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Universidade Federal do Pará
Instituto de Letras e Comunicação
Faculdade de Comunicação
Comunicação Social – Jornalismo
Amanda Torres Pinho
DIFERENTEMENTE IGUAIS E IGUALMENTE DIFERENTES:
A EXPERIÊNCIA COMUNICATIVA DE ESTUDANTES DO CIÊNCIA SEM
FRONTEIRAS NA AUSTRÁLIA
BELÉM – PA
2014
Amanda Torres Pinho
DIFERENTEMENTE IGUAIS E IGUALMENTE DIFERENTES:
A EXPERIÊNCIA COMUNICATIVA DE ESTUDANTES DO CIÊNCIA SEM
FRONTEIRAS NA AUSTRÁLIA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
junto ao curso de Comunicação Social -
Jornalismo, da Universidade Federal do Pará,
como requisito parcial para a obtenção do título de
Bacharel.
Orientadora: Profa. Alda Cristina Silva da Costa.
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________
Profa. Ivone Maria Xavier de Amorim Almeida
________________________________________
Prof. Fábio Fonseca de Castro
________________________________________
Profa. Alda Cristina Silva da Costa
BELÉM – PA
2014
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, meu irmão e minha avó, pelo amor incondicional;
À Clarice, por desafiar as leis de tempo e de espaço;
À Maria Luiza, Isadora e Davi, pelos abraços mais verdadeiros e por sempre me darem
motivos para seguir em frente;
À Verena, por ser até hoje um exemplo e uma fonte de inspiração;
Às de sempre: Paula, Brenda, Victória e Ana Paula, por se fazerem presentes mesmo quando
eu estive distante;
À Paloma, Anne, Mayara e Carol, por sempre embelezarem a beira do rio, os corredores da
FACOM e os últimos quatro anos;
Aos amigos do Bagageiro e demais colegas da turma de 2011, por terem me recebido tão bem
quando eu mais precisava;
À UFPA, por representar tanto o ponto de partida quanto o de chegada de toda a minha
experiência acadêmica até aqui; à Professora Maria Ataíde Malcher, por um primeiro
semestre inesquecível; à Reg e ao Pedro, por terem sido grandes colegas, além de
professores;
Ao CNPq, pela oportunidade de realizar um ano da graduação no exterior - e por todas as
lições sobre não desistir nunca;
À UWA, pela acolhida; à Jessica, à Carolyn e demais membros do Study Abroad Office, por
todo o suporte; à Siri e demais colaboradores do Student Services, pela paciência
incontestável; e aos professores Celeste, Tauel, Ian e Robin, pelos ensinamentos tão
edificantes;
À Ana, Camilla, Pedro e Lídio, por tudo o que foi vivido na Miller St. e aos demais 28
amigos sem fronteiras, sem os quais essa pesquisa seria duplamente impossível;
À Professora Alda Costa, por ter sido em parte orientadora e em parte psicóloga; à Silvia
Vasconcelos, por ter sido em parte psicóloga e em parte orientadora; e à Vânia Torres, que,
além de orientadora e psicóloga, é também tia;
À Lú, por toda a compreensão e flexibilidade; ao Flávio, por todas as trocas acadêmicas,
profissionais e pessoais; Ao Brunno, por muito mais do que o título desse trabalho; e a todos
os demais Ovelhas, pelos momentos de trabalho e diversão.
À Deus e Meishu-Sama, pelo merecimento de ter trilhado o caminho que me trouxe até aqui.
“Cruzar fronteiras” siginifica não respeitar os sinais que demarcam –
“artificialmente” – os limites entre os territórios das diferentes
identidades” (SILVA, 2000, p. 88).
RESUMO
Diferentemente iguais e igualmente diferentes é uma pesquisa que busca entender como se
constitui a experiência comunicativa de 18 estudantes brasileiros, bolsistas do programa
Ciência sem Fronteiras (CsF), na Austrália. Culturalmente falando, observa-se a existência de
diversos „brasis‟, ainda que dentro dos próprios limites geográficos do país. Assim, a
diversidade cultural interna do Brasil torna-se relevante à pesquisa em comunicação a partir
do momento em que é estabelecido um diálogo entre representantes dessas regiões. Tal
interação vem sendo proporcionada pelo CsF, ainda que no exterior. O programa, do Governo
Federal, foi implementado em 2011 e fomenta a mobilidade acadêmica internacional visando
o incentivo à e a qualificação da ciência brasileira. Essa pesquisa foi realizada através da
aplicação de questionários, da realização de entrevistas e também por meio da perspectiva
autoetnográfica. Uma vez no exterior, esses brasileiros se depararam com o duplo outro: o
estrangeiro/australiano; e o brasileiro, com o qual existem similaridades compartilhadas, mas
que, por também se apresentar como o outro, causa tensões identitárias. O principal elo de
união do grupo foi a língua, característica contraditoriamente também apontada como a mais
diversificada regionalmente. Constata-se, ainda, uma ideia de identidade nacional, vista como
mais forte do que as diferenças regionais, o que, principalmente através da criação de laços e
de grupos de afinidade, possibilitou o convívio e a comunicação do grupo.
Palavras-chave: Comunicação intercultural; Comunicação interpessoal; Diáspora;
Identidade.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadros
QUADRO 1 – PARTICIPANTES 15
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
1 A COMUNICAÇÃO COMO OBJETO 18
1.1 PERSPECTIVAS COMUNICACIONAIS 19
1.2 O OUTRO NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO 23
1.3 EU-OUTRO: ENTRE A INCOMUNICAÇÃO E A COABITAÇÃO 25
1.4 A CONVERSA ENTRE AS CULTURAS 31
2 HÍBRIDOS CULTURAIS 37
2.1 A COMUNICAÇÃO ENQUANTO MEDIADORA CULTURAL 37
2.2 PARA ALÉM DO DIÁLOGO MULTICULTURAL 39
2.3 ENTRE TRADIÇÃO E TRADUÇÃO 43
2.4 AS ILHAS-BRASIL 47
2.5 IGUAIS, DIFERENTES E BRASILEIROS 51
3 A DIÁSPORA TEMPORÁRIA 57
3.1 O PROGRAMA CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS 57
3.2 EU-OUTRO EM DIÁSPORA 59
3.3 O INTERCÂMBIO: A VIDA EM TRANSIÇÃO 62
4 A EXPERIÊNCIA COMUNICATIVA 67
4.1 O PROCESSO METODOLÓGICO 67
4.2 INTERPRETAÇÃO DOS DADOS 70
4.2.1 PERCEPÇÕES CULTURAIS 71
4.2.2 A QUESTÃO DO ESTEREÓTIPO 73
4.2.3 A (RE)CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA 75
4.2.4 A QUESTÃO GEOGRÁFICA 81
4.2.5 A LÍNGUA E A IDENTIDADE BRASILEIRA 83
4.2.6 A AFINIDADE 88
4.2.7 AS EXPERIÊNCIAS MAIS MARCANTES 90
4.2.8 O ENCONTRO COM O OUTRO DAQUI PARA FRENTE 93
CONSIDERAÇÕES FINAIS 96
REFERÊNCIAS 99
APÊNDICES 101
INTRODUÇÃO
Do choque entre portugueses e índios, da chegada dos escravos africanos e de outros
imigrantes europeus, a miscigenação do povo brasileiro. Povo esse que, ao somar e se
apropriar das práticas culturais de cada uma dessas origens, se diferencia de suas matrizes,
tornando-se único. Ainda assim, nem de longe a nacionalidade garante a homogeneidade.
Somos vários “brasis” dentro de um mesmo limite geográfico, formando, então, o que Darcy
Ribeiro (1995, p. 270) chamou de um país composto por ilhas, as ilhas-Brasil, “cada uma
delas singularizada pelos ajustamentos às condições locais, tanto ecológicas quanto de tipos
de produção, mas permanecendo sempre como um renovo genésico da mesma matriz”.
Não obstante, existe ainda um desconhecimento mútuo entre as regiões, ou um
conhecimento superficial, incapaz de abarcar um entendimento geral sobre a cultura desse
outro tão próximo, mas ao mesmo tempo tão distante. Assim, o entendimento de como a
diferença cultural interna do Brasil se mostra presente na conversação entre culturas
brasileiras propicia o conhecimento e a compreensão não só de fenômenos culturais, mas
também comunicacionais do país.
Foi o interesse por culturas distintas, mais especificamente, por culturas falantes da língua
inglesa, o que me levou a procurar por programas de intercâmbio. O interesse na mobilidade
acadêmica me acompanhava desde 2011, em especial pela vontade de aperfeiçoar a segunda
língua. No início do segundo período letivo de 2012 me inscrevi pela primeira vez no
programa Ciência sem Fronteiras (CsF). Inicialmente, busquei uma vaga em universidades
norte-americanas, mas tive a candidatura indeferida pelo fato de a área da Comunicação não
estar entre as prioritárias do programa. Me candidatei ao edital australiano e fui, então,
selecionada em junho de 2012.
A seleção para o programa ocorre de maneira diferenciada em cada edital, variando
principalmente de acordo com o país de destino. No edital ao qual fui selecionada, a inscrição
se deu em três etapas: a primeira, local, foi realizada pela Universidade Federal do Pará
(UFPA), e levou em consideração o Coeficiente de Rendimento Geral (CRG) dos estudantes
inscritos. A segunda etapa, nacional, foi realizada pelo Conselho Nacional de Pesquisa
(CNPq) e/ou pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e
avaliou o Currículo Lattes e a proficiência na língua estrangeira. A etapa final coube à Latino
Australia Education (LAE), agência de intercâmbio incubida pelo CsF de estabelecer o
contato com as universidades australianas e de realizar o placement dos estudantes. Nessa
etapa, aplicávamos diretamente às universidades parceiras1
(através da LAE), informando
duas opções de universidades e dois possíveis planos de curso. Assim, fui selecionada para a
University of Western Australia (UWA), minha segunda opção de destino.
Algumas das experiências proporcionadas pelo intercâmbio serão aqui descritas, mas vale
ressaltar, por ora, a de ter escrito um projeto à disciplina Case studies in communication
intitulado Communicating overseas: a case study about brazilians using English as a second
language, no qual apresentei um estudo de caso sobre seis brasileiros utilizando o inglês
como segunda língua em situações domiciliares e em interação com um nativo. Tanto o
aprofundamento nas pesquisas sobre comunicação interpessoal e comunicação intercultural
quanto o levantamento de dados para e elaboração desse trabalho, fomentaram o interesse
pela realização da presente pesquisa. O projeto foi traduzido ao português e publicado como
um artigo na Revista Iniciacom2
em novembro de 2013, sob o título “Comunicação
Intercultural: um estudo de caso sobre brasileiros utilizando o inglês como segunda língua”.
1
Nesse edital, somente as universidade integrantes do Group of 8 (Go8), aliança de oito universidades
tradicionais australianas, podiam ser selecionadas para a realização do intercâmbio. Sobre o Go8:
<https://go8.edu.au/>. Acesso em 11 Junho 2014.
2
Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/iniciacom/article/view/1759/1629>.
Acesso em 8 Junho 2014.
Implantado em 2011, o CsF é um programa de intercâmbio do Governo Federal com
financiamento do CNPq e da CAPES que, segundo o site oficial3
“busca promover a
consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da
competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional”.
O CsF apresenta-se, atualmente, como terreno propício à análise da interação entre
culturas brasileiras, ainda que no exterior, uma vez que o programa tem possibilitado o
convívio entre brasileiros de diversas regiões do país em diversas partes do mundo. Através
do contato com outros bolsistas do CsF, pude constatar que, uma vez no exterior, os
estudantes brasileiros tendem a se encontrar, a criar laços e, por vezes, até a morar juntos. É
de meu conhecimento que essa socialização entre brasileiros de diversas localidades ocorreu
durante o período da bolsa do CsF em Pisa, na Itália; em Londres, no Reino Unido; e em
Adelaide, Melbourne, Sydney e Perth, na Austrália.
A análise da experiência comunicativa entre representantes da diferença cultural brasileira
durante o intercâmbio pode ser justificada em três instâncias distintas. Primeiramente, o CsF
é um programa recente, que visa justamente o avanço da ciência e da tecnologia brasileira,
mas que ainda carece de pesquia acerca de seus resultados e beneficios reais, uma vez que
tais estudos ainda são, atualmente, quase nulos4
. Além disso, Jane Jackson (2008, p. 03),
3
www.cienciasemfronteiras.gov.br.
4
Somente três trabalhos acadêmicos abordando o Ciência sem Fronteiras e/ou as experiências proporcionadas
pelo programa foram encontrados previamente à realização dessa pesquisa. A saber: Relato de Experiência de
Renata de Moura Bubadué, graduada em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Disponível em: <http://cascavel.cpd.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/reufsm/article/view/7922>. Acesso em
10 Junho 2014; Relato de Experiência na área da Engenharia, desenvolvido pela graduanda Jéssica Magally de
Jesus Santos, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Disponível em:
<http://www.fadep.br/engenharia-eletrica/congresso/pdf/117852_1.pdf>. Acesso em 10 Junho 2014; e Trabalho
de Conclusão de Curso defendido por Juliana Raquel Silva Souza, da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB),
também graduada em Enfermagem. Disponível em:
<http://dspace.bc.uepb.edu.br:8080/jspui/bitstream/123456789/2233/1/PDF%20-
%20Juliana%20Raquel%20Silva%20Souza.pdf>. Acesso em 10 Junho 2014.
professora do Departamento de Inglês da Chinese University of Hong Kong, menciona a
necessidade de pesquisas empíricas sobre intercâmbios, visto que a literatura existente pode
ser considera “anedotal e não baseada em pesquisa”. Por fim, “as descrições da diversidade
cultural interna do Brasil tendem a ser de natureza intuitiva e anedotal” (HOFSTEDE et al.
2010, p. 339, tradução minha), o que justifica uma análise cuidadosa do tema, a partir da
observação da conversação entre representantes dessa diversidade, e da descrição dessas
situações por parte dos próprios atores envolvidos.
Considerando que “as identidades e as diferenças de indivíduos e coletividades não se
encontram „dadas‟ de maneira completamente definida, algo perfeito e acabado, mas são
articuladas no processo de convivência e comunicação entre os atores sociais em contextos
específicos (FRANÇA 2002, pg. 12)”, essa pesquisa busca entender a experiência
comunicativa partilhada por alguns estudantes universitários brasileiros durante o
intercâmbio, observando possíveis tensionamentos culturais e negociações indentitárias.
Enquanto bolsista do CsF na modalidade Graduação Sanduíche no Exterior na University
of Western Australia (UWA), em Perth, na Austrália, entre Julho de 2012 e Julho de 2013,
apresento, aqui, o local de fala da pesquisa, uma vez que as discussões trazidas nessa
monografia são oriundas de experiência e observação próprias. A essas, através de
questionários e entrevistas, somo as contribuições dos meus pares, que vivenciaram
experiências semelhantes, no mesmo local e durante o mesmo período, também integrantes
do primeiro grupo de graduandos brasileiros do CsF a compor o quadro de alunos da UWA.
Delimito, assim, o universo dessa pesquisa.
O grupo em questão é composto por 32 alunos universitários, estudantes de diversas áreas
do conhecimento, com representantes oriundos de todas as regiões do país. A maioria vem da
região Sudeste (18 estudantes), sendo Minas Gerais o estado com o maior número de bolsitas
(10 estudantes), equanto que as regiões Norte e Centro-Oeste contam com apenas um
representante cada, dos estados do Pará e de Goiás, respectivamente. Muitos desses bolsistas
optaram por morar juntos durante toda ou parte da estadia no exterior, o que possibilitou a
identificação e a consciência acerca das diferenças culturais do Brasil por parte dos próprios
alunos.
O objeto dessa monografia é apresentado através de um estudo de caso, metodologia
indicada quando “se pretende examinar eventos contemporâneos, em situações onde não se
podem manipular comportamentos relevantes” (DUARTE, 2005, p. 219).
Ao retratar a realidade de forma completa e profunda, o pesquisador destaca a
multiplicidade de dimensões presentes em uma determinada situação, enfatizando a
sua complexidade natural e revelando as possíveis inter-relações de seus
componentes. Nos estudos de caso, os detalhes de um objeto o tornam único, pois
suas imperfeições, na verdade, traduzem sua história (Ibidem, p. 233).
Saliento que a abordagem escolhida para a realização desse estudo de caso é considerada
autoetnográfica, ou seja, “examina as experiências do próprio eu para assim questionar e
expandir suas experiências para análises comunicativas” (WARREN 2009, p. 68, tradução
minha). A autoetnografia considera que “o eu também é produto da cultura; assim, o eu e a
cultura são co-construídos, cada um criando e sustentando o outro” (Ibidem, p. 69, tradução
minha).
Enquanto método de pesquisa em comunicação, a autoetnografia é um processo de
teorização a partir das experiências pessoais de alguém. Seja ela um complemento à
etnografia tradicional ou um projeto unicamente contruído de narrativas em
primeira pessoa, a autoetnografia funciona, a partir de uma experiência pessoal,
para movimentar uma história da cultura que examine como as experiências
comunicacionais de um indivíduo são representativas (ou construtivas) da cultura.
(Ibidem, p. 69, tradução minha).
Além da abordagem autoetnográfica, essa pesquisa contou com a aplicação de
questionários subjetivos online e com a realização de entrevistas online para a coleta de
dados. Dos 32 estudantes do CsF desse primeiro grupo a ingressar na UWA, 18 compõem o
corpus de análise desse estudo, sendo que 16 participantes responderam ao questionário e
outras 2 participantes concederam entrevista com gravação e transcrição de áudio. No
Quadro 1 abaixo, apresento brevemente os 18 participantes que compõem essa pesquisa.
Visando a privacidade dos estudantes, todos os nomes aqui utilizados são pseudônimos.
Quadro 1 – Participantes
Participante Idade Localidade de origem Área de estudo BR? #BR
Hugo 23 São Paulo, São Paulo Arquitetura S 1
Márcio 22 Fortaleza, Ceará Biologia S 2
Francisco 26 Canoas, Rio Grande do Sul Arquitetura N 0
Iago 23 Jataizinho, Paraná Engenharia S 5
Gustavo 24 Belo Horizonte, Minas Gerais Engenharia S 1
Ricardo 24 Belo Horizonte, Minas Gerais Engenharia S 4
Julie 27 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro Engenharia N 0
Breno 20 Belo Horizonte, Minas Gerais Biologia S 5
Carolina 23 Ribeirão Preto, São Paulo Engenharia S 5
Luís 29 Recife, Pernambuco Educação Física S 5
Rafaela 24 Curitiba, Paraná Arquitetura N 0
Lúcio 23 Belo Horizonte, Minas Gerais Engenharia N 0
Vinícius 22 Curitiba, Paraná Medicina S 5
Maurício 21 Montes Claros, Minas Gerais Medicina S 5
Luan 23 Niteroi, Rio de Janeiro Engenharia S 4
Giovana 21 Montes Claros, Minas Gerais Medicina S 5
Catarina 23 Goiânia, Goiás Arquitetura S 7
Aline 25 Divinópolis, Minas Gerais Biologia S 7
Fonte: Elaboração Própria, com dados retirados das entrevistas
Legenda: BR?: Morou com brasileiro?; S: Sim; N: Não; #BR: número de brasileiros com os quais o participante
morou.
Observa-se que os mineiros se encontram em maior número no corpus da pesquisa,
sete ao todo. Também são sete os estudantes graduandos em alguma Engenharia, área do
conhecimento com maior representantes na pesquisa. A idade média do grupo é de 23,5 anos,
sendo Luís o participante mais velho entre todos os 32 estudantes do grupo, com 29 anos à
época da pesquisa, e Breno o participante mais novo, com 20 anos. Vale ressaltar alguns
pontos com relação ao convívio desses alunos entre si e com outros brasileiros.
Dos 18 participantes, apenas seis (Márcio, Iago, Julie, Lúcio, Vinícius e Giovana) não
estão entre os 18 estudantes que moraram no hostel durante as duas primeiras semanas. Optei
por considerar que Francisco e Rafaela não moraram com brasileiros durante o intercâmbio,
uma vez que esse tipo de convívio só se deu no hostel e que a estadia foi curta. Hugo morou
por apenas um mês com um brasileiro, estudante do CsF, mas selecionado por outro edital,
não constando no universo da pesquisa. Iago, que tem familiares em Perth, morou com
brasileiros não estudantes do CsF durante toda a sua estadia na cidade. Gustavo morou com
uma brasileira não estudante do CsF por um mês e meio, logo após a saída do hostel. Dos
participantes que integram a pesquisa, Julie e Lúcio foram os únicos que não moraram com
nenhum brasileiro em nenhum momento do intercâmbio.
As estrevistas com as participantes Catarina e Aline online foram realizadas via Skype
nos dias 07 e 28 de Abril de 2014, respectivamente, com gravação e posterior transcrição de
áudio. Os demais participantes submeteram respostas ao questionário online entre os dias 30
de Março e 06 de Junho de 2014. Aqui, vale salientar as dificuldades encontradas para o
levantamento de dados. Primeiramente, a distância geográfica foi uma grande limitadora,
impossibilitando entrevistas presenciais e, por isso, a escolha pela coleta de dados online.
Além disso, a própria disponibilidade dos participantes se apresentou como um impecílio,
justificando inclusive a disparidade entre o número de entrevistas e o número de
questionários.
Assim, a pesquisa objetiva analisar como se deu a experiência comunicativa desses 18
estudantes universitários brasileiros (somada a minha) durante a mobilidade acadêmica
internacional fomentada pelo CsF na cidade de Perth, na Austrália. De maneira mais
específica, objetiva-se, também, discutir a articulação das tensões identitárias na situação da
diáspora, identificar as diferenças culturais brasileiras presentes no relato qualitativo das
interações entre esses estudantes, além de possibilitar estudos e pesquisas futuras acerca do
programa Ciência Sem Fronteiras.
Destaco, assim, a importância dos relatos sobre uma cultura específica a partir da
concepção de seus próprios participantes, além do entendimento desses indivíduos sobre
culturas distintas e como esses aspectos se mostram relevantes às trocas comunicacionais
estabelecidas entre esses grupos. Desse modo, a auto-percepção dos atores envolvidos e os
relatos sobre tais percepções se mostra de fundamental importância à essa pesquisa,
reiterando-se que “quem você acredita que você é culturalmente, com todas as restrições de
seu mundo social, todas as variadas maneiras pelas quais os outros o vêem, é quem você é”
(MATHEWS, 2000, p. 28, tradução minha, grifo do autor).
Foi a oportunidade de estudar e viver no exterior que propiciou a mim e a esses
estudantes o convívio com brasileiros de regiões distintas, o que só então os tornou cientes de
certas diferenças culturais. Estando literalmente do outro lado do mundo, lidando com
situações, pessoas e costumes diferentes, a presença de outros brasileiros garantia um certo
senso de conforto. Assim, destaco que, durante esse convívio no exterior, foi possível
observar não só a existência das diferenças regionais, mas também o reforço do que era
comum: a nacionalidade. Para muitos de nós, o “ser brasileiro” foi o elo inicial de
identificação, o qual, muitas vezes, até mesmo justificou o primeiro contato.
