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CONTO O VAGABUNDO NA ESPLANADA
"O Vagabundo na Esplanada."
A surpresa, de mistura com um indefinido receio e o imediato desejo de mais
acautelada perspetiva de observação, levava os transeuntes a afastarem-se de
esguelha para os lados do passeio.
Pela clareira que se abria, o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha,
despreocupadamente, avenida abaixo.
Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas velho e
cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído nos
cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam
atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as
calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas
ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba às ondas, o chapéu
semelhava uma auréola alvacenta.
Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de onde uns olhos azuis-
claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão,
erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade.
Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.
Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída
segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não
só por educação mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que
pensar.
O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se
desviavam, oblíquos, deambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia
um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar,
logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios, todas as
obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos de prepotências, sempre
humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia.
Num instante, embora se desconhecessem, aliava-os a unânime má vontade
contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia.
Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-
os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto,
alguém disse:
- Vê-se com cada sujeito.
Um senhor vestido de escuro, de pasta negra e luzidia, colocada ostensivamente
ao alto e bem segura sobre o braço arqueado, murmurou azedamente:
- Que benefício trará tal criatura à sociedade?
- Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade.
E assim, resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus
problemas. Sem dar por tal, o homem seguia adiante.
Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada
para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma
da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente.
Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o Sol da tarde
quente de Verão.
A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à vontade de um frequentador
habitual, o homem sentou-se.
Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés
dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas
abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem-estar.
Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da
esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao
desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação. Ausente, o homem
entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de
vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O
homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro.
Céptico, mas curioso, pôs-se a ler.
O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes.
Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem:
«Pois, não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!» Nas caras,
descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada,
hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.
Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu
dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:
- Não pode...
E calou-se. O homem olhava-o com atenta benevolência.
- Disse?
- É reservado o direito de admissão - tornou o rapaz, hesitando. - Está além escrito.
Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção, se
dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:
- Que direito vem a ser esse?
- Bem...- volveu o empregado. - A gerência não admite... Não podem vir aqui certas
pessoas.
- E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se
presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes.
O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.
-Talvez que a gerência tenha razão -concluiu ele, em tom baixo e magoado. - Aqui
para nós, também me não parecem lá grande coisa.
O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as
moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:
-Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por
mim, não me importo.
Manuel da Fonseca in Tempo de Solidão. (1985)

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  • 2. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o Sol da tarde quente de Verão. A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se. Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem-estar. Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação. Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro. Céptico, mas curioso, pôs-se a ler. O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem: «Pois, não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!» Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada. Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou: - Não pode... E calou-se. O homem olhava-o com atenta benevolência. - Disse? - É reservado o direito de admissão - tornou o rapaz, hesitando. - Está além escrito. Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou: - Que direito vem a ser esse? - Bem...- volveu o empregado. - A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas. - E é a mim que vem dizer isso? O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe. -Talvez que a gerência tenha razão -concluiu ele, em tom baixo e magoado. - Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa. O empregado nem podia falar. Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente: -Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo. Manuel da Fonseca in Tempo de Solidão. (1985)