, rapidez ao raciocínio,
boas maneiras, desenvolvimento, disciplina.
16
Incorporando a fundamentação da teoria da evolução de Charles Darwin chamada,
“origem das espécies”, no tocante à seleção natural, e incutindo - primeiro na Inglaterra,
depois rompendo fronteiras - a ideia de que, biologicamente, temos uma base comprovada da
sobrevivência dos mais fortes, o mais apto, assim, o esporte foi elegendo os seus. A teoria
darwinista foi se difundindo nas escolas privadas e nas universidades de Oxford e Cambridge,
juntamente com o jogo praticado com bola desde o século XIV, chamado Football.
Mesmo ao passo das interdições oficiais que vieram a ocorrer, em nenhum momento o
esporte desapareceu das cidades britânicas. Tamanho foi o interesse pelo football na Inglaterra
que entre 1830 e 1870 cerca de sessenta times já haviam sido registrados. Houve então a
necessidade de padronizar, de codificar as regras do esporte, tendo em vista, que elas
variavam conforme a localidade. Em 1863 foi criada para este propósito, a Football
Association.
Identificado então como produto Made in England, os ingleses enxergavam no futebol
condições apropriadas para fortalecer ainda mais a sua imagem por outras terras. Dessa
mentalidade, um processo de exportação veio a ocorrer. Países de todos os continentes foram
apresentados ao futebol. Ridicularizado no início, não visto com bons olhos, – isto fora da
Inglaterra, deixar claro – ele, com o tempo, ganha “corpo” e solidifica-se como espetáculo,
atraindo públicos cada vez maiores.
O futebol não é um pendor de desligamento das responsabilidades, das obrigações
sociais - como alguns afirmam. Tem muito mais elementos construtivos do que destrutivos;
benéficos do que maléficos. O seu universo trabalha regido pela intensidade das emoções.
Tanto na questão da razão, como na da emoção, encontram-se motivações sólidas e conteúdo
consistente para aprofundamento de estudo.
Uma das maiores distrações da humanidade, pelo menos entre os homens, o futebol
é menos perigoso que o álcool, menos ilusório que a religião e proporciona um
senso de comunidade mais estrito que qualquer partido político. As ilusões da
lealdade podem se perder ou o êxtase da vitória pode se provar efêmero, mas, ao
início de cada novo campeonato, a esperança eterna que ocupa o coração dos fãs do
futebol pulsa novamente. Os políticos abusam dessa fé simples, os homens ricos
corrompem-na e os cínicos zombam dela, mas o futebol sobreviveu a tudo isso,
tornando-se a maior e mais sólida instituição esportiva do mundo. (MURRAY,
2000, pag. 18).
Impressionante é observar o quão natural e próprio da raça humana é a
predisposição, o impulsionamento que se tem, desde a marca inicial da vida, dos primeiros
meses de existência, para soltar o pé em uma bola, sem que ninguém haja ensinado isso. Ao
primeiro sinal de que começa a andar a criança já esboça o ato de chutar aquele objeto
17
redondo. Essa inclinação existe em todo o ser que estreia em sua vivência neste planeta. No
Brasil, o futebol é uma febre que faz bem. Há mais de cem anos que se instalou por aqui e,
desde então, sua representação e significação social veio se acentuando cada vez mais.
1.1 CHEGADA NO BRASIL
Conjeturas variadas sobre a manifestação inicial do futebol no Brasil são encontradas.
Uma linha de observadores relata que já no século XVII os portugueses que aqui estavam com
o propósito de colonizar essas terras, praticavam um esporte que era jogado com uma bola de
pano e que possuía semelhança com o futebol. Outra versão levantada é a de que marinheiros
europeus, mais precisamente ingleses e franceses, teriam jogado as primeiras “peladas” na
América do sul, em 1864, em terras brasileiras.
Bailam ainda versões de que marinheiros ingleses teriam desembarcado no Rio de
Janeiro e realizado uma “pelada”, um “rachão”, em frente à residência da princesa Isabel, no
bairro carioca das Laranjeiras. E que em Itu, no interior paulista, padres haviam ensinado o
futebol aos seus alunos, entre 1872 e 1873. Duas outras explanações argumentam que Mr.
Hugh, responsável pela estrada de ferro São Paulo Railway, teria apresentado o futebol a seus
funcionários e estimulado a prática do esporte. E que em colégios confessionais, e laicos, de
São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, a prática futebolística já se aplicava desde a
década de 1880.
Cresce entre os pesquisadores a defesa de que a primeira partida de futebol no Brasil
ocorreu em 1894, no bairro Bangu, no Rio de Janeiro, portanto, antes da data oficializada do
seu surgimento, 1895, pelas mãos de Charles Miller. Conta-se que na Fábrica de Tecidos
Bangu, operários estrangeiros, principalmente, ingleses, cedem aos apelos de Thomas
Donohoe, um escocês já apaixonado pelo futebol, e realizam no campo da antiga Fábrica
Bangu – hoje, o Shopping Bangu – a primeira disputa futebolística do Brasil.
O futebol definido por (BYINGTON, 1982, p.21) como “uma prática social que, como
tal, expressa a sociedade brasileira, com todas as suas aspirações mais antigas, seus desejos
mais profundos e suas contradições mais camufladas”, tem a versão oficializada de chegada
ao Brasil por intermédio da figura de um paulistano, filho de engenheiro escocês e de uma
brasileira – filha de ingleses. Seu nome, Charles Miller.
Ele que foi mandado pelos pais, aos nove anos de idade, para a Inglaterra a fim de
completar os estudos, ao retornar, em 1894, traz em sua bagagem uma série de itens
associados ao futebol: uniformes, pares de chuteiras, bolas, uma bomba de ar, um livro de
18
regras, além, da obstinação em desenvolver o esporte por aqui. Charles havia jogado futebol
na Inglaterra e mostrava talento como jogador. Logo que regressou ao Brasil, teve
dificuldades para convencer os seus pares – obviamente àqueles que não tinham ido à
Inglaterra - a praticar o esporte bretão. Na sua insistência, conseguiu arrastar alguns colegas
para um campo de várzea.
Sendo sócio do São Paulo Athletic Club – o primeiro clube esportivo da capital
paulista – Charles Miller tentou fazer com que os ingleses do clube jogassem uma partida de
“football”. Sendo praticantes do críquete, os sócios descartaram de imediato. Só no ano
seguinte, 1895, o São Paulo Athletic adotou o futebol em seu quadro tendo Miller como o
principal destaque. O primeiro jogo de futebol, que se aproximou das regras oficiais, por
assim dizer, ocorreu em São Paulo, em Abril de 1895. Charles Miller foi o responsável em pôr
em campo funcionários da Companhia de Gás (The Team of Gaz Company), e da São Paulo
Railway – empresa da qual o seu pai era funcionário, cita (GUTERMAN, 2010).
É com ares de esporte estritamente elitista que o futebol se instaura na Paulicéia. Tem
aceitação forte entre os abastados, mas também, logo é visto e descoberto pelo pessoal do
baixo escalão social. Esses queriam ter o direito de praticá-lo também. Em 1898 é fundada a
Associação Atlética Mackenzie College que em tese vem a ser o primeiro time de futebol
composto unicamente por brasileiros.
Charles Miller e sua importância para o futebol, é notória. Todavia, outro nome que
não se pode esquecer é o de Hans Nobiling. Um alemão que muito contribuiu para a
organização e disseminação do futebol por terras paulistas. Estabeleceu-se em São Paulo em
1897 e, determinado a difundir a prática do futebol, fundou o seu próprio time, o Hans
Nobiling Team. Fomentou disputas envolvendo os times de até então, o seu, o Mackenzie, e o
São Paulo Athletic. Fundou outro clube, que tinha o nome de Sport Clube Internacional e, em
seguida, mais um, o Sport Clube Germânia.
[...] Charles Miller não foi apenas o principal responsável pelo aparecimento do
futebol em nosso país. Mais que isso, ele tinha o perfeito domínio das regras do
futebol naquela época, apitava jogos, além de ser jogador de extrema habilidade
técnica (...). Ao chegar ao Brasil, Charles teve mais um motivo para continuar
empolgado e divulgando o futebol: ele encontraria aqui o alemão Hans Nobiling,
chegado em 1897, vindo de Hamburgo, onde jogava pelo clube Germânia. Juntos,
passaram a organizar competições no campo de Rúgbi do São Paulo Athletic e no
velódromo, Seguia-se, a partir desse momento, uma série de jogos que reunia os
altos funcionários das empresas inglesas e a elite econômica interessada nesse
esporte. (CALDAS, 1990, p. 23).
No Rio de Janeiro, é oficialmente Oscar Cox – filho de inglês - quem dá o pontapé
inicial na introdução do futebol na cidade. Assim como Nobiling, que o propalou em São
19
Paulo, Cox foi o homem que, além de introduzir, teve papel relevante na disseminação do
futebol por terras cariocas. Oscar ao retornar da suíça, em 1897, após completar os estudos,
extasiado pela febre do futebol na Europa, desembarca com uma ideia fixa. Implantar o inglês
“football” entre os cariocas e fazer dele o esporte mais admirado da cidade. O estudante tinha
17 anos. Na capital federal, nenhum traço do esporte existia e Cox enfrentou enormes
dificuldades. Os campos que haviam eram destinados ao Críquete (esporte parecido com o
beisebol). Para Oscar Cox aquele espaço era muito diferente do que havia visto na Europa.
E as pessoas sequer vislumbravam o que poderia ser o futebol. ‘Football’? Que
vinha a ser aquilo? [...] havia um campo. Sim. O clube brasileiro de Cricket tinha
um. A coisa, porém, se complicava quando Oscar Cox, balançando a cabeça, dizia
que, fora o verde da grama, não existe semelhança alguma entre o campo de cricket
e o campo de football. O campo de cricket sendo oval, o de football sendo
retangular. (RODRIGUES FILHO apud MARON FILHO e FEREIRA, 1987, p. 14).
Encomendando bolas, que vinham da Europa, Oscar Cox estimula a aproximação dos
praticantes do críquete, e dos seus pares sociais, ao novo esporte. A batalha foi árdua. O
campo teria que ser aquele mesmo, destinado ao críquete. Faltavam as traves, as redes,
inclusive, jogadores. Diante de tanta adversidade, Oscar Cox chegou a ficar um pouco
desanimado, mas incentivado por seu pai, e também pelo avô – o pai havia sido um dos
fundadores de um clube de críquete em Niterói, o Rio Cricket and Athletic Association -
continuou a acalentar o seu sonho.
Levou três anos para fundar o primeiro time carioca de futebol formado só por
brasileiros. Brasileiros esses, que haviam também ido a Europa e se encantado com o esporte.
O time pertencia ao Rio Cricket and Athletic Association. O outro clube de críquete famoso
da cidade era o Paysandu Cricket Club. O time de futebol do Rio Cricket, comandado por
Cox, enfrentou outro formado por sócios do clube, praticantes, do críquete e do tênis. O placar
de 1 a 1 deixou as pessoas meio perplexas. Que esporte era esse que aceitava uma disputa sem
um vencedor?
Importante explicar que o Rio Cricket, fundado em 1872, no bairro de Botafogo, vem
a ser o clube gerador, que deu origem, a outros dois. Na verdade, o Rio Cricket mudando suas
instalações, a sua sede, para a rua Paysandu, no bairro de Laranjeiras, passa a se chamar
Paysandu Cricket Club. Dissidentes fundam em Niterói, o Rio Cricket and Athletic
Association. Fato pitoresco a de se destacar era a presença rotineira no Paysandu Cricket Club
do casal, Conde D’eu e a princesa Isabel.
O team dos brasileiros devia enfrentar um team de ingleses. Qual o inglês que não
dera um chute em uma bola? E aí – era agosto de 1 – bem de manhã cedo, os tenistas
20
do Rio Cricket and Athletic Association tiveram a atenção despertada por umas
balizas colocadas nos extremos do campo de Cricket. Eles perguntavam ainda o que
era aquilo quando apareceram os jogadores. [...]. (RODRIGUES FILHO apud
MARON FILHO e FEREIRA, 1987, p. 15).
Mesmo com desconfianças, a primeira experiência foi proveitosa e duas outras
partidas foram realizadas. Porém, para se consolidar de verdade era necessário jogar contra os
paulistas já mais adiantados na prática do futebol. Cox fez contato com um amigo que havia
estudado e praticado futebol com ele na Europa e que morava em São Paulo. Esse amigo
estava inserido no movimento futebolístico paulistano. Uma resposta positiva se deu e o time
do Rio partiu rumo à capital paulista. A receptividade foi muito boa e as partidas bem
jogadas. Foram dois jogos. Dois empates. E bom número de pessoas foi conferir o embate
entre cariocas e paulistas.
E a gente só precisava de uma coisa. De disputar um macht em São Paulo [...]. Oscar
Cox pegou uma folha de papel, molhou a pena e escreveu a carta. Quero que você
me responda com urgência se é preciso levar barra de gol e redes. Temos tanto uma
coisa como outra. A resposta veio mais animadora do que se esperava. Não
precisamos – escrevia René Vanorden, do Esporte Clube Internacional – de nada.
Temos campo. Temos barra de gol. Temos rede. Só faltam vocês para um Rio - São
Paulo. (RODRIGUES FILHO apud MARON FILHO e FEREIRA, 1987, p. 16).
Em 1902, Cox alça voo mais alto e substancial e funda o aristocrático Fluminense
Football Club. Mas, o primeiro time de futebol oficial do Rio de Janeiro foi o Rio Football
Club, surgido poucos meses antes do Fluminense. Inicialmente Cox seria o seu fundador,
entretanto, por divergências com companheiros, deixou o grupo e outro membro se
encarregou de firmar o nascimento do clube.
Com a criação formal do seu tão acalentado time, o Fluminense, Oscar Cox, sente um
quê de missão cumprida. O futebol no Rio de Janeiro começa a se fortalecer e a despertar o
entusiasmo nas pessoas. Despertar interesse entre todos, sim. Todavia, a prática do esporte era
restrita a pessoas de bom poder aquisitivo, é bom dizer. Lembrando que os esportes populares
eram o Remo e o Turfe. Nessa época, o Rio de Janeiro era tocado pelo anseio de
modernização e uma grande estruturação urbana, que visava corrigir deficiências que possuía,
foi implantada.
O Rio de Janeiro passava, naquela época, por bruscas reformas urbanas que
modificavam a disposição geográfica da maior população brasileira da época. De
acordo com Mattos (1997) os clubes também fizeram parte desse esforço
modernizador e cosmopolita que contagiou o rio na virada do século. A autora
recorreu a Needel (1993), que, em seu estudo sobre belle époque, relacionou a
criação dos clubes ao desejo de estabelecimento de um convivo social da elite,
(DAOLIO, 1997, p.22).
21
Na elite, e não no seio da camada mais humilde, o futebol teve seu desenvolvimento
inicial no Brasil. Era amador e aristocrático. Nisso residia um traço que era defendido por
quem o praticava: o Fair Play. Jogar limpo era necessário. Na arquibancada, o torcedor
também deveria se comportar de maneira garbosa. O futebol serviria como meio de despertar
os modos mais refinados, os bons princípios, para formar uma classe que serviria de modelo
para todo o país. A elite se dedicaria a utilizar aquele esporte para incutir a ideia de que era
fundamental prezar pelas boas maneiras para se atingir uma pretensa “civilização”.
Esporte de bacharéis num pais caracterizado por gigantesca desigualdade social,
esporte de brancos em uma sociedade com marcas ainda expostas do escravismo,
esporte associado a ícones do progresso e da industrialização numa economia ainda
essencialmente agrária, o futebol tornou-se desde o inicio um dos ingredientes mais
importantes dos debates acerca da modernização do Brasil e da construção da
identidade nacional. (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 61).
Um ponto era bem demarcado. O futebol deveria ser praticado por pessoas de igual
condição social e racial. Só pessoas de “boa família” seriam capazes de ter uma conduta
adequada, de portar-se com educação. Esse era o pensamento dominante. Sendo assim, só
àqueles de famílias abastadas, tradicionais, e aos “brancos”, deveria ser permitida a prática do
esporte.
Só foi esquecido que era da natural predisposição da figura humana o sentido da
competição, o alcance a qualquer custo das vitórias. Não era fácil aceitar derrotas. As partidas
foram ficando cada vez mais acirradas e a paixão pelos clubes se aflorando. A elite começou a
deixar o fair play de lado. Vez ou outra, as partidas não terminavam bem.
Pouco tempo depois, com a inserção “forçosa” dos clubes de menor expressão, notou-
se um tratamento diferenciado dispensado a esses. Destacadamente, pela imprensa da época
que utilizava dois pesos e duas medidas. Como por exemplo, criticando duramente quando
jogadores e torcida de times sem tradição e suburbanos se envolviam em confusões. Cobrava
medidas para restringir a participação destas agremiações nos eventos futuros. Já quando o ato
reprovável partia de um jogador de um time tradicional, um time “grande”; de um torcedor
fino da tribuna, a atitude era outra. A imprensa argumentava que havia sido um relapso, um
destempero normal. O tratamento dado aos times da zona sul era bem diferente ao direcionado
aos times suburbanos. É isso é o que se deduz da leitura de (PEREIRA, 2000).
A grande massa já envolvida pelo futebol, mesmo com a postura excludente
desempenhada pelos organizadores, mesmo com o não permitir aos menos favorecidos ter
acesso ao esporte, queria participar, estar perto dos eventos. Espiavam por entre os muros, do
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alto dos montículos e outeiros, trepados em árvores, as partidas jogadas pelos de boa condição
financeira. Tocados pelo encanto e atratividade que o futebol proporcionava, passaram a, em
larga escala, correr atrás de uma bola, fosse ela feita de meia, ou de outra composição
qualquer, em terrenos baldios, nas ruas, e praças.
Conta (PEREIRA, 2000) que nos primeiros anos do século XX, a capoeira foi
discriminada, atacada, e a sua prática repreendida pelas autoridades. Tendo sido associada aos
negros, era vista pejorativamente como prática repugnada pelas “famílias da sociedade”, que
viam nela um grande “mal” para a cidade. Como alternativa para delimitar, frear, banir as
festas que eram as rodas de capoeira, que reuniam a camada da população mais pobre pelas
ruas, o jogar futebol, entre os menos privilegiados socialmente, passou a ser permitido – tendo
no fundo essa iniciativa claros interesses de disciplina e controle. Ligas suburbanas de futebol
começam a surgir. O esporte toma conta dos subúrbios proletariados. No tocante à questão da
classe operária, um fato de destaque histórico proeminente foi a criação de um time, por
diretores da inglesa, “Companhia Progresso Industrial”, uma fábrica de tecidos, que permitiu
ao operariado o acesso à prática do futebol. Esse time é o Bangu Athletic Club.
Para a democratização do futebol foi de extraordinário significado a fundação do
The Bangu Athletic Club no ano de 1904. Bangu, um subúrbio do Rio de Janeiro, é
a sede de uma grande fábrica de tecidos, que mandou vir da Inglaterra os técnicos de
que precisava. Os ingleses fundaram o clube com o consentimento da direção da
fábrica, que lhes pôs à disposição também um campo situado próximo. Em virtude
da distância do subúrbio, entretanto, não foi possível aos ingleses constituírem
equipes fechadas chamando os seus compatriotas da cidade. Viram-se obrigados a
recorrer aos operários da fábrica, estimulados pela direção esclarecida, que
provavelmente soubera que os fabricantes de tecidos ingleses na Rússia fomentavam
o futebol entre os turnos para animar sua disposição ao trabalho. (ROSENFELD,
1993, p. 82).
Enraizando-se pela cidade, o futebol ganha a adesão dos pobres, alavancando-se nas
classes sociais mais baixas. Rompe fronteiras conceituais e começa a cutucar o preconceito.
Especialmente, o racial. Mesmo contra a vontade das elites, o interesse pelo futebol jogado
em alto estilo pelo negro começa a se fazer presente. Os clubes vão se curvando a este fato e
passam a eleger seus atletas pelo talento simplesmente, fazendo vista grossa para a cor da pele
dos jogadores. Ou, maquiando, de certo modo, esse traço racial. Podia-se tentar camuflar
aquela condição.
Friedenreich foi exemplo disso. Sendo o primeiro grande fenômeno negro do futebol
brasileiro, sua condição racial incomodava. Com um talento fora de série, ele foi o autor do
gol que deu o primeiro título internacional ao futebol brasileiro, no Sul-Americano de 1919,
ocorrido no Rio de Janeiro - cinco anos após a realização da primeira partida do selecionado
23
brasileiro. A euforia da torcida era imensa. O Brasil tinha conseguido “bater” Argentina,
Uruguai e Chile – que costumavam levar vantagem nos confrontos com os brasileiros,
principalmente, a Argentina e o Uruguai –, e o Rio de Janeiro deu conta de realizar uma
grande competição esportiva transformando o evento em acontecimento social de imenso
destaque.
Nascido em 1892, no bairro da Luz, em São Paulo, Friedenreich sintetizava bem a
mestiçagem que é um traço de povo brasileiro. Filho de um comerciante alemão e de uma
brasileira - lavadeira e negra -, o mulato de olhos verdes possibilitou a abertura, ainda que
tímida, de espaço nos jornais e nos círculos sociais para se falar sobre o negro. Mesmo com o
sucesso, Friedenreich, involuntariamente, tinha um hábito que parecia denunciar algo. “Fried
procurava ele mesmo esconder como pôde sua condição de mulato, alisando vigorosamente o
cabelo antes de entrar em campo” (GUTERMAN, 2010, p. 44).