Ao apresentar uma ideia de George Lamming, Stuart Hall (2013, p. 29) afirma que foi
somente em Londres que sua geração tornou-se caribenha, uma vez que, “na situação da
diáspora, as identidades se tornam múltiplas. Junto com os elos que os ligam a uma ilha de
origem específica, há outras forças centrípetas: há a qualidade de ser „caribenho‟ que eles
compartilham com outros migrantes do Caribe”. Assim, o elo partilhado, o “ser brasileiro”,
apresenta-se enquanto elo facilitador durante trocas comunicacionais que necessitavam, entre
outras coisas, superar as possíveis diferenças regionais.
No primeiro capítulo da pesquisa, discuto as perspectivas comunicacionais e, através de
uma breve discussão epistemológica, posiciono as interações ocorridas em contexto
específicos enquanto objeto de estudo da comunicação, sempre fazendo associações com o
objeto da pesquisa. Além disso, apresento, também, os três elementos indispensáveis à
qualquer troca comunicacional: o sujeito, o outro e a cultura. O sujeito e o outro são sempre
mutualmente influenciáveis. Essa influência, por sua vez, é também dependente do terceiro
item: a cultura.
Essa, por sua vez, é mais amplamente discutida no decorrer do segundo capítulo, que
apresenta a comunicação enquanto mediadora das transformações culturais. Nesse capítulo
faço um panorama sobre a questão multicultral do Brasil, apresentando-o enquanto um país
híbrido, uma vez que favorece a interação entre as diversas culturas que o habitam. Discuto,
também, a articulação dos estudantes brasileiros com o duplo outro encontrado – o brasileiro
e o estrangeiro.
Depois de discutir perspectivas comunicacionais e culturais durante o primeiro e o
segundo capítulo, apresento, no terceiro capítulo, questões particulares ao contexto no qual se
deu a experiência comunicativa analisada. Assim, além de apresentar o programa Ciência
sem Fronteiras, posiciono esse intercâmbio enquanto uma diáspora temporária e discuto
questões indentitárias acossiadas à situação da mobilidade.
Dedico o quarto e último capítulo à apresentação e interpretação dos dados levantados.
Através da análise dos 16 questionários recebidos, das 2 entrevistas realizadas e de
observações próprias, criei oito categorias de análise com o intuito de enteder como se deu a
experiência comunicativa desses 18 estudantes (e também minha) durante o período em que
fomos bolsistas do CsF em Perth, na Austrália.
1 A COMUNICAÇÃO COMO OBJETO
“Com a comunicação, a paixão está tão envolvida quanto a razão”
(WOLTON, 2004, p. 38)
O presente capítulo visa entender a comunicação como objeto de pesquisa, pensando
sempre no estudo de caso dessa monografia, o qual analisa a comunicação intercultural e
interpessoal. Se faz necessária a discussão acerca do sujeito e do outro. No caso do objeto
desse trabalho, esse outro se apresenta enquanto um duplo outro: o estrangeiro, geralmente
australiano; e o outro brasileiro, que assim se apresenta devido às diferenças regionais do
Brasil.
Visto que é na interação entre esses brasileiros de diferentes localidades que se
constrói o objeto dessa pesquisa, é necessário entender que, na concepção de Wolton (2004),
a comunicação é constituida por uma dupla hélice: a normativa e a funcional. O autor
relaciona cada uma dessas facetas da comunicação aos sentidos da própria palavra: o de
comunhão e o de transmissão, respectivamente. É a partir dessa ambiguidade presente na
própria definição da palavra que busco, nesse capítulo, apresentar a relevância de estudos que
se dediquem a análise de experiências comunicativas, e não de processos técnicos ou
midiatizados.
Ao discutir tais processos, José Luís Braga (2011, p. 70) se utiliza da expressão
“midiatização”, por considerar que “a expressão [mídia] tende a sublinhar aspectos temáticos
do objeto, relacionando a palavra a duas referências materiais – seja a „mídia-empresa‟, seja a
„mídia-tecnologia‟”. Assim, midiatização, de acordo com o autor, pode ser entendida como:
Um conjunto complexo de ações de sociedade (incluindo aí, é claro, a organização
empresarial e o desenvolvimento tecnológico) que crescentemente se estabelecem
como processo interacional de referência, passando a abranger e direcionar os
processos gerais anteriores: os da escrita, que anteriormente (e ainda) se apresenta
como processo de referência principal, subsumindo a generalidade de processos; e
os da oralidade tradicional (Ibidem, p. 70, grifos do autor).
Nesse alinhavo também levo em consideração a discussão acerca da constituição do
sujeito, agente dessa comunicação, assim como a construção do outro, sempre presente nas
interações, mas muitas vezes distante. Esse contato com o outro é, então, visto enquanto uma
experiência necessária e até mesmo inevitável, ainda que comportadora de riscos.
Assim, a partir de uma breve discussão epistemológica e da definição do objeto da
comunicação, caracterizo a análise de interações comunicativas em seu aspecto normativo,
que considerem a presença e a imprescindibilidade do sujeito e do outro em um dado
contexto, enquanto objeto específico do campo da comunicação. Tal discussão teórica se faz
necessária para compreender a relação estabelecida entre os participantes desse estudo de
caso no contexto do intercâmbio em interações com o já mencionado duplo outro
(estrangeiros e brasileiros de diferentes localidades).
Na construção do processo comunicativo, dialogo com os estudiosos Dominique
Wolton (2004; 2006), Vera França (2001; 2002; 2006), José Luiz Braga (2011), Jesús Martin-
Barbero (2004) e Tadeu Silva (2000).
1.1 PERSPECTIVAS COMUNICACIONAIS
“Eis a vitória da comunicação: a passagem da transmissão para a mediação”
(WOLTON, 2006, p. 141)
Inata aos seres humanos, a comunicação nos acompanha desde muito cedo e em todas
as instâncias de nossa vida. Ainda no berço, através do choro; na vida adulta, através das
roupas que vestimos, do corte de cabelo que adotamos, ou da forma como nos relacionamos
com os demais a nossa volta. Tudo em nós comunica.
É justamente essa “naturalização” da comunicação que, contraditoriamente, impõe
certas dificuldades ao estudo e até mesmo à constituição do campo. Dominique Wolton
(2004, p. 38) considera que “a dificuldade de uma lógica do conhecimento sobre a
comunicação” se dá, primeiramente, porque “cada um, sendo praticante da comunicação,
sente-se especialista por natureza” (Ibidem, p. 38). Outras duas dificuldades apontadas pelo
autor são: a) o fato de a comunicação ser uma área nova; e, b) a dificuldade de
distanciamento dos pesquisadores para com seus objetos, uma vez que a área envolve paixões
na mesma medida em que envolve a razão – o que pode ser até mesmo comprovado, dado o
recorte realizado na presente pesquisa.
Ao explicar o fato de a comunicação ser tanto necessidade quanto essência da
modernidade, o que chama de “a ambivalência da comunicação” (WOLTON, 2004, p. 57), o
autor recorre à etimologia da palavra, onde ambos os sentidos também podem ser
recuperados. A partir de sua origem latina, communicare, a palavra comunicação remete à
ideia de partilha e comunhão, ou seja, a busca do outro e o desejo de compartilhar. O segundo
significado “está ligado ao desenvolvimento das técnicas, começando pela primeira, a
imprensa” (Ibibem, p. 57), aí relacionado à ideia de transmissão e difusão.
Observo aqui a primeira distinção entre os objetos do campo da comunicação
relevante para o desenvolvimento dessa pesquisa. Opto, assim, por apresentar a comunicação
vivida por um grupo específico de pessoas, em um dado contexto, em sentido de partilha e de
eterna busca pelo outro e pela sua compreensão.
De maneira semelhante, Vera França (2001)5
também define o objeto do campo da
comunicação e o diferencia justamente enquanto os meios de comunicação, responsáveis pela
difusão e transmissão de mensagens, e os processos comunicativos, a partilha. A autora
relembra que os estudos pioneiros do fim do século XIX e de todo o século XX são marcados
pela análise do primeiro, em especial devido ao surgimento do rádio e da televisão.
Entretanto, a pesquisadora elenca duas problemáticas com relação a esse objeto da
comunicação. Ao mesmo tempo em que a análise das mídias pode se desdobrar em questões
múltiplas “tais como a técnica, a política, a economia, o consumo, a vida urbana, as práticas
culturais, a sociabilidade, etc” (Ibidem, p. 04), também pode-se dizer que fechar o objeto da
comunicação no campo das mídias é uma operação redutora, pois exclui outras práticas
comunicativas “que edificam e marcam a vida social – e não passam pelo terreno das
mediações tecnológicas” (Ibidem, p. 04-05).
Do mesmo modo que a pesquisadora justifica a notoriedade de estudos relacionados
aos meios de comunicação durante os séculos XIX e XX, José Luís Braga (2011, p. 68)
afirma que tal centralidade se dá, entre outros motivos, devido “a importância dos MCS6
como processo comunicacional e de produção de sentidos compartilháveis na sociedade
contemporânea”.
Foi comungando do pensamento de Vera França (2001) que se deu a escolha pelo
objeto aqui em análise. A relevância dos meios de comunicação, não só aos estudos do
campo da comunicação, mas também na produção de sentidos da vida contemporânea, pode
ser verificada através da extensa literatura dedicada à essa temática. As mediações
tecnológicas podem até direcionar os processos comunicativos como um todo, mas, ainda
assim, elas não estão necessariamente (ou não diretamente) presentes em todas as instâncias
5
Texto apresentado à Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós) em
2001, Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1266.pdf>, acesso em 05 Abril, 2014.
6
Meios de Comunicação Social.
das interações da vida cotidiana, por isso a escolha por um objeto que preze pela instância
normativa e interacional da comunicação.
Mesmo privilegiando o enfoque aos processos comunicativos ou interacionais, vale
ressaltar que tal escolha não pressupõe a aceitação de todo e qualquer recorte da vida social
como um potencial objeto da comunicação – há que se encontrar o que há de comunicacional
em tal recorte. Ainda que divergentes em outros pontos – como com relação a condição inter
ou transdisciplinar do campo, por exemplo – França (2001) e Braga (2011) concordam que a
peculiaridade do estudo da comunicação se encontra no ponto de vista atribuído a um
determinado objeto.
Como me parece claro, hoje, que o objeto da Comunicação não pode ser apreendido
enquanto “coisas” nem “temas”, mas sim como um certo tipo de processos
epistemicamente caracterizados por uma perspectiva comunicacional – nosso
esforço é o de perceber processos sociais em geral pela ótica que neles busca a
distinção do fenômeno (BRAGA, 2011, p. 66, grifo do autor).
É este alcance – permitindo-nos analisar situações tão diferenciadas – e este olhar
especializado – possibilitando-nos achar um denominador comum em todas essas
situações – que caracterizam o nosso saber e fazem do viés da comunicação um
lugar de conhecimento. (FRANÇA, 2001, p. 15, grifo da autora).
O estudo quase que majoritário dos meios de comunicação trouxe, por muito tempo, a
discussão acerca do receptor e de sua condição – primeiramente entendida enquanto passiva e
posteriormente como ativa. Ainda assim, “na sociedade em midiatização, a interação se
manifesta mais claramente como um fluxo sempre adiante” (BRAGA, 2011, p. 68, grifo
meu). A mensagem será, sim, não só devolvida, como entregue transformada ao seu ponto
inicial, mas não de maneira imediata, como percebido em uma conversação entre
interlocutores.
Mais recentemente, entretanto, há uma valorização do enfoque às práticas
comunicativas – o deslocamento dos meios às mediações, aqui também defendido. Nas
palavras de Vera França (2006, p. 08), “os estudos voltam-se para a caracterização dos
grupos sociais, das situações vividas, abandonando, de certa forma, a relação propriamente
dita de consumo e recepção dos produtos midiáticos”.
Assim, tal abordagem suscita a discussão acerca dos elementos que ao mesmo tempo
afetam e são afetados por tais práticas: o sujeito em comunicação, o outro e o terceiro
elemento – a cultura, mais amplamente discutido no decorrer do segundo capítulo da
monografia.
1.2 O OUTRO NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO
“O eu só existe a partir das relações interpessoais”
(FRANÇA, 2006, p. 10)
Segundo Dominique Wolton (2004), a comunicação abrange os principais valores
contemporâneos, como a liberdade, a democracia, o indivíduo e o direito à expressão. Para o
autor, é essa estrita relação com a modernidade que garante o sucesso da comunicação: “foi
por ela que os mundos fechados abriram-se uns para os outros, que desenvolveram o
comércio, para trocar bens e serviços, antes de trocar ideias, artes e cartas”. (Ibidem, p. 49).
Tal abertura, entretanto, incita uma contradição: a manutenção da autonomia do eu e a
aceitação do outro. Segundo o autor, “estamos ao mesmo tempo livres e conectados, móveis e
ligados. Estas duas maneiras de ser, aparentemente contraditórias, têm a mesma importância:
a liberdade e a relação” (Idem, 2006, p. 29, grifo do autor). Necessitamos e inclusive
buscamos autonomia e liberdade, mas, como veremos a seguir, o outro, assim como a relação
com esse outro nos é imprescindível. Wolton (2006, p. 28, grifo do autor) também questiona-
se: “Por que ser livre se é para estar sempre conectado?”. A resposta é bem simples: para se
comunicar (com o outro).
De acordo com Vera França (2006), é essa relação com o outro que, ao mesmo tempo,
cria o laço social estabelecido pela palavra (e não mais pela tradição), assim como constrói a
noção de sujeito, a partir da “crítica da tradição, na perda das certezas estabelecidas, no
direito à diferença – situação que instaura a relatividade e o risco da impossibilidade da
comunicação (do nós compartilhado)” (Ibidem, p. 10-11). Diferentemente do sujeito
iluminista, centrado e racional, o sujeito é agora entendido como dividido, atravessado por
rupturas, afetando e sendo simultaneamente afetado em sua constituição pelo outro e pelo
contexto de suas experiências.
São as relações que constituem esse sujeito – a relação com o outro, a relação com a
linguagem e o simbólico. Assim, não falamos em sujeito no singular, mas no plural;
e não apenas sujeitos em relações, mas em relações mediadas discursivamente (...).
São sujeitos interlocutores – sujeitos que falam um com o outro, produzidos nos e
pelos laços discursivos que os unem. Sujeitos não antecedem a relação, mas
resultam dela – sejam elas relações de conjunção, enfrentamento, de associação ou
de conflito (Ibidem, p. 12).
A constituição do sujeito a partir do outro e seu meio social justifica o que Wolton
(2006, p.32) chama de “busca sempre aventureira do outro por meio da comunicação”. Prova
disso, é a fala da Carolina, que afirma que “um fato engraçado, foi que após alguns meses
todos na casa estavam usando gírias de diferentes estados”. Entretanto, esse encontro com o
outro nem sempre é tão simples, como exemplificado na fala do paranaense Iago: “o próprio
vocabulário, com destaque para as gírias endêmicas (...) causaram certo grau de
desentendimento”. Isso acontece porque essa “aventura” não impede a ocorrência de
possíveis fracassos e “o risco da solidão é o preço a pagar por essa liberdade de ser e de
conexão” (WOLTON, 2006, p. 31). Ainda segundo o autor:
A comunicação (...) é um processo dinâmico, sempre com a dupla face normativa e
funcional: a chave do encontro e o risco do fracasso. O outro buscado na conexão
muitas vezes se esquiva, às vezes se opõe, mas, em todo caso, torna o encontro
totalmente aleatório (Ibidem, p. 31).
Além de dinâmico e aleatório, o processo comunicativo é, também, “instituidor de
sentidos e de relações; lugar não apenas onde os sujeitos dizem, mas também assumem
papéis e se constroem socialmente; espaço de realização e renovação da cultura” (FRANÇA,
2001, p. 16). Enquanto que a renovação da cultura pode ser exemplificada no fato de os
estudantes emprestarem expressões típicas de outras localidades, a questão da representação
de papéis pode ser verificada na fala da entrevistada Aline, abaixo:
A gente enfatizava diferenças de fala, enfatizava que eu chamo, por exemplo (...),
biscoito de bolacha e que Fulano chama bolacha de biscoito, então cada um vai
chamar do seu jeito e é assim que eu chamo e nós vamos falar assim! Então, eu
acho que a gente até brincava com isso, assim. Então eu represento o meu estado
aqui nessa casa e você representa o seu, coisas do tipo, que a gente reforçava de
algumas formas.
Assim, é a partir dessa possibilidade de renovação da cultura que, para além da
perspectiva de fracasso e desentendimento, nos deparamos, também, com a chance de um
encontro proveitoso, no qual, a partir da criação de laços e do estabelecimento de vínculos, o
horizonte é a coabitação e, posteriormente, a hibridização.
1.3 EU-OUTRO: ENTRE A INCOMUNICAÇÃO E A COABITAÇÃO
“Na comunicação, o mais complicado é sempre o outro”
(WOLTON, 2004, p. 37)
Diferentemente da comunicação midiatizada, as práticas comunicativas interpessoais
permitem respostas simultâneas, o que não só pressupõe a presença, como revela a
importância do outro na comunicação – aquele com o qual almejamos a comunhão, o
entendimento mútuo. Entretanto, como se faz possível tal entendimento sendo esse outro
diferente? Wolton (2004) apresenta o outro enquanto o limite da comunicação e afirma que
“este outro permanece inatingível” (Ibidem, p. 37, grifo do autor). Segundo ele, “quanto mais
fácil é entrar em contato com alguém, de um lado a outro do mundo a qualquer instante, mais
rápido percebemos os limites da compreensão (Ibidem, p. 37).
O outro, com toda a diferença que carrega, coloca em jogo a eficácia da interação.
Toda conversação comporta riscos, e a incomunicação pode até mesmo ser considerada a
regra. Ainda assim, “nenhuma técnica de comunicação, por mais eficiente que seja, jamais
alcançará o nível de complexidade e de cumplicidade da comunicação humana” (Ibidem, p.
35, grifo meu). O convívio com e a compreensão do outro, ainda que falha e por vezes difícil,
não é impossível. Em resposta ao questionário, Lúcio afirma, inclusive, que as diferenças
regionais entre os brasileiros facilitaram o convívio, uma vez que “sempre gerava expectativa
de novos conhecimentos e oportunidades de aprendizado”.
Wolton afirma que a simples presença do outro é uma agressão – cada vez mais
imposta e mais acelerada pela questão da simultaneidade (WOLTON, 2004). De maneira
menos enfática, concordo em dizer que o outro, na sua simples presença, já nos molda, nos
configura – é a atuação do outro na constituição do sujeito.
Em uma entrevista de emprego, em uma saída com amigos, ou em um jantar em
família, é o “outro” de cada uma dessas situações, citando apenas alguns exemplos, que
pautará e, muito provavelmente, diferenciará a postura adotada, a roupa escolhida, e o
palavreado sério ou descontraído utilizado.
Para Wolton, “o outro, seja como for, é aquele que não fala como eu, e diante de
quem eu devo fazer um esforço de tolerância e de compreensão” (WOLTON, 2006, p. 154),
sendo sempre inatingível. A comunicação é sempre – ou geralmente – dificultada pelo acesso
ao outro. Mas antes mesmo de se buscar o entendimento mútuo, é necessário que se
reconheça a alteridade. Tendo o outro enquanto o limite comunicação, Wolton (2004) elenca
três condições essenciais para a ocorrência do intercâmbio comunicacional: a existência
prévia de algo a ser partilhado; o reconhecimento das identidades; e a aceitação das
alteridades.
A comunicação pressupõe pertencer ao mesmo universo sociocultural e
compartilhar os mesmo valores, quando não se trata de lembranças, de referências,
de experiências, de línguas ou estereótipos idênticos. Ela vive tanto do intercâmbio
de mensagens quanto da cumplicidade e das convivências de uma cultura
compartilhada. Aí está, sem dúvida, a palavra essencial: é preciso que já tenha
existido algo para compartilhar. Hoje, no entanto, a comunicação, ao ultrapassar as
fronteiras e ao atingir todas as comunidades, consagra a ideia segundo a qual é
possível desvincular-se dessas incontáveis e indispensáveis condições que sempre
guiaram qualquer comunicação. A primeira dessas condições é a identidade. Sem
ela, não há possibilidade de intercâmbio. Mas também não há intercâmbio sem o
reconhecimento da alteridade. Vale lembrar estes três limites: uma cultura e valores
comuns; um reconhecimento mútuo das identidades; uma aceitação das alteridades
representam a melhor maneira de definir os limites da incomunicação (WOLTON,
2004, p.85, grifo meu).
Como já mencionado, durante o intercâmbio o outro era duplo. Com o estrangeiro,
geralmente australiano, o exercício de tolerância e compreensão era óbvio. A segunda língua
não inteiramente dominada, o sotaque, a falta de familiaridade com costumes ou expressões
locais: tudo dificultava o acesso ao outro. No contato com brasileiros de outras localidades, a
língua poderia até facilitar o primeiro contato. Havia, agora de maneira mais clara, o algo em
comum inicial a ser partilhado. Ainda assim, os sotaques e certas particularidades linguísticas,
em especial termos ou expressões próprias, se não nos distanciavam, ao menos aguçavam
certas curiosidades. O “modo de falar” e o “sotaque”, juntamente com o “paladar” e o “gosto
musical”, foram apontados pelos participantes da pesquisa como uma das diferenças mais
visíveis entre os brasileiros do grupo CsF, conforme apontado nos depoimentos abaixo:
Conheci pessoas de quase todos os Estados e cada um tem o seu vocabulário, sua
comida ou bebida típica, danças, músicas (Carolina).
[A identidade cultural do Brasil] varia por regiões do país. Seu modo de falar, de
vestir, tradições, festas típicas são bons exemplos dessa diversidade cultural
(Ricardo).
[A cultura brasileira] apresenta diferentes faces em cada lugar, situação e, até
mesmo, momento histórico. Um exemplo facilmente assimilado é a música,
extremamente variada ao longo do território, sendo difícil estabelecer um único
estilo definidor da cultura brasileira (Vinícius).
Não tinha noção de como que era lá em Belém (...). Como por exemplo, a forma de
falar. Não sabia que na Belém falavam tão bem! [rindo] Nunca imaginava que o
sotaque era esse! (Catarina)
É interessante observar que, enquanto paraense convivendo com representantes de
diversos outros estados do país, eu considerava que eram eles quem fugiam à (minha) regra.
Entendia a estranheza neles causada por ser a única no grupo a conjugar o verbo na segunda
pessoa, por exemplo – ainda que os representantes do Rio Grande do Sul utilizassem a
segunda pessoa, poucas vezes o verbo vinha conjugado. Ainda assim, e mesmo sendo a única
representante do Pará entre o grupo, a mim ainda era mais estranho o fato de eles, em sua
maioria, falarem “você” e não o fato de eu ser uma das únicas a falar “tu”.
