O documento discute as bases biológicas para as reservas legais de vegetação nativa em propriedades rurais de acordo com o Código Florestal brasileiro. Argumenta que (1) pelo menos 60% da área total deve ser reservada para manter a conectividade biológica e reduzir o risco de extinção e (2) as reservas legais devem ser agregadas o máximo possível entre propriedades vizinhas para ampliar os benefícios à biodiversidade.
1. OPINIÃO
Jean Paul Metzger
OPINIÃO
Departamento de Ecologia, Universidade de São Paulo
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Bases biológicas
para a ‘reserva legal’
A polêmica atual sobre as propostas de redução dos percentuais de ‘reserva legal’ de
vegetação nativa nas propriedades rurais – previstos pelo Código Florestal – envolve em
essência argumentos econômicos e de sustentabilidade ambiental. A decisão sobre
essa questão, porém, também precisa levar em conta aspectos científicos, baseados
nos recentes avanços da biologia da conservação.
conservação, em áreas de
A propriedade privada, de frag-
mentos de florestas e outros tipos
mada a percentagem da área útil
da propriedade que deve perma-
necer com a vegetação nativa. De
é observado). Seu argumento cen-
tral é a necessidade de disponi-
bilizar terras para a agricultura.
de vegetação nativa é fundamen- acordo com o Conselho Nacional De outro lado estão os ambien-
tal para proteger, ainda que mi- de Meio Ambiente, essa reserva talistas, que defendem a manu-
nimamente, a fauna e a flora origi- (de floresta ou outra formação ve- tenção das dimensões atuais das
nais de cada região. O Código .lo- getal) é “necessária ao uso susten- reservas legais, com base na im-
restal (Lei nº 4.771, de 15/09/65) tável dos recursos naturais, à con- portância dos recursos naturais,
contém dois preciosos instrumen- servação e reabilitação dos pro- no potencial da biodiversidade,
tos para assegurar essa conserva- cessos ecológicos, à conservação nos benefícios econômicos indi-
ção: as ‘áreas de preservação per- da biodiversidade e ao abrigo e retos da cobertura vegetal (ame-
manente’ e as ‘reservas legais’. proteção de fauna e flora nativas”. nização de cheias e da erosão,
Áreas de preservação perma- Alterações nos percentuais de regulação do clima, proteção dos
nente são, basicamente, aquelas reserva legal definidos no Códi- rios, e outros) e no fato de que a
em que a vegetação nativa é essen- go .lorestal têm sido objeto de principal vocação da Amazônia
cial para conter processos de ero- acalorados debates entre gru- é florestal.
são e proteger rios e mananciais, pos ruralistas e ambientalistas Essa discussão está baseada
como ao longo de cursos ou corpos nos últimos meses, em função de essencialmente em critérios eco-
d’água (artificiais ou naturais), projeto nesse sentido em trami- nômicos (expansão das ativida-
junto a nascentes, no topo dos tação no Congresso Nacional. des agrícolas), por um lado, e de
morros, nas montanhas e serras Os ruralistas propõem uma re- sustentabilidade ambiental, por
(em altitudes acima de 1.800 m), dução substancial desses percen- outro. Poucos argumentos bioló-
nas encostas com declividade tuais na Amazônia Legal – dos gicos têm sido levantados. No en-
acima de 45 graus, em bordas de atuais 80% para 50% (ou mesmo tanto, levando em conta que o
tabuleiros e chapadas e nas res- 20%) em áreas florestais e dos principal objetivo das reservas
tingas. Tais áreas não podem ser atuais 35% para 20% em áreas de legais e das áreas de preservação
alteradas por seus proprietários. cerrado – e uma flexibilização permanente é a manutenção da
Além dessas áreas, toda pro- das obrigações de restauração das integridade ecológica de áreas
priedade rural deve ainda man- reservas (em propriedades onde naturais e, em particular, a con-
ter uma reserva legal, como é cha- o percentual previsto em lei não servação e o uso sustentável da
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2. OPINIÃO
biodiversidade, um patrimônio centual da área total maior que es- Em termos práticos, isso sig-
que se torna cada vez mais valio- te, é pequeno o grau de fragmen- nifica que seria particularmen-
so com o avanço da genética e o tação e alta a conectividade bio- te interessante, do ponto de vista
sucesso do projeto Genoma, algu- lógica. Por conter grandes áreas de da conservação, que a reserva
mas considerações biológicas de- vegetação, tais paisagens podem legal de cada proprietário (o per-
vem ser apresentadas. suportar populações com maior centual previsto no Código .lo-
Dois pontos, em particular, de- número de indivíduos e com me- restal) fosse representada por
vem ser discutidos: 1. existe uma nor risco de extinção. Quando a apenas uma área de vegetação (e
extensão ideal de reserva legal, cobertura de vegetação é inferior não por mais de um fragmento), e
que ao mesmo tempo proteja a a 59,28%, há uma queda brusca até mesmo que as reservas legais
biodiversidade e permita o desen- no tamanho médio dos fragmen- de propriedades vizinhas fossem
volvimento de atividades agrí- tos de vegetação e uma perda rá- limítrofes, formando em conjun-
colas?; 2. existe uma disposição pida da conectividade biológica. to uma grande área de vegetação
espacial ideal das reservas legais, Com a maior fragmentação, o ris- nativa. Na medida do possível,
que otimize a proteção da bio- co de extinção de espécies aumen- essa reserva legal única deveria
diversidade? Acredito que já há ta exponencialmente. Esse resul- englobar os diferentes tipos de
uma ampla base científica para tado é um forte indicativo para ambientes presentes em uma de-
responder a essas duas perguntas. que a reserva legal na Amazônia terminada propriedade ou região.