Outro fato racial que se tornou cheio de simbolismos aconteceu em um dos clubes
mais tradicionais do Brasil, o Fluminense. Para entrar em campo, um jogador de pele mais
escura do clube – contratado junto ao América, em 1914, - chamado Carlos Alberto, fazia
uma sessão de maquiagem para não denunciar sua condição racial. “(...) Carlos Alberto,
entrou para a antologia do futebol pelo inusitado: mulato, ele passava pó de arroz no rosto
para disfarçar a raça quando jogava pelo Fluminense” (GUTERMAN, 2010, p.44). Desde
então, as torcidas adversárias passaram a se referir assim ao clube das Laranjeiras: “pó de
arroz”.
Com a “indesejada” abertura do até então elitista futebol ao negro – e por associação
ao pobre – brigas, rompimentos, rupturas se estabeleceram e criações de ligas, de
campeonatos que abarcavam clubes ideologicamente diferentes, foram recorrentes.
(PEREIRA, 2000) destaca que o futebol já havia se enraizado definitivamente na nossa
cultura e se tornado a grande paixão do brasileiro. No Rio de Janeiro o remo ainda tinha certa
força, mas o futebol já possuía o seu brilho próprio. Depois do surgimento do Clube de
Regatas Vasco da Gama na divisão de elite do futebol carioca, em 1923, não dava mais para
negar a chegada definitiva do negro, do pobre, do operário e do trabalhador comum, ao
futebol. A aceitação do negro, e o “amadorismo marrom”, assuntos estes ligados ao Vasco da
Gama, serão comentados mais adiante.
Deve-se considerar o pensamento que “tomava forma” dentro da sociedade à época
que pregava ser o branco uma raça “pura”, e que a mestiçagem que ocorria no Brasil fazia mal
e acentuava os aspectos mais depreciativos. Felizmente, apesar de todos os contratempos, ao
longo do tempo o futebol conseguiu servir como meio para a propagação e fortalecimento,
24
justamente, do contrário. A mestiçagem era marca positiva na composição cultural e social do
nosso povo e dela não poderíamos fugir.
Mesmo ainda sendo amador, o futebol deixava transparecer uma ponta do
profissionalismo, adentrando em esferas financeiras e remuneratórias. Este aspecto era
alimentado pelos patronos dos clubes. Uma das práticas à qual muito se faz referência era o
pagamento do “bicho”- um animal de valor que era dado a um atleta ou, mais comumente,
rateado entre os atletas. O caminho para a profissionalização estava sendo traçado, era
inevitável. O profissionalismo de certa forma demorou a vingar por aqui. Foi no momento em
que o Brasil começou a perder jogadores – contratados e remunerados por times de outros
países – que ele se instituiu de vez. Isso, na segunda metade da década de 1930.
O futebol também foi parte importante no fortalecimento da autoestima e da
autoafirmação dos imigrantes que para o Brasil vieram se estabelecer. Destacadamente, para
os alemães e os italianos - em decorrência da primeira e da segunda guerra mundial. E para os
portugueses, que eram vistos por aqui com maus olhos e repugnância em razão da
colonização, domínio, e exploração das terras brasileiras. Considerável parcela da sociedade
tinha certo entrevero, picuinha, aversão, na relação com os portugueses. Essa antipatia era
bem percebida. Através do futebol, os imigrantes conquistaram respeito e melhor perspectiva
social passou a se apresentar para eles.
A reunião de etnias, fortalecidas na união, na solidariedade, na homogeneidade
sentimental de defesa de seus interesses fez surgir grupos esportivos, agremiações, clubes
com características fortes de seus países. E por essa associação em torno dos times de futebol,
dirigentes, sócios, jogadores, torcedores, esses imigrantes, que acreditavam ser o Brasil um
lugar bom pra se viver, construíram uma história ditosa delineada por uma bola de futebol.
Começaram a surgir clubes formados por gente nascida em outros países. São
exemplos desse processo: o Palestra Itália, em São Paulo e em Minas Gerais – originário de
Palmeiras e Cruzeiro, respectivamente; também, o Juventude, em Caxias do Sul, no Rio
Grande do Sul. Todos esses, oriundos da colônia italiana. A colônia alemã fundaria o
Coritiba, em Curitiba, no Paraná; o Grêmio, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e o
Germânia – hoje, Pinheiros -, em São Paulo. Os portugueses, o Vasco da Gama e o Lusitânia
– no Rio -, e a Portuguesa de Desportos, em São Paulo. O Galícia, em Salvador, na Bahia,
seria fundado por espanhóis.
Esses exemplos são de clubes que obtiveram destaque no futebol, ao passo que outros,
sem destaque no futebol, mas fortes como clubes sociais propriamente, como por exemplo, o
Esporte Clube Sírio, o Clube Monte Líbano, de imigrantes árabes, e, posteriormente, a
25
Hebraica, na década de 1950, fundada por Judeus, referendam essa constatação de sucesso no
Brasil de algumas reuniões esportivas instituídas por imigrantes.
Impossível não pensar no futebol como fenômeno social, cultural, que ajudou o Brasil
a encontrar a sua identidade nacional. Deve-se gratidão ao futebol, por exemplo, pelo fato de
ter possibilitado, vencendo todas as resistências, mostrar, escancarar, uma realidade que é
própria do Brasil. O Brasileiro como um povo mestiço, fruto da mistura de raças, da fusão de
negros, mulatos, indígenas e europeus e, certamente por isso, tão rico culturalmente e
especial. Também por ter contribuído para fazer o brasileiro se sentir especial diante do
mundo a partir das conquistas mundiais da seleção. Foi por intermédio do futebol que o
brasileiro rasgou, pisou em cima, se libertou do seu “complexo de vira-latas”, criação de
Nelson Rodrigues, que via no povo brasileiro uma tendência a se colocar como menor,
inferior diante do mundo.
Um estádio de futebol é mais do que um simples espaço onde vinte e dois homens
correm de um lado para o outro atrás de uma bola. É o lugar onde, da arquibancada, uma
massa heterogeneamente formada, aglutina-se, funde-se, tornando-se homogênea, coesa e
irradiando uma vibração uníssona, arrefecida por certos traços da psicologia humana. É no
estádio de futebol que o torcedor se manifesta lançando uma surpreendente condicionalidade
humana. O estádio é laboratório, divã, palco, consultório da alma de um povo que tem nele, o
futebol, o seu santo remédio, libertador, e que ameniza suas agruras diárias.
O futebol tem a capacidade de exacerbar certas condições psicológicas. Uma derrota
pode ferir o ego. Pode mexer com o nacionalismo. O futebol é imperfeito – os resultados
improváveis se estabelecem com certa frequência. O melhor, nem sempre vence. A lógica,
vez ou outra, se esconde e, talvez por isso, pela imprevisibilidade, o futebol seja esse
elemento fascinante, encantador, cheio de significações ocultas que levam o torcedor a uma
“loucura saudável”. O torcedor é magia.
1.2 O TORCEDOR
Sendo um indivíduo que acredita, pela sua inserção na coletividade, ser possível
desvirtuar o significado, mudar o rumo, dar vida ao improvável e fazer emergir do seu torcer
apaixonado uma energia que “contamina” positivamente o futebol, retransformando a
realidade, nessa configuração curiosa, o torcedor salta para uma plataforma de destaque.
Torcer é ter a capacidade de alterar a partida que se tem diante dos olhos. O adepto de um
time, o torcedor pra valer, crê que pela sua fé e pelo seu estímulo, incorporados e
26
amplificados pela massa, pode colaborar para que seus ídolos absorvam energia, envolvam-se
de elementos da divindade, abrindo as portas para a vitória.
Quando o pensamento individual infiltra, adentra, atinge o coletivo, ganhando na
adesão de um grupo, da massa, fluidez de energia, manifestando-se, propagando-se, seus
efeitos geralmente são percebidos. Na simbiose de torcida e jogador, por inúmeras vezes, foi
detectada a alteração de uma jogada, de um lance, de uma partida, em razão dessa energia
desencadeada.
Fazer parte da multidão e perder o controle de nossas emoções e de nosso
comportamento, pelo contrário, é aquilo contra o que somos advertidos desde a
infância. Em consequência disso, muitos de nós esqueceram (ou jamais souberam)
como pode ser prazeroso fazer parte da multidão. [...] As multidões anseiam pelo
momento em que sua energia se conecta à dos jogadores e faz a energia deles
aumentar. Porque naquele momento, a separação entre a torcida e os jogadores
parece desaparecer. Essa comunhão, longe de ser puramente espiritual, pode
constituir uma realidade física. Pode ter até uma base biológica bem concreta, nos
recentemente descobertos neurônios-espelho, que atuam no córtex pré-motor. Os
neurônios-espelho são ativados não apenas quando a pessoa executa uma ação, mas
também quando vê alguém a executando. (GUMBRECHT, 2007, p. 150-151-152).
Torcida e jogador são indissociáveis. Mutuamente, completam-se. Existe na relação
torcedor-time-jogador carga de gratidão, nem tanto perceptível assim em um primeiro
momento, mas nítida, ao analisar mais cuidadoso. Essa gratidão está presente nas entrelinhas
do futebol. “[...] de uma longa carreira assistindo a esportes, o que eu ‘ganhei’ foi um forte,
embora não muito bem definido, sentimento de gratidão para com os atletas que me
proporcionaram momentos de intensidade tão especial”. (GUMBRECHT, 2007, p. 161).
Protagonistas do espetáculo do futebol, cada um do seu jeito, jogador e torcida,
involuntariamente, passam a desenvolver uma funcionalidade orgânica, cerebral, psicológica,
que merece análise.
O verbo “torcer” significa virar, dobrar, encaracolar, entortar etc. O substantivo
“torcedor” designa, portanto, a condição daquele que, fazendo figa por um time,
torce quase todos os membros, na apaixonada esperança de sua vitória. Com isso
reproduz-se muito plasticamente a participação do espectador que ‘co-atua’
motoramente, de forma intensa, como se pudesse contribuir, com sua conduta aflita,
para o sucesso de sua equipe, o que ele, enquanto ‘torcida’, como massa de fanáticos
que berram, realmente faz. (ROSENFELD, 1993, p. 82).
O ato de torcer foi sendo modificado ao longo do tempo. A partir do desenvolvimento,
da expansão e consolidação do futebol dentro da sociedade brasileira, a torcida foi ganhando
novos impulsos, passando a ser mais ativa, obtendo reconhecimento e influenciando no rumo
dos clubes. A prática de incentivar o time de coração torna-se algo sólido e começa a se
27
organizar. Surge então o torcer mais elaborado. Cânticos, instrumentos musicais, uniformes,
utilização de fogos de artifício, bandeiras, são introduzidos nos estádios.
Sim, porque no início se torcia de maneira pudica, comedida, com finesse. O futebol
como sinônimo de esporte da elite precisava pautar o torcer na forma comportada e refinada
como se o sujeito estivesse em uma ópera ou coisa assim. A vestimenta dos torcedores era a
de trajes finos e elegantes. Não se admitia gritos de incentivo durante a partida. O máximo da
algazarra se dava antes ou depois do jogo e o que se ouvia eram expressões do tipo, “Aleguá”-
significava, avante! -, ou um “Hip Hip Hurrah!”, seguido do nome do time – cumprimento
entusiasmado do torcedor de um clube.
As mulheres com os seus vestidos e chapéus de imenso glamour. Nos chapéus, as
fitinhas com as cores do clube – indicando com orgulho para qual time se torcia. E nas mãos,
também um pedaço de fita que a ala feminina de torcedoras do Fluminense levava ao estádio
e, ritualisticamente, ficava a torcê-la, revelando o nervosismo com a partida, e o frenesi diante
do encantamento provocado por aquele que foi o primeiro goleiro da seleção brasileira e
arqueiro tricolor, Marcos Carneiro de Mendonça. Notabilizado pela beleza física, por seu jeito
pomposo e elegante de se vestir – usava uniforme todo branco e uma fita roxa como cinto - e
pelo seu talento em realizar defesas incríveis, Marcos Carneiro é personagem destacável dessa
fase dos primeiros passos do futebol no país.
Desse costume das mulheres de “torcer a fita”, curiosa e ilustrativa é a informação
trazida por (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 292) de que o uso da palavra, “torcer”, introduzida
na esfera futebolística, segundo conta-se, “[...] vem do hábito de moças simpatizantes do
Fluminense contorcer durante as partidas pequenas fitas roxas, semelhantes às usadas, na
cintura, pelo goleiro do clube no período de 1914-1922, Marcos Carneiro de Mendonça”.
O goleiro, ou, como chamado na época, “Goalkeeper”, gravou seu nome na história do
futebol. Pragmático, com técnica apurada, Marcos Carneiro era seguro, preciso em seus
movimentos, e foi um admirável estudioso da profissão. Desenvolveu apurado senso de
colocação debaixo da baliza que dificultava o sucesso dos atacantes. Aristocrata, foi defensor
ferrenho do futebol amador. Contribuiu também, fora das quatro linhas, como historiador para
o acervo histórico do futebol brasileiro ao recortar de jornais e revistas daquele tempo tudo o
que saía sobre a sua presença em campo de jogo, fosse defendendo o Fluminense ou a seleção
brasileira.
Histórias da realidade amadorística do futebol no país, do período compreendido entre
1913 e o final da década de 1920, reunidas e encadernadas, geraram um material de grande
valia. Através desses recortes, que ficaram conhecidos como o “álbum”, o “grande caderno
28
pardo” de Marcos Carneiro de Mendonça, obteve-se respeitosa fonte de estudos sobre o
futebol carioca do início do século XX.
Hoje, parece utópico pensar nesse tempo de Marcos Carneiro de Mendonça como
atleta, quando o torcedor era impelido, pela imposição cultural futebolística em voga, a conter
o sentimento, aprisionando o grito, a palavra vulgar e a explosão da emoção. Em que o torcer
silencioso, passivo, era a regra geral, sendo comum durante a partida a empolgação do
torcedor se manifestando, no máximo, com aplausos e um ou outro assobio. Mas era assim
mesmo.
Essa forma contida de torcer ficou pelo caminho. O torcer vigoroso, intenso, criativo,
pedia passagem. Sobre essa maneira de torcer, barulhenta, ativa, colorida, festeira,
discorreremos mais a frente, apropriando-se da figura de um torcedor que foi referência, o
criador da primeira torcida organizada do Brasil. Esse torcer mais intenso põe em evidência as
alterações orgânicas que ocorrem tanto no torcedor, na sua apropriação ativa de torcer, quanto
no jogador, posto em performance passiva de recebimento do incentivo. O fluxo sanguíneo
aumenta, o funcionamento orgânico se altera. Ambos são tomados pela adrenalina que o
corpo inteligentemente produz
Estar em uma arquibancada torcendo pelo seu time de coração desencadeia uma série
de reações. A alma inquieta-se, o corpo estremece, enrijece. Parece que o torcedor coloca o pé
em outras dimensões. “Quando se considera a imensa carga de sentimentos que se irradia da
torcida para os times, entende-se que eles busquem abrigo em esferas sobrenaturais, para se
certificarem da estimulação benévola [...]”. (ROSENFELD, 1993, p.103).
Poucas coisas nessa vida têm uma representação tão forte quanto o futebol para o
torcedor. Ele, o torcedor, acredita que as vitórias no campo descerram uma atmosfera de
vitória e de realização pessoal. Por se sentir fazendo parte de um clube que possui sua
representação social, seja na rua, no bairro, na cidade, no estado, no país, o ser que torce,
efetivamente, por um time, vem a se sentir aceito, incluído socialmente, e flertando com o
sucesso. Descreve Daolio:
O que parece é que o torcedor vai ao jogo buscando, muitas vezes, a alegria, a
realização ou o sucesso que não conseguiu ter naquele dia ou nos últimos tempos em
sua vida. O seu time, assim, pode representar uma parte da vida que dá certo. Como
parte do clube, o torcedor tem a ideia de que “meu clube é rico”, “meu clube é
vencedor”, “os dirigentes do meu clube são poderosos e eu, torcedor, participo
disso”, “participo porque me identifiquei, sou parte, membro, presença”... O clube
acaba mediando uma relação desse indivíduo com o sucesso, com a lembrança, com
a família, com a sua origem. (DAOLIO, 1997, p.26).
29
Outro aspecto que se observa no ofício do torcedor é a sua simpatia, satisfação, pelas
vitórias difíceis. Por incrível que pareça, aquele jogo no qual o seu time passou sufoco, sofreu
para vencer, reagiu no final, ganha contorno especial de sobrepujamento e deixa para esse
torcedor uma sensação mais aguçada de orgulho. “[...] O sentimento de sacrifício está
presente no torcer. A vitória suada, o gol no final do jogo, a partida difícil, a briga na
arquibancada, a derrota inesperada, etc., trazem uma marca definitiva do fato que se aloja de
vez na memória do torcedor”. (DAOLIO, 1997, p.28).
O “sentir-se” pertencente a um grupo, a uma instituição, a uma comunidade, também
tem caráter brioso, referencial, por inferir para aqueles que se agregam, ser isso, uma ligação
ao passado, aos costumes e ritos interiorizados e marcados na história de uma dada
organização. É o dar continuidade a algo plantado lá atrás e que não pode morrer. É isso o que
nos diz Morin.
A identidade individual e coletiva afirma-se, não na dependência imediata de cada
grupo, como na sociedade primática, mas sim pelo e no conjunto dos fios noológicos
que ligam o indivíduo a seu parentesco real e mítico e que dão à cultura sua
identidade singular. O nome liga a identidade individual a uma filiação
sociocultural: estabelece, ao mesmo tempo, a diferença e a dependência: quando diz
“filho de”, tem-se em mente não apenas os genitores, mas também os antepassados,
a descendência social. O mito alimenta a recordação, o culto e a presença do
antepassado, mantendo-se por isso mesmo, a identidade coletivo-individual. Este
tema do antepassado, das origens e da genealogia retorna sempre, obsessivo, nos
símbolos, nas tatuagens, nos emblemas, nos adornos, nos ritos, nas cerimônias e nas
festas. (MORIN, 1979, p.169).
Torcedor, elemento ímpar na atmosfera do futebol. Esse sujeito que tem o afã de
acompanhar, impreterivelmente, o seu time, de sentir-se como parte da equipe, doando-se de
corpo e alma e exercendo satisfatoriamente sua função de incentivador. Que pelo seu clube é
capaz de esquecer até mesmo o maior dos problemas, de sobrepor-se à limitação, seja ela,
financeira, física, ou de outra ordem qualquer, e de, por intermédio do sagrado para ele,
exercício do torcer, obter o expurgo para os males que o afligem. Com toda certeza, é um
grande objeto de estudo.
E como seria o futebol sem essas figuras devotadas que encarnam o espírito do
amadorismo e o levam até as últimas consequências? Acho que não teria a mesma
graça sem eles, que têm suas vidas e problemas, mas que deixam tudo de lado e
revelam um amor sem medir esforços, desprovido de preocupações políticas ou
financeiras. Pessoas que são a pura paixão por um clube. (ZICO apud MATTOS,
2007, orelha).
Na amplitude da população brasileira, esses seres, os torcedores, fidedignos que são,
têm suas vidas “verticalizadas” em escala crescente de esperança, de confiança, de crença.
30
Pela ação da inebriante experiência do torcer por seu time de coração e, em estágio mais
homogêneo, pela seleção, são tomados pela esperança, sentimento este, que irradia para suas
vidas, apontando para uma melhor condição psicossocial que apruma os passos na caminhada
existencial.
A representação da vitória, do sentir-se vitorioso, especial, pode ser um tronco
frondoso para o melhoramento de quesitos da vida desse sujeito. O que o torcedor sente no
exercício de apoio a seu time, as energias que são movimentadas, transcendem a uma
compreensão simplista. No estonteante espetáculo da arquibancada, que “prende” o torcedor
e, em regra geral, o coloca em uma fecunda empolgação, que faz pasmar aquele que nunca se
permitiu fazer parte da massa ululante, conjunturas analíticas emotivas são reveladas.
Ela nunca tinha pisado no solo sagrado do Maracanã. Estreou num dia de Fla-Flu.
Decisão do título carioca de 1995, aquele, do gol de barriga de Renato Gaúcho de
barriga. Ela nem viu, na verdade. Porque o que acontecia no gramado não tinha a
menor importância. Ela estava extasiada com o espetáculo das arquibancadas. Foi a
primeira vez em que vi o que significava, literalmente, alguém ficar boquiaberto.
Ficou ao sair do elevador e entrar no corredor para a área das tribunas, ainda antes
da borboleta. Como eu sabia que alguma reação haveria, adiantei-me para poder
voltar e vê-la de frente. Boquiaberta. Quando se deparou com a multidão, com as
cores, com a cantoria ficou paralisada. E boquiaberta. De queixo caído, Vá lá. Ela
existe mesmo, se chama Leda e é minha mulher. Poucas vezes antes eu atinha visto
daquele jeito, talvez diante da Guernica ou da Pietá. E foi dessas reações
absolutamente naturais que dão a dimensão do que é o torcedor, do que é um Fla-
Flu, do que é o Maracanã lotado. Interpretei, também, como uma homenagem ao
meu ofício ou, ao menos, mais uma ficha que caía para compreender o tamanho da
paixão. (KFOURI, apud, MATTOS, 2007, contracapa).
