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ALÉM
DO TEMPO
E DO ESPAÇO
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ALÉM
DO TEMPO
E DO ESPAÇO
13 CONTOS DE
CIENCIFICÇÃO
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“Minha vida é muito mais complicada do que uma novela
policial” — disse-me o japonês ao erguer-se da mesa do carro-
restaurante. E acrescentou: “Um dia contarei tudo ao senhor”.
Ora, nós nos conhecêramos apenas meia hora antes, na-
quele trem da Alta Paulista. Conversáramos sobre vários assun-
tos e eu lhe dera algumas informações profissionais sobre par-
cerias agrícolas. Dos problemas da parceria tínhamos passado
aos do cinema e destes aos da novela policial. Hoje estou certo
de que a vida de Takeo pode servir de tema a uma novela como-
vente.
Trocamos os nossos cartões de visita e dois ou três anos
correram sem que eu tivesse notícias do nipônico. Mas um dia
fui surpreendido por uma longa carta, de difíceis garranchos
que alinhavam uma língua mista e quase indecifrável.
Corri os olhos pelas garatujas e joguei, desanimado, a car-
ta ao fundo de uma gaveta. Meio ano depois, ao ter notícia do
estranho fato que estava celebrizando o cemitério de S. José
do Abacateiro, e recordando que o japonês me falara sobre tal
localidade ainda não mencionada nos mapas do Estado, corri à
gaveta e iniciei a leitura, tradução e decifração daquelas vinte
folhas fechadas pela assinatura de Takeo Matusaki.
I
“NASCI EM CHIMABARA”
Não foi fácil arrumar em frases claras o emaranhado de
palavras que se acotovelavam no papelório do nipão. Na verdade
reescrevi a carta, aproveitando-lhe as idéias e as informações
9
e omitindo alguns elementos desnecessários, inclusive o meu
nome, que se repetia na abertura de todos os parágrafos, es-
tropiado mas reconhecível. A versão que aproveitei é a que tem
início na linha seguinte.
“Nasci em Chimabara, cidade plantada no lado oriental
de uma ilha perto de Nagasáqui, e tinha onze anos quando o
Imperador entrou na guerra mundial. Nessa época morávamos
na ilha de Quio-Chu, em Facuoca, e meu pai exercia o ofício de
mecânico. A guerra não o deixou em casa: seguiu como mecâ-
nico de viaturas. Então eu e minha mãe fomos para a casa de
uma tia, em Omura, subúrbio de Nagasáqui. Lá vivemos alguns
anos e eu ia crescendo enquanto meu pai servia nas ilhas do
Pacífico.
II
O COGUMELO
Apesar de tudo a vida era agradável. As notícias da guerra
eram sempre boas e na escola falava-se todos os dias de incríveis
atos de heroísmo. Mas houve em nossa vida aquele momento em
que ouvimos um estalo, e tivemos a impressão de que a terra se
fendera de cima a baixo. Um clarão iluminou o céu, do lado de
Nagasáqui, e depois um enorme cogumelo de fumo se plantou,
frondoso, sobre a terra e foi subindo vagarosamente.
Os dias seguintes foram marcados por uma chuva de boa-
tos e tudo era confuso. Firochima também fora destruída. Eu e
outros meninotes começamos então a nos aproximar das cinzas
de Nagasáqui, embora tal coisa fosse ferozmente proibida.
Renovavam-se os avisos: ninguém deveria chegar perto da
cidade arrasada. Ninguém deveria beber a água dos riachos e
das fontes da região. E nós, que ouvíamos as recomendações,
jurávamos não beber tal água. Mas a verdade é que — como vo-
cês ensinam — ninguém pode dizer “dessa água não beberei”...
III
OS FRUTOS DA MORTE
10
As semanas e os meses correram e as cautelas foram re-
laxando. Nos matos apareciam animais deformados, arbustos
diferentes, e nas árvores surgiam frutos jamais vistos. As mães
recomendavam: “Não comam esses frutos”; mas o fruto proibi-
do é uma tentação em qualquer parte, e a água proibida não é
menos tentadora. Por isso bebi água de muitas fontes e comi
frutos espantosos. Nada me aconteceu, embora tenham morrido
alguns rapazes que beberam e comeram. Outras causas os ma-
taram, naturalmente.
Alguns meses depois do armistício meu pai voltou incó-
lume, apesar dos lança-chamas. Lamentou os parentes mortos
em Nagasáqui e resolveu procurar emprego em lugar distante.