Já a relação com os australianos, era percebida um pouco diferentemente. Ainda que
convivesse com outros brasileiros e até mesmo com outros estrangeiros que também não
tinham o inglês como primeira língua, enxergava a mim mesma como fora dos padrões e das
regras, pelo simples fato de não dominar o inglês da mesma maneira que os nativos. Em
outras palavras, eu era o outro – e me enxergava como tal.
Talvez isso justifique o amplo contato entre os brasileiros. Como já foi dito, é preciso
um elemento inicial partilhado, fundador da comunicação, e isso fica claro, a partir da
questão da língua, na percepção da diferença entre as relações com os australianos e demais
estrangeiros em comparação com as relações entre os brasileiros. Sobre essa questão da
língua, Aline afirma que “[uma vez que a interação] muda para a língua materna, já facilita
bastante o desenrolar da conversa”, o que garante uma facilidade maior à interação entre os
brasileiros.
Tal elemento inicial (a língua) poderá ser ampliado a partir do convívio, abrangendo
outras referências, proporcionando novos compartilhamentos (como o “empréstimo” de
expressões de outras localidades), e favorecendo, assim, a coabitação. Por outro lado, as
diferenças estarão sempre presentes, e são elas as responsáveis pelo distanciamento entre o eu
e o outro. Esse distanciamento, quando não compreendido e, principalmente, quando não
celebrado, pode levar a outros caminhos além do da incomunicação. É nesse ponto, então,
que a diferença se mostra enquanto uma encruzilhada à comunicação: ela pode tanto
favorecer a hibridização e ser vista como algo enriquecedor às relações sociais, como levar à
segregação, ao preconceito e à discriminação.
A diferença pode ser construída negativamente – por meio da exclusão ou da
marginalização daquelas pessoas que são definidas como “outros” ou forasteiros.
Por outro lado, ela pode ser celebrada como fonte de diversidade, heterogeneidade e
hibridismos, sendo vista como enriquecedora (SILVA, 2000, p. 50)
Desse modo, o outro traz uma dupla possibilidade à comunicação: a incomunicação e
a coabitação. Para Wolton (2006, p. 149), “a incomunicação impõe-se como um fato, a
coabitação como uma escolha e um valor”. Tanto o contato com o outro quanto as
resistências e as frustrações trazidas por tal interação são inevitáveis. Entretanto, a
coabitação, entendida como o respeito às alteridades, apresenta-se como uma possível
recompensa aos riscos enfrentados no contato com o outro. Em um mundo em que a
alteridade se faz não só cada vez mais presente, mas também mais perceptível, a aceitação do
outro é de extrema importância.
Comunicar assinala o reconhecimento da necessidade do outro e a aceitação do
risco de fracasso. Eis porque os gatos, os cães, e os computadores têm tanto sucesso
em nossas sociedades de liberdade e solidão. Com eles, ao menos, nunca se fica
decepcionado. Eles obedecem, não se revoltam, estão lá quando desejamos e nos
remetem a uma imagem gratificante de nós mesmos. Neste caso, não há muitos
riscos. Com os seres humanos, tudo é muito mais complicado e arriscado. Eles nem
sempre estão lá onde os esperamos, resistem, nos apresentam muitas vezes um
aspecto desagradável de nós mesmos, dispõem de uma autonomia e nos obrigam à
modéstia (WOLTON, 2006, p. 173).
Mas que resistências e que riscos são esses? De que “outro” estamos falando?
Retomando exemplos anteriores, esse outro pode ser o futuro chefe, o amigo ou o parente
distante, e ainda compartilhar referências culturais semelhantes. Nessas interações, os riscos
são certamente reduzidos. O outro, em seu sentido mais interessante, ao meu ver, não se
diferencia do “eu” em um nível (exclusivamente) hierárquico, mas sim em um nível cultural
mais amplo. É quando, por exemplo, o futuro chefe fala um outro idioma durante a entrevista
de emprego, ou quando o amigo se utiliza de expressões e termos total ou parcialmente
desconhecidos, ainda que na mesma língua. É a partir dessa diferenciação cultural mais
ampla que entramos no âmbito da comunicação intercultural.
Para Wolton (2006, p. 185), no plano mundial, a comunicação intercultural representa
“a coabitação das línguas, das culturas, no interior dos Estados-nação”. Heather Bowe e Kylie
Martin (2007, p.03, tradução minha), do departamento de linguística da Universidade de
Monash, na Austrália, afirmam que a comunicação intercultural “foca nas características da
comunicação compartilhada entre interlocutores de diferentes línguas/repertórios culturais”.
Ainda segundo as autoras, as pesquisas atuais relacionadas à comunicação intercultural
consideram que “a comunicação é afetada por diferentes aspectos contextuais, incluindo
expectativas culturais, relações sociais e o propósito com o qual se estabelece a
comunicação” (Ibidem, p. 03, tradução minha).
Na comunicação intercultural, o contato com o outro pode exigir ainda mais cuidados,
uma vez que ela oferece ainda mais ricos. Quanto menos partilhado é o mundo social e
cultural dos interlocutores, mais precária ou mais enriquecedora pode ser a comunicação.
1.4 A CONVERSA ENTRE AS CULTURAS
“O fim das distâncias físicas revela a incrível extensão das distâncias culturais”
(WOLTON, 2006, p. 19).
Ao traçar o limite entre estudos antropológicos e comunicacionais, José Luís Braga
(2011, p. 76) afirma que é do interesse do campo da Comunicação o estudo no qual se
observe a conversação entre culturas, e não a questão cultural específica: “quando para além
da observação de uma determinada identidade cultural, se observem as interações
comunicacionais desta com outras”. De acordo com o autor, outras disciplinas até podem
tomar emprestadas as questões comunicacionais, mas as observarão a partir de seu ponto de
vista, enquanto que “de nossa parte, devemos assumir a centralidade do fenômeno
comunicacional tomando-o pragmaticamente como o constituinte interessante dos processos
interacionais” (Ibidem, p. 76).
Na mesma linha de pensamento, França (2006, p. 09) atenta para o fato de que simples
descrições dos comportamentos dos sujeitos “são estudos sociológicos, e não mais da
comunicação”. É por isso que, segundo a autora, é importante entender que os sujeitos em
comunicação são influenciados (assim como influenciam) diversos contextos e sofrem
variadas rupturas simultaneamente. Daí a necessidade de um recorte específico para a
definição de um objeto de análise. Por fim, a autora diferencia o sujeito em comunicação do
sujeito do discurso e do sujeito sociológico, o qual “é mais que a ação de produzir/receber
discursos, é menos que sua ação no mundo de uma maneira geral” (Ibidem, p. 19).
Analisar os sujeitos em comunicação é, simultaneamente, achar nos textos as
marcas que os interpelam, e no posicionamento e falas desses sujeitos a maneira
como eles respondem, atuam, produzem. Por este caminho a análise comunicativa
vai buscar a atualização de possibilidades, a realização de experiências vivas que
marcam sua adequação às (e a modificação das) estruturas nas quais esses sujeitos
estão inseridos. Não se trata, portanto, da análise de um texto, ou da caracterização
de um sujeito, mas do movimento dos textos (narrativas, discursos, representações)
no contexto das interlocuções (Ibidem, p. 19).
Também discutindo a formação e o desenvolvimento do campo da comunicação, mas
agora na América Latina, Martín-Barbero (2004, p.227, grifos do autor) afirma que,
atualmente, “apenas se começa a assumir a comunicação como espaço estratégico de criação
e apropriação cultural, de ativação da competência e da experiência criativa das pessoas, e de
reconhecimento das diferenças, ou seja, do que culturalmente são e fazem os outros, as outras
classes, as outras etnias, os outros povos, as outras gerações”.
É a partir daí que as questões culturais tornam-se relevantes aos estudos da Comunicação.
Quando as culturas conversam e quando o encontro entre o eu e o outro ativa o sentido
dinâmico da comunicação – o da criação cultural. Atualmente, o encontro com o outro é
inevitável e, a cada dia, as referências culturais divergentes entre o eu e o outro são maiores e
se fazem mais nítidas. De acordo com Tadeu Silva (2000, p. 97):
Em um mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com o estranho, com o
diferente, é inevitável (...). E o problema é que esse „outro‟, numa sociedade em que
a identidade torna-se, cada vez mais, difusa e descentrada, expressa-se por meio de
muitas dimensões. O outro é outro gênero, o outro é a cor diferente, o outro é a
outra sexualidade, o outro é a outra raça, o outro é a outra nacionalidade, o outro é o
corpo diferente.
Para Wolton (2006, p. 30), “foi a comunicação que ampliou o círculo das
identificações, hoje infinitamente mais numerosas e heterogêneas do que há cinquenta anos”.
Assim, podemos dizer que é também a própria comunicação a responsável pelo atual mundo
heterogêneo em que vivemos. Nos deparamos, mais uma vez, com o aspecto dinâmico da
comunicação: ela constitui os sujeitos e é por eles constituída.
Além disso, a constituição heterogênea do mundo e dos sujeitos que o habitam torna
possível não só a ampliação das alteridades e o distanciamento dos indivíduos, como também
os possíveis pontos de identificação. Não vivemos sozinhos e é essa articulação entre
alteridades e identificações, assim como a partir da necessidade do convívio e das relações
com o outro, que, para além da ideia de coabitação, temos também a possibilidade do
estabelecimento de sociedades multiculturais e híbridas.
Canclini (1996 apud FRANÇA, 2002, p. 66) pontua a globalização como uma das
responsáveis por esse contato, afirmando que ela intensifica o convívio entre culturas e que
“esse amplo contato com os „Outros‟ não se daria apenas pelo reconhecimento da alteridade,
mas também pela apropriação de elementos provenientes desses outros em um processo de
hibridização”, o que já vimos ter acontecido com o grupo do presente estudo de caso. Além
disso, até mesmo “no interior de nações, grupos e mesmo dos indivíduos, o que se observa é
uma pluralidade de identidades, as quais se constroem a partir da hibridização de elementos
variados e de uma heterogeneidade de códigos” (Ibidem, p. 66), e o Brasil pode ser
facilmente apresentado como um exemplo.
Uma das características da globalização, pode-se dizer, é a maior facilidade da
diminuição das distâncias físicas. Wolton (2004, p. 74, grifo do autor) afirma que “posso
saber o que se passa simultaneamente em Hong Kong e em Paris, mas não posso estar
simultaneamente em dois lugares”.
Esse encurtamento das distâncias físicas sempre foi o responsável por revelar as
distâncias culturais – nada mais concreto do que a época das grandes navegações e dos
descobrimentos para exemplificar isso. Além de proporcionar o contato com o outro, para
Tadeu Silva (2000), a mobilidade física e geográfica é responsável, também, por colocar o
sujeito em um papel de outro, o que, conforme mencionei previamente, também foi
verificado durante o intercâmbio na Austrália. O autor identifica e diferencia três tipos de
mobilidade, ele afirma que:
Embora menos traumática que a diáspora ou a migração forçada, a viagem obriga
quem viaja a sentir-se “estrangeiro”, posicionando-o, ainda que temporariamente,
como o “outro”. A viagem proporciona a experiência do “não sentir-se em casa”
que, na perspectiva da teoria cultural contemporânea, caracteriza, na verdade, toda
identidade cultural. Na viagem, podemos experimentar, ainda que de forma
limitada, as delícias – e as inseguranças – da instabilidade e da precaridade da
identidade” (Ibidem, p.88).
É justamente esse sentir-se outro, ou a necessidade de tentar evitar tal sentimento, que
pode ser encarada como um dos motivos para o encontro desses brasileiros no exterior, ainda
que o programa Ciência sem Fronteiras não necessariamente estimule tal união. Palavras
como “facilidade”, “afinidade” e “natural”, foram utilizadas pelos participantes dessa
pesquisa para descrever a escolha por morar com outros brasileiros. Para Francisco, morar
com outros brasileiros “foi a opção encontrada por todos quando recém chegamos”.
Dezoito dos 32 brasileiros desse grupo moraram em um hostel7
durante as duas
primeiras semanas na Austrália, escolha explicada por Gustavo, da seguinte maneira: “a
escolha inicial do albergue com vários brasileiros foi mais pela questão da insegurança de
chegar em um país novo sem nenhum conhecido”. Em sua resposta, Carolina resume bem o
processo pelo qual os brasileiros tanto se aproximaram, quanto se afastaram durante o
intercâmbio:
No início quando chegamos na Austrália descobrimos que alugar casa por lá não é
tão simples e nem barato, por isso procuramos casa juntos e acabamos morando
juntos no início. Depois algumas pessoas se deram bem umas com as outras e
continuaram morando juntas e outras queriam ter a experiência de morar com
pessoas de outro país, em alguns casos para evitar falar muito português e praticar
mais o inglês.
Constato, a partir dessa experiência, que foi esse deslocamento físico que permitiu aos
brasileiros conhecerem um pouco mais de seu próprio país, ainda que estando do outro lado
do mundo. Apenas Hugo e Giovana afirmaram não terem tomado conhecimento sobre as
diferenças regionais do Brasil no exterior. Aline, por sua vez, afirmou que já conhecia
algumas diferenças, mas ressaltou que nunca havia morado com pessoas dessas localidades, o
que, sem dúvida, é uma forma de convívio diferenciada.
Gustavo também afirma que a experiência de conviver com brasileiros de outras
regiões foi “muito importante para meu crescimento pessoal. Foi uma experiência muito
construtiva, a de conhecer melhor meu próprio país e as pessoas que nele vivem”, ideia
7
Hostels são albergues geralmente procurados por estudantes por oferecerem acomodação mais em conta. Ainda
que a questão financeira não tenha sido mencionada por nenhum dos participantes, vale ressaltar que a grande
maioria – se não todos – dos bolsistas chegaram a Perth sem a ajuda de custo do governo. Por conta de atrasos
no calendário do edital, as bolsas só foram depositadas durante a primeira e a segunda semana de estadia na
Austrália. Se comparado às opções apresentadas tanto pela universidade quanto pelo CNPq (homestay, college,
shared house), o hostel era a mais em conta.
reiterada por Julie, que diz acreditar que “a gente só passa a conhecer as peculiaridades de
cada região quando a gente se dá a oportunidade de visitar as outras regiões ou conviver com
pessoas de outras regiões”, o que demonstra a relevância da interação entre as culturas
brasileiras e do deslocamento físico desses estudantes.
Assim, analisar a comunicação não só a partir de uma cultura, mas a partir dessa
interação intercultural, desse embate instável entre os sujeitos, torna-se relevante na
sociedade contemporânea. É, primeiramente, através da comunicação em sua faceta
normativa que podemos tanto observar o contato intercultural (o encontro do eu com o outro),
como perceber posicionamentos híbridos. Nesse sentido, Martín-Barbero (2004, p. 212-213,
grifos do autor) justifica tal abordagem afirmando que:
Pensar a comunicação desde a cultura é fazer frente ao pensamento instrumental
que tem dominado o campo da comunicação desde seu nascimento, e que hoje se
autolegitima apoiado no otimismo tecnológico a que se acha associada a expansão
do conceito de informação. O que aí se produz não é então um abandono do campo
da comunicação, mas sua desterritorialização, uma movimentação dos limites que
têm demarcado esse campo, de suas fronteiras, suas vizinhanças e sua topografia,
para desenhar um novo mapa de problemas em que caiba a questão dos sujeitos e
das temporalidades sociais, isto é, a trama de modernidade, descontinuidades e
transformações do sensorium que gravitam em torno dos processos de constituição
dos discursos e dos gêneros nos quais se faz a comunicação coletiva.
Um outro ponto levantado por Martín Barbero (2004) refere-se justamente ao
posicionamento e importância do sujeito frente aos meios de comunicação. É, com outras
palavras, o que Wolton (2006) afirma ser a vitória da comunicação: o triunfo da hélice
normativa – a passagem dos meios às mediações.
Como pudemos passar tanto tempo tentando compreender o sentido das mudanças
na comunicação, inclusive as que passam pelas mídias, sem referi-las às
transformações do tecido coletivo, à reorganização das formas do habitat, do
trabalhar e do brincar? E como poderemos transformar o “sistema de comunicação”
sem assumir sua espessura cultural e sem que as políticas procurem ativar a
competência comunicativa e a experiência criativa das pessoas, isto é, seu
reconhecimento como sujeitos sociais? (MARTIN-BARBERO, 2004, p. 228).
Dessa forma, é buscando entender justamente as mudanças proporcionadas pela
comunicação ao tecido coletivo e aos sujeitos sociais que atuam nessas mudanças, que
destino o segundo capítulo dessa monografia à discussões sobre cultura e multiculturalismo,
assim como sobre questões relacionadas à construção de identidades, especialmente a
nacional. Analiso, também, o Brasil no contexto, buscando apresentá-lo enquanto um país
multicultural e híbrido.
2 HÍBRIDOS CULTURAIS
Depois de posicionar a experiência comunicativa enquanto objeto da comunicação e
de discutir a questão do sujeito e a relevância do outro nessas mediações, volto a discussão à
questão cultural. Como mencionado, a cultura é entendida como o terceiro elemento das
interações comunicacionais, revelando uma relação de dependência entre ambas.
Assim, o segundo capítulo dessa pesquisa busca apresentar a comunicação enquanto
mediadora da transformação cultural. É através da comunicação bem sucedida que as
culturas, quando em contato, deixam simplesmente de coexistir, para realmente se
articularem entre igualdades e diferenças.
Nessa perspectiva, apresento o Brasil enquanto um país híbrido, não apenas por ter
uma origem miscigenada, mas por permitir a interação entre essas culturas diferenciadas.
Sempre tendo o objeto em mente, dou início a discussão sobre como se davam as
identificações dos estudantes brasileiros em Perth, seja no contato com o outro brasileiro, seja
no contato com o outro estrangeiro, já apresentando algumas das características que serviam
para aproximar ou distanciar o grupo.
2.1 A COMUNICAÇÃO ENQUANTO MEDIADORA CULTURAL
Considerando a cultura enquanto o terceiro elemento da comunicação, é possível
afirmar, então, que uma não se faz sem a outra. Do mesmo modo que as trocas
comunicacionais são pautadas e influenciadas por esse terceiro elemento, a transformação
cultural depende da comunicação. A característica mutável da cultura é visível em Touraine
(1998, p. 46), ao afirmar que:
Uma cultura é a associação de técnicas de utilização de recursos naturais, de modos
de integração a uma coletividade e de referências a uma concepção do sujeito,
reliogiosa ou humanista. Ela não é um bloco de crenças e práticas, e por isso pode
se transformar quando um de seus componentes principais se modifica.
Em “Cultura: um conceito antropológico”, Laraia (2001) apresenta de maneira simples
e didática uma discussão acerca do desenvolvimento do conceito de cultura, desde os
pensadores iluministas até autores mais contemporâneos. Já na apresentação do livro, o autor
afirma que “o desenvolvimento do conceito de cultura é de extrema utilidade para a
compreensão do paradoxo da enorme diversidade cultural da espécie humana” (Ibidem, p.
01).
O grande dilema proposto pelo autor é o de conciliar a unidade biológica e a
diversidade cultural. Além de descartar tanto o determinismo biológico quanto o geográfico
enquanto possíveis respostas a tal dilema, o autor apresenta relatos de viajantes de diversas
épocas, como Confúcio, Padre Anchieta e Marco Polo, para exemplificar o quanto as
diferenças culturais sempre estiveram presentes na vida em sociedade.
Em Edward Tylor (1871 apud LARAIA, 2001, p. 25), a cultura é “todo complexo que
inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou
hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. Segundo Laraia (2001),
através desse conceito, cunhado no vocábulo inglês culture, Edward Tylor conseguiu unir
tanto os aspectos espirituais quanto as práticas materiais de um povo em um único termo.
Para ele, “com esta definição, Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de
realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em
oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos” (Ibidem, p. 25).
Dessa forma, a aquisição cultural se sobressai, em detrimento às teorias anteriormente
defendidas, que privilegiavam os determinismos geográfico e biológico. Um dos argumentos
apresentados por Laraia (2001) é o fato de que uma criança sueca poderia adquirir traços
culturais de uma família brasileira sertaneja, se criada em tais condições de aprendizado,
sendo que outra aquisição cultural seria verificada se uma criança xinguana fosse criada por
uma família de Ipanema, por exemplo. Segundo o autor,
O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro
de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência
adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada
e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não
são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de
toda uma comunidade (Ibidem, p. 45).
Assim, a explicação para o dilema proposto pelo autor é encontrada em uma contínua
dinamicidade cultural. Dinamicidade essa que, segundo ele, ocorre a partir de duas frentes: a
primeira é interna, mais lenta e praticamente imperceptível a curto prazo; a segunda, externa,
aparece enquanto resultado do contato com o outro, geralmente mais brusco, representando o
que antes chamei de encruzilhada à comunicação – é o contato que traz tanto a possibilidade
da hibridização, quanto a de uma possível catástrofe. É a partir do entendimento da dinâmica
cultural, e de sua constante modificação, que nos deparamos, então, não com uma cultura,
mas sim com culturas, no plural.
2.2 PARA ALÉM DO DIÁLOGO MULTICULTURAL
“Somos ao mesmo tempo daqui e de toda parte, isto é, de lugar algum”
(TOURAINE, 1998, p. 13)
Touraine (1998) defende encontrar a resposta à pergunta “como podemos viver
juntos?” na combinação entre a democracia política e a diversidade cultural, alcançadas a
partir da liberdade do sujeito. No caso do autor, o questionamento surgiu a partir das aulas
que ministrava a grupos culturalmente diferentes entre si. Da mesma maneira, o CsF permitiu
o encontro de brasileiros de distintas localidades que, mesmo nunca antes tendo se conhecido,
passaram a estudar, a conviver e até mesmo a morar juntos. Para Touraine (1998, p. 190),
“não há nenhuma descontinuidade entre a ideia de sujeito e a de sociedade multicultural e
mais precisamente a de comunicação intercultural, dado que não podemos viver juntos com
nossas diferenças sem que nos reconheçamos mutuamente como sujeitos”.
O reconhecimento da diferença e da alteridade do outro é, então, o primeiro passo em
direção à construção de uma sociedade multicultural, ainda que nossa herança cultural nos
condicione a “reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem
fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade” (LARAIA, 2001, p. 67). Dessa forma,
o reconhecimento do outro enquanto sujeito é de fundamental importância para uma vida na
qual sociedade nenhuma encontra-se inteiramente isolada, ainda que esse seja apenas o
primeiro passo.
É de se esperar um choque ao, de um dia para o outro, sair de seu país de origem com
direção ao outro lado do mundo e passar, também repentinamente, a morar com cerca de 20
pessoas totalmente desconhecidas, ainda que brasileiras. Nesse início, havia uma certa
expectativa em conhecer mais sobre cada um desses brasileiros. Quem eram? Da onde
vinham? O que faziam? As duas primeiras semanas no hostel já foram um passo em direção à
construção do conhecimento sobre o outro brasileiro.