Tendo esse papel tão marcante no universo do esporte e, especificamente no do
futebol, o torcedor não pode ser desprezado. Sua simbologia merece ser levada em conta.
Delimitando a pesquisa, esse trabalho direciona luz mais forte sobre uma torcida em questão.
Dita, observada, apresentada, indicada, aferida por todas as empresas de pesquisa de opinião
como a maior torcida do Brasil, o torcedor do Clube de Regatas do Flamengo vem a ser o
recorte. Em algumas pesquisas, a sua torcida chega até mesmo a ser mencionada como a
maior do mundo. Conhecendo a história do clube é que se tem base sólida para encontrar as
respostas que elucidarão a constatação da força, magnitude, carisma e sedução do torcedor do
Clube de Regatas do Flamengo. Aprofundando-se na análise, os motivos que proporcionaram
o crescimento contínuo de seus seguidores começam a aparecer.
31
2 O CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO E SUA TORCIDA
O estudo sobre o Flamengo, seus passos e suas pontuações históricas que
pavimentaram a relação com o seu torcedor, não pode se abster de perpassar o cenário
esportivo, social e cultural do Rio de Janeiro. É indispensável também, tarefa obrigatória, a
análise de parte da história do Brasil. Vasculhar fatos escancarados, ou aqueles mais sutis,
revirá-los, buscando nova ótica, o viés pouco perceptível, ou desprezado, é tarefa frutuosa
para se encontrar fragmentos que nos façam detectar relações que serviram de influência,
referência, para o surgimento do clube, a construção de sua identidade, e vieram a determinar
a consolidação do clube e de sua torcida no gosto popular.
A história do clube, passa pela torcida, ou melhor, tem o ponto central nela. Ao se
falar sobre o centenário clube da Gávea, o que logo vem à mente é o termo: torcida. No
Brasil, ou até mesmo fora dele, quando soa a palavra Flamengo, tirando os adjetivos
pejorativos creditados ao clube pelos seus adversários, a qualificação mais pertinente que se
faz é a de ser o clube o dono de maior torcida do Brasil. Para o torcedor rubro-negro, sua
condição é tão especial, o orgulho de si, como torcida, é tão exacerbado, que ele costuma
dizer que no seu caso existe, primeiramente, uma torcida e depois um time, escancarando com
essa afirmação toda sua soberba.
É de entendimento comum que uma agremiação, um grupo, uma instituição, um clube,
torna-se grande, um ícone – no quantitativo e no qualitativo –, a partir de ações de significada
relevância no meio ao qual está instalado e que essas ações tendem a recrudescer, abrilhantar
sua imagem, creditar projeção ao agrupamento constituído, que passa a ser visto como agente
respeitável e uma acentuada entidade social. Em se tratando de um clube esportivo então, a
sustentação que se faz residirá na paixão. E se neste clube esportivo houver espaço para o
futebol, o seu traçado histórico irá se estender tendo no teor da paixão em doses cavalares, do
amor profundo, seus pilares de existência.
O Flamengo, clube surgido no Rio de Janeiro, no bairro do Flamengo, de onde herdou
o seu nome, é um caso de extremo sucesso. Fundado, originariamente, como um grupo, deu
os primeiros passos envolvido por grandes dificuldades. Cresceu, perseverou, aprimorou-se,
veio a se fortalecer e ganhou vasto espaço no esporte, tornando-se um colossal agregador
social.
Nascido de uma provocação, por assim dizer. De um sentimento de desonra, surgido
da afronta dos jovens do bairro vizinho de Botafogo aos que freqüentavam a faixa de areia da
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orla do Flamengo. A reação aconteceu e, felizmente, foi pela via do esporte. Aqueles jovens
do bairro de Botafogo, possuidor de um clube de remo, fundado em 1894, já famosos no seu
bairro, não mediam esforços para impressionar o maior número possível de pessoas. Iam
diariamente à praia do Flamengo, em especial, para paquerar as moças de lá, disso, motivou-
se, em parte, o surgimento do grupo do Flamengo. Embalando o desejo de exibição, de
conquista, esses remadores botafoguenses desfilando seus corpos bem torneados faziam
questão de deixar sua embarcação exposta na praia e se tornavam assim uma grande atração.
As mulheres da praia do Flamengo suspiravam.
A partir desse incômodo, afloraria a determinação natural dos jovens da praia do
Flamengo de impor algum tipo de limite para a ousadia do grupo de Botafogo. Precisavam
fazer algo para que aparecessem com destaque também. É então que um grupo de jovens de
classe média do bairro decide partir para o ataque. Revidariam de modo inteligente com uma
grande criação. Um clube de remo. Na verdade, este fato serviu de pretexto definitivo para os
rapazes criarem o grupo de remo do Flamengo. Já eram apaixonados pelo esporte marítimo. O
remo era o esporte em voga. O primeiro esporte no Brasil a atrair multidões. O esporte
popular.
Com relação ao esporte, nesse final do século XIX, o remo era o mais popular do
Rio. A Federação Brasileira das Sociedades de remo e os próprios clubes
promoviam disputadíssimas regatas na enseada de Botafogo. Para as autoridades e
convidados vip, eram montados pavilhões e arquibancadas de madeira. Mas o povo
queria ver também. Nas manhãs de domingo, durante as regatas, as avenidas à beira
mar eram tomadas pela multidão de curiosos. (...) não havia o termo ‘torcida’,
embora os espectadores já se manifestassem a favor de um ou de outro competidor.
Os jornais referiam-se ao público como assistência, multidão, plateia. Os homens
andavam de terno, gravata e chapéu. Parece que o mundo todo tinha e usava terno,
gravata e chapéu. As mulheres também não queriam perder as regatas. Os atletas
eram bonitões. As moças se enfeitavam com a melhor roupa, escolhiam o chapéu
mais elegante e assistiam eufóricas ao duelo de titãs, travado no braço em pleno mar,
entre os atletas do remo. Algumas chegavam a desmaiar de tanta emoção. Os
remadores eram como vikings, numa mitológica jornada. (CRUZ e AQUINO, 2007,
p. 15).
Final do século XIX, 1895. Rio de Janeiro, a capital federal. 700 mil habitantes,
aproximadamente. Todos os olhos se voltavam para lá. Era o grande centro do país. Tudo o
que acontecia na cidade era copiado. A cidade maravilhosa, sempre irradiadora de tendências,
via-se envolvida ainda pela atmosfera da proclamação da república, ocorrida seis anos antes.
Crescia vertiginosamente – recebia gente de todas as partes do Brasil e do mundo - e convivia
com problemas de urbanização e de saúde pública: epidemias de cólera, varíola e febre
amarela eram comuns.
33
Concentrava a maior parte da população em poucos bairros. As regiões do centro da
cidade, da Praça Mauá, de Santa Tereza, da Lapa, e das praias de Botafogo e do Flamengo,
eram o polo habitacional. A chamada Zona Sul era uma faixa de terra perdida. Copacabana,
Leblon, Ipanema e adjacências eram lugares praticamente inabitados e que não possuíam o
menor valor comercial. No subúrbio, o mesmo acontecia. Pela topografia da cidade, e pela
não fiscalização do poder público, habitações em morros começavam a surgir e viriam a
ganhar espaço na cidade com uma rapidez impressionante.
Nestor de Barros, José Agostinho Pereira da Cunha e Mario Espíndola eram grandes
amigos. Inseparáveis. Tiveram como paixão, primeiramente, o turfe – outro esporte em
evidência na época. Contudo, quando descobriram o remo, o amor foi imediato. Em uma noite
de Setembro de 1895, os três, mais Augusto Lopes da Silveira, aprovaram a ideia de fundar
um clube de remo que traria pompas ao bairro do Flamengo. Também se livrariam do aluguel
do barco, todo domingo, para exercitar os corpos na Baía de Guanabara. Teriam o seu próprio
barco. Poderiam assim, ainda, dar o troco nos remadores de Botafogo.
No princípio, haviam até pensado em conter as investidas dos remadores do clube de
Botafogo apelando para a briga – uns bons bofetões dariam jeito – mas sendo, Nestor e seus
amigos, estudantes civilizados e de boa família, a ideia foi logo abortada. Ter um barco capaz
de disputar em pé de igualdade com os remadores de Botafogo, suplantando-os, é claro, seria
a melhor maneira de desbancá-los.
Durante a semana, esses três rapazes do bairro do Flamengo estudavam e trabalhavam.
Nos domingos, o dia era quase que inteiro junto ao mar. A pausa se dava apenas para o
compromisso religioso de ida a missa, na Matriz da Glória, e para o almoço. À noite todos se
encontravam no Restaurante Lamas – ponto de artistas, intelectuais, políticos e estudantes -
reduto inicial rubro-negro, situado no Largo do Machado, a uns três quarteirões da praia do
Flamengo. Bem ao lado do Lamas, ficava a estação de bondes.
Após reuniões, e as corriqueiras conversas na caminhada que faziam diariamente até o
Largo do Machado, cruzando ruas e residências - iluminadas ainda por grandes lampiões a gás
e a óleo de baleia -, a decisão de criar o grupo foi sacramentada. Faltava só o dinheiro para
comprar o barco. Conseguiram juntar certo valor e ao preço de 400 mil réis, valor este,
conseguido por Mário Espíndola, Felisberto Laport, Nestor de Barros, José Félix da Cunha
Menezes, Augusto Lopes e José Agostinho Pereira da Cunha, adquiriram a primeira
embarcação chamada, “Pherusa”. Logo depois, viria a “Scyra”. O barco era de segunda mão,
explica (RODRIGUES FILHO, 1966).
34
Outra particularidade da cidade nesta época que trouxe surpresa positiva para a
população foi a escolha, em 1892, do Rio de Janeiro como cidade a ser contemplada com uma
inovação no transporte coletivo. A população ainda acostumada ao transporte público sendo
feito por bondes a vapor, e até mesmo pelos que eram puxados por burros e cavalos, ganha a
primeira linha eletrificada de bonde. Estabelecida a sua linha central no bairro do Flamengo –
veio a ser a primeira do Brasil e da América do Sul. Essa novidade aproximava ainda mais o
carioca do esporte que fascinava a todos, o remo.
Na tarde de 17 de Novembro de 1895, surge então o Grupo de Regatas do Flamengo -
só em 1902 haveria a troca da designação de grupo para clube. Pelo fato de o clima da
República ser o que se respirava, de ser a novidade, a nova condição do país – e por ser o dia
15, data comemorativa da proclamação da república, feriado, propício para comemorações –
seus fundadores decidiram antecipar em dois dias a fundação do grupo, passando a ser
oficialmente o dia 15 de Novembro.
Constam 18 nomes como sendo os fundadores: Nestor de Barros, Mário Espíndola,
José Agostinho Pereira da Cunha, Napoleão Coelho de Oliveira, Francisco Lucci Collás, José
Maria Leitão da Cunha, Carlos Sardinha, Eduardo Sardinha, Desidério Guimarães, George
Leuzinger, Felisberto Laport, Maurício Rodrigues Pereira, Emídio José Barbosa, José Félix da
Cunha Menezes, Augusto Lopes da Silveira, João de Almeida Lustosa, José Augusto Chaleo e
Domingos Marques de Azevedo (o primeiro presidente).
Escolheram as cores do uniforme. Azul e ouro – representando, respectivamente, o
azul celeste em fusão com a cor da Baía de Guanabara, e nossas riquezas minerais. Um ano
depois mudariam para as cores definitivas, o vermelho e o preto. Era um domingo, e no
número 22 da praia do Flamengo – um casarão - foi registrada a ata inicial de fundação. Este
casarão, que possuía no mesmo terreno uma extensão com vários cômodos, era a moradia de
um dos fundadores, Nestor de Barros. Aqueles jovens estudantes que tinham um senso
proeminente de inquietação, audácia, de perseverança e de contorno revolucionário, passariam
a se dedicar ao remo e por ele, dariam suas vidas.
Em 06 de outubro - antes da fundação, portanto - ocorre um fato que contribuiu para a
incorporação desse aspecto, dessa característica ligada até hoje à identidade do clube, a
superação. Seria este acontecimento, o primeiro, de inúmeros, que despertaria nas pessoas a
admiração pelo Flamengo. Os rapazes, Nestor de Barros, José Félix, José Agostinho, Mário
Espíndola, Felisberto Laport, Maurício Rodrigues Pereira e Joaquim Bahia, escolhidos para
pegar a baleeira, Pherusa - que havia sido restaurada na praia de Maria Angu, hoje praia de
Ramos - durante a travessia de retorno até a praia do Flamengo, viram a morte bem de perto.
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Estando o tempo climático desfavorável, com ventos fortes que prenunciavam uma
tempestade, os rapazes desprezaram as nuvens escuras que se formavam no céu e ao mar se
lançaram. O barco acabou virando e eles como náufragos resistiram bravamente ao infortúnio.
(CASTRO, 2001) relata com detalhes.
A pherusa podia ser uma beleza, mas era de segunda ou terceira mão, já passara por
mar brabo e precisava de reparos. Eles a levaram de bonde a um armador da praia de
Maria Angu, na zona norte, que a reformou por dentro e por fora. Dias depois, na
tarde de um domingo [...], sete dos rapazes foram buscá-la [...], jogaram-se ao mar,
na ponta do caju, içaram a vela e embarcaram, eufóricos, para a travessia que
deveria terminar na praia do Flamengo, em frente ao 22. Mas aquela travessia nunca
se completou. Pelo menos, não a bordo da pherusa. De repente, quando eles já
estavam, longe da costa, na altura da ilha do bom Jesus, o tempo virou: nuvens
carregadas cobriram o azul [...], raios e trovões sacudiram o céu, e a chuva caiu com
violência. O vento noroeste arrancou a vela, as ondas fustigaram o barco e
começaram a abrir buracos no casco [...], viraram a baleeira de quilha para cima e se
agarraram a ela. Um deles, Joaquim Bahia, o melhor nadador do grupo, decidiu
nadar até a praia em busca de socorro [...], pelas três horas seguintes, os outros
rapazes, agarrados a pherusa, gritaram “socorro” [...], noite fechada, quando a morte
parecia inevitável e eles já faziam suas orações, uma lancha ouviu seus gritos e veio
salvá-los. Içados para o barco e batendo os dentes de frio, eles se lembraram de
Joaquim Bahia. (CASTRO, 2001, p.30-31).
Joaquim Bahia chegando à terra firme – já era noite - não encontrou nenhuma
embarcação que pudesse prestar socorro aos amigos. Já com a sensação de que todos haviam
sucumbido à força da água do mar, sentiu-se imensamente infeliz e não teve coragem de
revelar o ocorrido aos familiares dos companheiros. Da outra parte, os resgatados, pensando
que o amigo não havia aguentado nadar por tanto tempo – e por isso o socorro não havia
chegado – supondo a morte do companheiro Bahia, estavam com remorsos e sem jeito de
contar para a família de Joaquim Bahia a desgraça que tinha sucedido. Já socorridos, em
prantos, todos atônitos, ficaram sem saber o que fazer.
Algumas horas depois, Joaquim Bahia bate na porta da casa de José Agostinho.
Recebido pela mãe de Agostinho, ouviu que o filho e os outros rapazes – mesmo eles achando
que Bahia não teria sobrevivido - estavam a procura dele pela cidade. No reencontro de
Joaquim Bahia com os outros seis remadores, lágrimas e gritos emocionados tomaram conta
do Largo do Machado.
No dia seguinte, notícia curta sobre o ocorrido é publicada em um jornal de grande
circulação do Rio de Janeiro. O boca a boca do que havia acontecido é que tomou conta das
rodas de conversa dos moradores do bairro e, pelos dias seguintes, o fato pela cidade se
espalhou. Assim, o bairro e a cidade ficaram sabendo do naufrágio e da façanha daqueles
rapazes. Uma aura de heroísmo tomou conta do grupo do Flamengo – que na verdade,
curiosamente, por não haver sido fundado ainda, nem existia formalmente.
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Após passarem por aquele martírio e quase perderem a vida, o fato de terem
continuado firmes e, mais comovedor ainda, fortalecidos no propósito de fundar o grupo de
regatas, desencadeou entre as pessoas notória admiração. Os rapazes passaram por cima da
vontade dos pais que era a de que largassem aquela “aventura”. O 22 da praia do Flamengo,
após o clube ser realmente criado, não parou de receber visitas de fascinados simpatizantes.
Essa obstinação dos rapazes em continuar acreditando no seu ideal não cessou nem quando a
Pherusa – que havia sido rebocada depois do naufrágio e iria para conserto - foi roubada.
Adquiriram outro barco, a Scyra, e ao mar se puseram a buscar os dias de glória, frisa
(CASTRO, 2001).
Os primeiros anos do Grupo de Regatas do Flamengo foram difíceis. Derrotas,
vexames, resultados pífios, um desempenho nada satisfatório. A primeira vitória só viria em
1898, portanto, três anos após a sua fundação. Mesmo com contratempos e atribulações, a
crença no projeto e a esperança de dias melhores movia aquele grupo. Determinados e com
uma mente positivista, viam, em cada mínimo avanço obtido e nas escassas vitórias que
surgiriam na fase inicial, motivos para comemorar.
Importante comentar os benefícios do remo na vida social da cidade. Além de
atividade física quase que completa e de ser motivo para reunir pessoas, aprimorando assim o
convívio social, é necessário ressalvar que o esporte colaborou para derrubar o estigma que
ainda pairava na mente das pessoas sobre o banho de mar. Até a metade do século XIX, o
banho de mar acontecia somente em casos de indicação médica para combater certas doenças.
Não era uma prática de diversão e lazer. Vista como lugar impuro, a praia não gozava da
simpatia das pessoas. As regatas realizadas na Baía de Guanabara e em toda sua extensão
trouxeram em maior escala o povo para junto do mar. Em Sobrados e Mucambos, Gilberto
Freyre anota que:
As praias, nas proximidades dos muros, dos sobrados do Rio de Janeiro, de
Salvador, do Recife, até os primeiros anos de século XIX eram lugares por onde não
se podia passear, muito menos tomar banho salgado. Lugares onde se faziam
despejos; onde descarregavam os gordos barris transbordantes de excrementos, o
lixo e a porcaria das casas e das ruas; onde se atiravam bichos e negros mortos. O
banho salgado é costume recente da fidalguia ou da burguesia brasileira que, nos
tempos coloniais e nos primeiros tempos da independência, deu preferência ao
banho de rio. Praia queria dizer imundície. (1996, p. 195).
Emenda (KIDDER e FLETCHER apud LUCENA, 2001, p.25) explicitando como
ocorria o banho de mar e trazendo indicativos de que os esportes, e por associação o remo,
tiveram realmente papel de destaque na mudança de uma cultura que desprezava o banho de
37
mar como divertimento. “Os banhos de mar, para além de seu caráter profilático, como um
passatempo, não teriam sido também uma ação conquistada por aqueles que estavam voltados
para a prática dos esportes? Em princípio, parece que sim”.
A praia do Flamengo dava mais ainda ao bairro a conotação de distinção e de fama
lisonjeira. Até, pelo menos, 1920, era a praia que mais atraia pessoas para o banho de mar.
Como bairro bem situado passou a ser muito procurado para a habitação por ilustres membros
da sociedade. Por outro lado, contava também com parcela considerável de artistas – na
época, vistos por certo prisma de “marginalidade”, rotulados de vagabundos e boêmios da
cidade. Era assim um lugar nitidamente heterogêneo. Por essa reunião de segmentos sociais, o
bairro estava um passo a frente de seu tempo.
Esse conceito, presumivelmente, foi incorporado ao clube de remo do bairro.
Atestando certo ar de rebeldia, lá na praia do Flamengo, moças ousadas para a época
começaram a romper com o pensamento pré-concebido de que o banho de mar seria propício
e oportuno somente em casos de finalidade terapêutica e medicinal. Entendiam não ser o mar
tão sujo assim, como era propagado. Banhavam-se em um ritual alegre, expondo - mesmo
com roupas bem comportadas para os padrões de hoje, que se ajustavam ao corpo - curvas
corpóreas que despertavam à atenção dos homens.
Quem, pela manhã cedo, das seis as oito horas, passar pela Avenida Beira-Mar, ou
por algumas das ruas transversaes (sic) que conduzem à praia do Flamengo, poderá
ver nesses trajos summarios (sic) muita senhora e senhorinha que a outra hora do dia
ficariam ruborísadas se o vento indiscreto agitasse demais a saia do seu vestido. Esse
espetáculo matinal do Flamengo é, com certeza, o mais pittoresco que o Rio offerece
aos estrangeiros, e parece que há muitos amadores desse espetáculo, a avaliar pela
afluencia dos que se debruçam na muralha do cães para assistir à sahida do mar das
nereides e sereias e contemplar aquelle outro ‘footing’, bem mais attrahente que o da
tarde e não menos frequentado. (EDMUNDO apud LUCENA, 2001, p. 117).
O Rio de Janeiro, na gestão de Pereira Passos (1902-1906), designado prefeito da
capital federal pelo presidente da República, Rodrigues Alves, passa por um arrojado projeto
de readequação urbanística ostensiva. Avenidas foram criadas, outras, alargadas; morros
desterrados, extintos; muitas casas e prédios derrubados – ação conhecida como o “bota
abaixo” -, e uma série de obras estruturais realizadas, tendo como meta a modernização da
cidade.