Achou-o, graças a um camarada de campanha, em Iocoama, o
grande porto a meia hora de Tóquio. Seguimos para lá, mas,
para não passarmos por Firochima, embarcamos em Nacatso e
fomos por mar até Osaca. Lá, apanhamos um trem e passamos
por Quioto, Nagoia, Ocasaqui, Odaura, e pronto: estávamos em
nossa nova terra. A viagem foi belíssima, apesar da tristeza geral
e das tropas de ocupação.
Um mês depois meu pai teve de ir a Camacura e levou-
me para que eu visse o Daibutsu. Devo dizer que éramos bu-
distas da seita Xin-Xu, fundada pelo veneravel Shinhran. Logo
depois fomos conhecer a grande capital do Império. Passamos
por Canagáua e Canasáqui e chegamos a Chinagáua, o primeiro
subúrbio. De lá meu pai dirigiu o caminhão para Tacanáua e
já estávamos na cidade imensa. Ainda me lembro do deslum-
bramento com que vi a avenida das Lanternas, tão falada na
escola!
A vida ia correndo bem, mas em fins de 46 meu pai co-
meçou a queixar-se de sintomas estranhos. Dois meses depois
estava num hospital e morreu em princípios de 47. As explica-
ções dos médicos não foram nada claras, mas um enfermeiro
deu-nos o diagnóstico terrível, com um neologismo não menos
maligno: o senhor Matusaki foi nagasaquiado.
11
IV
LUTO NO ASILO
Ficamos na maior penúria e comecei a fazer alguns ser-
viços no cais, para que minha mãe não passasse fome. Essa
responsabilidade não pesou sobre os meus ombros muito tem-
po. Como o marido, ela começou a definhar e, antes do fim da
primavera, fechou as pálpebras.
Ninguém estranhava que pessoas vindas da ilha de Quio-
Chu morressem, e por isso eu também tinha medo que chegasse
a minha vez. Não sem algum pânico, corri para Tóquio na espe-
rança de que certa família amiga me acolhesse. Mas o que essa
pobre família — cujos homens tinham morrido, quase todos,
nas Filipinas e em Sumatra — pôde fazer por mim, foi recolher-
me a um asilo, nos arredores da cidade. Eu já era, porém, taludo
e fiquei lá menos de dois anos.
Não foi um estágio tranqüilo. Quando lá cheguei, nem to-
dos os meninos eram saudáveis. Alguns tinham vindo de Firo-
chima ou arredores e houve mesmo dois ou três que morreram
no primeiro ano de minha permanência. Nos três ou quatro me-
ses seguintes morreram mais três, que eram, aliás, meus com-
panheiros de dormitório. E quando saí de lá, para ocupar um
emprego de ajudante de mecânico em Chinagáua, deixei mais
dois na enfermaria. Para mim, o pó da morte já se havia espa-
lhado por todo o país, e todos nós seríamos nagasaquiados em
poucos anos. Esta idéia começou a atormentar-me como uma
obsessão na oficina do sr. Susumo Udihara, em Chinagáua.
V
A TERRA DA UIÁRA
Às vezes aparecia na oficina o senhor Minesako Udihara,
filho mais velho do patrão, e o seu assunto predileto era uma ter-
ra distante e cheia de rios, do outro lado do mundo, onde tinha
morado alguns anos. Êle nos garantia que naqueles rios — prin-
cipalmente no Pararaparema, aparecia uma moça bonita como
uma gueixa, que morava na água. Era a Uiára. Êle mesmo tinha
12
visto uma e soube, por ela, que os homens mais antigos daquele
país tinham ido da Terra do Sol Nascente para lá! Naquele país
de árvores altas ninguém morria do mal de Nagasáqui.
Trabalhei muito na oficina Udihara e transformei-me num
mecânico hábil. Mas o idoso Susumo não tinha o dom da imor-
talidade: em fins de 49 adoeceu e poucos dias depois os seus
calcanhares se uniam. O seu filho mais velho, senhor Minesako,
já tinha a essa altura voltado para a terra dos grandes rios e por
isso a oficina foi fechada. O casal tivera outro filho — Asami—
que jazia no bojo de um submarino, no fundo do mar do Coral.
É verdade que cheguei a assumir a direção da oficina, mas logo
tive a amargura de ver que a viúva Udihara, a idosa senhora
Mieko, começava a encorujar.