O reconhecimento do outro só é possível a partir da afirmação que cada um faz do
seu direito de ser sujeito. Complementarmente, o sujeito não pode se afirmar como
tal sem reconhecer o outro como sujeito e, em primeiro lugar, sem se livrar do medo
do outro, que leva à sua exclusão (TOURAINE, 1998, p. 203).
Para Silva (2000, p. 73), “em geral, o chamado „multiculturalismo‟ apoia-se em um
vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e a diferença. É
particularmente problemática, nessas perspectivas, a ideia de diversidade”. Segundo o autor,
essa perspectiva adota a diferença como naturalizada e essencializada, perante a qual
devemos ser apenas tolerantes.
Aprofundando o diálogo de Silva (2000) e considerando que “não cessa de crescer a
distância entre „vivamos juntos‟ e „com nossas diferenças‟” (TOURAINE, 1998, p. 63), o
sociólogo francês Alain Touraine (1998) apresenta três possibilidades de articulação entre a
igualdade e a diferença, afirmando que, apesar de alguns quererem salvar a unidade e outros
as diferenças, elas podem, sim, ser combinadas.
Ainda que se preocupe com a construção cultural, a primeira possibilidade
apresentada pelo estudioso é o “Encontro de culturas”, o qual “afirma a existência de
conjuntos culturais fortemente constituídos, cuja identidade, especificidade e lógica interna
devem ser reconhecidas, mas que não são inteiramente estranhas entre si, ao mesmo tempo,
que são diferentes umas das outras” (TOURAINE, 1998, p. 206). De acordo com o autor, tal
concepção privilegia a simples observação das diferenças e não a inserção do sujeito nelas.
A segunda possibilidade de articulação entre a igualdade e a diferença é vista pelo autor
como um “Parentesco das experiências culturais”. Mais importante do que a comunicação, é
o reconhecimento das diferenças, o que garante a dignidade do outro, mas não a integração
das experiências uma vez que “busca parentescos mais ou menos longíquos entre as culturas”
(TOURAINE, 1998, p. 212). Segundo o autor, nessa concepção,
A comunicação se estabelece entre culturas diferentes quando encontramos, na mãe
imigrante do filho doente ou ferido, os mesmos sentimentos que os nossos; quando
vemos, nas fotografias de Claude Lévi-Strauss, jovens índios do Brasil jogar jogos
eróticos que nos parecem próximos dos nossos; ou quando o mesmo antropólogo vê
na nossa agitação uma forma de pensamento selvagem (Ibidem, p. 212).
Por fim, Touraine (1998) apresenta “A recomposição do mundo”, concepção que “se
trata – muito além de diálogo das culturas – da construção, pela comunicação entre elas de
um sujeito humano cujo monumento nunca se acabará e do qual, consequentemente, ninguém
(indivíduo, sociedade ou cultura) poderá se dizer porta-voz ou representante privilegiado”
(Ibidem, p. 214).
A sociedade multicultural não se caracteriza pela coexistência de valores e práticas
culturais diferentes; menos ainda pela mestiçagem generalizada. É a sociedade onde
o maior número possível de vidas individuadas constroem para si, e chegam a
combinar, de maneira sempre diferente, o que as une (a racionalidade instrumental)
e o que as diferencia (a vida do corpo e do espírito, o projeto e a lembrança)
(Ibidem, p. 217).
É essa combinação entre igualdade e diferença, a meu ver, a mais rica e a
experienciada pelos alunos do CsF. Ao combinar o que nos unia (a nacionalidade, o idioma)
com o que nos diferenciava (aspectos culturais e também pessoais), desenvolvemos laços e
vínculos em um contexto jamais imaginado por nenhum de nós. Além de poder buscar o que
há de comum com o outro, essa perspectiva respeita a diferença e não só convive como
também constrói com e a partir dela. Mais à frente, apresentarei como isso foi possível e
verdadeiro entre os participantes da pesquisa.
Qual sociedade, na atualidade, se encontra inteiramente isolada em si, sem influências
externas? Podemos pensar as três possibilidades de articulação entre igualdade e diferença
apontadas por Touraine (1998) enquanto fases de uma mesma articulação: uma sociedade
deve ter conhecimento da outra e de suas particularidades e nutrir um certo respeito para com
elas, para, então, ao encontrá-la, buscar níveis de parentesco, as semelhanças no meio de
tantas diferenças. Por fim, em um momento posterior, a partir de uma relação mais bem
definida, faz-se possível a recomposição do mundo e dos sujeitos envolvidos nessas trocas.
Podemos pensar a interação dos estudantes do CsF dessa maneira. Os brasileiros
primeiramente tomaram conhecimento das diferenças, mas perceberam que o elo inicial, o
“ser brasileiro”, era uma semelhança muito forte. Por fim, como será discutido nos próximos
capítulos, pudemos reconstruir percepções sobre nós mesmos e nossas culturas a partir dessa
experiência.
2.3 ENTRE TRADIÇÃO E TRADUÇÃO
“Não vivemos juntos a não ser perdendo nossa identidade”
(TOURAINE, 1998, p. 11).
A globalização pode ser apontada como uma das principais responsáveis pelo constante
contato e consequente transformação das sociedades contemporâneas. A velocidade da
informação e a possibilidade de conhecer culturas distantes sem a obrigatoriedade do
deslocamento físico favorece a articulação entre diferentes sujeitos. A professora Vera França
(2006, p. 09) argumenta que o processo de globalização e o surgimento de novos sujeitos
sociais “colocaram nas duas últimas décadas uma nova pauta de discussão, em torno dos
processos identitários e do próprio conceito de identidade”.
O grande embate acerca da definição do conceito de identidade apresentado por Stuart
Hall (1990) se assemelha ao trazido por Laraia (2001) com relação ao conceito de cultura:
enquanto uma definição favorece o essencialismo, a outra preza pelo caráter de aquisição, o
vir a ser.
Há pelo menos duas maneiras de se pensar a „identidade cultural‟. A primeira
posição define „identidade cultural‟ em termos de uma cultura compartilhada, uma
espécie de „ser verdadeiro‟ coletivo, que se esconde dentro dos outros, mais
superficiais ou artificialmente impostos, os quais as pessoas com uma linhagem e
uma história em comum compartilham (HALL, 1990, p. 223, tradução minha).
Existe, porém, uma segunda visão, relativamente diferente, de identidade cultural.
Essa segunda posição reconhece que, assim como muitos pontos de semelhança, há
também pontos críticos de diferença profunda e significativa que constitui “o que
realmente somos”; ou melhor – desde que a história interviu – “o que nos
transformamos” (HALL, 1990, p. 225, grifo do autor, tradução minha).
De acordo com Tadeu Silva (2000, p. 28), ao considerar que a identidade é uma
questão de vir a ser, a segunda concepção apresentada por Hall não nega “que a identidade
tenha um passado, mas [devemos] reconhecer que, além disso, o passado sofre uma constante
transformação”. Dessa forma, podemos entender que a identidade é tanto marcada pela
semelhança quanto pela diferença. Ela é relacional e se encontra em constante negociação,
tanto entre grupos em oposição quanto em um mesmo indivíduo. Lidamos, mais do que com
identidades inteiras e fechadas, com a questão da identificação, múltipla e inconstante.
Segundo Silva (2000, p. 106), “a identificação é, pois, um processo de articulação, uma
suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção. Há sempre „demasiado‟ ou „muito
pouco‟ – uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma
totalidade”.
Ao argumentar que as identidades, individuais e/ou coletivas, são construídas através
dos discursos nos quais nos posicionamos e dos quais somos também posicionados, Vera
França (2006, p. 09) afirma que a “identidade está, portanto, intimamente relacionada com a
noção de sujeito (sujeitos são indivíduos dotados de uma identidade)”. Tal afirmação vai ao
encontro do pensamento de Hall (2006), que apresenta três concepções de identidade a partir
do sujeito do Iluminismo (indivíduo centrado e unificado); do sujeito sociológico (formado a
partir da relação com outros indivíduos); e do sujeito pós-moderno (fragmentado, sem
identidade fixa ou permanente).
É esse sujeito fragmentado que tem trazido à tona novas identidades, as quais Hall
(2006, p. 88, grifo do autor) define como “em transição, entre diferentes posições; que
retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto
desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num
mundo globalizado”. É a partir dessa fragmentação que o autor propõe três possíveis
consequências trazidas pela globalização às identidades culturais: a) a desintegração das
identidades nacionais e o fortalecimento da homogeneização cultural; b) o fortalecimento às
identidades locais como forma de resistência à globalização; c) uma nova articulação entre
local e global. Segundo ele:
Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando
destinada a acabar num lugar ou noutro: ou retornando a suas “raízes” ou
desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um
falso dilema. Pois há uma outra possibilidade: a da tradução (HALL, 2006, p. 88).
A tradução, segundo o autor, descreve identidades em áreas de interseção de
fronteiras, cujos representantes são pessoas dispersadas de seus locais de origem, ainda que
carreguem vínculos e tradições consigo. Segundo ele, “elas são obrigadas a negociar com as
novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder
completamente suas identidades” (HALL, 2006, p. 88). Tais sujeitos jamais serão unificados
no sentido defendido pelo sujeito iluminista, uma vez que eles são “o produto de várias
histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias „casas‟ (e
não a uma „casa‟ particular)” (Ibidem, p. 89). São, esses sujeitos, os reais habitantes de
culturas híbridas. Durante o intercâmbio, a outra casa era a casa com o outro. Como
exemplificado mais adiante, no meu caso particular, negociei e convivi com a identidade
australiana, a mineira e tantas outras, sem completamente perder a paraense e inclusive
ganhando a Amazônida.
De acordo com Hall (2013, p. 82, grifo do autor), o “hibridismo não é uma referência à
composição racial mista de uma população. É realmente outro termo para a lógica cultural da
tradução.” Além disso, “trata-se de um processo de tradução cultural, agonístico uma vez que
nunca se completa, mas que permanece em sua indecidibilidade” (Ibidem, p. 82).
Ainda que, como já mencionado, o deslocamento físico não seja uma obrigatoriedade
para o surgimento de identidades híbridas, devemos considerar que “posso saber o que se
passa simultaneamente em Hong Kong e em Paris, mas não posso estar simultaneamente em
dois lugares” (WOLTON, 2004, p. 74, grifo do autor). Desse modo, além das transformações
culturais propiciadas pelos avanços técnicos e tecnológicos, as migrações são também
responsáveis pela hibridização cultural. De acordo com Hall (2013, p. 49), “os processos das
chamadas migrações livres e forçadas estão mudando de composição, diversificando as
culturas e pluralizando as identidades culturais dos antigos Estados-nação dominantes, das
antigas potências imperiais, e, de fato, do próprio globo”.
Para Hall (2006), a tradição, por sua vez, representa justamente a tentativa de
reconstrução de identidades puras e fechadas, em oposição à tradução. Segundo o autor, “o
ressurgimento do nacionalismo e de outras formas de particularismo no final do século XX,
ao lado da globalização e a ela intimamente ligado, constitui, obviamente, uma reversão
notável, uma virada bastante inesperada dos acontecimentos” (Ibidem, p. 96). O autor
explica, ainda, que a tradição pode ser entendida como um cordão umbilical, responsável por
unir passado, presente e futuro, “cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença
consciente diante de si mesma, sua „autenticidade‟. É, claro, um mito – com todo o potencial
real dos nossos mitos dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações,
conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história” (Ibidem, p. 32).
Em Martín-Barbero (2004, p. 269), a globalização, de maneira paradoxal, devolve o
valor ao território do lugar, o que, “para M. Santos, se trata da impossibilidade de habitar o
mundo, e de nos inserir no global, sem algum tipo de âncora no espaço e no tempo”. É
provavel que essa busca por uma âncora ou por um cordão umbilical capaz de unir passado,
presente e futuro, justifique o encontro desses brasileiros no exterior. Sobre isso, Touraine
(1998) afirma que:
É verdade que vivemos um pouco juntos em todo o planeta, mas é igualmente
verdadeiro que por toda parte se reforçam e se multiplicam os grupos de identidade,
as associações baseadas na pertença comum, as seitas, os cultos e os nacionalismos.
(...) Quando estamos todos juntos, não temos quase nada em comum; e quanto
partilhamos crenças e uma história, rejeitamos os que são diferentes de nós”
(TOURAINE, 1998, p. 10).
Dessa forma, duas concepções devem ser mantidas em mente: a primeira, concebida
por Castles e Miller (1993) e apresentada por Silva (2000), diz respeito à migração e ao fato
de tal prática não ser exatamente recente, mas sim e sem dúvida, acelerada pela globalização,
e consequentemente ocasionar a reestruturação das sociedades do mundo inteiro. A segunda
concepção aqui a ser reiterada vem de Stuart Hall (2013, 2013, p. 65, grifo do autor), ao
afirmar que ainda que a sua tendência seja, sim, a homogeneização, “a globalização tem
causado extensos efeitos diferenciadores no interior das sociedades ou entre as mesmas”.
2.4 AS ILHAS-BRASIL
O encontro com brasileiros de diversas partes do país, propiciado pelo CsF,
possibilitou um melhor entendimento da própria constituição do Brasil. Como será discutido
mais adiante, estereótipos foram tanto confirmados quanto quebrados e especificidades
culturais foram apropriadas e ressignificadas. O Pará ficou mais próximo de Minas Gerais,
que ficou mais próxima de Pernambuco. Noto que a transformação cultural iniciada a partir
do CsF está longe de ser encerrada, visto que alguns dos laços criados durante o intercâmbio
permanecem até hoje. Durante o período na Austrália, pude ver as dimensões geográficas
continentais do meu próprio país abruptamente reduzidas.
O contato com estudantes do CsF contemplados com bolsas em outras localidades do
mundo, já fomentou a discussão acerca dessa união entre brasileiros no exterior. Há quem
seja contra, afirmando que a entrega cultural deve ocorrer com relação ao país visitado e não
com o próprio Brasil. Mas, se há a possibilidade de fazer as duas coisas, por quê não? Ao
meu ver, a possibilidade de conhecer tanto particularidades australianas quanto
especificidades antes desconhecidas sobre o meu próprio país, tornaram o meu intercâmbio
uma experiência ainda mais enriquecedora.
Agora que compreendemos que a identidade híbrida é uma característica de habitantes
das chamadas zonas de fronteiras, me volto à discussão de que o Brasil pode ser entendido
enquanto uma zona fronteiriça de população híbrida, ainda que não necessariamente
deslocadas de seus locais de origem. A esse respeito, o historiador Darcy Ribeiro (1995) fala
de seu espanto com relação ao fato de o Brasil, mesmo culturalmente diferente, ter se
mantido unido sob um único espaço geográfico:
É simplesmente espantoso que esses núcleos [crioulo, caboclo, sertanejo, caipira e
sulino] tão iguais e tão diferentes se tenham mantido aglutinados numa só nação.
Durante o período colonial, cada um deles teve relação direta com a metrópole e o
“natural” é que, como ocorreu na América hispânica, tivessem alcançado a
independência como comunidades autônomas. Mas a história é caprichosa, o
“natural” não ocorreu. Ocorreu o extraordinário, nos fizemos um povo-nação,
englobando todas aquelas províncias ecológicas numa só entidade (RIBEIRO, 1995,
p. 273).
A miscigenação cultural brasileira é algo que vem desde a origem do que hoje
entendemos por Brasil. Segundo o autor, “surgimos da confluência, do entrechoque e do
caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros
africanos, uns e outros aliciados como escravos” (Ibidem, p. 19). Devemos lembrar,
entetanto, que a miscigenação não garante a característica híbrida de uma população. Aqui, a
miscigenação é simplesmente entendida como a matriz cultural dos povos brasileiros. Como
afirma Tadeu Silva (2000, p. 87), “a identidade que se forma por meio do hibridismo não é
mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas”.
Segundo Ribeiro (1995, p. 272), a identidade brasileira é dotada tanto de uma matriz
básica quanto de uma flexibilidade, e “essa última característica lhe permitirá, como herdeira
de uma sabedoria adaptativa milenar, ainda dos índios, conformar-se, com ajustamentos
locais, a todas as variações ecológicas regionais e sobreviver a todos os sucessivos ciclos
produtivos, preservando a unidade essencial”. Nesse sentido, podemos ver uma semelhança
com relação ao pensamento defendido por Hall (2013, p. 49), quando afirma que “a cultura
não é apenas uma viagem de retorno. Não é uma „arqueologia‟. A cultura é uma produção”.
Mais do que uma simples herança do passado e um contínuo vir a ser, a cultura é uma eterna
articulação entre ambas, resultando em infinitas possibilidades de construção de novos
sujeitos. O autor prossegue, afirmando que:
Não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos
das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer
forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação
cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (Ibidem,
p. 49).
Foi, então, esse eterno se tornar, somado à uma mesma matriz cultural e a uma
flexibilidade adaptativa que criou o que Ribeiro (1995) chama de “ilhas-Brasil”. De acordo
com o autor, “essas ilhas-Brasil operaram como núcleos aglutinadores e aculturadores dos
novos contingentes apresados na terra, trazidos da África ou vindos de Portugal e de outras
partes, dando uniformidade e continuidade ao processo de gestação étnica, cujo fruto é a
unidade sociocultural básica de todos os brasileiros” (RIBEIRO, 1995, p. 270). Podemos
dizer que uma característica dessa unidade comum a todos os brasileiros é justamente a
flexibilidade e, ainda ela, adquirida.
Entre as características que reforçam o que há de comum entre todos os brasileiros
(apesar das diferenças), Darcy Ribeiro (1995) destina um certo enfoque à questão da língua e
à capacidade que tivemos de, em um espaço geográfico tão grande e a partir de matrizes tão
distintas, conseguir falar a mesma língua “só diferenciada por sotaques regionais, menos
remarcados que os dialetos de Portugal” (Ibidem, p. 22). Ainda sobre essa questão, Wolton
(2006, p. 137) considera as línguas “o primeiro elemento da diversidade cultural”, enquanto
que Laraia (2001, p. 69) afirma que as diferenças linguísticas são “o fato de mais imediata
observação empírica” na identificação de um indivíduo a partir de características culturais.
Isso pode ser exemplificado em dois momentos do intercâmbio: ao chegar à Austrália,
nós, brasileiros, nos aproximamos por termos a mesma língua e por estarmos juntos em
oposição à diferença cultural do outro estrangeiro, que tinha o inglês como língua materna;
posteriormente, foram as diferenças linguísticas dentro do próprio português que fizeram com
enxergássemos as demais diferenças culturais do Brasil.
Mesmo considerando que o Brasil fale um único idioma, o que pressuopõe uma
diminuição da diversidade cultural, os sotaques próprios de cada região, os termos
característicos de cada estado ou mesmo cidade, já fazem da incomunicação uma
possibilidade, considerando um diálogo entre representantes de práticas linguísticas distintas.
Assim, o português brasileiro pode ser entendido como uma força aglutinadora, por ser único,
mas, ao mesmo tempo, responsável por um certo distanciamento, devido às suas
particularidades regionais.
De maneira geral, a contribuição de Ribeiro (1995) é válida por levar em consideração
tanto os aspectos que aproximam quanto os que distanciam os brasileiros, e por trazer à
discussão a crença de que o que nos une ainda é maior e mais forte do que as nossas
diferenças culturais. Ele assinala que “apesar de feitos pela fusão de matrizes tão
diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos linguística e
culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra”. (RIBEIRO, 1995, p.
454).
Atento, apenas, para o fato de que, apesar da integração, existe, também, o
desconhecimento do Brasil por parte dos próprios brasileiros. A diversidade de sotaques e
expressões locais é só um exemplo da infinidade de práticas que variam de um lugar ao outro
do Brasil. Laraia (2001) relembra que “ainda entre nós, existe uma diversidade de interdições
alimentares que consideram perigoso o consumo conjunto de certos alimentos que
isoladamente são inofensivos, como a manga com o leite etc” (Ibidem, p. 16).
Destaco alguns aspectos que considero importante no encontro entre as culturas
brasileiras. Por exemplo, o consumo do açaí com leite em pó, comum no Sudeste do Brasil,
mas que me causa estranheza, devido à maneira consumida no estado do Pará, mais
especificamente na cidade de Belém, onde a fruta fresca é geralmente servida apenas com
açúcar e farinha. Os hábitos alimentícios são apenas um exemplo de como a alteridade
brasileira pode se apresentar enquanto um bloqueio à comunicação entre nossas culturas. Só o
fato de essas diferenças serem muitas vezes desconhecidas, já nos coloca novamente na
encruzilhada entre a celebração e a repulsa das diferenças.
2.5 IGUAIS, DIFERENTES E BRASILEIROS
“Fugir do igual, buscar o diferente; atravessar o diferente, buscar o igual...”
(FRANÇA, 2002, p. 32)
Sendo o Brasil um país cujo povo foi formado pela mesma, ainda que diversificada,
matriz cultural, não é difícil entender que “a questão da identidade aciona, no mesmo
movimento, a discussão tanto da similaridade quanto da diferença” (FRANÇA, 2002, pg. 28).
Não temos dificuldades em nos assumir como um mesmo povo, habitantes do mesmo país,
falantes da mesma língua, ainda que, vez ou outra, nos deparemos com o que nos distingue.
De acordo com Darcy Ribeiro (1995, p. 130), “a assunção de sua própria identidade pelos
brasileiros, como de resto por qualquer outro povo, é um processo diversificado, longo e
dramático”.
Originados a partir de tamanha diversidade, o autor se questiona o que seria a
característica única e distintiva dos brasileiros, já que nossa formação é composta de gente de
todas as partes. Ele mesmo responde, dizendo que a ação concreta, ao longo dos anos,
comprova que “hoje somos, apesar dos lusos e dos seus colonizadores, mas também graças ao
que eles aqui juntaram, tanto os tijolos biorraciais como as argamassas socioculturais com
que o Brasil vem se fazendo” (RIBEIRO, 1995, p. 146).
A própria assunção de uma identidade é, também, uma articulação entre diferença e
igualdade. Foi preciso nos assumirmos como brasileiros para nos diferenciarmos tanto dos
lusos, quanto dos negros e demais imigrantes, e até mesmo dos índios – dizemos que somos
brasileiros para expressar que somos a soma de todas essas origens. Dessa forma, tanto
durante o processo da formação da identidade brasileira, quanto hoje ou qualquer dia no
futuro, “quando digo „sou brasileiro‟ parece que estou fazendo referência a uma identidade
que se esgota em si mesma. „Sou brasileiro‟ – ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa
afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros” (SILVA, 2000, p.
75, grifo do autor).
Silva (2000, p. 75) afirma que “a forma afirmativa como expressamos a identidade
tende a esconder essa relação”, mas tal fato pode ser observado, ao nos perguntarmos, por
exemplo, com que frequência e em que situações precisamos afirmar “sou brasileiro”. Poucas
são as vezes – além dos períodos de Copa do Mundo e Eleições – em que precisamos
expressar o pertencimento da identidade brasileira para demarcar uma característica de
semelhança e/ou solidariedade. A cena muda drasticamente se nos imaginamos no exterior,
convivendo com pessoas de diferentes partes do mundo. Afirmamos que somos brasileiros
para deixar claro que não somos italianos, argentinos ou americanos – é a diferença que
demarca o local de fala, não a semelhança.