Não foi só o aspecto urbanístico que mereceu um plano gestor. A saúde pública
também. Um trabalho efetivo nessa área foi implementado visando a erradicação de doenças
que matavam em progressão excessiva, epidemias, como a varíola, peste bubônica, febre
amarela e a cólera. Sob o comando do sanitarista Osvaldo Cruz, o governo instaura uma
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campanha de vacinação em massa. A intenção era das melhores, mas a forma de
aplicabilidade utilizada não agradou e causou desconforto na população. Havia invasão de
casas, pessoas na rua eram vacinadas à força. Os agentes de saúde tinham ordens de vacinar
todo mundo. O rigor era maior junto aos que moravam em cortiços e nos morros. Contra a
ação forçosa do governo, manifestações pesadas espocaram. Este acontecimento, de 1904,
ficou célebre como “A revolta das vacinas”.
É durante esse período da administração de Pereira Passos que é erguida a Avenida
Central, em 1904. Em 1905, ela é aberta ao tráfego. Tiveram participação decisiva em sua
criação, o ministro Lauro Muller e o engenheiro chefe, Paulo de Frontin. A via tornou-se um
marco na cidade e permitiu o acesso da Praça Mauá até a Avenida Beira-Mar – que era a
ligação entre o Centro, contornando o morro da Viúva, no Flamengo, até chegar ao bairro de
Botafogo. Em 1912, a Avenida Central é batizada com seu nome definitivo, Avenida Rio
Branco.
No endereço da praia do Flamengo, precisamente no casarão do 22, uma turma que
não praticava nenhum esporte, ou, melhor dizendo, o “esporte” que praticavam, era sim, o das
disputas de molecagens, brincadeiras, algazarras. Eram craques em ser gaiatos. Esses rapazes
começaram a chamar a atenção e tornaram-se conhecidos. Antes de serem classificados de
qualquer coisa, eram, acima de tudo, amantes do Flamengo e da vocação do clube de abraçar
e acolher a todos.
Essa turma criou ali uma “ordem” de engajamento ao clube, chamada “República Paz
e Amor”. No início, era só o Flamengo realizar uma boa regata que a festa estava formada.
Quando o Flamengo passou a vencer regatas, aí era uma festa fora do comum que acontecia
ali. E as comemorações iam tomando conta das calçadas, formando bloco de pessoas que
arrastavam a sua alegria pelas ruas. Era o carnaval do Flamengo. Com reco-reco e tudo.
Um detalhe pitoresco. Ao lado do casarão do 22 existia um convento. E para desatino
e “tentação” das freiras, esses rapazes do Flamengo tinham o hábito de despirem-se.
Chegavam da praia ou de outro lugar que fosse e, sem cerimônia, se libertavam das roupas e
pareciam nem estar aí para o mundo. “os rapazes jogavam pelota basca na garagem, fazendo
grande algazarra [...] começaram a subir nas árvores para colher frutas, igualmente pelados”.
(CASTRO, 2001, p. 36). As freiras tinham que fazer força para não ver aqueles corpos nus.
Os vizinhos e transeuntes já conhecendo a fama do local, evitavam o olhar para dentro
do casarão. Já precavidos, sabiam que podiam ter alguma surpresa. As madres do convento
não tinham simpatia por aqueles rapazes. Faziam de tudo para evitar que as freiras tivessem
acesso àquela imagem despudorada. Era um Deus nos acuda. E não adiantava nem acionar a
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polícia que afirmava não encontrar, em suas incursões pelo 22, ninguém sem roupa. Dentre os
que frequentavam o casarão, tinha sempre alguém com ótimo relacionamento junto às
autoridades policiais.
Só que o destino se encarregou de melhorar o julgamento que se fazia daqueles
rapazes. As pessoas puderam perceber que eles possuíam um lado bom, que eram solidários.
Não era só perversão que imperava ali. A gratidão, a admiração das freiras passou a existir a
partir de um gesto nobre, efetuado na ajuda providencial que os rapazes prestaram às
devotadas cristãs. Naquele tempo, o mar chegava bem perto do convento. A praia margeava
as casas, existindo apenas como delimitação um muro de contenção e a rua. Em 1913,
aconteceu uma grande ressaca e o convento foi invadido pela força das águas. As freiras
apavoradas não sabiam o que fazer, a não ser pedir socorro. Os rapazes do 22 não mediram
esforços para ajudar as irmãs do convento.
Mas antes que os profanos bagunçassem definitivamente o sagrado coreto das freias,
o Flamengo pôde redimir-se dos pecados de seus atletas: numa das grandes ressacas
que assolaram a praia no começo do século, o convento ficou isolado pelas águas –
não esquecer que, naquela época, o mar chegava bem juntinho ao casario. As freiras
correram perigo de vida, e ninguém de fora se mexia para resgatá-las. Pois elas
foram salvas pelos remadores do Flamengo (vestidos de camiseta e calção), que as
pegaram nos braços e as levaram de barco para lugar seguro. O povo, que já
identificava o Flamengo com a alegria de seus rapazes, via-os agora também como
heróis. (CASTRO, 2001, p.36).
A turma da República Paz e Amor se metia em todas e não aliviava. A Light era a
empresa canadense de eletricidade que controlava os bondes do Rio de Janeiro. A população
tinha uma antipatia declarada à empresa. Os rapazes do Flamengo já conhecidos pelo senso
provocativo, descomedido e sem barreiras para o divertimento, ficavam durante o dia
apreciando as mulheres que embarcavam nos bondes, no ponto bem em frente ao 22.
Galanteavam a elas, sem cerimônia. Faziam brincadeiras com as pessoas e quando
encontravam um português, se deliciavam em proferir uma série de frases engraçadas e tecer
piadas sobre os lusitanos. É preciso dizer que eram mestres em fazer sarcasmo sem atraírem
ódio. Sabiam como não ser agressivos e esbanjavam a comicidade. Por isso, gozavam mais da
simpatia do que da repugnância.
Em razão desse atrevimento dos rapazes do Flamengo, que levavam a vida
mergulhados no divertimento, a empresa já ciente do que acontecia nas proximidades do
famoso endereço, decide retirar o ponto do 22. Existia uma faixa branca no poste para indicar
que ali era ponto de parada dos bondes para embarque e desembarque. Pois bem, a companhia
canadense ordenou que aquele ponto fosse desativado e mandou pintar o poste na cor
40
tradicional, descaracterizando o mesmo como ponto de parada. Era só os funcionários da
Light irem embora, e a turma do Flamengo voltava a pintar de branco o poste. Diante dessa
queda de braço, a população já não sabia mais se ali era ou não ponto do bonde. Quando
estava pintado de branco, ficavam de prontidão a esperar pelo transporte que havia de parar.
No dia seguinte, já não mais com o branco, os bondes passavam direto sem parar.
Após idas e vindas, o impasse continuava. A cidade toda já havia tomado
conhecimento da arrojada posição daquela turma. A Light orientou os motorneiros a, com
faixa branca ou não, passarem direto. Uma animosidade se estabeleceu. Os rapazes do
Flamengo, então, fizeram uma barricada com cavaletes para forçar a parada dos bondes. Um
motorneiro não conseguiu frear e atingiu a barricada. Grande alvoroço fez-se no local. A
população podia ter repreendido a atitude daquela turma da República Paz e Amor. Mas, não
foi o que aconteceu. Ficaram do lado dos rapazes do Flamengo e exigiram que a Light –
chamada de “polvo canadense” - parasse com a picuinha. O ponto de parada dos bondes foi
restabelecido, e o Flamengo conquistava mais uma “vitória”, é o que nos conta (CASTRO,
2001).
O casarão do número 22, com suas instalações em anexo e sempre abarrotado de
gente, acolheu, desde os primórdios do clube, o seu torcedor. Qualquer um que fosse rubro-
negro, sem distinção nenhuma de classe social, racial, de credo, ou de outra qualquer
ideologia, recebia guarida ali. O clube cresceu, fez-se grande e permanentemente se
preocupou em ter aquele espaço não só como garagem para os barcos, como também a servir
de aposento para o seu torcedor. O sentido de acolhimento, de albergar aos que eram
apaixonados pelo clube do Flamengo, era algo bem forte. Mais tarde, o número 22 passaria a
ser o 66. Conseguindo ampliar suas instalações, pôde acolher mais pessoas. No curso de seus
anos de existência, aquele endereço, Praia do Flamengo, 22/66, foi como um coração de mãe.
Alguma coisa tipo um grande centro de assistência social rubro-negra. Do seu jeito alegre,
barulhento e festeiro, é claro.
Juntando atletas, torcedores, simpatizantes, penetras, gente que queria apenas ajudar,
ou por ele ser ajudado, o Flamengo escreveu esse capítulo digno de elogio. Até cães, foram ali
abrigados. Dos inúmeros “hóspedes” que por lá passaram, todos, criaram, cultivaram dentro
de si, um caso de amor que mesmo com o passar do tempo não se apagou. É o Flamengo,
talvez, caso único de clube que permitiu a moradia de seus torcedores em sua sede. Essa
história incomum precisa fazer-se perene, não pode ser ignorada.
Essa simbologia do local, a receptividade, sua fama de ser um espaço de algazarra e
alegria permanentes, a configuração de estar sempre de portas abertas, a reunião extensiva de
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Livro Flamengo (reparado) Julho 2016

  • 1. UNIVERSIDADE POTIGUAR – UnP PRÓ-REITORIA ACADÊMICA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - HABILITAÇÃO EM JORNALISMO DANIEL FREIRE PEDROSA FILHO O TORCEDOR DO CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO: A ALEGRIA RUBRO-NEGRA NAS CRÔNICAS DE JOSÉ LINS DO REGO, NELSON RODRIGUES E MÁRIO FILHO NATAL-RN 2012
  • 2. DANIEL FREIRE PEDROSA FILHO O TORCEDOR DO CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO: A ALEGRIA RUBRO-NEGRA NAS CRÔNICAS DE JOSÉ LINS DO REGO, NELSON RODRIGUES E MÁRIO FILHO Monografia apresentada à Universidade Potiguar – UnP como parte dos requisitos para obtenção do Grau de Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo. ORIENTADOR: Profº. Me. Gustavo Bittencourt NATAL-RN 2012
  • 3. DANIEL FREIRE PEDROSA FILHO O TORCEDOR DO CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO: A ALEGRIA RUBRO- NEGRA NAS CRÔNICAS DE JOSÉ LINS DO REGO, NELSON RODRIGUES E MÁRIO FILHO Monografia apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo, à comissão julgadora da Universidade Potiguar. Aprovado em ______/_____/______ BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________ Profº. Me. Gustavo Henrique Ferreira Bittencourt Orientador Universidade Potiguar -UnP _______________________________________________________ Profº. Me. Leonardo Bruno Reis Gamberoni Universidade Potiguar - UnP ________________________________________________________ Profª. Me. Valéria Pareja Credidio Freire Alves Universidade Potiguar - UnP
  • 4. DEDICATÓRIA Este trabalho é dedicado a minha mãe, Gercina, que não se cansa de acreditar na felicidade. Fé em Deus e pensamento positivo que ELE proverá! Como a senhora mesma diz; À memória de meu pai, Daniel. Como queria ter te ajudado a alcançar a cura do alcoolismo; À minha esposa Valéria, companheira de todos os momentos; Aos meus filhos Thiago e Yasmim, o amor na forma mais pura. Vocês são o que existe de mais significativo em minha vida, meu tesouro verdadeiro. Pelo Flamengo sempre! Às minhas irmãs Manuela e Daniela, juntos, somos mais fortes. À Lisbela, pela fidelidade.
  • 5. AGRADECIMENTOS Ao futebol meu primeiro e permanente amigo. O teu encanto ninguém apaga. Ao Clube de Regatas do Flamengo minha primeira paixão e amor para a vida inteira. Essas instituições têm vida imaterial pulsante, alimento para a alma. Ao meu maior ídolo Arthur Antunes Coimbra, sempre Zico, o cara que serve como modelo profissional e pessoal. Obrigado por toda alegria que vocês me proporcionaram. Aos outros inspiradores deste trabalho: Mário Filho, José Lins do Rego e Nelson Rodrigues. O que vocês produziram com qualidade magistral, nada, nem ninguém, conseguirá apagar. Pelo pensamento, encaminho a minha gratidão a vocês. Aos professores que fizeram parte diretamente da produção deste trabalho, sugerindo, apontando, opinando, discutindo e trazendo contribuição. Obrigado Manoel Pereira, professor da fase inicial do projeto e, Gustavo Bittencourt, orientador e grande incentivador. E aos espíritos de luz, sempre por perto para acudir. Amor e proteção que não cessa!
  • 6. O Flamengo não para porque o Flamengo é uma força em marcha. Seu destino é a eternidade. Gilberto Cardoso
  • 7. RESUMO O trabalho acadêmico tem a proposição de analisar o torcedor de futebol e suas emoções. Como delimitação tem-se o torcedor do clube de maior torcida do Brasil, o Flamengo. Da consulta profícua a livros, filmes, documentários, programas televisivos, radiofônicos e sítios eletrônicos, veio o aparato para essa produção acadêmica que se dispõe a revisitar a história do clube centenário, o papel de seu torcedor, e a pesquisar o que estes três cronistas, José Lins do Rego, Nelson Rodrigues e Mário Filho, produziram expressivamente abordando o Flamengo e o seu torcedor. Sob a particularidade da hermenêutica que se configura como a interpretação de obras textuais, e tendo o referencial teórico basal do trabalho sustentado em Ruy Castro e Mário Filho com os seus respectivos, “O Vermelho e o Negro” e “Histórias do Flamengo”, o trabalho se desenvolveu. A obra está dividida em quatro capítulos. No primeiro, o futebol, seu surgimento, chegada ao Brasil e a sua representação social, se estendendo ao papel de sua legião de seguidores, o torcedor. Em um segundo momento, o Flamengo, a sua história e a atuação de sua torcida. Em seguida, lançamos olhar sobre o gênero jornalístico-literário, “Crônica”, e à sua especificação, “esportiva brasileira”. Por último, o torcer pelo Flamengo explicitado nas crônicas esportivas de José Lins do Rego, Nelson Rodrigues e Mário Filho. Palavras-chave: Futebol; Torcedor do Flamengo; Crônica esportiva brasileira; Nelson Rodrigues; José Lins do Rego e Mário Filho.
  • 8. ABSTRACT The academic paper has as proposition to analyze football fans and their feelings. As baseline, we have the supporters of the largest football fan club in Brazil, Flamengo. From fruitful books, films, documentaries, television and radio programs and site consultation came the apparatus for this academic paper which proposes revising the history of the century-old club, the role of its supporters, and researching what these chroniclers, José Lins do Rego, Nelson Rodrigues e Mario Filho, expressively produced regarding Flamengo and its fans. Under the particularity of hermeneutics, which constitutes the interpretation of textual works, and taking the theoretical baseline of the sustained work in Ruy Castro and Mario Filho with their respective, "The Red and the Black" and "Stories of Flamengo", the paper was developed. This paper is divided into four chapters. In the first, football, how it started, its arrival in Brazil and its social representation, extending it to the role of its legion of followers, the fans. Following, Flamengo, its history, and its supporters’ participation. Soon after, we look at the journalistic-literary genre, Chronicle, and also at its “Brazilian- sportive” specification. And finally, rooting for Flamengo, explained in the sports chronicles of José Lins do Rego, Nelson and Mario Rodrigues Filho. Keywords: Football, Flamengo Fans; Brazilian-sportive Chronicle; Nelson Rodrigues, José Lins do Rego and Mário Filho.
  • 9. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .........................................................................................................................9 1.1 CHEGADA NO BRASIL...................................................................................................17 1.2 O TORCEDOR...................................................................................................................25 2.1 A RIVALIDADE NOS CLÁSSICOS.................................................................................57 2.2 ÍDOLOS..............................................................................................................................63 2.3 TÍTULOS............................................................................................................................67 3.1 A CRÔNICA ESPORTIVA BRASILEIRA.......................................................................81 4 O TORCER PELO FLAMENGO NA VISÃO DOS CRONISTAS ESPORTIVOS............87 4.1 A ALEGRIA RUBRO-NEGRA POR JOSÉ LINS DO REGO..........................................91 4.2 A ALEGRIA RUBRO-NEGRA POR NELSON RODRIGUES......................................100 4.3 A ALEGRIA RUBRO-NEGRA POR MÁRIO FILHO...................................................110 REFERÊNCIAS......................................................................................................................129 CRISE EM LARANJÓPOLIS, TRICOLETAS ENTREGAM TUDO DE BANDEJA PARA SEREM ZOADAS PELO FUDEROSÃO: Disponível em:....................................130 DATAFOLHA. Times de preferência. Disponível em: <http://datafolha.folha.uol.com.br/folha/datafolha/tabs/futebol_04012010_tb1.pdf> Acessado em 06 de Maio de 2012...........................................................................................................131
  • 10. 9 INTRODUÇÃO Analisar, descobrir, entender os motivos que levaram o Clube de Regatas do Flamengo a ser propagado como o clube mais amado, de maior torcida do Brasil – e, na contramão, um dos mais odiados - é desafiador e necessário para se fugir do senso comum. Como aceitar as pesquisas que trazem números impressionantes sobre esse torcedor? Institutos de pesquisa detentores de grau de confiabilidade como o Datafolha, Ibope, CNT Sensus, Pluri Consultoria entre outros, atestam: a torcida do Flamengo é a maior do Brasil. Algumas pesquisas indicam, inclusive, ser a maior do mundo. Checar esta afirmação e encontrar o embasamento que desencadeou esse crescimento é um ato de compromisso com a veracidade dos fatos. Fazendo a “leitura” dessas pesquisas chega-se a depreensão de que o torcedor do Flamengo trata-se de um verdadeiro fenômeno. E nos leva a uma certeza. O Flamengo é um cube nacional. O título de “mais querido do Brasil” causa natural curiosidade e daí leva à indagação e a uma inquietude que me arrasta para o campo da pesquisa. Como esse clube conseguiu chegar a um patamar de extraordinária altivez? Como a sua torcida se forjou e cresceu em todo o território nacional? Sempre questionei as unanimidades, aquelas construções históricas que são moldadas para serem inquebrantáveis. Acredito que em tudo, em qualquer fato, sempre existe outro viés. Talvez essa característica tenha me levado ao Jornalismo. Talvez não, tenho certeza. Antes de estudar para entender tal condição fui sentir a pulsação e energia desse torcedor. A primeira vez no Maracanã junto daquela massa foi uma experiência extasiante, indescritível, de me deixar embasbacado, arrepiado, com alegria e fascínio que não se comparam a nada neste mundo. O barulho, o colorido, a festa e a sensação de estar diante de uma imensa família, aquela coisa de no momento do gol, quando o abraçar de um estranho, de vários desconhecidos, se estabelece te deixando “perdido”, pela emoção, e, “resgatado”, no propósito da união, de uma união única por ser desinteressada, espontânea, isso tudo, magnetiza. Esses elementos ficaram estampados na alma, na memória. O “sentir” àquela torcida, o estar junto a ela, me trazia satisfação e abria a minha percepção para toda simbologia do grupo, do coletivo, da massa, e da multidão, agregando valor ao meu posicionamento diante da sociedade. Naquele “meio” eu era mais gente, mais humano, ser social, preenchido, por assim dizer, e aprendia lições que levaria para sempre.
  • 11. 10 Nesta fase ainda, de adolescência, a leitura, o exercício dela habitualmente, me atingiu, e a luz possibilitadora do conhecimento irrestrito adentrou meus poros e passou a clarear o meu ser. Pela leitura, o mundo era meu! Quando me deparava com histórias envolvendo o futebol e, mais especificamente, o Flamengo, a sua superação, raça, garra, a alegria rubro-negra, o manto sagrado, sua torcida, essas conotações, eram pontos associativos sempre abordados. Diante desses textos que inflamavam ainda mais o desejo de descobrir os motivos que fortaleceram ao longo do tempo a exaltação a este clube eu me via como um menino na “fantasia” descritiva do real. Era difícil controlar a minha curiosidade, o senso precoce de questionamento, e a obstinação em apurar, em atingir as raias do entendimento das razões para este clube se fazer tão especial. E dentro desse seio da literatura houve um momento mágico, de descoberta. O que senti quando li uma coletânea de crônicas esportivas de Nelson Rodrigues e o que ele falava sobre o Flamengo foi algo como um torpor que tomava conta da alma, revelando um universo futebolístico cheio de poesia e dramaticidade. Aproximava-se do que tinha sentido no Maracanã no meio daquela massa enlouquecida e “embriagada” de paixão. Era a tradução exata. Como era possível aquilo? Até aquele momento só havia tido contato com parte da obra do Nelson Rodrigues, dramaturgo. Ícone neste segmento, e não menos brilhante na crônica esportiva, através dela, um horizonte novo e belo se abriu a minha frente. Nelson exclamava ser o Flamengo um fenômeno, uma força da natureza, que venta, chove, troveja, relampeja. Que cada brasileiro vivo ou morto já havia sido Flamengo por um instante. Que o seu torcedor era capaz de morrer com o nome Flamengo gravado no coração a ponta de canivete. Para ele, a alegria rubro-negra não se parecia com nenhuma outra. E dizia ainda que se Euclides da Cunha fosse vivo teria preferido o Flamengo à Canudos para contar a história do povo brasileiro. Era muito forte, instigante. Como um tricolor assumido podia dizer aquelas coisas sobre o rival rubro-negro? O desejo de me aprofundar no quesito Flamengo para compreendê-lo em sua essência, continuava pedindo passagem. Outros compromissos, no entanto, postergava essa pesquisa. O tempo passou. Na faculdade, ao iniciar o direcionamento para a escolha do tema deste projeto de conclusão, não existia mais dúvida. Havia chegado o momento da pesquisa. Sobre a história do Clube de Regatas do Flamengo, de sua torcida, iria me debruçar. Em um primeiro momento seria só o torcedor do rubro-negro carioca. Precisava, porém, criar uma relação com o jornalismo. Nelson Rodrigues. Surgiu esse nome, esse elo. Para quem possa não saber, Nelson antes de grande dramaturgo foi durante toda sua vida jornalista e cronista esportivo, de mãos cheias. A crônica esportiva, portanto, me daria suporte.