A questão da extensão míni- seja fixada em pelo menos 60% Os benefícios biológicos, para
ma das reservas legais pode ser da área total da propriedade. um mesmo percentual de reser-
respondida utilizando a teoria da A questão da distribuição es- va legal, poderiam ser amplia-
percolação. Essa teoria, inicial- pacial ótima das reservas legais dos se fosse possível planejar a dis-
mente desenvolvida no campo da pode se beneficiar de um amplo tribuição espacial das reservas
física, procura explicar e predi- debate ocorrido nos anos 70 e 80, de várias propriedades vizinhas
zer os processos que levam à con- conhecido pela sigla SLOSS (do in- de forma a que ficassem unidas
dutividade (ou conectividade) de glês single large or several small? umas às outras. Essa agregação
um elemento através de espaços – ‘uma grande ou várias peque- seria particularmente importan-
bidimensionais. Procurava-se, nas?’). Nessa época, a preocu- te em áreas onde não existe mais
por exemplo, determinar que quan- pação era identificar a melhor es- conectividade biológica e a ve-
tidade mínima de um metal con- tratégia de conservação de áreas getação nativa se encontra in-
dutor deve ser acrescentada a um florestais: deve-se ter apenas uma tensamente fragmentada, como
material para que haja passagem reserva grande ou manter várias acontece em especial nos cerra-
de corrente elétrica. Princípios pequenas que, somadas, teriam dos e na mata atlântica.
derivados dessa teoria têm sido a mesma área que a grande? Existem, portanto, argumentos
utilizados hoje em ecologia, com Cada estratégia apresenta uma científicos sólidos que susten-
base em uma analogia entre a pas- vantagem diferente. A escolha por tam a necessidade de manter re-
sagem de eletricidade (conecti- várias pequenas reservas permite servas legais florestais de no mí-
vidade ou percolação elétrica) e englobar uma diversidade maior nimo 60% da área total da pro-
a passagem de um indivíduo atra- de ambientes (ecossistemas, tipos priedade (na Amazônia) e com
vés de uma paisagem (conecti- de vegetação etc.), o que pode re- grau máximo de agregação (em
vidade ou percolação biológica). sultar na preservação imediata de todos os biomas), para reduzir o
Em outras palavras, a pergun- um número maior de espécies. risco de extinção de espécies.
ta do biólogo poderia ser: qual a Por outro lado, a existência de Tais argumentos biológicos ba-
quantidade mínima necessária uma só reserva permite manter seiam-se na função principal das
de vegetação para permitir que um sistema mais íntegro, incluin- reservas legais: a conservação e o
uma espécie atravesse a paisa- do espécies que precisam de ter- uso sustentável da biodiversida-
gem de uma ponta a outra, su- ritórios maiores (por exemplo, de. Obviamente, a decisão sobre
pondo que essa espécie não se lo- onças ou aves de rapina) e popu- as alterações do Código .lores-
comova fora dessa vegetação? lações de maior tamanho, o que tal depende de parâmetros não só
Em inúmeras simulações fei- minimiza o risco de extinção. biológicos, mas também econô-
tas com computador, baseadas na Como se deve sempre pensar em micos, sociais e políticos. Antes
teoria da percolação, essa pergun- conservação a longo prazo, a mi- de tudo, essa decisão é política,
ta tem uma resposta muito pre- nimização dos riscos de extinção mas as implicações biológicas de
cisa: deve-se manter 59,28% da é prioritária na escolha de estra- qualquer alteração nas normas
vegetação. Assim, em paisagens tégias e, por isso, é preferível man- legais são fundamentais para
onde a vegetação cobre um per- ter uma reserva grande. embasá-la. n
junho de 2002 • CIÊNCIA HOJE • 49