Enquanto Exchange Studant, categoria atribuída pela UWA à estudantes que fazem
apenas parte da graduação na universidade, os estudantes brasileiros tinham contato frequente
com outros alunos intercambistas, principalmente através de eventos realizados pelo Study
Abroad Office (Departamento de Relações Internacionais, em tradução livre)8
e por festas
organizadas pelo Perth International9
. Nessas situações, era inevitával a identificação a partir
de nacionalidades. O elo comum entre essas pessoas era tão superficial e frágil ao ponto de a
única coisa que um poderia conhecer do outro nesse primeiro momento, era a nacionalidade.
Nunca foi (tão) comum me apresentar através do meu nome e de minha nacionalidade.
Certamente o reforço constante e até então incomum da afirmação “sou brasileiro(a)” têm
seus efeitos, como apresentado mais adiante, no capítulo 4. Buscando estabelecer essa relação
entre esses atos de fala e identidade, Silva (2000, p. 77) afirma que,
8
Departamento da universidade responsável pelas questões burocráticas de todos os intercambistas.
9
Grupo estudantil que, entre outras coisas, promovia e incentivava a integração entre os estudantes
internacionais.
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  • 1. Universidade Federal do Pará Instituto de Letras e Comunicação Faculdade de Comunicação Comunicação Social – Jornalismo Amanda Torres Pinho DIFERENTEMENTE IGUAIS E IGUALMENTE DIFERENTES: A EXPERIÊNCIA COMUNICATIVA DE ESTUDANTES DO CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS NA AUSTRÁLIA BELÉM – PA 2014
  • 2. Amanda Torres Pinho DIFERENTEMENTE IGUAIS E IGUALMENTE DIFERENTES: A EXPERIÊNCIA COMUNICATIVA DE ESTUDANTES DO CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS NA AUSTRÁLIA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado junto ao curso de Comunicação Social - Jornalismo, da Universidade Federal do Pará, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel. Orientadora: Profa. Alda Cristina Silva da Costa. BANCA EXAMINADORA: ________________________________________ Profa. Ivone Maria Xavier de Amorim Almeida ________________________________________ Prof. Fábio Fonseca de Castro ________________________________________ Profa. Alda Cristina Silva da Costa BELÉM – PA 2014
  • 3. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, meu irmão e minha avó, pelo amor incondicional; À Clarice, por desafiar as leis de tempo e de espaço; À Maria Luiza, Isadora e Davi, pelos abraços mais verdadeiros e por sempre me darem motivos para seguir em frente; À Verena, por ser até hoje um exemplo e uma fonte de inspiração; Às de sempre: Paula, Brenda, Victória e Ana Paula, por se fazerem presentes mesmo quando eu estive distante; À Paloma, Anne, Mayara e Carol, por sempre embelezarem a beira do rio, os corredores da FACOM e os últimos quatro anos; Aos amigos do Bagageiro e demais colegas da turma de 2011, por terem me recebido tão bem quando eu mais precisava; À UFPA, por representar tanto o ponto de partida quanto o de chegada de toda a minha experiência acadêmica até aqui; à Professora Maria Ataíde Malcher, por um primeiro semestre inesquecível; à Reg e ao Pedro, por terem sido grandes colegas, além de professores; Ao CNPq, pela oportunidade de realizar um ano da graduação no exterior - e por todas as lições sobre não desistir nunca; À UWA, pela acolhida; à Jessica, à Carolyn e demais membros do Study Abroad Office, por todo o suporte; à Siri e demais colaboradores do Student Services, pela paciência incontestável; e aos professores Celeste, Tauel, Ian e Robin, pelos ensinamentos tão edificantes; À Ana, Camilla, Pedro e Lídio, por tudo o que foi vivido na Miller St. e aos demais 28 amigos sem fronteiras, sem os quais essa pesquisa seria duplamente impossível; À Professora Alda Costa, por ter sido em parte orientadora e em parte psicóloga; à Silvia Vasconcelos, por ter sido em parte psicóloga e em parte orientadora; e à Vânia Torres, que, além de orientadora e psicóloga, é também tia; À Lú, por toda a compreensão e flexibilidade; ao Flávio, por todas as trocas acadêmicas, profissionais e pessoais; Ao Brunno, por muito mais do que o título desse trabalho; e a todos os demais Ovelhas, pelos momentos de trabalho e diversão. À Deus e Meishu-Sama, pelo merecimento de ter trilhado o caminho que me trouxe até aqui.
  • 4. “Cruzar fronteiras” siginifica não respeitar os sinais que demarcam – “artificialmente” – os limites entre os territórios das diferentes identidades” (SILVA, 2000, p. 88).
  • 5. RESUMO Diferentemente iguais e igualmente diferentes é uma pesquisa que busca entender como se constitui a experiência comunicativa de 18 estudantes brasileiros, bolsistas do programa Ciência sem Fronteiras (CsF), na Austrália. Culturalmente falando, observa-se a existência de diversos „brasis‟, ainda que dentro dos próprios limites geográficos do país. Assim, a diversidade cultural interna do Brasil torna-se relevante à pesquisa em comunicação a partir do momento em que é estabelecido um diálogo entre representantes dessas regiões. Tal interação vem sendo proporcionada pelo CsF, ainda que no exterior. O programa, do Governo Federal, foi implementado em 2011 e fomenta a mobilidade acadêmica internacional visando o incentivo à e a qualificação da ciência brasileira. Essa pesquisa foi realizada através da aplicação de questionários, da realização de entrevistas e também por meio da perspectiva autoetnográfica. Uma vez no exterior, esses brasileiros se depararam com o duplo outro: o estrangeiro/australiano; e o brasileiro, com o qual existem similaridades compartilhadas, mas que, por também se apresentar como o outro, causa tensões identitárias. O principal elo de união do grupo foi a língua, característica contraditoriamente também apontada como a mais diversificada regionalmente. Constata-se, ainda, uma ideia de identidade nacional, vista como mais forte do que as diferenças regionais, o que, principalmente através da criação de laços e de grupos de afinidade, possibilitou o convívio e a comunicação do grupo. Palavras-chave: Comunicação intercultural; Comunicação interpessoal; Diáspora; Identidade.
  • 6. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Quadros QUADRO 1 – PARTICIPANTES 15
  • 7. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 8 1 A COMUNICAÇÃO COMO OBJETO 18 1.1 PERSPECTIVAS COMUNICACIONAIS 19 1.2 O OUTRO NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO 23 1.3 EU-OUTRO: ENTRE A INCOMUNICAÇÃO E A COABITAÇÃO 25 1.4 A CONVERSA ENTRE AS CULTURAS 31 2 HÍBRIDOS CULTURAIS 37 2.1 A COMUNICAÇÃO ENQUANTO MEDIADORA CULTURAL 37 2.2 PARA ALÉM DO DIÁLOGO MULTICULTURAL 39 2.3 ENTRE TRADIÇÃO E TRADUÇÃO 43 2.4 AS ILHAS-BRASIL 47 2.5 IGUAIS, DIFERENTES E BRASILEIROS 51 3 A DIÁSPORA TEMPORÁRIA 57 3.1 O PROGRAMA CIÊNCIA SEM FRONTEIRAS 57 3.2 EU-OUTRO EM DIÁSPORA 59 3.3 O INTERCÂMBIO: A VIDA EM TRANSIÇÃO 62 4 A EXPERIÊNCIA COMUNICATIVA 67 4.1 O PROCESSO METODOLÓGICO 67 4.2 INTERPRETAÇÃO DOS DADOS 70 4.2.1 PERCEPÇÕES CULTURAIS 71 4.2.2 A QUESTÃO DO ESTEREÓTIPO 73 4.2.3 A (RE)CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA 75 4.2.4 A QUESTÃO GEOGRÁFICA 81 4.2.5 A LÍNGUA E A IDENTIDADE BRASILEIRA 83 4.2.6 A AFINIDADE 88 4.2.7 AS EXPERIÊNCIAS MAIS MARCANTES 90 4.2.8 O ENCONTRO COM O OUTRO DAQUI PARA FRENTE 93 CONSIDERAÇÕES FINAIS 96 REFERÊNCIAS 99 APÊNDICES 101
  • 8. INTRODUÇÃO Do choque entre portugueses e índios, da chegada dos escravos africanos e de outros imigrantes europeus, a miscigenação do povo brasileiro. Povo esse que, ao somar e se apropriar das práticas culturais de cada uma dessas origens, se diferencia de suas matrizes, tornando-se único. Ainda assim, nem de longe a nacionalidade garante a homogeneidade. Somos vários “brasis” dentro de um mesmo limite geográfico, formando, então, o que Darcy Ribeiro (1995, p. 270) chamou de um país composto por ilhas, as ilhas-Brasil, “cada uma delas singularizada pelos ajustamentos às condições locais, tanto ecológicas quanto de tipos de produção, mas permanecendo sempre como um renovo genésico da mesma matriz”. Não obstante, existe ainda um desconhecimento mútuo entre as regiões, ou um conhecimento superficial, incapaz de abarcar um entendimento geral sobre a cultura desse outro tão próximo, mas ao mesmo tempo tão distante. Assim, o entendimento de como a diferença cultural interna do Brasil se mostra presente na conversação entre culturas brasileiras propicia o conhecimento e a compreensão não só de fenômenos culturais, mas também comunicacionais do país. Foi o interesse por culturas distintas, mais especificamente, por culturas falantes da língua inglesa, o que me levou a procurar por programas de intercâmbio. O interesse na mobilidade acadêmica me acompanhava desde 2011, em especial pela vontade de aperfeiçoar a segunda língua. No início do segundo período letivo de 2012 me inscrevi pela primeira vez no programa Ciência sem Fronteiras (CsF). Inicialmente, busquei uma vaga em universidades norte-americanas, mas tive a candidatura indeferida pelo fato de a área da Comunicação não estar entre as prioritárias do programa. Me candidatei ao edital australiano e fui, então, selecionada em junho de 2012. A seleção para o programa ocorre de maneira diferenciada em cada edital, variando principalmente de acordo com o país de destino. No edital ao qual fui selecionada, a inscrição
  • 9. se deu em três etapas: a primeira, local, foi realizada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), e levou em consideração o Coeficiente de Rendimento Geral (CRG) dos estudantes inscritos. A segunda etapa, nacional, foi realizada pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e/ou pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e avaliou o Currículo Lattes e a proficiência na língua estrangeira. A etapa final coube à Latino Australia Education (LAE), agência de intercâmbio incubida pelo CsF de estabelecer o contato com as universidades australianas e de realizar o placement dos estudantes. Nessa etapa, aplicávamos diretamente às universidades parceiras1 (através da LAE), informando duas opções de universidades e dois possíveis planos de curso. Assim, fui selecionada para a University of Western Australia (UWA), minha segunda opção de destino. Algumas das experiências proporcionadas pelo intercâmbio serão aqui descritas, mas vale ressaltar, por ora, a de ter escrito um projeto à disciplina Case studies in communication intitulado Communicating overseas: a case study about brazilians using English as a second language, no qual apresentei um estudo de caso sobre seis brasileiros utilizando o inglês como segunda língua em situações domiciliares e em interação com um nativo. Tanto o aprofundamento nas pesquisas sobre comunicação interpessoal e comunicação intercultural quanto o levantamento de dados para e elaboração desse trabalho, fomentaram o interesse pela realização da presente pesquisa. O projeto foi traduzido ao português e publicado como um artigo na Revista Iniciacom2 em novembro de 2013, sob o título “Comunicação Intercultural: um estudo de caso sobre brasileiros utilizando o inglês como segunda língua”. 1 Nesse edital, somente as universidade integrantes do Group of 8 (Go8), aliança de oito universidades tradicionais australianas, podiam ser selecionadas para a realização do intercâmbio. Sobre o Go8: <https://go8.edu.au/>. Acesso em 11 Junho 2014. 2 Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/iniciacom/article/view/1759/1629>. Acesso em 8 Junho 2014.
  • 10. Implantado em 2011, o CsF é um programa de intercâmbio do Governo Federal com financiamento do CNPq e da CAPES que, segundo o site oficial3 “busca promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional”. O CsF apresenta-se, atualmente, como terreno propício à análise da interação entre culturas brasileiras, ainda que no exterior, uma vez que o programa tem possibilitado o convívio entre brasileiros de diversas regiões do país em diversas partes do mundo. Através do contato com outros bolsistas do CsF, pude constatar que, uma vez no exterior, os estudantes brasileiros tendem a se encontrar, a criar laços e, por vezes, até a morar juntos. É de meu conhecimento que essa socialização entre brasileiros de diversas localidades ocorreu durante o período da bolsa do CsF em Pisa, na Itália; em Londres, no Reino Unido; e em Adelaide, Melbourne, Sydney e Perth, na Austrália. A análise da experiência comunicativa entre representantes da diferença cultural brasileira durante o intercâmbio pode ser justificada em três instâncias distintas. Primeiramente, o CsF é um programa recente, que visa justamente o avanço da ciência e da tecnologia brasileira, mas que ainda carece de pesquia acerca de seus resultados e beneficios reais, uma vez que tais estudos ainda são, atualmente, quase nulos4 . Além disso, Jane Jackson (2008, p. 03), 3 www.cienciasemfronteiras.gov.br. 4 Somente três trabalhos acadêmicos abordando o Ciência sem Fronteiras e/ou as experiências proporcionadas pelo programa foram encontrados previamente à realização dessa pesquisa. A saber: Relato de Experiência de Renata de Moura Bubadué, graduada em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Disponível em: <http://cascavel.cpd.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/reufsm/article/view/7922>. Acesso em 10 Junho 2014; Relato de Experiência na área da Engenharia, desenvolvido pela graduanda Jéssica Magally de Jesus Santos, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Disponível em: <http://www.fadep.br/engenharia-eletrica/congresso/pdf/117852_1.pdf>. Acesso em 10 Junho 2014; e Trabalho de Conclusão de Curso defendido por Juliana Raquel Silva Souza, da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), também graduada em Enfermagem. Disponível em: <http://dspace.bc.uepb.edu.br:8080/jspui/bitstream/123456789/2233/1/PDF%20- %20Juliana%20Raquel%20Silva%20Souza.pdf>. Acesso em 10 Junho 2014.
  • 11. professora do Departamento de Inglês da Chinese University of Hong Kong, menciona a necessidade de pesquisas empíricas sobre intercâmbios, visto que a literatura existente pode ser considera “anedotal e não baseada em pesquisa”. Por fim, “as descrições da diversidade cultural interna do Brasil tendem a ser de natureza intuitiva e anedotal” (HOFSTEDE et al. 2010, p. 339, tradução minha), o que justifica uma análise cuidadosa do tema, a partir da observação da conversação entre representantes dessa diversidade, e da descrição dessas situações por parte dos próprios atores envolvidos. Considerando que “as identidades e as diferenças de indivíduos e coletividades não se encontram „dadas‟ de maneira completamente definida, algo perfeito e acabado, mas são articuladas no processo de convivência e comunicação entre os atores sociais em contextos específicos (FRANÇA 2002, pg. 12)”, essa pesquisa busca entender a experiência comunicativa partilhada por alguns estudantes universitários brasileiros durante o intercâmbio, observando possíveis tensionamentos culturais e negociações indentitárias. Enquanto bolsista do CsF na modalidade Graduação Sanduíche no Exterior na University of Western Australia (UWA), em Perth, na Austrália, entre Julho de 2012 e Julho de 2013, apresento, aqui, o local de fala da pesquisa, uma vez que as discussões trazidas nessa monografia são oriundas de experiência e observação próprias. A essas, através de questionários e entrevistas, somo as contribuições dos meus pares, que vivenciaram experiências semelhantes, no mesmo local e durante o mesmo período, também integrantes do primeiro grupo de graduandos brasileiros do CsF a compor o quadro de alunos da UWA. Delimito, assim, o universo dessa pesquisa. O grupo em questão é composto por 32 alunos universitários, estudantes de diversas áreas do conhecimento, com representantes oriundos de todas as regiões do país. A maioria vem da região Sudeste (18 estudantes), sendo Minas Gerais o estado com o maior número de bolsitas (10 estudantes), equanto que as regiões Norte e Centro-Oeste contam com apenas um
  • 12. representante cada, dos estados do Pará e de Goiás, respectivamente. Muitos desses bolsistas optaram por morar juntos durante toda ou parte da estadia no exterior, o que possibilitou a identificação e a consciência acerca das diferenças culturais do Brasil por parte dos próprios alunos. O objeto dessa monografia é apresentado através de um estudo de caso, metodologia indicada quando “se pretende examinar eventos contemporâneos, em situações onde não se podem manipular comportamentos relevantes” (DUARTE, 2005, p. 219). Ao retratar a realidade de forma completa e profunda, o pesquisador destaca a multiplicidade de dimensões presentes em uma determinada situação, enfatizando a sua complexidade natural e revelando as possíveis inter-relações de seus componentes. Nos estudos de caso, os detalhes de um objeto o tornam único, pois suas imperfeições, na verdade, traduzem sua história (Ibidem, p. 233). Saliento que a abordagem escolhida para a realização desse estudo de caso é considerada autoetnográfica, ou seja, “examina as experiências do próprio eu para assim questionar e expandir suas experiências para análises comunicativas” (WARREN 2009, p. 68, tradução minha). A autoetnografia considera que “o eu também é produto da cultura; assim, o eu e a cultura são co-construídos, cada um criando e sustentando o outro” (Ibidem, p. 69, tradução minha). Enquanto método de pesquisa em comunicação, a autoetnografia é um processo de teorização a partir das experiências pessoais de alguém. Seja ela um complemento à etnografia tradicional ou um projeto unicamente contruído de narrativas em primeira pessoa, a autoetnografia funciona, a partir de uma experiência pessoal, para movimentar uma história da cultura que examine como as experiências comunicacionais de um indivíduo são representativas (ou construtivas) da cultura. (Ibidem, p. 69, tradução minha).
  • 13. Além da abordagem autoetnográfica, essa pesquisa contou com a aplicação de questionários subjetivos online e com a realização de entrevistas online para a coleta de dados. Dos 32 estudantes do CsF desse primeiro grupo a ingressar na UWA, 18 compõem o corpus de análise desse estudo, sendo que 16 participantes responderam ao questionário e outras 2 participantes concederam entrevista com gravação e transcrição de áudio. No Quadro 1 abaixo, apresento brevemente os 18 participantes que compõem essa pesquisa. Visando a privacidade dos estudantes, todos os nomes aqui utilizados são pseudônimos. Quadro 1 – Participantes Participante Idade Localidade de origem Área de estudo BR? #BR Hugo 23 São Paulo, São Paulo Arquitetura S 1 Márcio 22 Fortaleza, Ceará Biologia S 2 Francisco 26 Canoas, Rio Grande do Sul Arquitetura N 0 Iago 23 Jataizinho, Paraná Engenharia S 5 Gustavo 24 Belo Horizonte, Minas Gerais Engenharia S 1 Ricardo 24 Belo Horizonte, Minas Gerais Engenharia S 4 Julie 27 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro Engenharia N 0 Breno 20 Belo Horizonte, Minas Gerais Biologia S 5 Carolina 23 Ribeirão Preto, São Paulo Engenharia S 5 Luís 29 Recife, Pernambuco Educação Física S 5 Rafaela 24 Curitiba, Paraná Arquitetura N 0 Lúcio 23 Belo Horizonte, Minas Gerais Engenharia N 0 Vinícius 22 Curitiba, Paraná Medicina S 5 Maurício 21 Montes Claros, Minas Gerais Medicina S 5 Luan 23 Niteroi, Rio de Janeiro Engenharia S 4 Giovana 21 Montes Claros, Minas Gerais Medicina S 5 Catarina 23 Goiânia, Goiás Arquitetura S 7 Aline 25 Divinópolis, Minas Gerais Biologia S 7 Fonte: Elaboração Própria, com dados retirados das entrevistas Legenda: BR?: Morou com brasileiro?; S: Sim; N: Não; #BR: número de brasileiros com os quais o participante morou. Observa-se que os mineiros se encontram em maior número no corpus da pesquisa, sete ao todo. Também são sete os estudantes graduandos em alguma Engenharia, área do
  • 14. conhecimento com maior representantes na pesquisa. A idade média do grupo é de 23,5 anos, sendo Luís o participante mais velho entre todos os 32 estudantes do grupo, com 29 anos à época da pesquisa, e Breno o participante mais novo, com 20 anos. Vale ressaltar alguns pontos com relação ao convívio desses alunos entre si e com outros brasileiros. Dos 18 participantes, apenas seis (Márcio, Iago, Julie, Lúcio, Vinícius e Giovana) não estão entre os 18 estudantes que moraram no hostel durante as duas primeiras semanas. Optei por considerar que Francisco e Rafaela não moraram com brasileiros durante o intercâmbio, uma vez que esse tipo de convívio só se deu no hostel e que a estadia foi curta. Hugo morou por apenas um mês com um brasileiro, estudante do CsF, mas selecionado por outro edital, não constando no universo da pesquisa. Iago, que tem familiares em Perth, morou com brasileiros não estudantes do CsF durante toda a sua estadia na cidade. Gustavo morou com uma brasileira não estudante do CsF por um mês e meio, logo após a saída do hostel. Dos participantes que integram a pesquisa, Julie e Lúcio foram os únicos que não moraram com nenhum brasileiro em nenhum momento do intercâmbio. As estrevistas com as participantes Catarina e Aline online foram realizadas via Skype nos dias 07 e 28 de Abril de 2014, respectivamente, com gravação e posterior transcrição de áudio. Os demais participantes submeteram respostas ao questionário online entre os dias 30 de Março e 06 de Junho de 2014. Aqui, vale salientar as dificuldades encontradas para o levantamento de dados. Primeiramente, a distância geográfica foi uma grande limitadora, impossibilitando entrevistas presenciais e, por isso, a escolha pela coleta de dados online. Além disso, a própria disponibilidade dos participantes se apresentou como um impecílio, justificando inclusive a disparidade entre o número de entrevistas e o número de questionários. Assim, a pesquisa objetiva analisar como se deu a experiência comunicativa desses 18 estudantes universitários brasileiros (somada a minha) durante a mobilidade acadêmica
  • 15. internacional fomentada pelo CsF na cidade de Perth, na Austrália. De maneira mais específica, objetiva-se, também, discutir a articulação das tensões identitárias na situação da diáspora, identificar as diferenças culturais brasileiras presentes no relato qualitativo das interações entre esses estudantes, além de possibilitar estudos e pesquisas futuras acerca do programa Ciência Sem Fronteiras. Destaco, assim, a importância dos relatos sobre uma cultura específica a partir da concepção de seus próprios participantes, além do entendimento desses indivíduos sobre culturas distintas e como esses aspectos se mostram relevantes às trocas comunicacionais estabelecidas entre esses grupos. Desse modo, a auto-percepção dos atores envolvidos e os relatos sobre tais percepções se mostra de fundamental importância à essa pesquisa, reiterando-se que “quem você acredita que você é culturalmente, com todas as restrições de seu mundo social, todas as variadas maneiras pelas quais os outros o vêem, é quem você é” (MATHEWS, 2000, p. 28, tradução minha, grifo do autor). Foi a oportunidade de estudar e viver no exterior que propiciou a mim e a esses estudantes o convívio com brasileiros de regiões distintas, o que só então os tornou cientes de certas diferenças culturais. Estando literalmente do outro lado do mundo, lidando com situações, pessoas e costumes diferentes, a presença de outros brasileiros garantia um certo senso de conforto. Assim, destaco que, durante esse convívio no exterior, foi possível observar não só a existência das diferenças regionais, mas também o reforço do que era comum: a nacionalidade. Para muitos de nós, o “ser brasileiro” foi o elo inicial de identificação, o qual, muitas vezes, até mesmo justificou o primeiro contato. Ao apresentar uma ideia de George Lamming, Stuart Hall (2013, p. 29) afirma que foi somente em Londres que sua geração tornou-se caribenha, uma vez que, “na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas. Junto com os elos que os ligam a uma ilha de origem específica, há outras forças centrípetas: há a qualidade de ser „caribenho‟ que eles
  • 16. compartilham com outros migrantes do Caribe”. Assim, o elo partilhado, o “ser brasileiro”, apresenta-se enquanto elo facilitador durante trocas comunicacionais que necessitavam, entre outras coisas, superar as possíveis diferenças regionais. No primeiro capítulo da pesquisa, discuto as perspectivas comunicacionais e, através de uma breve discussão epistemológica, posiciono as interações ocorridas em contexto específicos enquanto objeto de estudo da comunicação, sempre fazendo associações com o objeto da pesquisa. Além disso, apresento, também, os três elementos indispensáveis à qualquer troca comunicacional: o sujeito, o outro e a cultura. O sujeito e o outro são sempre mutualmente influenciáveis. Essa influência, por sua vez, é também dependente do terceiro item: a cultura. Essa, por sua vez, é mais amplamente discutida no decorrer do segundo capítulo, que apresenta a comunicação enquanto mediadora das transformações culturais. Nesse capítulo faço um panorama sobre a questão multicultral do Brasil, apresentando-o enquanto um país híbrido, uma vez que favorece a interação entre as diversas culturas que o habitam. Discuto, também, a articulação dos estudantes brasileiros com o duplo outro encontrado – o brasileiro e o estrangeiro. Depois de discutir perspectivas comunicacionais e culturais durante o primeiro e o segundo capítulo, apresento, no terceiro capítulo, questões particulares ao contexto no qual se deu a experiência comunicativa analisada. Assim, além de apresentar o programa Ciência sem Fronteiras, posiciono esse intercâmbio enquanto uma diáspora temporária e discuto questões indentitárias acossiadas à situação da mobilidade. Dedico o quarto e último capítulo à apresentação e interpretação dos dados levantados. Através da análise dos 16 questionários recebidos, das 2 entrevistas realizadas e de observações próprias, criei oito categorias de análise com o intuito de enteder como se deu a
  • 17. experiência comunicativa desses 18 estudantes (e também minha) durante o período em que fomos bolsistas do CsF em Perth, na Austrália.