  • 12. 11 Durante as leituras específicas para o trabalho, eis que para a minha surpresa, dois outros nomes me saltam aos olhos, à mente, ao coração. José Lins do Rego – que eu conhecia por “Riacho Doce” e “Fogo Morto” -, e Mário Filho – que somente o identificava como o jornalista que dá nome ao estádio do Maracanã. Os dois, também cronistas esportivos de grande envergadura, que me fizeram, ao primeiro contato com suas crônicas esportivas, “babar”, ficar de queixo caído, teriam que ter espaço também. Merecido espaço. Um, era torcedor ardente do Flamengo. O outro, referendado pesquisador, historiador, defensor do futebol, idealizador e criador de grandes eventos relacionados ao esporte e, de certa forma, ligado também, ao rubro-negro. Este trabalho então, no seu ponto central, a torcida do Flamengo, pode-se dizer, é acalentado há anos. Para desenvolvê-lo de forma criteriosa, séria, respeitável, não existia lugar melhor, a Universidade. Para isso, era necessário expor o tema ao crivo científico. Tive o cuidado de não me deixar levar pela emoção e pelo autossugestionamento. Desprendi-me de qualquer sentimento unilateral que corrompesse os sentidos. Confrontei a produção de vários autores, e trabalhei de forma racional, analítica científica – em face de reunir tudo a respeito e criar a minha linha de raciocínio - visando obter resultado satisfatório. Sem ser “xiita”, radical, no sentido de me manter rigorosamente o tempo todo na razão, me permiti, entendendo não ser maléfico para o trabalho, em alguns momentos, fluir no sentimento mais solto, natural, sem, no entanto, fugir da realidade dos fatos. Aqui estão contidas as nuances, as sutilezas históricas, os acontecimentos fortuitos, as interpretações e reinterpretações que ajudarão o leitor a encontrar fundamentos para saber o porquê desse clube, chamado Flamengo, ter uma torcida gigantesca, ímpar, e de ser para este seu torcedor, além, do “mais querido do Brasil”, um clube de simbolismo que vai sempre mais além. Mais que uma paixão. É religião. No sentido mais abrangente da palavra, de religar o maior número possível de pessoas à sua causa. O que foi reunido, apresentado neste trabalho, interessa não somente ao torcedor do Clube de Regatas do Flamengo. É de interesse para quem gosta de futebol e, mesmo com sua inclinação para este ou aquele time, pensa sobre o tema, analisa, abre o seu campo de visão, enxergando assim, também, a história do outro, independente do julgamento que faça. Justifica-se, inclusive, o seu conteúdo como aceitável a uma minoria que não gosta de futebol, isto porque, vai muito além desse aspecto único. Trata de Sociedade, Cultura, Psicologia, História, Comunicação. Trata de gente. Retrata uma instituição que há quase 120 anos mexe com a emoção do torcedor. Seja amando, ou odiando, o Flamengo é assunto contumaz por todos os cantos.
  • 13. 12 Amor, paixão, fracasso, superação, alegria, ousadia, coragem. Sentimentos inerentes ao ser humano. Sorriso e lágrima. Pluralidade. Tudo isso está presente nesse tema. Sobre esses pilares, a história do Clube de Regatas do Flamengo foi erguida. Inserido na Comunicação Social, sendo frequentemente pautado no Jornalismo, o Flamengo impressiona e qualquer investigação que trate de revelar os motivos para essa massificação do tema Flamengo faz-se pertinente. 1 FUTEBOL, ESPORTE DE MASSA O futebol, palavra que em sua origem vem a significar alguma coisa do tipo, “chutar bola”, ocupa consistentemente porção considerável do planeta, seja pela prática do esporte, ou pela abordagem do assunto, e tem lugar de destaque no item predileção das pessoas. Ele se caracteriza como a maior paixão esportiva do planeta. O mecanismo que o rege é intrincado. Um esporte que desperta nas pessoas paixão em doses cavalares necessita de análises profundas para se chegar aos motivos de sua atração. Ele desemboca em um campo minado da complexidade humana. O futebol é retrato, imagem da sociedade. O jogar do campo e da vida são bem semelhantes, acrescenta (JÚNIOR, 2007). Em países onde o futebol é o esporte mais popular – e são muitos – ele vem a ser mais que uma atividade esportiva. É representação da vida, de certa maneira. Perceber essa paixão, reconhecer sua autenticidade, sua profusão, é inteligente, e na proveitosa tarefa de desconstruir a formatação do esporte visando esmiuçar seus detalhes, embarca-se. Sem pré- julgamentos que podem nos fazer escorregar, tendo o cuidado diante das verdades estabelecidas, das opiniões, apreciativas ou depreciativas, e somente com a pretensa missão de se obter o conhecimento, projeta-se o olhar para examinar suas origens e desvendar seus enredos. Posicionando-se como observador dos signos que gravitam na atmosfera do futebol e que o fazem permear o mundo e as relações humanas, chega-se a conclusão de ser o esporte elemento fortemente representativo na sociedade brasileira. Jogando luz sobre os fatos, sobre o homem, é certo encontrar apontamentos de significação para essa prática esportiva que consiste em conduzir uma bola com os pés, driblando o oponente, e tendo como objetivo central o assinalar do gol. Entrando de cabeça na simbologia do futebol chegamos a interpretações esclarecedoras acerca de seu papel social. O futebol tem um dom próprio. Ele faz as minorias, que estão fora da massa, sentirem-se parte da multidão. Também afasta qualquer indivíduo da solidão do
  • 14. 13 sentir-se minoritário, dando-lhe uma identidade. A massa ganha uma personalidade própria, afastando o sentimento de ser apenas mais um. (PEREIRA, 2010, p. 13). Ele funciona como componente ingente na estrutura macro social e é detentor de capacidade ímpar de agregar, espalhando enlevo, feitiço, deleite. O futebol explica a sociedade. É uma instituição nacional. Banhado na metáfora, a associação com a vida se faz. A vida não traz paralelos com uma partida de futebol? Certamente. No campo de nossas existências, com as faltas, sofridas e cometidas; as marcações cerradas que impomos; os deslocamentos para fugir do indesejado; as alegrias; tristezas; vitórias, derrotas, glórias, e ostracismo, diante desses adventos, nos deparamos com situações que nos impelem a tomar decisões bem projetadas, suprimindo riscos, e conduzindo ao sucesso. O futebol pode ser visto como uma analogia da vida e muito do que ocorre nele traz traços desta vida que fomos escalados a jogar. A experiência futebol parece ser, de fato, uma experiência divertida, o registro da ilusão, aquilo que Benjamin um dia chamou de ‘aura’. O futebol é a prova viva da necessidade de demonstrar afeto e de transformar a realidade num instante. A efemeridade do futebol impressiona ainda mais no momento do gol, em que nada parece fora de lugar. Mas os pilares que sustentam a concepção de espetáculo do futebol vão além das conquistas históricas [...]. (LOYOLA apud FREIRE, 2007, p. 98). E quando surgiu? Como surgiu? Que desejo o inspirou? Quando se busca referências sobre a origem do futebol histórias diversas saltitam aos nossos olhos e ouvidos. Nenhuma delas com base de registro oficial que ateste a veracidade. Como afirmam muitos estudiosos do assunto, é impossível determinar um momento exato em que o futebol deu o ar de sua graça na história da humanidade. Uma dessas narrativas, nos conta que na China, durante o período de 2000 a.C., guerreiros tiveram a ideia macabra de, após derrotarem o inimigo, decepar-lhe o crânio e passar a chutá-lo visando ultrapassar a demarcação de dois paus fincados no chão. Com o tempo, se aprimorou essa diversão que passou a ser um exercício militar disciplinador e bastante competitivo, chamado Tsu Chu, que significava morfologicamente “chutar a bola”. Ocorre uma mudança. E para melhor. Não mais se utilizava a cabeça do inimigo – substituída por bola de couro com enchimento de crina. A primeira forma documentada de futebol que se tem notícia vem da China, com o Tsu Chu, que em chinês significa ‘lançar com o pé’ (tsu) uma bola recheada de couro (Chu). O esporte, criado para fins de treinamento militar, foi desenvolvido por Yang Tsé, integrante da guarda do imperador da dinastia Xia, em 2197 a.C. (UNZELTE, 2009, p. 10).
  • 15. 14 Importado pelos japoneses, no século II a.C., o Tsu Chu mudou de nome sendo chamado de “Kemari”, palavra japonesa para definir, da mesma forma que no chinês, a prática de “chutar a bola”. No Japão ele deixa de ter um caráter de competitividade e passa a ser um cerimonial. Na América Central, no século 900 a.C., sob o nome de Tlachitli – espetáculo – um suposto antepassado do futebol também é identificado. Ocorria em um pátio que separava dois templos e consistia em não deixar a bola tocar o chão. Ela, a bola, tinha de ser introduzida em aros. [...] os japoneses pretendiam provar que, muito antes de ser regulamentado pelos ingleses, o futebol já era conhecido no oriente, pelo nome de Kemari (Ke = chutar; Mari = bola). [...]. Patrocinado e difundido pelos imperadores Engi e Tenrei, esse tipo de futebol não contava pontos e nele se proibia qualquer contato corporal entre os participantes. (UNZELTE, 2009, p. 12). Na cultura europeia, três atividades vêm a ser mencionadas como centelha inicial do futebol. Na Grécia, o Epyskiros, século IV a.C. Jogado em campo retangular, com bola que tinha no seu interior areia e com o objetivo de fazê-la ultrapassar certa demarcação. “Por volta de 850 a.C., Homero havia escrito um livro sobre esse tipo de esporte “[...]. O parente mais próximo do futebol era o epyskiros, disputado com os pés, em campo retangular, por duas equipes de nove jogadores”. (UNZELTE, 2009, p. 12). A partir da influência do Epyskiros surge em Roma, século III a.C., o Haspastum. “Influenciados pelos gregos, os romanos também bateram a sua bolinha. O Haspastum – o jogo da pequena bola”. (CARMONA e POLI, 2006, p. 22). Sua configuração era a de aprimorar o aspecto atlético dos soldados e desenvolver uma estruturação tática. No século I a.C., se desvencilha da exclusiva esfera militar e se populariza. Possivelmente, o Haspastum foi introduzido pelas tropas romanas nas ilhas britânicas. Os diferentes jogos com bola praticados na Inglaterra, inclusive o futebol moderno, teriam derivado dele, defendem teóricos. Uma tese dá conta de que em Florença – da fase Renascentista – atribuía-se ao Haspastum a origem de um jogo com bola, praticado desde o século XIV, chamado Cálcio. Termo consagrado e até hoje proferido pelos italianos para denominar o futebol. O Cálcio possuía características de ser um jogo urbano praticado no principal espaço público da cidade (Piazza Santa Croce); tinha número fixo de jogadores; utilização de uniforme; aplicação de regras; a figura do árbitro, e posicionamento dos jogadores em certas áreas do campo. Praticado por indivíduos de todas as classes sociais, na segunda metade do século XVI muda de cara. Passa a segregar as camadas mais pobres e torna-se exclusividade da nobreza. Em
  • 16. 15 apontamentos históricos percebe-se o quão apreciado era o esporte. Mesmo com a barreira aristocrática, muita gente do povo se entusiasmava em acompanhar o evento. Existem relatos que estimava em 40 mil o número de espectadores que acompanhavam cada partida, explicita (CARRILHO, 2010). Outro apontamento discorre sobre uma manifestação esportiva ocorrida na França, século XII, o Soule – do latim Solea (calçado). O Soule viria a ser uma prática com bola, certamente jogada com os pés – associação com “calçado” - e que tinha muitas variações dependendo da região. “As conquistas romanas semearam filhos do Haspastum pelo mundo. Na região da atual França, os habitantes célticos pré-romanos tinham um jogo de bola conhecido como Seault. Do cruzamento das duas tradições surgiu o soule”. (CARMONA e POLI, 2006, p.23). Para maioria dos estudiosos, o futebol moderno teve sua origem na Inglaterra. Caminhando de mãos dadas com a afirmação do poderio e da autoridade britânica pelo mundo, o futebol desempenhou papel de destaque na proliferação desta condição inglesa. A propagação pelo mundo do esporte, o futebol, dentre outros de origem britânica, se deu sustentada por essa ascendência cultural inglesa e na associação à cultura ocidental cristã. O futebol então, ligado à Inglaterra, faz enxergar nisso uma roupagem que mostra a Revolução Industrial empreendendo no esporte alguns conceitos marcantes de suas características, e de sua influência pelo mundo. Aspectos de um, foram desencadeados no outro. Competição, produtividade, igualdade de chances, supremacia do mais hábil, especialização de funções, quantificação de resultados, fixação de regras. Essas pontuações se aplicam a ambos. Pode-se detectar pelo estabelecimento de regras políticas que a Inglaterra, experimentando o intenso desenvolvimento das instituições, visava à organização da sociedade. Através do fortalecimento das instituições formais e da deflagração de regulamentações, se ordenaria bem o jogo social. Instituições servem para reger a própria sociedade. O progresso do capitalismo exigiu um avanço no desempenho das instituições. Para (CARRILHO, 2010), instrumento de demarcação do predomínio britânico pelo mundo, o futebol foi envolvido pelo propósito colonizador de servir através do chamado cristianismo britânico, entre 1820 e 1900, como autoafirmador nacionalista. Com eficaz concepção pedagógica de desenvolvimento da estrutura moral da elite britânica, e atestador do poderio inglês, ao se inserir em outros países o futebol e a sua aplicação era de suma importância para proporcionar força ao corpo, consistência ao espírito, rapidez ao raciocínio, boas maneiras, desenvolvimento, disciplina.
  • 17. 16 Incorporando a fundamentação da teoria da evolução de Charles Darwin chamada, “origem das espécies”, no tocante à seleção natural, e incutindo - primeiro na Inglaterra, depois rompendo fronteiras - a ideia de que, biologicamente, temos uma base comprovada da sobrevivência dos mais fortes, o mais apto, assim, o esporte foi elegendo os seus. A teoria darwinista foi se difundindo nas escolas privadas e nas universidades de Oxford e Cambridge, juntamente com o jogo praticado com bola desde o século XIV, chamado Football. Mesmo ao passo das interdições oficiais que vieram a ocorrer, em nenhum momento o esporte desapareceu das cidades britânicas. Tamanho foi o interesse pelo football na Inglaterra que entre 1830 e 1870 cerca de sessenta times já haviam sido registrados. Houve então a necessidade de padronizar, de codificar as regras do esporte, tendo em vista, que elas variavam conforme a localidade. Em 1863 foi criada para este propósito, a Football Association. Identificado então como produto Made in England, os ingleses enxergavam no futebol condições apropriadas para fortalecer ainda mais a sua imagem por outras terras. Dessa mentalidade, um processo de exportação veio a ocorrer. Países de todos os continentes foram apresentados ao futebol. Ridicularizado no início, não visto com bons olhos, – isto fora da Inglaterra, deixar claro – ele, com o tempo, ganha “corpo” e solidifica-se como espetáculo, atraindo públicos cada vez maiores. O futebol não é um pendor de desligamento das responsabilidades, das obrigações sociais - como alguns afirmam. Tem muito mais elementos construtivos do que destrutivos; benéficos do que maléficos. O seu universo trabalha regido pela intensidade das emoções. Tanto na questão da razão, como na da emoção, encontram-se motivações sólidas e conteúdo consistente para aprofundamento de estudo. Uma das maiores distrações da humanidade, pelo menos entre os homens, o futebol é menos perigoso que o álcool, menos ilusório que a religião e proporciona um senso de comunidade mais estrito que qualquer partido político. As ilusões da lealdade podem se perder ou o êxtase da vitória pode se provar efêmero, mas, ao início de cada novo campeonato, a esperança eterna que ocupa o coração dos fãs do futebol pulsa novamente. Os políticos abusam dessa fé simples, os homens ricos corrompem-na e os cínicos zombam dela, mas o futebol sobreviveu a tudo isso, tornando-se a maior e mais sólida instituição esportiva do mundo. (MURRAY, 2000, pag. 18). Impressionante é observar o quão natural e próprio da raça humana é a predisposição, o impulsionamento que se tem, desde a marca inicial da vida, dos primeiros meses de existência, para soltar o pé em uma bola, sem que ninguém haja ensinado isso. Ao primeiro sinal de que começa a andar a criança já esboça o ato de chutar aquele objeto
  • 18. 17 redondo. Essa inclinação existe em todo o ser que estreia em sua vivência neste planeta. No Brasil, o futebol é uma febre que faz bem. Há mais de cem anos que se instalou por aqui e, desde então, sua representação e significação social veio se acentuando cada vez mais. 1.1 CHEGADA NO BRASIL Conjeturas variadas sobre a manifestação inicial do futebol no Brasil são encontradas. Uma linha de observadores relata que já no século XVII os portugueses que aqui estavam com o propósito de colonizar essas terras, praticavam um esporte que era jogado com uma bola de pano e que possuía semelhança com o futebol. Outra versão levantada é a de que marinheiros europeus, mais precisamente ingleses e franceses, teriam jogado as primeiras “peladas” na América do sul, em 1864, em terras brasileiras. Bailam ainda versões de que marinheiros ingleses teriam desembarcado no Rio de Janeiro e realizado uma “pelada”, um “rachão”, em frente à residência da princesa Isabel, no bairro carioca das Laranjeiras. E que em Itu, no interior paulista, padres haviam ensinado o futebol aos seus alunos, entre 1872 e 1873. Duas outras explanações argumentam que Mr. Hugh, responsável pela estrada de ferro São Paulo Railway, teria apresentado o futebol a seus funcionários e estimulado a prática do esporte. E que em colégios confessionais, e laicos, de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, a prática futebolística já se aplicava desde a década de 1880. Cresce entre os pesquisadores a defesa de que a primeira partida de futebol no Brasil ocorreu em 1894, no bairro Bangu, no Rio de Janeiro, portanto, antes da data oficializada do seu surgimento, 1895, pelas mãos de Charles Miller. Conta-se que na Fábrica de Tecidos Bangu, operários estrangeiros, principalmente, ingleses, cedem aos apelos de Thomas Donohoe, um escocês já apaixonado pelo futebol, e realizam no campo da antiga Fábrica Bangu – hoje, o Shopping Bangu – a primeira disputa futebolística do Brasil. O futebol definido por (BYINGTON, 1982, p.21) como “uma prática social que, como tal, expressa a sociedade brasileira, com todas as suas aspirações mais antigas, seus desejos mais profundos e suas contradições mais camufladas”, tem a versão oficializada de chegada ao Brasil por intermédio da figura de um paulistano, filho de engenheiro escocês e de uma brasileira – filha de ingleses. Seu nome, Charles Miller. Ele que foi mandado pelos pais, aos nove anos de idade, para a Inglaterra a fim de completar os estudos, ao retornar, em 1894, traz em sua bagagem uma série de itens associados ao futebol: uniformes, pares de chuteiras, bolas, uma bomba de ar, um livro de
  • 19. 18 regras, além, da obstinação em desenvolver o esporte por aqui. Charles havia jogado futebol na Inglaterra e mostrava talento como jogador. Logo que regressou ao Brasil, teve dificuldades para convencer os seus pares – obviamente àqueles que não tinham ido à Inglaterra - a praticar o esporte bretão. Na sua insistência, conseguiu arrastar alguns colegas para um campo de várzea. Sendo sócio do São Paulo Athletic Club – o primeiro clube esportivo da capital paulista – Charles Miller tentou fazer com que os ingleses do clube jogassem uma partida de “football”. Sendo praticantes do críquete, os sócios descartaram de imediato. Só no ano seguinte, 1895, o São Paulo Athletic adotou o futebol em seu quadro tendo Miller como o principal destaque. O primeiro jogo de futebol, que se aproximou das regras oficiais, por assim dizer, ocorreu em São Paulo, em Abril de 1895. Charles Miller foi o responsável em pôr em campo funcionários da Companhia de Gás (The Team of Gaz Company), e da São Paulo Railway – empresa da qual o seu pai era funcionário, cita (GUTERMAN, 2010). É com ares de esporte estritamente elitista que o futebol se instaura na Paulicéia. Tem aceitação forte entre os abastados, mas também, logo é visto e descoberto pelo pessoal do baixo escalão social. Esses queriam ter o direito de praticá-lo também. Em 1898 é fundada a Associação Atlética Mackenzie College que em tese vem a ser o primeiro time de futebol composto unicamente por brasileiros. Charles Miller e sua importância para o futebol, é notória. Todavia, outro nome que não se pode esquecer é o de Hans Nobiling. Um alemão que muito contribuiu para a organização e disseminação do futebol por terras paulistas. Estabeleceu-se em São Paulo em 1897 e, determinado a difundir a prática do futebol, fundou o seu próprio time, o Hans Nobiling Team. Fomentou disputas envolvendo os times de até então, o seu, o Mackenzie, e o São Paulo Athletic. Fundou outro clube, que tinha o nome de Sport Clube Internacional e, em seguida, mais um, o Sport Clube Germânia. [...] Charles Miller não foi apenas o principal responsável pelo aparecimento do futebol em nosso país. Mais que isso, ele tinha o perfeito domínio das regras do futebol naquela época, apitava jogos, além de ser jogador de extrema habilidade técnica (...). Ao chegar ao Brasil, Charles teve mais um motivo para continuar empolgado e divulgando o futebol: ele encontraria aqui o alemão Hans Nobiling, chegado em 1897, vindo de Hamburgo, onde jogava pelo clube Germânia. Juntos, passaram a organizar competições no campo de Rúgbi do São Paulo Athletic e no velódromo, Seguia-se, a partir desse momento, uma série de jogos que reunia os altos funcionários das empresas inglesas e a elite econômica interessada nesse esporte. (CALDAS, 1990, p. 23). No Rio de Janeiro, é oficialmente Oscar Cox – filho de inglês - quem dá o pontapé inicial na introdução do futebol na cidade. Assim como Nobiling, que o propalou em São
  • 20. 19 Paulo, Cox foi o homem que, além de introduzir, teve papel relevante na disseminação do futebol por terras cariocas. Oscar ao retornar da suíça, em 1897, após completar os estudos, extasiado pela febre do futebol na Europa, desembarca com uma ideia fixa. Implantar o inglês “football” entre os cariocas e fazer dele o esporte mais admirado da cidade. O estudante tinha 17 anos. Na capital federal, nenhum traço do esporte existia e Cox enfrentou enormes dificuldades. Os campos que haviam eram destinados ao Críquete (esporte parecido com o beisebol). Para Oscar Cox aquele espaço era muito diferente do que havia visto na Europa. E as pessoas sequer vislumbravam o que poderia ser o futebol. ‘Football’? Que vinha a ser aquilo? [...] havia um campo. Sim. O clube brasileiro de Cricket tinha um. A coisa, porém, se complicava quando Oscar Cox, balançando a cabeça, dizia que, fora o verde da grama, não existe semelhança alguma entre o campo de cricket e o campo de football. O campo de cricket sendo oval, o de football sendo retangular. (RODRIGUES FILHO apud MARON FILHO e FEREIRA, 1987, p. 14). Encomendando bolas, que vinham da Europa, Oscar Cox estimula a aproximação dos praticantes do críquete, e dos seus pares sociais, ao novo esporte. A batalha foi árdua. O campo teria que ser aquele mesmo, destinado ao críquete. Faltavam as traves, as redes, inclusive, jogadores. Diante de tanta adversidade, Oscar Cox chegou a ficar um pouco desanimado, mas incentivado por seu pai, e também pelo avô – o pai havia sido um dos fundadores de um clube de críquete em Niterói, o Rio Cricket and Athletic Association - continuou a acalentar o seu sonho. Levou três anos para fundar o primeiro time carioca de futebol formado só por brasileiros. Brasileiros esses, que haviam também ido a Europa e se encantado com o esporte. O time pertencia ao Rio Cricket and Athletic Association. O outro clube de críquete famoso da cidade era o Paysandu Cricket Club. O time de futebol do Rio Cricket, comandado por Cox, enfrentou outro formado por sócios do clube, praticantes, do críquete e do tênis. O placar de 1 a 1 deixou as pessoas meio perplexas. Que esporte era esse que aceitava uma disputa sem um vencedor? Importante explicar que o Rio Cricket, fundado em 1872, no bairro de Botafogo, vem a ser o clube gerador, que deu origem, a outros dois. Na verdade, o Rio Cricket mudando suas instalações, a sua sede, para a rua Paysandu, no bairro de Laranjeiras, passa a se chamar Paysandu Cricket Club. Dissidentes fundam em Niterói, o Rio Cricket and Athletic Association. Fato pitoresco a de se destacar era a presença rotineira no Paysandu Cricket Club do casal, Conde D’eu e a princesa Isabel. O team dos brasileiros devia enfrentar um team de ingleses. Qual o inglês que não dera um chute em uma bola? E aí – era agosto de 1 – bem de manhã cedo, os tenistas
  • 21. 20 do Rio Cricket and Athletic Association tiveram a atenção despertada por umas balizas colocadas nos extremos do campo de Cricket. Eles perguntavam ainda o que era aquilo quando apareceram os jogadores. [...]. (RODRIGUES FILHO apud MARON FILHO e FEREIRA, 1987, p. 15). Mesmo com desconfianças, a primeira experiência foi proveitosa e duas outras partidas foram realizadas. Porém, para se consolidar de verdade era necessário jogar contra os paulistas já mais adiantados na prática do futebol. Cox fez contato com um amigo que havia estudado e praticado futebol com ele na Europa e que morava em São Paulo. Esse amigo estava inserido no movimento futebolístico paulistano. Uma resposta positiva se deu e o time do Rio partiu rumo à capital paulista. A receptividade foi muito boa e as partidas bem jogadas. Foram dois jogos. Dois empates. E bom número de pessoas foi conferir o embate entre cariocas e paulistas. E a gente só precisava de uma coisa. De disputar um macht em São Paulo [...]. Oscar Cox pegou uma folha de papel, molhou a pena e escreveu a carta. Quero que você me responda com urgência se é preciso levar barra de gol e redes. Temos tanto uma coisa como outra. A resposta veio mais animadora do que se esperava. Não precisamos – escrevia René Vanorden, do Esporte Clube Internacional – de nada. Temos campo. Temos barra de gol. Temos rede. Só faltam vocês para um Rio - São Paulo. (RODRIGUES FILHO apud MARON FILHO e FEREIRA, 1987, p. 16). Em 1902, Cox alça voo mais alto e substancial e funda o aristocrático Fluminense Football Club. Mas, o primeiro time de futebol oficial do Rio de Janeiro foi o Rio Football Club, surgido poucos meses antes do Fluminense. Inicialmente Cox seria o seu fundador, entretanto, por divergências com companheiros, deixou o grupo e outro membro se encarregou de firmar o nascimento do clube. Com a criação formal do seu tão acalentado time, o Fluminense, Oscar Cox, sente um quê de missão cumprida. O futebol no Rio de Janeiro começa a se fortalecer e a despertar o entusiasmo nas pessoas. Despertar interesse entre todos, sim. Todavia, a prática do esporte era restrita a pessoas de bom poder aquisitivo, é bom dizer. Lembrando que os esportes populares eram o Remo e o Turfe. Nessa época, o Rio de Janeiro era tocado pelo anseio de modernização e uma grande estruturação urbana, que visava corrigir deficiências que possuía, foi implantada. O Rio de Janeiro passava, naquela época, por bruscas reformas urbanas que modificavam a disposição geográfica da maior população brasileira da época. De acordo com Mattos (1997) os clubes também fizeram parte desse esforço modernizador e cosmopolita que contagiou o rio na virada do século. A autora recorreu a Needel (1993), que, em seu estudo sobre belle époque, relacionou a criação dos clubes ao desejo de estabelecimento de um convivo social da elite, (DAOLIO, 1997, p.22).
  • 22. 21 Na elite, e não no seio da camada mais humilde, o futebol teve seu desenvolvimento inicial no Brasil. Era amador e aristocrático. Nisso residia um traço que era defendido por quem o praticava: o Fair Play. Jogar limpo era necessário. Na arquibancada, o torcedor também deveria se comportar de maneira garbosa. O futebol serviria como meio de despertar os modos mais refinados, os bons princípios, para formar uma classe que serviria de modelo para todo o país. A elite se dedicaria a utilizar aquele esporte para incutir a ideia de que era fundamental prezar pelas boas maneiras para se atingir uma pretensa “civilização”. Esporte de bacharéis num pais caracterizado por gigantesca desigualdade social, esporte de brancos em uma sociedade com marcas ainda expostas do escravismo, esporte associado a ícones do progresso e da industrialização numa economia ainda essencialmente agrária, o futebol tornou-se desde o inicio um dos ingredientes mais importantes dos debates acerca da modernização do Brasil e da construção da identidade nacional. (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 61). Um ponto era bem demarcado. O futebol deveria ser praticado por pessoas de igual condição social e racial. Só pessoas de “boa família” seriam capazes de ter uma conduta adequada, de portar-se com educação. Esse era o pensamento dominante. Sendo assim, só àqueles de famílias abastadas, tradicionais, e aos “brancos”, deveria ser permitida a prática do esporte. Só foi esquecido que era da natural predisposição da figura humana o sentido da competição, o alcance a qualquer custo das vitórias. Não era fácil aceitar derrotas. As partidas foram ficando cada vez mais acirradas e a paixão pelos clubes se aflorando. A elite começou a deixar o fair play de lado. Vez ou outra, as partidas não terminavam bem. Pouco tempo depois, com a inserção “forçosa” dos clubes de menor expressão, notou- se um tratamento diferenciado dispensado a esses. Destacadamente, pela imprensa da época que utilizava dois pesos e duas medidas. Como por exemplo, criticando duramente quando jogadores e torcida de times sem tradição e suburbanos se envolviam em confusões. Cobrava medidas para restringir a participação destas agremiações nos eventos futuros. Já quando o ato reprovável partia de um jogador de um time tradicional, um time “grande”; de um torcedor fino da tribuna, a atitude era outra. A imprensa argumentava que havia sido um relapso, um destempero normal. O tratamento dado aos times da zona sul era bem diferente ao direcionado aos times suburbanos. É isso é o que se deduz da leitura de (PEREIRA, 2000). A grande massa já envolvida pelo futebol, mesmo com a postura excludente desempenhada pelos organizadores, mesmo com o não permitir aos menos favorecidos ter acesso ao esporte, queria participar, estar perto dos eventos. Espiavam por entre os muros, do
  • 23. 22 alto dos montículos e outeiros, trepados em árvores, as partidas jogadas pelos de boa condição financeira. Tocados pelo encanto e atratividade que o futebol proporcionava, passaram a, em larga escala, correr atrás de uma bola, fosse ela feita de meia, ou de outra composição qualquer, em terrenos baldios, nas ruas, e praças. Conta (PEREIRA, 2000) que nos primeiros anos do século XX, a capoeira foi discriminada, atacada, e a sua prática repreendida pelas autoridades. Tendo sido associada aos negros, era vista pejorativamente como prática repugnada pelas “famílias da sociedade”, que viam nela um grande “mal” para a cidade. Como alternativa para delimitar, frear, banir as festas que eram as rodas de capoeira, que reuniam a camada da população mais pobre pelas ruas, o jogar futebol, entre os menos privilegiados socialmente, passou a ser permitido – tendo no fundo essa iniciativa claros interesses de disciplina e controle. Ligas suburbanas de futebol começam a surgir. O esporte toma conta dos subúrbios proletariados. No tocante à questão da classe operária, um fato de destaque histórico proeminente foi a criação de um time, por diretores da inglesa, “Companhia Progresso Industrial”, uma fábrica de tecidos, que permitiu ao operariado o acesso à prática do futebol. Esse time é o Bangu Athletic Club. Para a democratização do futebol foi de extraordinário significado a fundação do The Bangu Athletic Club no ano de 1904. Bangu, um subúrbio do Rio de Janeiro, é a sede de uma grande fábrica de tecidos, que mandou vir da Inglaterra os técnicos de que precisava. Os ingleses fundaram o clube com o consentimento da direção da fábrica, que lhes pôs à disposição também um campo situado próximo. Em virtude da distância do subúrbio, entretanto, não foi possível aos ingleses constituírem equipes fechadas chamando os seus compatriotas da cidade. Viram-se obrigados a recorrer aos operários da fábrica, estimulados pela direção esclarecida, que provavelmente soubera que os fabricantes de tecidos ingleses na Rússia fomentavam o futebol entre os turnos para animar sua disposição ao trabalho. (ROSENFELD, 1993, p. 82). Enraizando-se pela cidade, o futebol ganha a adesão dos pobres, alavancando-se nas classes sociais mais baixas. Rompe fronteiras conceituais e começa a cutucar o preconceito. Especialmente, o racial. Mesmo contra a vontade das elites, o interesse pelo futebol jogado em alto estilo pelo negro começa a se fazer presente. Os clubes vão se curvando a este fato e passam a eleger seus atletas pelo talento simplesmente, fazendo vista grossa para a cor da pele dos jogadores. Ou, maquiando, de certo modo, esse traço racial. Podia-se tentar camuflar aquela condição. Friedenreich foi exemplo disso. Sendo o primeiro grande fenômeno negro do futebol brasileiro, sua condição racial incomodava. Com um talento fora de série, ele foi o autor do gol que deu o primeiro título internacional ao futebol brasileiro, no Sul-Americano de 1919, ocorrido no Rio de Janeiro - cinco anos após a realização da primeira partida do selecionado
  • 24. 23 brasileiro. A euforia da torcida era imensa. O Brasil tinha conseguido “bater” Argentina, Uruguai e Chile – que costumavam levar vantagem nos confrontos com os brasileiros, principalmente, a Argentina e o Uruguai –, e o Rio de Janeiro deu conta de realizar uma grande competição esportiva transformando o evento em acontecimento social de imenso destaque. Nascido em 1892, no bairro da Luz, em São Paulo, Friedenreich sintetizava bem a mestiçagem que é um traço de povo brasileiro. Filho de um comerciante alemão e de uma brasileira - lavadeira e negra -, o mulato de olhos verdes possibilitou a abertura, ainda que tímida, de espaço nos jornais e nos círculos sociais para se falar sobre o negro. Mesmo com o sucesso, Friedenreich, involuntariamente, tinha um hábito que parecia denunciar algo. “Fried procurava ele mesmo esconder como pôde sua condição de mulato, alisando vigorosamente o cabelo antes de entrar em campo” (GUTERMAN, 2010, p. 44). Outro fato racial que se tornou cheio de simbolismos aconteceu em um dos clubes mais tradicionais do Brasil, o Fluminense. Para entrar em campo, um jogador de pele mais escura do clube – contratado junto ao América, em 1914, - chamado Carlos Alberto, fazia uma sessão de maquiagem para não denunciar sua condição racial. “(...) Carlos Alberto, entrou para a antologia do futebol pelo inusitado: mulato, ele passava pó de arroz no rosto para disfarçar a raça quando jogava pelo Fluminense” (GUTERMAN, 2010, p.44). Desde então, as torcidas adversárias passaram a se referir assim ao clube das Laranjeiras: “pó de arroz”. Com a “indesejada” abertura do até então elitista futebol ao negro – e por associação ao pobre – brigas, rompimentos, rupturas se estabeleceram e criações de ligas, de campeonatos que abarcavam clubes ideologicamente diferentes, foram recorrentes. (PEREIRA, 2000) destaca que o futebol já havia se enraizado definitivamente na nossa cultura e se tornado a grande paixão do brasileiro. No Rio de Janeiro o remo ainda tinha certa força, mas o futebol já possuía o seu brilho próprio. Depois do surgimento do Clube de Regatas Vasco da Gama na divisão de elite do futebol carioca, em 1923, não dava mais para negar a chegada definitiva do negro, do pobre, do operário e do trabalhador comum, ao futebol. A aceitação do negro, e o “amadorismo marrom”, assuntos estes ligados ao Vasco da Gama, serão comentados mais adiante. Deve-se considerar o pensamento que “tomava forma” dentro da sociedade à época que pregava ser o branco uma raça “pura”, e que a mestiçagem que ocorria no Brasil fazia mal e acentuava os aspectos mais depreciativos. Felizmente, apesar de todos os contratempos, ao longo do tempo o futebol conseguiu servir como meio para a propagação e fortalecimento,
  • 25. 24 justamente, do contrário. A mestiçagem era marca positiva na composição cultural e social do nosso povo e dela não poderíamos fugir. Mesmo ainda sendo amador, o futebol deixava transparecer uma ponta do profissionalismo, adentrando em esferas financeiras e remuneratórias. Este aspecto era alimentado pelos patronos dos clubes. Uma das práticas à qual muito se faz referência era o pagamento do “bicho”- um animal de valor que era dado a um atleta ou, mais comumente, rateado entre os atletas. O caminho para a profissionalização estava sendo traçado, era inevitável. O profissionalismo de certa forma demorou a vingar por aqui. Foi no momento em que o Brasil começou a perder jogadores – contratados e remunerados por times de outros países – que ele se instituiu de vez. Isso, na segunda metade da década de 1930. O futebol também foi parte importante no fortalecimento da autoestima e da autoafirmação dos imigrantes que para o Brasil vieram se estabelecer. Destacadamente, para os alemães e os italianos - em decorrência da primeira e da segunda guerra mundial. E para os portugueses, que eram vistos por aqui com maus olhos e repugnância em razão da colonização, domínio, e exploração das terras brasileiras. Considerável parcela da sociedade tinha certo entrevero, picuinha, aversão, na relação com os portugueses. Essa antipatia era bem percebida. Através do futebol, os imigrantes conquistaram respeito e melhor perspectiva social passou a se apresentar para eles. A reunião de etnias, fortalecidas na união, na solidariedade, na homogeneidade sentimental de defesa de seus interesses fez surgir grupos esportivos, agremiações, clubes com características fortes de seus países. E por essa associação em torno dos times de futebol, dirigentes, sócios, jogadores, torcedores, esses imigrantes, que acreditavam ser o Brasil um lugar bom pra se viver, construíram uma história ditosa delineada por uma bola de futebol. Começaram a surgir clubes formados por gente nascida em outros países. São exemplos desse processo: o Palestra Itália, em São Paulo e em Minas Gerais – originário de Palmeiras e Cruzeiro, respectivamente; também, o Juventude, em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Todos esses, oriundos da colônia italiana. A colônia alemã fundaria o Coritiba, em Curitiba, no Paraná; o Grêmio, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e o Germânia – hoje, Pinheiros -, em São Paulo. Os portugueses, o Vasco da Gama e o Lusitânia – no Rio -, e a Portuguesa de Desportos, em São Paulo. O Galícia, em Salvador, na Bahia, seria fundado por espanhóis. Esses exemplos são de clubes que obtiveram destaque no futebol, ao passo que outros, sem destaque no futebol, mas fortes como clubes sociais propriamente, como por exemplo, o Esporte Clube Sírio, o Clube Monte Líbano, de imigrantes árabes, e, posteriormente, a
  • 26. 25 Hebraica, na década de 1950, fundada por Judeus, referendam essa constatação de sucesso no Brasil de algumas reuniões esportivas instituídas por imigrantes. Impossível não pensar no futebol como fenômeno social, cultural, que ajudou o Brasil a encontrar a sua identidade nacional. Deve-se gratidão ao futebol, por exemplo, pelo fato de ter possibilitado, vencendo todas as resistências, mostrar, escancarar, uma realidade que é própria do Brasil. O Brasileiro como um povo mestiço, fruto da mistura de raças, da fusão de negros, mulatos, indígenas e europeus e, certamente por isso, tão rico culturalmente e especial. Também por ter contribuído para fazer o brasileiro se sentir especial diante do mundo a partir das conquistas mundiais da seleção. Foi por intermédio do futebol que o brasileiro rasgou, pisou em cima, se libertou do seu “complexo de vira-latas”, criação de Nelson Rodrigues, que via no povo brasileiro uma tendência a se colocar como menor, inferior diante do mundo. Um estádio de futebol é mais do que um simples espaço onde vinte e dois homens correm de um lado para o outro atrás de uma bola. É o lugar onde, da arquibancada, uma massa heterogeneamente formada, aglutina-se, funde-se, tornando-se homogênea, coesa e irradiando uma vibração uníssona, arrefecida por certos traços da psicologia humana. É no estádio de futebol que o torcedor se manifesta lançando uma surpreendente condicionalidade humana. O estádio é laboratório, divã, palco, consultório da alma de um povo que tem nele, o futebol, o seu santo remédio, libertador, e que ameniza suas agruras diárias. O futebol tem a capacidade de exacerbar certas condições psicológicas. Uma derrota pode ferir o ego. Pode mexer com o nacionalismo. O futebol é imperfeito – os resultados improváveis se estabelecem com certa frequência. O melhor, nem sempre vence. A lógica, vez ou outra, se esconde e, talvez por isso, pela imprevisibilidade, o futebol seja esse elemento fascinante, encantador, cheio de significações ocultas que levam o torcedor a uma “loucura saudável”. O torcedor é magia. 1.2 O TORCEDOR Sendo um indivíduo que acredita, pela sua inserção na coletividade, ser possível desvirtuar o significado, mudar o rumo, dar vida ao improvável e fazer emergir do seu torcer apaixonado uma energia que “contamina” positivamente o futebol, retransformando a realidade, nessa configuração curiosa, o torcedor salta para uma plataforma de destaque. Torcer é ter a capacidade de alterar a partida que se tem diante dos olhos. O adepto de um time, o torcedor pra valer, crê que pela sua fé e pelo seu estímulo, incorporados e