  • 18. 1 A COMUNICAÇÃO COMO OBJETO “Com a comunicação, a paixão está tão envolvida quanto a razão” (WOLTON, 2004, p. 38) O presente capítulo visa entender a comunicação como objeto de pesquisa, pensando sempre no estudo de caso dessa monografia, o qual analisa a comunicação intercultural e interpessoal. Se faz necessária a discussão acerca do sujeito e do outro. No caso do objeto desse trabalho, esse outro se apresenta enquanto um duplo outro: o estrangeiro, geralmente australiano; e o outro brasileiro, que assim se apresenta devido às diferenças regionais do Brasil. Visto que é na interação entre esses brasileiros de diferentes localidades que se constrói o objeto dessa pesquisa, é necessário entender que, na concepção de Wolton (2004), a comunicação é constituida por uma dupla hélice: a normativa e a funcional. O autor relaciona cada uma dessas facetas da comunicação aos sentidos da própria palavra: o de comunhão e o de transmissão, respectivamente. É a partir dessa ambiguidade presente na própria definição da palavra que busco, nesse capítulo, apresentar a relevância de estudos que se dediquem a análise de experiências comunicativas, e não de processos técnicos ou midiatizados. Ao discutir tais processos, José Luís Braga (2011, p. 70) se utiliza da expressão “midiatização”, por considerar que “a expressão [mídia] tende a sublinhar aspectos temáticos do objeto, relacionando a palavra a duas referências materiais – seja a „mídia-empresa‟, seja a „mídia-tecnologia‟”. Assim, midiatização, de acordo com o autor, pode ser entendida como:
  • 19. Um conjunto complexo de ações de sociedade (incluindo aí, é claro, a organização empresarial e o desenvolvimento tecnológico) que crescentemente se estabelecem como processo interacional de referência, passando a abranger e direcionar os processos gerais anteriores: os da escrita, que anteriormente (e ainda) se apresenta como processo de referência principal, subsumindo a generalidade de processos; e os da oralidade tradicional (Ibidem, p. 70, grifos do autor). Nesse alinhavo também levo em consideração a discussão acerca da constituição do sujeito, agente dessa comunicação, assim como a construção do outro, sempre presente nas interações, mas muitas vezes distante. Esse contato com o outro é, então, visto enquanto uma experiência necessária e até mesmo inevitável, ainda que comportadora de riscos. Assim, a partir de uma breve discussão epistemológica e da definição do objeto da comunicação, caracterizo a análise de interações comunicativas em seu aspecto normativo, que considerem a presença e a imprescindibilidade do sujeito e do outro em um dado contexto, enquanto objeto específico do campo da comunicação. Tal discussão teórica se faz necessária para compreender a relação estabelecida entre os participantes desse estudo de caso no contexto do intercâmbio em interações com o já mencionado duplo outro (estrangeiros e brasileiros de diferentes localidades). Na construção do processo comunicativo, dialogo com os estudiosos Dominique Wolton (2004; 2006), Vera França (2001; 2002; 2006), José Luiz Braga (2011), Jesús Martin- Barbero (2004) e Tadeu Silva (2000). 1.1 PERSPECTIVAS COMUNICACIONAIS “Eis a vitória da comunicação: a passagem da transmissão para a mediação” (WOLTON, 2006, p. 141)
  • 20. Inata aos seres humanos, a comunicação nos acompanha desde muito cedo e em todas as instâncias de nossa vida. Ainda no berço, através do choro; na vida adulta, através das roupas que vestimos, do corte de cabelo que adotamos, ou da forma como nos relacionamos com os demais a nossa volta. Tudo em nós comunica. É justamente essa “naturalização” da comunicação que, contraditoriamente, impõe certas dificuldades ao estudo e até mesmo à constituição do campo. Dominique Wolton (2004, p. 38) considera que “a dificuldade de uma lógica do conhecimento sobre a comunicação” se dá, primeiramente, porque “cada um, sendo praticante da comunicação, sente-se especialista por natureza” (Ibidem, p. 38). Outras duas dificuldades apontadas pelo autor são: a) o fato de a comunicação ser uma área nova; e, b) a dificuldade de distanciamento dos pesquisadores para com seus objetos, uma vez que a área envolve paixões na mesma medida em que envolve a razão – o que pode ser até mesmo comprovado, dado o recorte realizado na presente pesquisa. Ao explicar o fato de a comunicação ser tanto necessidade quanto essência da modernidade, o que chama de “a ambivalência da comunicação” (WOLTON, 2004, p. 57), o autor recorre à etimologia da palavra, onde ambos os sentidos também podem ser recuperados. A partir de sua origem latina, communicare, a palavra comunicação remete à ideia de partilha e comunhão, ou seja, a busca do outro e o desejo de compartilhar. O segundo significado “está ligado ao desenvolvimento das técnicas, começando pela primeira, a imprensa” (Ibibem, p. 57), aí relacionado à ideia de transmissão e difusão. Observo aqui a primeira distinção entre os objetos do campo da comunicação relevante para o desenvolvimento dessa pesquisa. Opto, assim, por apresentar a comunicação vivida por um grupo específico de pessoas, em um dado contexto, em sentido de partilha e de eterna busca pelo outro e pela sua compreensão.
  • 21. De maneira semelhante, Vera França (2001)5 também define o objeto do campo da comunicação e o diferencia justamente enquanto os meios de comunicação, responsáveis pela difusão e transmissão de mensagens, e os processos comunicativos, a partilha. A autora relembra que os estudos pioneiros do fim do século XIX e de todo o século XX são marcados pela análise do primeiro, em especial devido ao surgimento do rádio e da televisão. Entretanto, a pesquisadora elenca duas problemáticas com relação a esse objeto da comunicação. Ao mesmo tempo em que a análise das mídias pode se desdobrar em questões múltiplas “tais como a técnica, a política, a economia, o consumo, a vida urbana, as práticas culturais, a sociabilidade, etc” (Ibidem, p. 04), também pode-se dizer que fechar o objeto da comunicação no campo das mídias é uma operação redutora, pois exclui outras práticas comunicativas “que edificam e marcam a vida social – e não passam pelo terreno das mediações tecnológicas” (Ibidem, p. 04-05). Do mesmo modo que a pesquisadora justifica a notoriedade de estudos relacionados aos meios de comunicação durante os séculos XIX e XX, José Luís Braga (2011, p. 68) afirma que tal centralidade se dá, entre outros motivos, devido “a importância dos MCS6 como processo comunicacional e de produção de sentidos compartilháveis na sociedade contemporânea”. Foi comungando do pensamento de Vera França (2001) que se deu a escolha pelo objeto aqui em análise. A relevância dos meios de comunicação, não só aos estudos do campo da comunicação, mas também na produção de sentidos da vida contemporânea, pode ser verificada através da extensa literatura dedicada à essa temática. As mediações tecnológicas podem até direcionar os processos comunicativos como um todo, mas, ainda assim, elas não estão necessariamente (ou não diretamente) presentes em todas as instâncias 5 Texto apresentado à Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós) em 2001, Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1266.pdf>, acesso em 05 Abril, 2014. 6 Meios de Comunicação Social.
  • 22. das interações da vida cotidiana, por isso a escolha por um objeto que preze pela instância normativa e interacional da comunicação. Mesmo privilegiando o enfoque aos processos comunicativos ou interacionais, vale ressaltar que tal escolha não pressupõe a aceitação de todo e qualquer recorte da vida social como um potencial objeto da comunicação – há que se encontrar o que há de comunicacional em tal recorte. Ainda que divergentes em outros pontos – como com relação a condição inter ou transdisciplinar do campo, por exemplo – França (2001) e Braga (2011) concordam que a peculiaridade do estudo da comunicação se encontra no ponto de vista atribuído a um determinado objeto. Como me parece claro, hoje, que o objeto da Comunicação não pode ser apreendido enquanto “coisas” nem “temas”, mas sim como um certo tipo de processos epistemicamente caracterizados por uma perspectiva comunicacional – nosso esforço é o de perceber processos sociais em geral pela ótica que neles busca a distinção do fenômeno (BRAGA, 2011, p. 66, grifo do autor). É este alcance – permitindo-nos analisar situações tão diferenciadas – e este olhar especializado – possibilitando-nos achar um denominador comum em todas essas situações – que caracterizam o nosso saber e fazem do viés da comunicação um lugar de conhecimento. (FRANÇA, 2001, p. 15, grifo da autora). O estudo quase que majoritário dos meios de comunicação trouxe, por muito tempo, a discussão acerca do receptor e de sua condição – primeiramente entendida enquanto passiva e posteriormente como ativa. Ainda assim, “na sociedade em midiatização, a interação se manifesta mais claramente como um fluxo sempre adiante” (BRAGA, 2011, p. 68, grifo meu). A mensagem será, sim, não só devolvida, como entregue transformada ao seu ponto inicial, mas não de maneira imediata, como percebido em uma conversação entre interlocutores. Mais recentemente, entretanto, há uma valorização do enfoque às práticas comunicativas – o deslocamento dos meios às mediações, aqui também defendido. Nas
  • 23. palavras de Vera França (2006, p. 08), “os estudos voltam-se para a caracterização dos grupos sociais, das situações vividas, abandonando, de certa forma, a relação propriamente dita de consumo e recepção dos produtos midiáticos”. Assim, tal abordagem suscita a discussão acerca dos elementos que ao mesmo tempo afetam e são afetados por tais práticas: o sujeito em comunicação, o outro e o terceiro elemento – a cultura, mais amplamente discutido no decorrer do segundo capítulo da monografia. 1.2 O OUTRO NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO “O eu só existe a partir das relações interpessoais” (FRANÇA, 2006, p. 10) Segundo Dominique Wolton (2004), a comunicação abrange os principais valores contemporâneos, como a liberdade, a democracia, o indivíduo e o direito à expressão. Para o autor, é essa estrita relação com a modernidade que garante o sucesso da comunicação: “foi por ela que os mundos fechados abriram-se uns para os outros, que desenvolveram o comércio, para trocar bens e serviços, antes de trocar ideias, artes e cartas”. (Ibidem, p. 49). Tal abertura, entretanto, incita uma contradição: a manutenção da autonomia do eu e a aceitação do outro. Segundo o autor, “estamos ao mesmo tempo livres e conectados, móveis e ligados. Estas duas maneiras de ser, aparentemente contraditórias, têm a mesma importância: a liberdade e a relação” (Idem, 2006, p. 29, grifo do autor). Necessitamos e inclusive buscamos autonomia e liberdade, mas, como veremos a seguir, o outro, assim como a relação com esse outro nos é imprescindível. Wolton (2006, p. 28, grifo do autor) também questiona- se: “Por que ser livre se é para estar sempre conectado?”. A resposta é bem simples: para se comunicar (com o outro).
  • 24. De acordo com Vera França (2006), é essa relação com o outro que, ao mesmo tempo, cria o laço social estabelecido pela palavra (e não mais pela tradição), assim como constrói a noção de sujeito, a partir da “crítica da tradição, na perda das certezas estabelecidas, no direito à diferença – situação que instaura a relatividade e o risco da impossibilidade da comunicação (do nós compartilhado)” (Ibidem, p. 10-11). Diferentemente do sujeito iluminista, centrado e racional, o sujeito é agora entendido como dividido, atravessado por rupturas, afetando e sendo simultaneamente afetado em sua constituição pelo outro e pelo contexto de suas experiências. São as relações que constituem esse sujeito – a relação com o outro, a relação com a linguagem e o simbólico. Assim, não falamos em sujeito no singular, mas no plural; e não apenas sujeitos em relações, mas em relações mediadas discursivamente (...). São sujeitos interlocutores – sujeitos que falam um com o outro, produzidos nos e pelos laços discursivos que os unem. Sujeitos não antecedem a relação, mas resultam dela – sejam elas relações de conjunção, enfrentamento, de associação ou de conflito (Ibidem, p. 12). A constituição do sujeito a partir do outro e seu meio social justifica o que Wolton (2006, p.32) chama de “busca sempre aventureira do outro por meio da comunicação”. Prova disso, é a fala da Carolina, que afirma que “um fato engraçado, foi que após alguns meses todos na casa estavam usando gírias de diferentes estados”. Entretanto, esse encontro com o outro nem sempre é tão simples, como exemplificado na fala do paranaense Iago: “o próprio vocabulário, com destaque para as gírias endêmicas (...) causaram certo grau de desentendimento”. Isso acontece porque essa “aventura” não impede a ocorrência de possíveis fracassos e “o risco da solidão é o preço a pagar por essa liberdade de ser e de conexão” (WOLTON, 2006, p. 31). Ainda segundo o autor:
  • 25. A comunicação (...) é um processo dinâmico, sempre com a dupla face normativa e funcional: a chave do encontro e o risco do fracasso. O outro buscado na conexão muitas vezes se esquiva, às vezes se opõe, mas, em todo caso, torna o encontro totalmente aleatório (Ibidem, p. 31). Além de dinâmico e aleatório, o processo comunicativo é, também, “instituidor de sentidos e de relações; lugar não apenas onde os sujeitos dizem, mas também assumem papéis e se constroem socialmente; espaço de realização e renovação da cultura” (FRANÇA, 2001, p. 16). Enquanto que a renovação da cultura pode ser exemplificada no fato de os estudantes emprestarem expressões típicas de outras localidades, a questão da representação de papéis pode ser verificada na fala da entrevistada Aline, abaixo: A gente enfatizava diferenças de fala, enfatizava que eu chamo, por exemplo (...), biscoito de bolacha e que Fulano chama bolacha de biscoito, então cada um vai chamar do seu jeito e é assim que eu chamo e nós vamos falar assim! Então, eu acho que a gente até brincava com isso, assim. Então eu represento o meu estado aqui nessa casa e você representa o seu, coisas do tipo, que a gente reforçava de algumas formas. Assim, é a partir dessa possibilidade de renovação da cultura que, para além da perspectiva de fracasso e desentendimento, nos deparamos, também, com a chance de um encontro proveitoso, no qual, a partir da criação de laços e do estabelecimento de vínculos, o horizonte é a coabitação e, posteriormente, a hibridização. 1.3 EU-OUTRO: ENTRE A INCOMUNICAÇÃO E A COABITAÇÃO “Na comunicação, o mais complicado é sempre o outro” (WOLTON, 2004, p. 37)
  • 26. Diferentemente da comunicação midiatizada, as práticas comunicativas interpessoais permitem respostas simultâneas, o que não só pressupõe a presença, como revela a importância do outro na comunicação – aquele com o qual almejamos a comunhão, o entendimento mútuo. Entretanto, como se faz possível tal entendimento sendo esse outro diferente? Wolton (2004) apresenta o outro enquanto o limite da comunicação e afirma que “este outro permanece inatingível” (Ibidem, p. 37, grifo do autor). Segundo ele, “quanto mais fácil é entrar em contato com alguém, de um lado a outro do mundo a qualquer instante, mais rápido percebemos os limites da compreensão (Ibidem, p. 37). O outro, com toda a diferença que carrega, coloca em jogo a eficácia da interação. Toda conversação comporta riscos, e a incomunicação pode até mesmo ser considerada a regra. Ainda assim, “nenhuma técnica de comunicação, por mais eficiente que seja, jamais alcançará o nível de complexidade e de cumplicidade da comunicação humana” (Ibidem, p. 35, grifo meu). O convívio com e a compreensão do outro, ainda que falha e por vezes difícil, não é impossível. Em resposta ao questionário, Lúcio afirma, inclusive, que as diferenças regionais entre os brasileiros facilitaram o convívio, uma vez que “sempre gerava expectativa de novos conhecimentos e oportunidades de aprendizado”. Wolton afirma que a simples presença do outro é uma agressão – cada vez mais imposta e mais acelerada pela questão da simultaneidade (WOLTON, 2004). De maneira menos enfática, concordo em dizer que o outro, na sua simples presença, já nos molda, nos configura – é a atuação do outro na constituição do sujeito. Em uma entrevista de emprego, em uma saída com amigos, ou em um jantar em família, é o “outro” de cada uma dessas situações, citando apenas alguns exemplos, que pautará e, muito provavelmente, diferenciará a postura adotada, a roupa escolhida, e o palavreado sério ou descontraído utilizado.