  • 27. 26 amplificados pela massa, pode colaborar para que seus ídolos absorvam energia, envolvam-se de elementos da divindade, abrindo as portas para a vitória. Quando o pensamento individual infiltra, adentra, atinge o coletivo, ganhando na adesão de um grupo, da massa, fluidez de energia, manifestando-se, propagando-se, seus efeitos geralmente são percebidos. Na simbiose de torcida e jogador, por inúmeras vezes, foi detectada a alteração de uma jogada, de um lance, de uma partida, em razão dessa energia desencadeada. Fazer parte da multidão e perder o controle de nossas emoções e de nosso comportamento, pelo contrário, é aquilo contra o que somos advertidos desde a infância. Em consequência disso, muitos de nós esqueceram (ou jamais souberam) como pode ser prazeroso fazer parte da multidão. [...] As multidões anseiam pelo momento em que sua energia se conecta à dos jogadores e faz a energia deles aumentar. Porque naquele momento, a separação entre a torcida e os jogadores parece desaparecer. Essa comunhão, longe de ser puramente espiritual, pode constituir uma realidade física. Pode ter até uma base biológica bem concreta, nos recentemente descobertos neurônios-espelho, que atuam no córtex pré-motor. Os neurônios-espelho são ativados não apenas quando a pessoa executa uma ação, mas também quando vê alguém a executando. (GUMBRECHT, 2007, p. 150-151-152). Torcida e jogador são indissociáveis. Mutuamente, completam-se. Existe na relação torcedor-time-jogador carga de gratidão, nem tanto perceptível assim em um primeiro momento, mas nítida, ao analisar mais cuidadoso. Essa gratidão está presente nas entrelinhas do futebol. “[...] de uma longa carreira assistindo a esportes, o que eu ‘ganhei’ foi um forte, embora não muito bem definido, sentimento de gratidão para com os atletas que me proporcionaram momentos de intensidade tão especial”. (GUMBRECHT, 2007, p. 161). Protagonistas do espetáculo do futebol, cada um do seu jeito, jogador e torcida, involuntariamente, passam a desenvolver uma funcionalidade orgânica, cerebral, psicológica, que merece análise. O verbo “torcer” significa virar, dobrar, encaracolar, entortar etc. O substantivo “torcedor” designa, portanto, a condição daquele que, fazendo figa por um time, torce quase todos os membros, na apaixonada esperança de sua vitória. Com isso reproduz-se muito plasticamente a participação do espectador que ‘co-atua’ motoramente, de forma intensa, como se pudesse contribuir, com sua conduta aflita, para o sucesso de sua equipe, o que ele, enquanto ‘torcida’, como massa de fanáticos que berram, realmente faz. (ROSENFELD, 1993, p. 82). O ato de torcer foi sendo modificado ao longo do tempo. A partir do desenvolvimento, da expansão e consolidação do futebol dentro da sociedade brasileira, a torcida foi ganhando novos impulsos, passando a ser mais ativa, obtendo reconhecimento e influenciando no rumo dos clubes. A prática de incentivar o time de coração torna-se algo sólido e começa a se
  • 28. 27 organizar. Surge então o torcer mais elaborado. Cânticos, instrumentos musicais, uniformes, utilização de fogos de artifício, bandeiras, são introduzidos nos estádios. Sim, porque no início se torcia de maneira pudica, comedida, com finesse. O futebol como sinônimo de esporte da elite precisava pautar o torcer na forma comportada e refinada como se o sujeito estivesse em uma ópera ou coisa assim. A vestimenta dos torcedores era a de trajes finos e elegantes. Não se admitia gritos de incentivo durante a partida. O máximo da algazarra se dava antes ou depois do jogo e o que se ouvia eram expressões do tipo, “Aleguá”- significava, avante! -, ou um “Hip Hip Hurrah!”, seguido do nome do time – cumprimento entusiasmado do torcedor de um clube. As mulheres com os seus vestidos e chapéus de imenso glamour. Nos chapéus, as fitinhas com as cores do clube – indicando com orgulho para qual time se torcia. E nas mãos, também um pedaço de fita que a ala feminina de torcedoras do Fluminense levava ao estádio e, ritualisticamente, ficava a torcê-la, revelando o nervosismo com a partida, e o frenesi diante do encantamento provocado por aquele que foi o primeiro goleiro da seleção brasileira e arqueiro tricolor, Marcos Carneiro de Mendonça. Notabilizado pela beleza física, por seu jeito pomposo e elegante de se vestir – usava uniforme todo branco e uma fita roxa como cinto - e pelo seu talento em realizar defesas incríveis, Marcos Carneiro é personagem destacável dessa fase dos primeiros passos do futebol no país. Desse costume das mulheres de “torcer a fita”, curiosa e ilustrativa é a informação trazida por (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 292) de que o uso da palavra, “torcer”, introduzida na esfera futebolística, segundo conta-se, “[...] vem do hábito de moças simpatizantes do Fluminense contorcer durante as partidas pequenas fitas roxas, semelhantes às usadas, na cintura, pelo goleiro do clube no período de 1914-1922, Marcos Carneiro de Mendonça”. O goleiro, ou, como chamado na época, “Goalkeeper”, gravou seu nome na história do futebol. Pragmático, com técnica apurada, Marcos Carneiro era seguro, preciso em seus movimentos, e foi um admirável estudioso da profissão. Desenvolveu apurado senso de colocação debaixo da baliza que dificultava o sucesso dos atacantes. Aristocrata, foi defensor ferrenho do futebol amador. Contribuiu também, fora das quatro linhas, como historiador para o acervo histórico do futebol brasileiro ao recortar de jornais e revistas daquele tempo tudo o que saía sobre a sua presença em campo de jogo, fosse defendendo o Fluminense ou a seleção brasileira. Histórias da realidade amadorística do futebol no país, do período compreendido entre 1913 e o final da década de 1920, reunidas e encadernadas, geraram um material de grande valia. Através desses recortes, que ficaram conhecidos como o “álbum”, o “grande caderno
  • 29. 28 pardo” de Marcos Carneiro de Mendonça, obteve-se respeitosa fonte de estudos sobre o futebol carioca do início do século XX. Hoje, parece utópico pensar nesse tempo de Marcos Carneiro de Mendonça como atleta, quando o torcedor era impelido, pela imposição cultural futebolística em voga, a conter o sentimento, aprisionando o grito, a palavra vulgar e a explosão da emoção. Em que o torcer silencioso, passivo, era a regra geral, sendo comum durante a partida a empolgação do torcedor se manifestando, no máximo, com aplausos e um ou outro assobio. Mas era assim mesmo. Essa forma contida de torcer ficou pelo caminho. O torcer vigoroso, intenso, criativo, pedia passagem. Sobre essa maneira de torcer, barulhenta, ativa, colorida, festeira, discorreremos mais a frente, apropriando-se da figura de um torcedor que foi referência, o criador da primeira torcida organizada do Brasil. Esse torcer mais intenso põe em evidência as alterações orgânicas que ocorrem tanto no torcedor, na sua apropriação ativa de torcer, quanto no jogador, posto em performance passiva de recebimento do incentivo. O fluxo sanguíneo aumenta, o funcionamento orgânico se altera. Ambos são tomados pela adrenalina que o corpo inteligentemente produz Estar em uma arquibancada torcendo pelo seu time de coração desencadeia uma série de reações. A alma inquieta-se, o corpo estremece, enrijece. Parece que o torcedor coloca o pé em outras dimensões. “Quando se considera a imensa carga de sentimentos que se irradia da torcida para os times, entende-se que eles busquem abrigo em esferas sobrenaturais, para se certificarem da estimulação benévola [...]”. (ROSENFELD, 1993, p.103). Poucas coisas nessa vida têm uma representação tão forte quanto o futebol para o torcedor. Ele, o torcedor, acredita que as vitórias no campo descerram uma atmosfera de vitória e de realização pessoal. Por se sentir fazendo parte de um clube que possui sua representação social, seja na rua, no bairro, na cidade, no estado, no país, o ser que torce, efetivamente, por um time, vem a se sentir aceito, incluído socialmente, e flertando com o sucesso. Descreve Daolio: O que parece é que o torcedor vai ao jogo buscando, muitas vezes, a alegria, a realização ou o sucesso que não conseguiu ter naquele dia ou nos últimos tempos em sua vida. O seu time, assim, pode representar uma parte da vida que dá certo. Como parte do clube, o torcedor tem a ideia de que “meu clube é rico”, “meu clube é vencedor”, “os dirigentes do meu clube são poderosos e eu, torcedor, participo disso”, “participo porque me identifiquei, sou parte, membro, presença”... O clube acaba mediando uma relação desse indivíduo com o sucesso, com a lembrança, com a família, com a sua origem. (DAOLIO, 1997, p.26).
  • 30. 29 Outro aspecto que se observa no ofício do torcedor é a sua simpatia, satisfação, pelas vitórias difíceis. Por incrível que pareça, aquele jogo no qual o seu time passou sufoco, sofreu para vencer, reagiu no final, ganha contorno especial de sobrepujamento e deixa para esse torcedor uma sensação mais aguçada de orgulho. “[...] O sentimento de sacrifício está presente no torcer. A vitória suada, o gol no final do jogo, a partida difícil, a briga na arquibancada, a derrota inesperada, etc., trazem uma marca definitiva do fato que se aloja de vez na memória do torcedor”. (DAOLIO, 1997, p.28). O “sentir-se” pertencente a um grupo, a uma instituição, a uma comunidade, também tem caráter brioso, referencial, por inferir para aqueles que se agregam, ser isso, uma ligação ao passado, aos costumes e ritos interiorizados e marcados na história de uma dada organização. É o dar continuidade a algo plantado lá atrás e que não pode morrer. É isso o que nos diz Morin. A identidade individual e coletiva afirma-se, não na dependência imediata de cada grupo, como na sociedade primática, mas sim pelo e no conjunto dos fios noológicos que ligam o indivíduo a seu parentesco real e mítico e que dão à cultura sua identidade singular. O nome liga a identidade individual a uma filiação sociocultural: estabelece, ao mesmo tempo, a diferença e a dependência: quando diz “filho de”, tem-se em mente não apenas os genitores, mas também os antepassados, a descendência social. O mito alimenta a recordação, o culto e a presença do antepassado, mantendo-se por isso mesmo, a identidade coletivo-individual. Este tema do antepassado, das origens e da genealogia retorna sempre, obsessivo, nos símbolos, nas tatuagens, nos emblemas, nos adornos, nos ritos, nas cerimônias e nas festas. (MORIN, 1979, p.169). Torcedor, elemento ímpar na atmosfera do futebol. Esse sujeito que tem o afã de acompanhar, impreterivelmente, o seu time, de sentir-se como parte da equipe, doando-se de corpo e alma e exercendo satisfatoriamente sua função de incentivador. Que pelo seu clube é capaz de esquecer até mesmo o maior dos problemas, de sobrepor-se à limitação, seja ela, financeira, física, ou de outra ordem qualquer, e de, por intermédio do sagrado para ele, exercício do torcer, obter o expurgo para os males que o afligem. Com toda certeza, é um grande objeto de estudo. E como seria o futebol sem essas figuras devotadas que encarnam o espírito do amadorismo e o levam até as últimas consequências? Acho que não teria a mesma graça sem eles, que têm suas vidas e problemas, mas que deixam tudo de lado e revelam um amor sem medir esforços, desprovido de preocupações políticas ou financeiras. Pessoas que são a pura paixão por um clube. (ZICO apud MATTOS, 2007, orelha). Na amplitude da população brasileira, esses seres, os torcedores, fidedignos que são, têm suas vidas “verticalizadas” em escala crescente de esperança, de confiança, de crença.
  • 31. 30 Pela ação da inebriante experiência do torcer por seu time de coração e, em estágio mais homogêneo, pela seleção, são tomados pela esperança, sentimento este, que irradia para suas vidas, apontando para uma melhor condição psicossocial que apruma os passos na caminhada existencial. A representação da vitória, do sentir-se vitorioso, especial, pode ser um tronco frondoso para o melhoramento de quesitos da vida desse sujeito. O que o torcedor sente no exercício de apoio a seu time, as energias que são movimentadas, transcendem a uma compreensão simplista. No estonteante espetáculo da arquibancada, que “prende” o torcedor e, em regra geral, o coloca em uma fecunda empolgação, que faz pasmar aquele que nunca se permitiu fazer parte da massa ululante, conjunturas analíticas emotivas são reveladas. Ela nunca tinha pisado no solo sagrado do Maracanã. Estreou num dia de Fla-Flu. Decisão do título carioca de 1995, aquele, do gol de barriga de Renato Gaúcho de barriga. Ela nem viu, na verdade. Porque o que acontecia no gramado não tinha a menor importância. Ela estava extasiada com o espetáculo das arquibancadas. Foi a primeira vez em que vi o que significava, literalmente, alguém ficar boquiaberto. Ficou ao sair do elevador e entrar no corredor para a área das tribunas, ainda antes da borboleta. Como eu sabia que alguma reação haveria, adiantei-me para poder voltar e vê-la de frente. Boquiaberta. Quando se deparou com a multidão, com as cores, com a cantoria ficou paralisada. E boquiaberta. De queixo caído, Vá lá. Ela existe mesmo, se chama Leda e é minha mulher. Poucas vezes antes eu atinha visto daquele jeito, talvez diante da Guernica ou da Pietá. E foi dessas reações absolutamente naturais que dão a dimensão do que é o torcedor, do que é um Fla- Flu, do que é o Maracanã lotado. Interpretei, também, como uma homenagem ao meu ofício ou, ao menos, mais uma ficha que caía para compreender o tamanho da paixão. (KFOURI, apud, MATTOS, 2007, contracapa). Tendo esse papel tão marcante no universo do esporte e, especificamente no do futebol, o torcedor não pode ser desprezado. Sua simbologia merece ser levada em conta. Delimitando a pesquisa, esse trabalho direciona luz mais forte sobre uma torcida em questão. Dita, observada, apresentada, indicada, aferida por todas as empresas de pesquisa de opinião como a maior torcida do Brasil, o torcedor do Clube de Regatas do Flamengo vem a ser o recorte. Em algumas pesquisas, a sua torcida chega até mesmo a ser mencionada como a maior do mundo. Conhecendo a história do clube é que se tem base sólida para encontrar as respostas que elucidarão a constatação da força, magnitude, carisma e sedução do torcedor do Clube de Regatas do Flamengo. Aprofundando-se na análise, os motivos que proporcionaram o crescimento contínuo de seus seguidores começam a aparecer.
  • 32. 31 2 O CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO E SUA TORCIDA O estudo sobre o Flamengo, seus passos e suas pontuações históricas que pavimentaram a relação com o seu torcedor, não pode se abster de perpassar o cenário esportivo, social e cultural do Rio de Janeiro. É indispensável também, tarefa obrigatória, a análise de parte da história do Brasil. Vasculhar fatos escancarados, ou aqueles mais sutis, revirá-los, buscando nova ótica, o viés pouco perceptível, ou desprezado, é tarefa frutuosa para se encontrar fragmentos que nos façam detectar relações que serviram de influência, referência, para o surgimento do clube, a construção de sua identidade, e vieram a determinar a consolidação do clube e de sua torcida no gosto popular. A história do clube, passa pela torcida, ou melhor, tem o ponto central nela. Ao se falar sobre o centenário clube da Gávea, o que logo vem à mente é o termo: torcida. No Brasil, ou até mesmo fora dele, quando soa a palavra Flamengo, tirando os adjetivos pejorativos creditados ao clube pelos seus adversários, a qualificação mais pertinente que se faz é a de ser o clube o dono de maior torcida do Brasil. Para o torcedor rubro-negro, sua condição é tão especial, o orgulho de si, como torcida, é tão exacerbado, que ele costuma dizer que no seu caso existe, primeiramente, uma torcida e depois um time, escancarando com essa afirmação toda sua soberba. É de entendimento comum que uma agremiação, um grupo, uma instituição, um clube, torna-se grande, um ícone – no quantitativo e no qualitativo –, a partir de ações de significada relevância no meio ao qual está instalado e que essas ações tendem a recrudescer, abrilhantar sua imagem, creditar projeção ao agrupamento constituído, que passa a ser visto como agente respeitável e uma acentuada entidade social. Em se tratando de um clube esportivo então, a sustentação que se faz residirá na paixão. E se neste clube esportivo houver espaço para o futebol, o seu traçado histórico irá se estender tendo no teor da paixão em doses cavalares, do amor profundo, seus pilares de existência. O Flamengo, clube surgido no Rio de Janeiro, no bairro do Flamengo, de onde herdou o seu nome, é um caso de extremo sucesso. Fundado, originariamente, como um grupo, deu os primeiros passos envolvido por grandes dificuldades. Cresceu, perseverou, aprimorou-se, veio a se fortalecer e ganhou vasto espaço no esporte, tornando-se um colossal agregador social. Nascido de uma provocação, por assim dizer. De um sentimento de desonra, surgido da afronta dos jovens do bairro vizinho de Botafogo aos que freqüentavam a faixa de areia da
  • 33. 32 orla do Flamengo. A reação aconteceu e, felizmente, foi pela via do esporte. Aqueles jovens do bairro de Botafogo, possuidor de um clube de remo, fundado em 1894, já famosos no seu bairro, não mediam esforços para impressionar o maior número possível de pessoas. Iam diariamente à praia do Flamengo, em especial, para paquerar as moças de lá, disso, motivou- se, em parte, o surgimento do grupo do Flamengo. Embalando o desejo de exibição, de conquista, esses remadores botafoguenses desfilando seus corpos bem torneados faziam questão de deixar sua embarcação exposta na praia e se tornavam assim uma grande atração. As mulheres da praia do Flamengo suspiravam. A partir desse incômodo, afloraria a determinação natural dos jovens da praia do Flamengo de impor algum tipo de limite para a ousadia do grupo de Botafogo. Precisavam fazer algo para que aparecessem com destaque também. É então que um grupo de jovens de classe média do bairro decide partir para o ataque. Revidariam de modo inteligente com uma grande criação. Um clube de remo. Na verdade, este fato serviu de pretexto definitivo para os rapazes criarem o grupo de remo do Flamengo. Já eram apaixonados pelo esporte marítimo. O remo era o esporte em voga. O primeiro esporte no Brasil a atrair multidões. O esporte popular. Com relação ao esporte, nesse final do século XIX, o remo era o mais popular do Rio. A Federação Brasileira das Sociedades de remo e os próprios clubes promoviam disputadíssimas regatas na enseada de Botafogo. Para as autoridades e convidados vip, eram montados pavilhões e arquibancadas de madeira. Mas o povo queria ver também. Nas manhãs de domingo, durante as regatas, as avenidas à beira mar eram tomadas pela multidão de curiosos. (...) não havia o termo ‘torcida’, embora os espectadores já se manifestassem a favor de um ou de outro competidor. Os jornais referiam-se ao público como assistência, multidão, plateia. Os homens andavam de terno, gravata e chapéu. Parece que o mundo todo tinha e usava terno, gravata e chapéu. As mulheres também não queriam perder as regatas. Os atletas eram bonitões. As moças se enfeitavam com a melhor roupa, escolhiam o chapéu mais elegante e assistiam eufóricas ao duelo de titãs, travado no braço em pleno mar, entre os atletas do remo. Algumas chegavam a desmaiar de tanta emoção. Os remadores eram como vikings, numa mitológica jornada. (CRUZ e AQUINO, 2007, p. 15). Final do século XIX, 1895. Rio de Janeiro, a capital federal. 700 mil habitantes, aproximadamente. Todos os olhos se voltavam para lá. Era o grande centro do país. Tudo o que acontecia na cidade era copiado. A cidade maravilhosa, sempre irradiadora de tendências, via-se envolvida ainda pela atmosfera da proclamação da república, ocorrida seis anos antes. Crescia vertiginosamente – recebia gente de todas as partes do Brasil e do mundo - e convivia com problemas de urbanização e de saúde pública: epidemias de cólera, varíola e febre amarela eram comuns.
  • 34. 33 Concentrava a maior parte da população em poucos bairros. As regiões do centro da cidade, da Praça Mauá, de Santa Tereza, da Lapa, e das praias de Botafogo e do Flamengo, eram o polo habitacional. A chamada Zona Sul era uma faixa de terra perdida. Copacabana, Leblon, Ipanema e adjacências eram lugares praticamente inabitados e que não possuíam o menor valor comercial. No subúrbio, o mesmo acontecia. Pela topografia da cidade, e pela não fiscalização do poder público, habitações em morros começavam a surgir e viriam a ganhar espaço na cidade com uma rapidez impressionante. Nestor de Barros, José Agostinho Pereira da Cunha e Mario Espíndola eram grandes amigos. Inseparáveis. Tiveram como paixão, primeiramente, o turfe – outro esporte em evidência na época. Contudo, quando descobriram o remo, o amor foi imediato. Em uma noite de Setembro de 1895, os três, mais Augusto Lopes da Silveira, aprovaram a ideia de fundar um clube de remo que traria pompas ao bairro do Flamengo. Também se livrariam do aluguel do barco, todo domingo, para exercitar os corpos na Baía de Guanabara. Teriam o seu próprio barco. Poderiam assim, ainda, dar o troco nos remadores de Botafogo. No princípio, haviam até pensado em conter as investidas dos remadores do clube de Botafogo apelando para a briga – uns bons bofetões dariam jeito – mas sendo, Nestor e seus amigos, estudantes civilizados e de boa família, a ideia foi logo abortada. Ter um barco capaz de disputar em pé de igualdade com os remadores de Botafogo, suplantando-os, é claro, seria a melhor maneira de desbancá-los. Durante a semana, esses três rapazes do bairro do Flamengo estudavam e trabalhavam. Nos domingos, o dia era quase que inteiro junto ao mar. A pausa se dava apenas para o compromisso religioso de ida a missa, na Matriz da Glória, e para o almoço. À noite todos se encontravam no Restaurante Lamas – ponto de artistas, intelectuais, políticos e estudantes - reduto inicial rubro-negro, situado no Largo do Machado, a uns três quarteirões da praia do Flamengo. Bem ao lado do Lamas, ficava a estação de bondes. Após reuniões, e as corriqueiras conversas na caminhada que faziam diariamente até o Largo do Machado, cruzando ruas e residências - iluminadas ainda por grandes lampiões a gás e a óleo de baleia -, a decisão de criar o grupo foi sacramentada. Faltava só o dinheiro para comprar o barco. Conseguiram juntar certo valor e ao preço de 400 mil réis, valor este, conseguido por Mário Espíndola, Felisberto Laport, Nestor de Barros, José Félix da Cunha Menezes, Augusto Lopes e José Agostinho Pereira da Cunha, adquiriram a primeira embarcação chamada, “Pherusa”. Logo depois, viria a “Scyra”. O barco era de segunda mão, explica (RODRIGUES FILHO, 1966).