  • 27. Para Wolton, “o outro, seja como for, é aquele que não fala como eu, e diante de quem eu devo fazer um esforço de tolerância e de compreensão” (WOLTON, 2006, p. 154), sendo sempre inatingível. A comunicação é sempre – ou geralmente – dificultada pelo acesso ao outro. Mas antes mesmo de se buscar o entendimento mútuo, é necessário que se reconheça a alteridade. Tendo o outro enquanto o limite comunicação, Wolton (2004) elenca três condições essenciais para a ocorrência do intercâmbio comunicacional: a existência prévia de algo a ser partilhado; o reconhecimento das identidades; e a aceitação das alteridades. A comunicação pressupõe pertencer ao mesmo universo sociocultural e compartilhar os mesmo valores, quando não se trata de lembranças, de referências, de experiências, de línguas ou estereótipos idênticos. Ela vive tanto do intercâmbio de mensagens quanto da cumplicidade e das convivências de uma cultura compartilhada. Aí está, sem dúvida, a palavra essencial: é preciso que já tenha existido algo para compartilhar. Hoje, no entanto, a comunicação, ao ultrapassar as fronteiras e ao atingir todas as comunidades, consagra a ideia segundo a qual é possível desvincular-se dessas incontáveis e indispensáveis condições que sempre guiaram qualquer comunicação. A primeira dessas condições é a identidade. Sem ela, não há possibilidade de intercâmbio. Mas também não há intercâmbio sem o reconhecimento da alteridade. Vale lembrar estes três limites: uma cultura e valores comuns; um reconhecimento mútuo das identidades; uma aceitação das alteridades representam a melhor maneira de definir os limites da incomunicação (WOLTON, 2004, p.85, grifo meu). Como já mencionado, durante o intercâmbio o outro era duplo. Com o estrangeiro, geralmente australiano, o exercício de tolerância e compreensão era óbvio. A segunda língua não inteiramente dominada, o sotaque, a falta de familiaridade com costumes ou expressões locais: tudo dificultava o acesso ao outro. No contato com brasileiros de outras localidades, a língua poderia até facilitar o primeiro contato. Havia, agora de maneira mais clara, o algo em comum inicial a ser partilhado. Ainda assim, os sotaques e certas particularidades linguísticas, em especial termos ou expressões próprias, se não nos distanciavam, ao menos aguçavam
  • 28. certas curiosidades. O “modo de falar” e o “sotaque”, juntamente com o “paladar” e o “gosto musical”, foram apontados pelos participantes da pesquisa como uma das diferenças mais visíveis entre os brasileiros do grupo CsF, conforme apontado nos depoimentos abaixo: Conheci pessoas de quase todos os Estados e cada um tem o seu vocabulário, sua comida ou bebida típica, danças, músicas (Carolina). [A identidade cultural do Brasil] varia por regiões do país. Seu modo de falar, de vestir, tradições, festas típicas são bons exemplos dessa diversidade cultural (Ricardo). [A cultura brasileira] apresenta diferentes faces em cada lugar, situação e, até mesmo, momento histórico. Um exemplo facilmente assimilado é a música, extremamente variada ao longo do território, sendo difícil estabelecer um único estilo definidor da cultura brasileira (Vinícius). Não tinha noção de como que era lá em Belém (...). Como por exemplo, a forma de falar. Não sabia que na Belém falavam tão bem! [rindo] Nunca imaginava que o sotaque era esse! (Catarina) É interessante observar que, enquanto paraense convivendo com representantes de diversos outros estados do país, eu considerava que eram eles quem fugiam à (minha) regra. Entendia a estranheza neles causada por ser a única no grupo a conjugar o verbo na segunda pessoa, por exemplo – ainda que os representantes do Rio Grande do Sul utilizassem a segunda pessoa, poucas vezes o verbo vinha conjugado. Ainda assim, e mesmo sendo a única representante do Pará entre o grupo, a mim ainda era mais estranho o fato de eles, em sua maioria, falarem “você” e não o fato de eu ser uma das únicas a falar “tu”. Já a relação com os australianos, era percebida um pouco diferentemente. Ainda que convivesse com outros brasileiros e até mesmo com outros estrangeiros que também não tinham o inglês como primeira língua, enxergava a mim mesma como fora dos padrões e das
  • 29. regras, pelo simples fato de não dominar o inglês da mesma maneira que os nativos. Em outras palavras, eu era o outro – e me enxergava como tal. Talvez isso justifique o amplo contato entre os brasileiros. Como já foi dito, é preciso um elemento inicial partilhado, fundador da comunicação, e isso fica claro, a partir da questão da língua, na percepção da diferença entre as relações com os australianos e demais estrangeiros em comparação com as relações entre os brasileiros. Sobre essa questão da língua, Aline afirma que “[uma vez que a interação] muda para a língua materna, já facilita bastante o desenrolar da conversa”, o que garante uma facilidade maior à interação entre os brasileiros. Tal elemento inicial (a língua) poderá ser ampliado a partir do convívio, abrangendo outras referências, proporcionando novos compartilhamentos (como o “empréstimo” de expressões de outras localidades), e favorecendo, assim, a coabitação. Por outro lado, as diferenças estarão sempre presentes, e são elas as responsáveis pelo distanciamento entre o eu e o outro. Esse distanciamento, quando não compreendido e, principalmente, quando não celebrado, pode levar a outros caminhos além do da incomunicação. É nesse ponto, então, que a diferença se mostra enquanto uma encruzilhada à comunicação: ela pode tanto favorecer a hibridização e ser vista como algo enriquecedor às relações sociais, como levar à segregação, ao preconceito e à discriminação. A diferença pode ser construída negativamente – por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são definidas como “outros” ou forasteiros. Por outro lado, ela pode ser celebrada como fonte de diversidade, heterogeneidade e hibridismos, sendo vista como enriquecedora (SILVA, 2000, p. 50) Desse modo, o outro traz uma dupla possibilidade à comunicação: a incomunicação e a coabitação. Para Wolton (2006, p. 149), “a incomunicação impõe-se como um fato, a coabitação como uma escolha e um valor”. Tanto o contato com o outro quanto as
  • 30. resistências e as frustrações trazidas por tal interação são inevitáveis. Entretanto, a coabitação, entendida como o respeito às alteridades, apresenta-se como uma possível recompensa aos riscos enfrentados no contato com o outro. Em um mundo em que a alteridade se faz não só cada vez mais presente, mas também mais perceptível, a aceitação do outro é de extrema importância. Comunicar assinala o reconhecimento da necessidade do outro e a aceitação do risco de fracasso. Eis porque os gatos, os cães, e os computadores têm tanto sucesso em nossas sociedades de liberdade e solidão. Com eles, ao menos, nunca se fica decepcionado. Eles obedecem, não se revoltam, estão lá quando desejamos e nos remetem a uma imagem gratificante de nós mesmos. Neste caso, não há muitos riscos. Com os seres humanos, tudo é muito mais complicado e arriscado. Eles nem sempre estão lá onde os esperamos, resistem, nos apresentam muitas vezes um aspecto desagradável de nós mesmos, dispõem de uma autonomia e nos obrigam à modéstia (WOLTON, 2006, p. 173). Mas que resistências e que riscos são esses? De que “outro” estamos falando? Retomando exemplos anteriores, esse outro pode ser o futuro chefe, o amigo ou o parente distante, e ainda compartilhar referências culturais semelhantes. Nessas interações, os riscos são certamente reduzidos. O outro, em seu sentido mais interessante, ao meu ver, não se diferencia do “eu” em um nível (exclusivamente) hierárquico, mas sim em um nível cultural mais amplo. É quando, por exemplo, o futuro chefe fala um outro idioma durante a entrevista de emprego, ou quando o amigo se utiliza de expressões e termos total ou parcialmente desconhecidos, ainda que na mesma língua. É a partir dessa diferenciação cultural mais ampla que entramos no âmbito da comunicação intercultural. Para Wolton (2006, p. 185), no plano mundial, a comunicação intercultural representa “a coabitação das línguas, das culturas, no interior dos Estados-nação”. Heather Bowe e Kylie Martin (2007, p.03, tradução minha), do departamento de linguística da Universidade de Monash, na Austrália, afirmam que a comunicação intercultural “foca nas características da
  • 31. comunicação compartilhada entre interlocutores de diferentes línguas/repertórios culturais”. Ainda segundo as autoras, as pesquisas atuais relacionadas à comunicação intercultural consideram que “a comunicação é afetada por diferentes aspectos contextuais, incluindo expectativas culturais, relações sociais e o propósito com o qual se estabelece a comunicação” (Ibidem, p. 03, tradução minha). Na comunicação intercultural, o contato com o outro pode exigir ainda mais cuidados, uma vez que ela oferece ainda mais ricos. Quanto menos partilhado é o mundo social e cultural dos interlocutores, mais precária ou mais enriquecedora pode ser a comunicação. 1.4 A CONVERSA ENTRE AS CULTURAS “O fim das distâncias físicas revela a incrível extensão das distâncias culturais” (WOLTON, 2006, p. 19). Ao traçar o limite entre estudos antropológicos e comunicacionais, José Luís Braga (2011, p. 76) afirma que é do interesse do campo da Comunicação o estudo no qual se observe a conversação entre culturas, e não a questão cultural específica: “quando para além da observação de uma determinada identidade cultural, se observem as interações comunicacionais desta com outras”. De acordo com o autor, outras disciplinas até podem tomar emprestadas as questões comunicacionais, mas as observarão a partir de seu ponto de vista, enquanto que “de nossa parte, devemos assumir a centralidade do fenômeno comunicacional tomando-o pragmaticamente como o constituinte interessante dos processos interacionais” (Ibidem, p. 76). Na mesma linha de pensamento, França (2006, p. 09) atenta para o fato de que simples descrições dos comportamentos dos sujeitos “são estudos sociológicos, e não mais da comunicação”. É por isso que, segundo a autora, é importante entender que os sujeitos em
  • 32. comunicação são influenciados (assim como influenciam) diversos contextos e sofrem variadas rupturas simultaneamente. Daí a necessidade de um recorte específico para a definição de um objeto de análise. Por fim, a autora diferencia o sujeito em comunicação do sujeito do discurso e do sujeito sociológico, o qual “é mais que a ação de produzir/receber discursos, é menos que sua ação no mundo de uma maneira geral” (Ibidem, p. 19). Analisar os sujeitos em comunicação é, simultaneamente, achar nos textos as marcas que os interpelam, e no posicionamento e falas desses sujeitos a maneira como eles respondem, atuam, produzem. Por este caminho a análise comunicativa vai buscar a atualização de possibilidades, a realização de experiências vivas que marcam sua adequação às (e a modificação das) estruturas nas quais esses sujeitos estão inseridos. Não se trata, portanto, da análise de um texto, ou da caracterização de um sujeito, mas do movimento dos textos (narrativas, discursos, representações) no contexto das interlocuções (Ibidem, p. 19). Também discutindo a formação e o desenvolvimento do campo da comunicação, mas agora na América Latina, Martín-Barbero (2004, p.227, grifos do autor) afirma que, atualmente, “apenas se começa a assumir a comunicação como espaço estratégico de criação e apropriação cultural, de ativação da competência e da experiência criativa das pessoas, e de reconhecimento das diferenças, ou seja, do que culturalmente são e fazem os outros, as outras classes, as outras etnias, os outros povos, as outras gerações”. É a partir daí que as questões culturais tornam-se relevantes aos estudos da Comunicação. Quando as culturas conversam e quando o encontro entre o eu e o outro ativa o sentido dinâmico da comunicação – o da criação cultural. Atualmente, o encontro com o outro é inevitável e, a cada dia, as referências culturais divergentes entre o eu e o outro são maiores e se fazem mais nítidas. De acordo com Tadeu Silva (2000, p. 97): Em um mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com o estranho, com o diferente, é inevitável (...). E o problema é que esse „outro‟, numa sociedade em que a identidade torna-se, cada vez mais, difusa e descentrada, expressa-se por meio de
  • 33. muitas dimensões. O outro é outro gênero, o outro é a cor diferente, o outro é a outra sexualidade, o outro é a outra raça, o outro é a outra nacionalidade, o outro é o corpo diferente. Para Wolton (2006, p. 30), “foi a comunicação que ampliou o círculo das identificações, hoje infinitamente mais numerosas e heterogêneas do que há cinquenta anos”. Assim, podemos dizer que é também a própria comunicação a responsável pelo atual mundo heterogêneo em que vivemos. Nos deparamos, mais uma vez, com o aspecto dinâmico da comunicação: ela constitui os sujeitos e é por eles constituída. Além disso, a constituição heterogênea do mundo e dos sujeitos que o habitam torna possível não só a ampliação das alteridades e o distanciamento dos indivíduos, como também os possíveis pontos de identificação. Não vivemos sozinhos e é essa articulação entre alteridades e identificações, assim como a partir da necessidade do convívio e das relações com o outro, que, para além da ideia de coabitação, temos também a possibilidade do estabelecimento de sociedades multiculturais e híbridas. Canclini (1996 apud FRANÇA, 2002, p. 66) pontua a globalização como uma das responsáveis por esse contato, afirmando que ela intensifica o convívio entre culturas e que “esse amplo contato com os „Outros‟ não se daria apenas pelo reconhecimento da alteridade, mas também pela apropriação de elementos provenientes desses outros em um processo de hibridização”, o que já vimos ter acontecido com o grupo do presente estudo de caso. Além disso, até mesmo “no interior de nações, grupos e mesmo dos indivíduos, o que se observa é uma pluralidade de identidades, as quais se constroem a partir da hibridização de elementos variados e de uma heterogeneidade de códigos” (Ibidem, p. 66), e o Brasil pode ser facilmente apresentado como um exemplo. Uma das características da globalização, pode-se dizer, é a maior facilidade da diminuição das distâncias físicas. Wolton (2004, p. 74, grifo do autor) afirma que “posso
  • 34. saber o que se passa simultaneamente em Hong Kong e em Paris, mas não posso estar simultaneamente em dois lugares”. Esse encurtamento das distâncias físicas sempre foi o responsável por revelar as distâncias culturais – nada mais concreto do que a época das grandes navegações e dos descobrimentos para exemplificar isso. Além de proporcionar o contato com o outro, para Tadeu Silva (2000), a mobilidade física e geográfica é responsável, também, por colocar o sujeito em um papel de outro, o que, conforme mencionei previamente, também foi verificado durante o intercâmbio na Austrália. O autor identifica e diferencia três tipos de mobilidade, ele afirma que: Embora menos traumática que a diáspora ou a migração forçada, a viagem obriga quem viaja a sentir-se “estrangeiro”, posicionando-o, ainda que temporariamente, como o “outro”. A viagem proporciona a experiência do “não sentir-se em casa” que, na perspectiva da teoria cultural contemporânea, caracteriza, na verdade, toda identidade cultural. Na viagem, podemos experimentar, ainda que de forma limitada, as delícias – e as inseguranças – da instabilidade e da precaridade da identidade” (Ibidem, p.88). É justamente esse sentir-se outro, ou a necessidade de tentar evitar tal sentimento, que pode ser encarada como um dos motivos para o encontro desses brasileiros no exterior, ainda que o programa Ciência sem Fronteiras não necessariamente estimule tal união. Palavras como “facilidade”, “afinidade” e “natural”, foram utilizadas pelos participantes dessa pesquisa para descrever a escolha por morar com outros brasileiros. Para Francisco, morar com outros brasileiros “foi a opção encontrada por todos quando recém chegamos”.
  • 35. Dezoito dos 32 brasileiros desse grupo moraram em um hostel7 durante as duas primeiras semanas na Austrália, escolha explicada por Gustavo, da seguinte maneira: “a escolha inicial do albergue com vários brasileiros foi mais pela questão da insegurança de chegar em um país novo sem nenhum conhecido”. Em sua resposta, Carolina resume bem o processo pelo qual os brasileiros tanto se aproximaram, quanto se afastaram durante o intercâmbio: No início quando chegamos na Austrália descobrimos que alugar casa por lá não é tão simples e nem barato, por isso procuramos casa juntos e acabamos morando juntos no início. Depois algumas pessoas se deram bem umas com as outras e continuaram morando juntas e outras queriam ter a experiência de morar com pessoas de outro país, em alguns casos para evitar falar muito português e praticar mais o inglês. Constato, a partir dessa experiência, que foi esse deslocamento físico que permitiu aos brasileiros conhecerem um pouco mais de seu próprio país, ainda que estando do outro lado do mundo. Apenas Hugo e Giovana afirmaram não terem tomado conhecimento sobre as diferenças regionais do Brasil no exterior. Aline, por sua vez, afirmou que já conhecia algumas diferenças, mas ressaltou que nunca havia morado com pessoas dessas localidades, o que, sem dúvida, é uma forma de convívio diferenciada. Gustavo também afirma que a experiência de conviver com brasileiros de outras regiões foi “muito importante para meu crescimento pessoal. Foi uma experiência muito construtiva, a de conhecer melhor meu próprio país e as pessoas que nele vivem”, ideia 7 Hostels são albergues geralmente procurados por estudantes por oferecerem acomodação mais em conta. Ainda que a questão financeira não tenha sido mencionada por nenhum dos participantes, vale ressaltar que a grande maioria – se não todos – dos bolsistas chegaram a Perth sem a ajuda de custo do governo. Por conta de atrasos no calendário do edital, as bolsas só foram depositadas durante a primeira e a segunda semana de estadia na Austrália. Se comparado às opções apresentadas tanto pela universidade quanto pelo CNPq (homestay, college, shared house), o hostel era a mais em conta.
  • 36. reiterada por Julie, que diz acreditar que “a gente só passa a conhecer as peculiaridades de cada região quando a gente se dá a oportunidade de visitar as outras regiões ou conviver com pessoas de outras regiões”, o que demonstra a relevância da interação entre as culturas brasileiras e do deslocamento físico desses estudantes. Assim, analisar a comunicação não só a partir de uma cultura, mas a partir dessa interação intercultural, desse embate instável entre os sujeitos, torna-se relevante na sociedade contemporânea. É, primeiramente, através da comunicação em sua faceta normativa que podemos tanto observar o contato intercultural (o encontro do eu com o outro), como perceber posicionamentos híbridos. Nesse sentido, Martín-Barbero (2004, p. 212-213, grifos do autor) justifica tal abordagem afirmando que: Pensar a comunicação desde a cultura é fazer frente ao pensamento instrumental que tem dominado o campo da comunicação desde seu nascimento, e que hoje se autolegitima apoiado no otimismo tecnológico a que se acha associada a expansão do conceito de informação. O que aí se produz não é então um abandono do campo da comunicação, mas sua desterritorialização, uma movimentação dos limites que têm demarcado esse campo, de suas fronteiras, suas vizinhanças e sua topografia, para desenhar um novo mapa de problemas em que caiba a questão dos sujeitos e das temporalidades sociais, isto é, a trama de modernidade, descontinuidades e transformações do sensorium que gravitam em torno dos processos de constituição dos discursos e dos gêneros nos quais se faz a comunicação coletiva. Um outro ponto levantado por Martín Barbero (2004) refere-se justamente ao posicionamento e importância do sujeito frente aos meios de comunicação. É, com outras palavras, o que Wolton (2006) afirma ser a vitória da comunicação: o triunfo da hélice normativa – a passagem dos meios às mediações. Como pudemos passar tanto tempo tentando compreender o sentido das mudanças na comunicação, inclusive as que passam pelas mídias, sem referi-las às transformações do tecido coletivo, à reorganização das formas do habitat, do trabalhar e do brincar? E como poderemos transformar o “sistema de comunicação” sem assumir sua espessura cultural e sem que as políticas procurem ativar a
  • 37. competência comunicativa e a experiência criativa das pessoas, isto é, seu reconhecimento como sujeitos sociais? (MARTIN-BARBERO, 2004, p. 228). Dessa forma, é buscando entender justamente as mudanças proporcionadas pela comunicação ao tecido coletivo e aos sujeitos sociais que atuam nessas mudanças, que destino o segundo capítulo dessa monografia à discussões sobre cultura e multiculturalismo, assim como sobre questões relacionadas à construção de identidades, especialmente a nacional. Analiso, também, o Brasil no contexto, buscando apresentá-lo enquanto um país multicultural e híbrido. 2 HÍBRIDOS CULTURAIS Depois de posicionar a experiência comunicativa enquanto objeto da comunicação e de discutir a questão do sujeito e a relevância do outro nessas mediações, volto a discussão à questão cultural. Como mencionado, a cultura é entendida como o terceiro elemento das interações comunicacionais, revelando uma relação de dependência entre ambas. Assim, o segundo capítulo dessa pesquisa busca apresentar a comunicação enquanto mediadora da transformação cultural. É através da comunicação bem sucedida que as culturas, quando em contato, deixam simplesmente de coexistir, para realmente se articularem entre igualdades e diferenças. Nessa perspectiva, apresento o Brasil enquanto um país híbrido, não apenas por ter uma origem miscigenada, mas por permitir a interação entre essas culturas diferenciadas. Sempre tendo o objeto em mente, dou início a discussão sobre como se davam as identificações dos estudantes brasileiros em Perth, seja no contato com o outro brasileiro, seja no contato com o outro estrangeiro, já apresentando algumas das características que serviam para aproximar ou distanciar o grupo. 2.1 A COMUNICAÇÃO ENQUANTO MEDIADORA CULTURAL
  • 38. Considerando a cultura enquanto o terceiro elemento da comunicação, é possível afirmar, então, que uma não se faz sem a outra. Do mesmo modo que as trocas comunicacionais são pautadas e influenciadas por esse terceiro elemento, a transformação cultural depende da comunicação. A característica mutável da cultura é visível em Touraine (1998, p. 46), ao afirmar que: Uma cultura é a associação de técnicas de utilização de recursos naturais, de modos de integração a uma coletividade e de referências a uma concepção do sujeito, reliogiosa ou humanista. Ela não é um bloco de crenças e práticas, e por isso pode se transformar quando um de seus componentes principais se modifica. Em “Cultura: um conceito antropológico”, Laraia (2001) apresenta de maneira simples e didática uma discussão acerca do desenvolvimento do conceito de cultura, desde os pensadores iluministas até autores mais contemporâneos. Já na apresentação do livro, o autor afirma que “o desenvolvimento do conceito de cultura é de extrema utilidade para a compreensão do paradoxo da enorme diversidade cultural da espécie humana” (Ibidem, p. 01). O grande dilema proposto pelo autor é o de conciliar a unidade biológica e a diversidade cultural. Além de descartar tanto o determinismo biológico quanto o geográfico enquanto possíveis respostas a tal dilema, o autor apresenta relatos de viajantes de diversas épocas, como Confúcio, Padre Anchieta e Marco Polo, para exemplificar o quanto as diferenças culturais sempre estiveram presentes na vida em sociedade. Em Edward Tylor (1871 apud LARAIA, 2001, p. 25), a cultura é “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. Segundo Laraia (2001), através desse conceito, cunhado no vocábulo inglês culture, Edward Tylor conseguiu unir tanto os aspectos espirituais quanto as práticas materiais de um povo em um único termo.
  • 39. Para ele, “com esta definição, Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos” (Ibidem, p. 25). Dessa forma, a aquisição cultural se sobressai, em detrimento às teorias anteriormente defendidas, que privilegiavam os determinismos geográfico e biológico. Um dos argumentos apresentados por Laraia (2001) é o fato de que uma criança sueca poderia adquirir traços culturais de uma família brasileira sertaneja, se criada em tais condições de aprendizado, sendo que outra aquisição cultural seria verificada se uma criança xinguana fosse criada por uma família de Ipanema, por exemplo. Segundo o autor, O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade (Ibidem, p. 45). Assim, a explicação para o dilema proposto pelo autor é encontrada em uma contínua dinamicidade cultural. Dinamicidade essa que, segundo ele, ocorre a partir de duas frentes: a primeira é interna, mais lenta e praticamente imperceptível a curto prazo; a segunda, externa, aparece enquanto resultado do contato com o outro, geralmente mais brusco, representando o que antes chamei de encruzilhada à comunicação – é o contato que traz tanto a possibilidade da hibridização, quanto a de uma possível catástrofe. É a partir do entendimento da dinâmica cultural, e de sua constante modificação, que nos deparamos, então, não com uma cultura, mas sim com culturas, no plural. 2.2 PARA ALÉM DO DIÁLOGO MULTICULTURAL
  • 40. “Somos ao mesmo tempo daqui e de toda parte, isto é, de lugar algum” (TOURAINE, 1998, p. 13) Touraine (1998) defende encontrar a resposta à pergunta “como podemos viver juntos?” na combinação entre a democracia política e a diversidade cultural, alcançadas a partir da liberdade do sujeito. No caso do autor, o questionamento surgiu a partir das aulas que ministrava a grupos culturalmente diferentes entre si. Da mesma maneira, o CsF permitiu o encontro de brasileiros de distintas localidades que, mesmo nunca antes tendo se conhecido, passaram a estudar, a conviver e até mesmo a morar juntos. Para Touraine (1998, p. 190), “não há nenhuma descontinuidade entre a ideia de sujeito e a de sociedade multicultural e mais precisamente a de comunicação intercultural, dado que não podemos viver juntos com nossas diferenças sem que nos reconheçamos mutuamente como sujeitos”. O reconhecimento da diferença e da alteridade do outro é, então, o primeiro passo em direção à construção de uma sociedade multicultural, ainda que nossa herança cultural nos condicione a “reagir depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da comunidade” (LARAIA, 2001, p. 67). Dessa forma, o reconhecimento do outro enquanto sujeito é de fundamental importância para uma vida na qual sociedade nenhuma encontra-se inteiramente isolada, ainda que esse seja apenas o primeiro passo. É de se esperar um choque ao, de um dia para o outro, sair de seu país de origem com direção ao outro lado do mundo e passar, também repentinamente, a morar com cerca de 20 pessoas totalmente desconhecidas, ainda que brasileiras. Nesse início, havia uma certa expectativa em conhecer mais sobre cada um desses brasileiros. Quem eram? Da onde vinham? O que faziam? As duas primeiras semanas no hostel já foram um passo em direção à construção do conhecimento sobre o outro brasileiro.
  • 41. O reconhecimento do outro só é possível a partir da afirmação que cada um faz do seu direito de ser sujeito. Complementarmente, o sujeito não pode se afirmar como tal sem reconhecer o outro como sujeito e, em primeiro lugar, sem se livrar do medo do outro, que leva à sua exclusão (TOURAINE, 1998, p. 203). Para Silva (2000, p. 73), “em geral, o chamado „multiculturalismo‟ apoia-se em um vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e a diferença. É particularmente problemática, nessas perspectivas, a ideia de diversidade”. Segundo o autor, essa perspectiva adota a diferença como naturalizada e essencializada, perante a qual devemos ser apenas tolerantes. Aprofundando o diálogo de Silva (2000) e considerando que “não cessa de crescer a distância entre „vivamos juntos‟ e „com nossas diferenças‟” (TOURAINE, 1998, p. 63), o sociólogo francês Alain Touraine (1998) apresenta três possibilidades de articulação entre a igualdade e a diferença, afirmando que, apesar de alguns quererem salvar a unidade e outros as diferenças, elas podem, sim, ser combinadas. Ainda que se preocupe com a construção cultural, a primeira possibilidade apresentada pelo estudioso é o “Encontro de culturas”, o qual “afirma a existência de conjuntos culturais fortemente constituídos, cuja identidade, especificidade e lógica interna devem ser reconhecidas, mas que não são inteiramente estranhas entre si, ao mesmo tempo, que são diferentes umas das outras” (TOURAINE, 1998, p. 206). De acordo com o autor, tal concepção privilegia a simples observação das diferenças e não a inserção do sujeito nelas. A segunda possibilidade de articulação entre a igualdade e a diferença é vista pelo autor como um “Parentesco das experiências culturais”. Mais importante do que a comunicação, é o reconhecimento das diferenças, o que garante a dignidade do outro, mas não a integração das experiências uma vez que “busca parentescos mais ou menos longíquos entre as culturas” (TOURAINE, 1998, p. 212). Segundo o autor, nessa concepção,
  • 42. A comunicação se estabelece entre culturas diferentes quando encontramos, na mãe imigrante do filho doente ou ferido, os mesmos sentimentos que os nossos; quando vemos, nas fotografias de Claude Lévi-Strauss, jovens índios do Brasil jogar jogos eróticos que nos parecem próximos dos nossos; ou quando o mesmo antropólogo vê na nossa agitação uma forma de pensamento selvagem (Ibidem, p. 212). Por fim, Touraine (1998) apresenta “A recomposição do mundo”, concepção que “se trata – muito além de diálogo das culturas – da construção, pela comunicação entre elas de um sujeito humano cujo monumento nunca se acabará e do qual, consequentemente, ninguém (indivíduo, sociedade ou cultura) poderá se dizer porta-voz ou representante privilegiado” (Ibidem, p. 214). A sociedade multicultural não se caracteriza pela coexistência de valores e práticas culturais diferentes; menos ainda pela mestiçagem generalizada. É a sociedade onde o maior número possível de vidas individuadas constroem para si, e chegam a combinar, de maneira sempre diferente, o que as une (a racionalidade instrumental) e o que as diferencia (a vida do corpo e do espírito, o projeto e a lembrança) (Ibidem, p. 217). É essa combinação entre igualdade e diferença, a meu ver, a mais rica e a experienciada pelos alunos do CsF. Ao combinar o que nos unia (a nacionalidade, o idioma) com o que nos diferenciava (aspectos culturais e também pessoais), desenvolvemos laços e vínculos em um contexto jamais imaginado por nenhum de nós. Além de poder buscar o que há de comum com o outro, essa perspectiva respeita a diferença e não só convive como também constrói com e a partir dela. Mais à frente, apresentarei como isso foi possível e verdadeiro entre os participantes da pesquisa. Qual sociedade, na atualidade, se encontra inteiramente isolada em si, sem influências externas? Podemos pensar as três possibilidades de articulação entre igualdade e diferença apontadas por Touraine (1998) enquanto fases de uma mesma articulação: uma sociedade
  • 43. deve ter conhecimento da outra e de suas particularidades e nutrir um certo respeito para com elas, para, então, ao encontrá-la, buscar níveis de parentesco, as semelhanças no meio de tantas diferenças. Por fim, em um momento posterior, a partir de uma relação mais bem definida, faz-se possível a recomposição do mundo e dos sujeitos envolvidos nessas trocas. Podemos pensar a interação dos estudantes do CsF dessa maneira. Os brasileiros primeiramente tomaram conhecimento das diferenças, mas perceberam que o elo inicial, o “ser brasileiro”, era uma semelhança muito forte. Por fim, como será discutido nos próximos capítulos, pudemos reconstruir percepções sobre nós mesmos e nossas culturas a partir dessa experiência. 2.3 ENTRE TRADIÇÃO E TRADUÇÃO “Não vivemos juntos a não ser perdendo nossa identidade” (TOURAINE, 1998, p. 11). A globalização pode ser apontada como uma das principais responsáveis pelo constante contato e consequente transformação das sociedades contemporâneas. A velocidade da informação e a possibilidade de conhecer culturas distantes sem a obrigatoriedade do deslocamento físico favorece a articulação entre diferentes sujeitos. A professora Vera França (2006, p. 09) argumenta que o processo de globalização e o surgimento de novos sujeitos sociais “colocaram nas duas últimas décadas uma nova pauta de discussão, em torno dos processos identitários e do próprio conceito de identidade”. O grande embate acerca da definição do conceito de identidade apresentado por Stuart Hall (1990) se assemelha ao trazido por Laraia (2001) com relação ao conceito de cultura: enquanto uma definição favorece o essencialismo, a outra preza pelo caráter de aquisição, o vir a ser.
  • 44. Há pelo menos duas maneiras de se pensar a „identidade cultural‟. A primeira posição define „identidade cultural‟ em termos de uma cultura compartilhada, uma espécie de „ser verdadeiro‟ coletivo, que se esconde dentro dos outros, mais superficiais ou artificialmente impostos, os quais as pessoas com uma linhagem e uma história em comum compartilham (HALL, 1990, p. 223, tradução minha). Existe, porém, uma segunda visão, relativamente diferente, de identidade cultural. Essa segunda posição reconhece que, assim como muitos pontos de semelhança, há também pontos críticos de diferença profunda e significativa que constitui “o que realmente somos”; ou melhor – desde que a história interviu – “o que nos transformamos” (HALL, 1990, p. 225, grifo do autor, tradução minha). De acordo com Tadeu Silva (2000, p. 28), ao considerar que a identidade é uma questão de vir a ser, a segunda concepção apresentada por Hall não nega “que a identidade tenha um passado, mas [devemos] reconhecer que, além disso, o passado sofre uma constante transformação”. Dessa forma, podemos entender que a identidade é tanto marcada pela semelhança quanto pela diferença. Ela é relacional e se encontra em constante negociação, tanto entre grupos em oposição quanto em um mesmo indivíduo. Lidamos, mais do que com identidades inteiras e fechadas, com a questão da identificação, múltipla e inconstante. Segundo Silva (2000, p. 106), “a identificação é, pois, um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção. Há sempre „demasiado‟ ou „muito pouco‟ – uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade”. Ao argumentar que as identidades, individuais e/ou coletivas, são construídas através dos discursos nos quais nos posicionamos e dos quais somos também posicionados, Vera França (2006, p. 09) afirma que a “identidade está, portanto, intimamente relacionada com a noção de sujeito (sujeitos são indivíduos dotados de uma identidade)”. Tal afirmação vai ao encontro do pensamento de Hall (2006), que apresenta três concepções de identidade a partir do sujeito do Iluminismo (indivíduo centrado e unificado); do sujeito sociológico (formado a
  • 45. partir da relação com outros indivíduos); e do sujeito pós-moderno (fragmentado, sem identidade fixa ou permanente). É esse sujeito fragmentado que tem trazido à tona novas identidades, as quais Hall (2006, p. 88, grifo do autor) define como “em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado”. É a partir dessa fragmentação que o autor propõe três possíveis consequências trazidas pela globalização às identidades culturais: a) a desintegração das identidades nacionais e o fortalecimento da homogeneização cultural; b) o fortalecimento às identidades locais como forma de resistência à globalização; c) uma nova articulação entre local e global. Segundo ele: Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou retornando a suas “raízes” ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema. Pois há uma outra possibilidade: a da tradução (HALL, 2006, p. 88). A tradução, segundo o autor, descreve identidades em áreas de interseção de fronteiras, cujos representantes são pessoas dispersadas de seus locais de origem, ainda que carreguem vínculos e tradições consigo. Segundo ele, “elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades” (HALL, 2006, p. 88). Tais sujeitos jamais serão unificados no sentido defendido pelo sujeito iluminista, uma vez que eles são “o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias „casas‟ (e não a uma „casa‟ particular)” (Ibidem, p. 89). São, esses sujeitos, os reais habitantes de culturas híbridas. Durante o intercâmbio, a outra casa era a casa com o outro. Como exemplificado mais adiante, no meu caso particular, negociei e convivi com a identidade
  • 46. australiana, a mineira e tantas outras, sem completamente perder a paraense e inclusive ganhando a Amazônida. De acordo com Hall (2013, p. 82, grifo do autor), o “hibridismo não é uma referência à composição racial mista de uma população. É realmente outro termo para a lógica cultural da tradução.” Além disso, “trata-se de um processo de tradução cultural, agonístico uma vez que nunca se completa, mas que permanece em sua indecidibilidade” (Ibidem, p. 82). Ainda que, como já mencionado, o deslocamento físico não seja uma obrigatoriedade para o surgimento de identidades híbridas, devemos considerar que “posso saber o que se passa simultaneamente em Hong Kong e em Paris, mas não posso estar simultaneamente em dois lugares” (WOLTON, 2004, p. 74, grifo do autor). Desse modo, além das transformações culturais propiciadas pelos avanços técnicos e tecnológicos, as migrações são também responsáveis pela hibridização cultural. De acordo com Hall (2013, p. 49), “os processos das chamadas migrações livres e forçadas estão mudando de composição, diversificando as culturas e pluralizando as identidades culturais dos antigos Estados-nação dominantes, das antigas potências imperiais, e, de fato, do próprio globo”. Para Hall (2006), a tradição, por sua vez, representa justamente a tentativa de reconstrução de identidades puras e fechadas, em oposição à tradução. Segundo o autor, “o ressurgimento do nacionalismo e de outras formas de particularismo no final do século XX, ao lado da globalização e a ela intimamente ligado, constitui, obviamente, uma reversão notável, uma virada bastante inesperada dos acontecimentos” (Ibidem, p. 96). O autor explica, ainda, que a tradição pode ser entendida como um cordão umbilical, responsável por unir passado, presente e futuro, “cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua „autenticidade‟. É, claro, um mito – com todo o potencial real dos nossos mitos dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história” (Ibidem, p. 32).
  • 47. Em Martín-Barbero (2004, p. 269), a globalização, de maneira paradoxal, devolve o valor ao território do lugar, o que, “para M. Santos, se trata da impossibilidade de habitar o mundo, e de nos inserir no global, sem algum tipo de âncora no espaço e no tempo”. É provavel que essa busca por uma âncora ou por um cordão umbilical capaz de unir passado, presente e futuro, justifique o encontro desses brasileiros no exterior. Sobre isso, Touraine (1998) afirma que: É verdade que vivemos um pouco juntos em todo o planeta, mas é igualmente verdadeiro que por toda parte se reforçam e se multiplicam os grupos de identidade, as associações baseadas na pertença comum, as seitas, os cultos e os nacionalismos. (...) Quando estamos todos juntos, não temos quase nada em comum; e quanto partilhamos crenças e uma história, rejeitamos os que são diferentes de nós” (TOURAINE, 1998, p. 10). Dessa forma, duas concepções devem ser mantidas em mente: a primeira, concebida por Castles e Miller (1993) e apresentada por Silva (2000), diz respeito à migração e ao fato de tal prática não ser exatamente recente, mas sim e sem dúvida, acelerada pela globalização, e consequentemente ocasionar a reestruturação das sociedades do mundo inteiro. A segunda concepção aqui a ser reiterada vem de Stuart Hall (2013, 2013, p. 65, grifo do autor), ao afirmar que ainda que a sua tendência seja, sim, a homogeneização, “a globalização tem causado extensos efeitos diferenciadores no interior das sociedades ou entre as mesmas”. 2.4 AS ILHAS-BRASIL O encontro com brasileiros de diversas partes do país, propiciado pelo CsF, possibilitou um melhor entendimento da própria constituição do Brasil. Como será discutido mais adiante, estereótipos foram tanto confirmados quanto quebrados e especificidades culturais foram apropriadas e ressignificadas. O Pará ficou mais próximo de Minas Gerais,
  • 48. que ficou mais próxima de Pernambuco. Noto que a transformação cultural iniciada a partir do CsF está longe de ser encerrada, visto que alguns dos laços criados durante o intercâmbio permanecem até hoje. Durante o período na Austrália, pude ver as dimensões geográficas continentais do meu próprio país abruptamente reduzidas. O contato com estudantes do CsF contemplados com bolsas em outras localidades do mundo, já fomentou a discussão acerca dessa união entre brasileiros no exterior. Há quem seja contra, afirmando que a entrega cultural deve ocorrer com relação ao país visitado e não com o próprio Brasil. Mas, se há a possibilidade de fazer as duas coisas, por quê não? Ao meu ver, a possibilidade de conhecer tanto particularidades australianas quanto especificidades antes desconhecidas sobre o meu próprio país, tornaram o meu intercâmbio uma experiência ainda mais enriquecedora. Agora que compreendemos que a identidade híbrida é uma característica de habitantes das chamadas zonas de fronteiras, me volto à discussão de que o Brasil pode ser entendido enquanto uma zona fronteiriça de população híbrida, ainda que não necessariamente deslocadas de seus locais de origem. A esse respeito, o historiador Darcy Ribeiro (1995) fala de seu espanto com relação ao fato de o Brasil, mesmo culturalmente diferente, ter se mantido unido sob um único espaço geográfico: É simplesmente espantoso que esses núcleos [crioulo, caboclo, sertanejo, caipira e sulino] tão iguais e tão diferentes se tenham mantido aglutinados numa só nação. Durante o período colonial, cada um deles teve relação direta com a metrópole e o “natural” é que, como ocorreu na América hispânica, tivessem alcançado a independência como comunidades autônomas. Mas a história é caprichosa, o “natural” não ocorreu. Ocorreu o extraordinário, nos fizemos um povo-nação, englobando todas aquelas províncias ecológicas numa só entidade (RIBEIRO, 1995, p. 273).
  • 49. A miscigenação cultural brasileira é algo que vem desde a origem do que hoje entendemos por Brasil. Segundo o autor, “surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos” (Ibidem, p. 19). Devemos lembrar, entetanto, que a miscigenação não garante a característica híbrida de uma população. Aqui, a miscigenação é simplesmente entendida como a matriz cultural dos povos brasileiros. Como afirma Tadeu Silva (2000, p. 87), “a identidade que se forma por meio do hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas”. Segundo Ribeiro (1995, p. 272), a identidade brasileira é dotada tanto de uma matriz básica quanto de uma flexibilidade, e “essa última característica lhe permitirá, como herdeira de uma sabedoria adaptativa milenar, ainda dos índios, conformar-se, com ajustamentos locais, a todas as variações ecológicas regionais e sobreviver a todos os sucessivos ciclos produtivos, preservando a unidade essencial”. Nesse sentido, podemos ver uma semelhança com relação ao pensamento defendido por Hall (2013, p. 49), quando afirma que “a cultura não é apenas uma viagem de retorno. Não é uma „arqueologia‟. A cultura é uma produção”. Mais do que uma simples herança do passado e um contínuo vir a ser, a cultura é uma eterna articulação entre ambas, resultando em infinitas possibilidades de construção de novos sujeitos. O autor prossegue, afirmando que: Não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (Ibidem, p. 49).
  • 50. Foi, então, esse eterno se tornar, somado à uma mesma matriz cultural e a uma flexibilidade adaptativa que criou o que Ribeiro (1995) chama de “ilhas-Brasil”. De acordo com o autor, “essas ilhas-Brasil operaram como núcleos aglutinadores e aculturadores dos novos contingentes apresados na terra, trazidos da África ou vindos de Portugal e de outras partes, dando uniformidade e continuidade ao processo de gestação étnica, cujo fruto é a unidade sociocultural básica de todos os brasileiros” (RIBEIRO, 1995, p. 270). Podemos dizer que uma característica dessa unidade comum a todos os brasileiros é justamente a flexibilidade e, ainda ela, adquirida. Entre as características que reforçam o que há de comum entre todos os brasileiros (apesar das diferenças), Darcy Ribeiro (1995) destina um certo enfoque à questão da língua e à capacidade que tivemos de, em um espaço geográfico tão grande e a partir de matrizes tão distintas, conseguir falar a mesma língua “só diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos de Portugal” (Ibidem, p. 22). Ainda sobre essa questão, Wolton (2006, p. 137) considera as línguas “o primeiro elemento da diversidade cultural”, enquanto que Laraia (2001, p. 69) afirma que as diferenças linguísticas são “o fato de mais imediata observação empírica” na identificação de um indivíduo a partir de características culturais. Isso pode ser exemplificado em dois momentos do intercâmbio: ao chegar à Austrália, nós, brasileiros, nos aproximamos por termos a mesma língua e por estarmos juntos em oposição à diferença cultural do outro estrangeiro, que tinha o inglês como língua materna; posteriormente, foram as diferenças linguísticas dentro do próprio português que fizeram com enxergássemos as demais diferenças culturais do Brasil. Mesmo considerando que o Brasil fale um único idioma, o que pressuopõe uma diminuição da diversidade cultural, os sotaques próprios de cada região, os termos característicos de cada estado ou mesmo cidade, já fazem da incomunicação uma possibilidade, considerando um diálogo entre representantes de práticas linguísticas distintas.
  • 51. Assim, o português brasileiro pode ser entendido como uma força aglutinadora, por ser único, mas, ao mesmo tempo, responsável por um certo distanciamento, devido às suas particularidades regionais. De maneira geral, a contribuição de Ribeiro (1995) é válida por levar em consideração tanto os aspectos que aproximam quanto os que distanciam os brasileiros, e por trazer à discussão a crença de que o que nos une ainda é maior e mais forte do que as nossas diferenças culturais. Ele assinala que “apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra”. (RIBEIRO, 1995, p. 454). Atento, apenas, para o fato de que, apesar da integração, existe, também, o desconhecimento do Brasil por parte dos próprios brasileiros. A diversidade de sotaques e expressões locais é só um exemplo da infinidade de práticas que variam de um lugar ao outro do Brasil. Laraia (2001) relembra que “ainda entre nós, existe uma diversidade de interdições alimentares que consideram perigoso o consumo conjunto de certos alimentos que isoladamente são inofensivos, como a manga com o leite etc” (Ibidem, p. 16). Destaco alguns aspectos que considero importante no encontro entre as culturas brasileiras. Por exemplo, o consumo do açaí com leite em pó, comum no Sudeste do Brasil, mas que me causa estranheza, devido à maneira consumida no estado do Pará, mais especificamente na cidade de Belém, onde a fruta fresca é geralmente servida apenas com açúcar e farinha. Os hábitos alimentícios são apenas um exemplo de como a alteridade brasileira pode se apresentar enquanto um bloqueio à comunicação entre nossas culturas. Só o fato de essas diferenças serem muitas vezes desconhecidas, já nos coloca novamente na encruzilhada entre a celebração e a repulsa das diferenças.
  • 52. 2.5 IGUAIS, DIFERENTES E BRASILEIROS “Fugir do igual, buscar o diferente; atravessar o diferente, buscar o igual...” (FRANÇA, 2002, p. 32) Sendo o Brasil um país cujo povo foi formado pela mesma, ainda que diversificada, matriz cultural, não é difícil entender que “a questão da identidade aciona, no mesmo movimento, a discussão tanto da similaridade quanto da diferença” (FRANÇA, 2002, pg. 28). Não temos dificuldades em nos assumir como um mesmo povo, habitantes do mesmo país, falantes da mesma língua, ainda que, vez ou outra, nos deparemos com o que nos distingue. De acordo com Darcy Ribeiro (1995, p. 130), “a assunção de sua própria identidade pelos brasileiros, como de resto por qualquer outro povo, é um processo diversificado, longo e dramático”. Originados a partir de tamanha diversidade, o autor se questiona o que seria a característica única e distintiva dos brasileiros, já que nossa formação é composta de gente de todas as partes. Ele mesmo responde, dizendo que a ação concreta, ao longo dos anos, comprova que “hoje somos, apesar dos lusos e dos seus colonizadores, mas também graças ao que eles aqui juntaram, tanto os tijolos biorraciais como as argamassas socioculturais com que o Brasil vem se fazendo” (RIBEIRO, 1995, p. 146). A própria assunção de uma identidade é, também, uma articulação entre diferença e igualdade. Foi preciso nos assumirmos como brasileiros para nos diferenciarmos tanto dos lusos, quanto dos negros e demais imigrantes, e até mesmo dos índios – dizemos que somos brasileiros para expressar que somos a soma de todas essas origens. Dessa forma, tanto durante o processo da formação da identidade brasileira, quanto hoje ou qualquer dia no futuro, “quando digo „sou brasileiro‟ parece que estou fazendo referência a uma identidade que se esgota em si mesma. „Sou brasileiro‟ – ponto. Entretanto, eu só preciso fazer essa
  • 53. afirmação porque existem outros seres humanos que não são brasileiros” (SILVA, 2000, p. 75, grifo do autor). Silva (2000, p. 75) afirma que “a forma afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder essa relação”, mas tal fato pode ser observado, ao nos perguntarmos, por exemplo, com que frequência e em que situações precisamos afirmar “sou brasileiro”. Poucas são as vezes – além dos períodos de Copa do Mundo e Eleições – em que precisamos expressar o pertencimento da identidade brasileira para demarcar uma característica de semelhança e/ou solidariedade. A cena muda drasticamente se nos imaginamos no exterior, convivendo com pessoas de diferentes partes do mundo. Afirmamos que somos brasileiros para deixar claro que não somos italianos, argentinos ou americanos – é a diferença que demarca o local de fala, não a semelhança. Enquanto Exchange Studant, categoria atribuída pela UWA à estudantes que fazem apenas parte da graduação na universidade, os estudantes brasileiros tinham contato frequente com outros alunos intercambistas, principalmente através de eventos realizados pelo Study Abroad Office (Departamento de Relações Internacionais, em tradução livre)8 e por festas organizadas pelo Perth International9 . Nessas situações, era inevitával a identificação a partir de nacionalidades. O elo comum entre essas pessoas era tão superficial e frágil ao ponto de a única coisa que um poderia conhecer do outro nesse primeiro momento, era a nacionalidade. Nunca foi (tão) comum me apresentar através do meu nome e de minha nacionalidade. Certamente o reforço constante e até então incomum da afirmação “sou brasileiro(a)” têm seus efeitos, como apresentado mais adiante, no capítulo 4. Buscando estabelecer essa relação entre esses atos de fala e identidade, Silva (2000, p. 77) afirma que, 8 Departamento da universidade responsável pelas questões burocráticas de todos os intercambistas. 9 Grupo estudantil que, entre outras coisas, promovia e incentivava a integração entre os estudantes internacionais.