  • 35. 34 Outra particularidade da cidade nesta época que trouxe surpresa positiva para a população foi a escolha, em 1892, do Rio de Janeiro como cidade a ser contemplada com uma inovação no transporte coletivo. A população ainda acostumada ao transporte público sendo feito por bondes a vapor, e até mesmo pelos que eram puxados por burros e cavalos, ganha a primeira linha eletrificada de bonde. Estabelecida a sua linha central no bairro do Flamengo – veio a ser a primeira do Brasil e da América do Sul. Essa novidade aproximava ainda mais o carioca do esporte que fascinava a todos, o remo. Na tarde de 17 de Novembro de 1895, surge então o Grupo de Regatas do Flamengo - só em 1902 haveria a troca da designação de grupo para clube. Pelo fato de o clima da República ser o que se respirava, de ser a novidade, a nova condição do país – e por ser o dia 15, data comemorativa da proclamação da república, feriado, propício para comemorações – seus fundadores decidiram antecipar em dois dias a fundação do grupo, passando a ser oficialmente o dia 15 de Novembro. Constam 18 nomes como sendo os fundadores: Nestor de Barros, Mário Espíndola, José Agostinho Pereira da Cunha, Napoleão Coelho de Oliveira, Francisco Lucci Collás, José Maria Leitão da Cunha, Carlos Sardinha, Eduardo Sardinha, Desidério Guimarães, George Leuzinger, Felisberto Laport, Maurício Rodrigues Pereira, Emídio José Barbosa, José Félix da Cunha Menezes, Augusto Lopes da Silveira, João de Almeida Lustosa, José Augusto Chaleo e Domingos Marques de Azevedo (o primeiro presidente). Escolheram as cores do uniforme. Azul e ouro – representando, respectivamente, o azul celeste em fusão com a cor da Baía de Guanabara, e nossas riquezas minerais. Um ano depois mudariam para as cores definitivas, o vermelho e o preto. Era um domingo, e no número 22 da praia do Flamengo – um casarão - foi registrada a ata inicial de fundação. Este casarão, que possuía no mesmo terreno uma extensão com vários cômodos, era a moradia de um dos fundadores, Nestor de Barros. Aqueles jovens estudantes que tinham um senso proeminente de inquietação, audácia, de perseverança e de contorno revolucionário, passariam a se dedicar ao remo e por ele, dariam suas vidas. Em 06 de outubro - antes da fundação, portanto - ocorre um fato que contribuiu para a incorporação desse aspecto, dessa característica ligada até hoje à identidade do clube, a superação. Seria este acontecimento, o primeiro, de inúmeros, que despertaria nas pessoas a admiração pelo Flamengo. Os rapazes, Nestor de Barros, José Félix, José Agostinho, Mário Espíndola, Felisberto Laport, Maurício Rodrigues Pereira e Joaquim Bahia, escolhidos para pegar a baleeira, Pherusa - que havia sido restaurada na praia de Maria Angu, hoje praia de Ramos - durante a travessia de retorno até a praia do Flamengo, viram a morte bem de perto.
  • 36. 35 Estando o tempo climático desfavorável, com ventos fortes que prenunciavam uma tempestade, os rapazes desprezaram as nuvens escuras que se formavam no céu e ao mar se lançaram. O barco acabou virando e eles como náufragos resistiram bravamente ao infortúnio. (CASTRO, 2001) relata com detalhes. A pherusa podia ser uma beleza, mas era de segunda ou terceira mão, já passara por mar brabo e precisava de reparos. Eles a levaram de bonde a um armador da praia de Maria Angu, na zona norte, que a reformou por dentro e por fora. Dias depois, na tarde de um domingo [...], sete dos rapazes foram buscá-la [...], jogaram-se ao mar, na ponta do caju, içaram a vela e embarcaram, eufóricos, para a travessia que deveria terminar na praia do Flamengo, em frente ao 22. Mas aquela travessia nunca se completou. Pelo menos, não a bordo da pherusa. De repente, quando eles já estavam, longe da costa, na altura da ilha do bom Jesus, o tempo virou: nuvens carregadas cobriram o azul [...], raios e trovões sacudiram o céu, e a chuva caiu com violência. O vento noroeste arrancou a vela, as ondas fustigaram o barco e começaram a abrir buracos no casco [...], viraram a baleeira de quilha para cima e se agarraram a ela. Um deles, Joaquim Bahia, o melhor nadador do grupo, decidiu nadar até a praia em busca de socorro [...], pelas três horas seguintes, os outros rapazes, agarrados a pherusa, gritaram “socorro” [...], noite fechada, quando a morte parecia inevitável e eles já faziam suas orações, uma lancha ouviu seus gritos e veio salvá-los. Içados para o barco e batendo os dentes de frio, eles se lembraram de Joaquim Bahia. (CASTRO, 2001, p.30-31). Joaquim Bahia chegando à terra firme – já era noite - não encontrou nenhuma embarcação que pudesse prestar socorro aos amigos. Já com a sensação de que todos haviam sucumbido à força da água do mar, sentiu-se imensamente infeliz e não teve coragem de revelar o ocorrido aos familiares dos companheiros. Da outra parte, os resgatados, pensando que o amigo não havia aguentado nadar por tanto tempo – e por isso o socorro não havia chegado – supondo a morte do companheiro Bahia, estavam com remorsos e sem jeito de contar para a família de Joaquim Bahia a desgraça que tinha sucedido. Já socorridos, em prantos, todos atônitos, ficaram sem saber o que fazer. Algumas horas depois, Joaquim Bahia bate na porta da casa de José Agostinho. Recebido pela mãe de Agostinho, ouviu que o filho e os outros rapazes – mesmo eles achando que Bahia não teria sobrevivido - estavam a procura dele pela cidade. No reencontro de Joaquim Bahia com os outros seis remadores, lágrimas e gritos emocionados tomaram conta do Largo do Machado. No dia seguinte, notícia curta sobre o ocorrido é publicada em um jornal de grande circulação do Rio de Janeiro. O boca a boca do que havia acontecido é que tomou conta das rodas de conversa dos moradores do bairro e, pelos dias seguintes, o fato pela cidade se espalhou. Assim, o bairro e a cidade ficaram sabendo do naufrágio e da façanha daqueles rapazes. Uma aura de heroísmo tomou conta do grupo do Flamengo – que na verdade, curiosamente, por não haver sido fundado ainda, nem existia formalmente.
  • 37. 36 Após passarem por aquele martírio e quase perderem a vida, o fato de terem continuado firmes e, mais comovedor ainda, fortalecidos no propósito de fundar o grupo de regatas, desencadeou entre as pessoas notória admiração. Os rapazes passaram por cima da vontade dos pais que era a de que largassem aquela “aventura”. O 22 da praia do Flamengo, após o clube ser realmente criado, não parou de receber visitas de fascinados simpatizantes. Essa obstinação dos rapazes em continuar acreditando no seu ideal não cessou nem quando a Pherusa – que havia sido rebocada depois do naufrágio e iria para conserto - foi roubada. Adquiriram outro barco, a Scyra, e ao mar se puseram a buscar os dias de glória, frisa (CASTRO, 2001). Os primeiros anos do Grupo de Regatas do Flamengo foram difíceis. Derrotas, vexames, resultados pífios, um desempenho nada satisfatório. A primeira vitória só viria em 1898, portanto, três anos após a sua fundação. Mesmo com contratempos e atribulações, a crença no projeto e a esperança de dias melhores movia aquele grupo. Determinados e com uma mente positivista, viam, em cada mínimo avanço obtido e nas escassas vitórias que surgiriam na fase inicial, motivos para comemorar. Importante comentar os benefícios do remo na vida social da cidade. Além de atividade física quase que completa e de ser motivo para reunir pessoas, aprimorando assim o convívio social, é necessário ressalvar que o esporte colaborou para derrubar o estigma que ainda pairava na mente das pessoas sobre o banho de mar. Até a metade do século XIX, o banho de mar acontecia somente em casos de indicação médica para combater certas doenças. Não era uma prática de diversão e lazer. Vista como lugar impuro, a praia não gozava da simpatia das pessoas. As regatas realizadas na Baía de Guanabara e em toda sua extensão trouxeram em maior escala o povo para junto do mar. Em Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre anota que: As praias, nas proximidades dos muros, dos sobrados do Rio de Janeiro, de Salvador, do Recife, até os primeiros anos de século XIX eram lugares por onde não se podia passear, muito menos tomar banho salgado. Lugares onde se faziam despejos; onde descarregavam os gordos barris transbordantes de excrementos, o lixo e a porcaria das casas e das ruas; onde se atiravam bichos e negros mortos. O banho salgado é costume recente da fidalguia ou da burguesia brasileira que, nos tempos coloniais e nos primeiros tempos da independência, deu preferência ao banho de rio. Praia queria dizer imundície. (1996, p. 195). Emenda (KIDDER e FLETCHER apud LUCENA, 2001, p.25) explicitando como ocorria o banho de mar e trazendo indicativos de que os esportes, e por associação o remo, tiveram realmente papel de destaque na mudança de uma cultura que desprezava o banho de
  • 38. 37 mar como divertimento. “Os banhos de mar, para além de seu caráter profilático, como um passatempo, não teriam sido também uma ação conquistada por aqueles que estavam voltados para a prática dos esportes? Em princípio, parece que sim”. A praia do Flamengo dava mais ainda ao bairro a conotação de distinção e de fama lisonjeira. Até, pelo menos, 1920, era a praia que mais atraia pessoas para o banho de mar. Como bairro bem situado passou a ser muito procurado para a habitação por ilustres membros da sociedade. Por outro lado, contava também com parcela considerável de artistas – na época, vistos por certo prisma de “marginalidade”, rotulados de vagabundos e boêmios da cidade. Era assim um lugar nitidamente heterogêneo. Por essa reunião de segmentos sociais, o bairro estava um passo a frente de seu tempo. Esse conceito, presumivelmente, foi incorporado ao clube de remo do bairro. Atestando certo ar de rebeldia, lá na praia do Flamengo, moças ousadas para a época começaram a romper com o pensamento pré-concebido de que o banho de mar seria propício e oportuno somente em casos de finalidade terapêutica e medicinal. Entendiam não ser o mar tão sujo assim, como era propagado. Banhavam-se em um ritual alegre, expondo - mesmo com roupas bem comportadas para os padrões de hoje, que se ajustavam ao corpo - curvas corpóreas que despertavam à atenção dos homens. Quem, pela manhã cedo, das seis as oito horas, passar pela Avenida Beira-Mar, ou por algumas das ruas transversaes (sic) que conduzem à praia do Flamengo, poderá ver nesses trajos summarios (sic) muita senhora e senhorinha que a outra hora do dia ficariam ruborísadas se o vento indiscreto agitasse demais a saia do seu vestido. Esse espetáculo matinal do Flamengo é, com certeza, o mais pittoresco que o Rio offerece aos estrangeiros, e parece que há muitos amadores desse espetáculo, a avaliar pela afluencia dos que se debruçam na muralha do cães para assistir à sahida do mar das nereides e sereias e contemplar aquelle outro ‘footing’, bem mais attrahente que o da tarde e não menos frequentado. (EDMUNDO apud LUCENA, 2001, p. 117). O Rio de Janeiro, na gestão de Pereira Passos (1902-1906), designado prefeito da capital federal pelo presidente da República, Rodrigues Alves, passa por um arrojado projeto de readequação urbanística ostensiva. Avenidas foram criadas, outras, alargadas; morros desterrados, extintos; muitas casas e prédios derrubados – ação conhecida como o “bota abaixo” -, e uma série de obras estruturais realizadas, tendo como meta a modernização da cidade. Não foi só o aspecto urbanístico que mereceu um plano gestor. A saúde pública também. Um trabalho efetivo nessa área foi implementado visando a erradicação de doenças que matavam em progressão excessiva, epidemias, como a varíola, peste bubônica, febre amarela e a cólera. Sob o comando do sanitarista Osvaldo Cruz, o governo instaura uma
  • 39. 38 campanha de vacinação em massa. A intenção era das melhores, mas a forma de aplicabilidade utilizada não agradou e causou desconforto na população. Havia invasão de casas, pessoas na rua eram vacinadas à força. Os agentes de saúde tinham ordens de vacinar todo mundo. O rigor era maior junto aos que moravam em cortiços e nos morros. Contra a ação forçosa do governo, manifestações pesadas espocaram. Este acontecimento, de 1904, ficou célebre como “A revolta das vacinas”. É durante esse período da administração de Pereira Passos que é erguida a Avenida Central, em 1904. Em 1905, ela é aberta ao tráfego. Tiveram participação decisiva em sua criação, o ministro Lauro Muller e o engenheiro chefe, Paulo de Frontin. A via tornou-se um marco na cidade e permitiu o acesso da Praça Mauá até a Avenida Beira-Mar – que era a ligação entre o Centro, contornando o morro da Viúva, no Flamengo, até chegar ao bairro de Botafogo. Em 1912, a Avenida Central é batizada com seu nome definitivo, Avenida Rio Branco. No endereço da praia do Flamengo, precisamente no casarão do 22, uma turma que não praticava nenhum esporte, ou, melhor dizendo, o “esporte” que praticavam, era sim, o das disputas de molecagens, brincadeiras, algazarras. Eram craques em ser gaiatos. Esses rapazes começaram a chamar a atenção e tornaram-se conhecidos. Antes de serem classificados de qualquer coisa, eram, acima de tudo, amantes do Flamengo e da vocação do clube de abraçar e acolher a todos. Essa turma criou ali uma “ordem” de engajamento ao clube, chamada “República Paz e Amor”. No início, era só o Flamengo realizar uma boa regata que a festa estava formada. Quando o Flamengo passou a vencer regatas, aí era uma festa fora do comum que acontecia ali. E as comemorações iam tomando conta das calçadas, formando bloco de pessoas que arrastavam a sua alegria pelas ruas. Era o carnaval do Flamengo. Com reco-reco e tudo. Um detalhe pitoresco. Ao lado do casarão do 22 existia um convento. E para desatino e “tentação” das freiras, esses rapazes do Flamengo tinham o hábito de despirem-se. Chegavam da praia ou de outro lugar que fosse e, sem cerimônia, se libertavam das roupas e pareciam nem estar aí para o mundo. “os rapazes jogavam pelota basca na garagem, fazendo grande algazarra [...] começaram a subir nas árvores para colher frutas, igualmente pelados”. (CASTRO, 2001, p. 36). As freiras tinham que fazer força para não ver aqueles corpos nus. Os vizinhos e transeuntes já conhecendo a fama do local, evitavam o olhar para dentro do casarão. Já precavidos, sabiam que podiam ter alguma surpresa. As madres do convento não tinham simpatia por aqueles rapazes. Faziam de tudo para evitar que as freiras tivessem acesso àquela imagem despudorada. Era um Deus nos acuda. E não adiantava nem acionar a
  • 40. 39 polícia que afirmava não encontrar, em suas incursões pelo 22, ninguém sem roupa. Dentre os que frequentavam o casarão, tinha sempre alguém com ótimo relacionamento junto às autoridades policiais. Só que o destino se encarregou de melhorar o julgamento que se fazia daqueles rapazes. As pessoas puderam perceber que eles possuíam um lado bom, que eram solidários. Não era só perversão que imperava ali. A gratidão, a admiração das freiras passou a existir a partir de um gesto nobre, efetuado na ajuda providencial que os rapazes prestaram às devotadas cristãs. Naquele tempo, o mar chegava bem perto do convento. A praia margeava as casas, existindo apenas como delimitação um muro de contenção e a rua. Em 1913, aconteceu uma grande ressaca e o convento foi invadido pela força das águas. As freiras apavoradas não sabiam o que fazer, a não ser pedir socorro. Os rapazes do 22 não mediram esforços para ajudar as irmãs do convento. Mas antes que os profanos bagunçassem definitivamente o sagrado coreto das freias, o Flamengo pôde redimir-se dos pecados de seus atletas: numa das grandes ressacas que assolaram a praia no começo do século, o convento ficou isolado pelas águas – não esquecer que, naquela época, o mar chegava bem juntinho ao casario. As freiras correram perigo de vida, e ninguém de fora se mexia para resgatá-las. Pois elas foram salvas pelos remadores do Flamengo (vestidos de camiseta e calção), que as pegaram nos braços e as levaram de barco para lugar seguro. O povo, que já identificava o Flamengo com a alegria de seus rapazes, via-os agora também como heróis. (CASTRO, 2001, p.36). A turma da República Paz e Amor se metia em todas e não aliviava. A Light era a empresa canadense de eletricidade que controlava os bondes do Rio de Janeiro. A população tinha uma antipatia declarada à empresa. Os rapazes do Flamengo já conhecidos pelo senso provocativo, descomedido e sem barreiras para o divertimento, ficavam durante o dia apreciando as mulheres que embarcavam nos bondes, no ponto bem em frente ao 22. Galanteavam a elas, sem cerimônia. Faziam brincadeiras com as pessoas e quando encontravam um português, se deliciavam em proferir uma série de frases engraçadas e tecer piadas sobre os lusitanos. É preciso dizer que eram mestres em fazer sarcasmo sem atraírem ódio. Sabiam como não ser agressivos e esbanjavam a comicidade. Por isso, gozavam mais da simpatia do que da repugnância. Em razão desse atrevimento dos rapazes do Flamengo, que levavam a vida mergulhados no divertimento, a empresa já ciente do que acontecia nas proximidades do famoso endereço, decide retirar o ponto do 22. Existia uma faixa branca no poste para indicar que ali era ponto de parada dos bondes para embarque e desembarque. Pois bem, a companhia canadense ordenou que aquele ponto fosse desativado e mandou pintar o poste na cor
  • 41. 40 tradicional, descaracterizando o mesmo como ponto de parada. Era só os funcionários da Light irem embora, e a turma do Flamengo voltava a pintar de branco o poste. Diante dessa queda de braço, a população já não sabia mais se ali era ou não ponto do bonde. Quando estava pintado de branco, ficavam de prontidão a esperar pelo transporte que havia de parar. No dia seguinte, já não mais com o branco, os bondes passavam direto sem parar. Após idas e vindas, o impasse continuava. A cidade toda já havia tomado conhecimento da arrojada posição daquela turma. A Light orientou os motorneiros a, com faixa branca ou não, passarem direto. Uma animosidade se estabeleceu. Os rapazes do Flamengo, então, fizeram uma barricada com cavaletes para forçar a parada dos bondes. Um motorneiro não conseguiu frear e atingiu a barricada. Grande alvoroço fez-se no local. A população podia ter repreendido a atitude daquela turma da República Paz e Amor. Mas, não foi o que aconteceu. Ficaram do lado dos rapazes do Flamengo e exigiram que a Light – chamada de “polvo canadense” - parasse com a picuinha. O ponto de parada dos bondes foi restabelecido, e o Flamengo conquistava mais uma “vitória”, é o que nos conta (CASTRO, 2001). O casarão do número 22, com suas instalações em anexo e sempre abarrotado de gente, acolheu, desde os primórdios do clube, o seu torcedor. Qualquer um que fosse rubro- negro, sem distinção nenhuma de classe social, racial, de credo, ou de outra qualquer ideologia, recebia guarida ali. O clube cresceu, fez-se grande e permanentemente se preocupou em ter aquele espaço não só como garagem para os barcos, como também a servir de aposento para o seu torcedor. O sentido de acolhimento, de albergar aos que eram apaixonados pelo clube do Flamengo, era algo bem forte. Mais tarde, o número 22 passaria a ser o 66. Conseguindo ampliar suas instalações, pôde acolher mais pessoas. No curso de seus anos de existência, aquele endereço, Praia do Flamengo, 22/66, foi como um coração de mãe. Alguma coisa tipo um grande centro de assistência social rubro-negra. Do seu jeito alegre, barulhento e festeiro, é claro. Juntando atletas, torcedores, simpatizantes, penetras, gente que queria apenas ajudar, ou por ele ser ajudado, o Flamengo escreveu esse capítulo digno de elogio. Até cães, foram ali abrigados. Dos inúmeros “hóspedes” que por lá passaram, todos, criaram, cultivaram dentro de si, um caso de amor que mesmo com o passar do tempo não se apagou. É o Flamengo, talvez, caso único de clube que permitiu a moradia de seus torcedores em sua sede. Essa história incomum precisa fazer-se perene, não pode ser ignorada. Essa simbologia do local, a receptividade, sua fama de ser um espaço de algazarra e alegria permanentes, a configuração de estar sempre de portas abertas, a reunião extensiva de