Desde que chegara a Chinagáua, eu residia na casa de
uma família xintoísta, que dava pensão. Meu companheiro de
quarto era um jovem jogador de “baseball”, o cristão Akeda. Era
bonito ver, sobre a mesma mesa, uma miniatura do Daibutsu ao
lado da imagem do mártir São Paulo Miki. Mas o dono da casa,
senhor Sugano, nos reprovava e atribuía às crenças “estrangei-
ras” as desgraças nacionais. Tudo acontecera porque tínhamos
abandonado o culto da deusa Amaterasu, do deus Izanági e dos
Kami. Pois bem: o atlético cristão Akeda morreu uma semana
depois do enterro do senhor Udihara. E, no pensar nesse e em
outros mortos, eu sorri muitas vezes da ingenuidade com que
minha mãe me proibira de beber água ou comer frutos dos ar-
redores de Nagasáqui. Eu bebera e comera e os outros iam
morrendo.. .
VI
O ESQUELETO
Em março de 50 deixei Chinagáua, no mesmo dia em que
a senhora Mieko era levada para um hospital da cidade. Mine-
sako falara muito daquele grande país cheio de sol e uiáras, que
ficava do outro lado do mundo. Comecei a cuidar dos papéis
para a grande viagem e para fugir do mal de Nagasáqui. Tinha
algum dinheiro e arranjei uma pensão perto do centro de Tó-
13
quio. A obtenção da licença para viajar e do visto era, porém,
demorada, e por isso arranjei um novo emprego, para me agüen-
tar durante a espera.
Por várias razões gastei quase um ano e meio até que tudo
se formalizasse. Viver durante esse tempo foi, porém, um alívio
para mim, pois, se no primeiro ano tudo correu bem na pen-
são, nos últimos três meses tinham morrido dois pensionistas.
O fato e a causa mortis alertaram as autoridades sanitárias e eu
mesmo — com outros hóspedes — fui submetido a longo exame
clínico. Mas o meu estado de saúde era aparentemente ótimo —
disseram-me.
Um dia, finalmente, recebi o passaporte e demais docu-
mentos para a viagem. Na véspera do embarque apanhei a vo-
lumosa mala, já pronta, e fui a Iokoama despachá-la. Voltei a
Tóquio para passar a última noite na pensão. Ao chegar, tive
uma notícia triste, mas já esperada; o dono da pensão, senhor
Mizumoto, morrera no hospital.
No dia seguinte, ao amanhecer, eu me preparava para
sair, com a minha maleta de mão, quando a pensão foi invadida
por policiais e médicos. Em Iokoama o navio me esperava, mas
nada pude fazer: fui levado com mais cinco pensionistas para
um hospital. Fomos admitidos a vários exames e quando meu
dorso foi submetido à radioscopia, o médico soltou um brado de
espanto: “o esqueleto deste homem parece feito de luz fluores-
cente!”.
VII
À GRANDE VIAGEM
Nada me perguntaram, nem ao menos o nome.
Meteram-me numa ambulância, talvez para que, confina-
do em alguma cela de cimento, eu acabasse os meus dias. Mas
as poucas peças de ferramenta que eu tinha na maleta muda-
ram o programa. Após meia hora de viagem arranquei as dobra-
diças da porta da ambulância e, na primeira parada, forçada por
um cruzamento com o leito da estrada de ferro, desci tranqüi-
lamente. Três horas depois o “Osaca Maru” levantava ferros em
14
Iocoama e fazia-se ao largo. Num dos seus camarotes de classe
geral eu repousava com este esqueleto radioativo que continua-
va a luzir dentro de mim.
VIII
COMPANHEIROS
Éramos quatro no camarote e cada um tinha um destino.
Só eu não sabia o que fazer depois de saltar em terra. O destino
de Iojiro — um de nós — era S. José do Abacateiro, um arraial
entre algodoais.
— “Lá é bom. Há banqueiros patrícios que emprestam di-
nheiro para comprar terra”.
— “Como é que você sabe?”
— “Eu já estive lá. Comprei terra que tinha mais dois do-
nos: João e José. João matou José e foi morto por Antônio, filho
do mesmo José. Antônio foi preso e eu fiquei com a terra.”
Fizemos camaradagem e afinal Iojiro convidou-me para
trabalhar no sítio dele: — “Há sempre serviço de mecânico” —
explicou.
E havia. Êle tinha um trator, um jipe e algumas máquinas
agrícolas. Colhemos uma safra, entrou dinheiro e tudo ia bem.
Um dia êle foi montar um baio, meteu o pé no estribo, e não teve
força para alçar o corpo. Encarei-o: estava pálido. Foi enterrado
daí a dois meses e então apareceu Joaquim, filho do defunto
João, com uns papéis e soldados. Tomou a terra, o rancho e
tudo mais, e eu só pude fugir com o jipe e minhas ferramentas
para Bauru.
IX
AMOR FATAL
Viver só é muito triste. É mais triste ainda quando mata-
mos aqueles com quem convivemos. Na escola de Omura o pro-
fessor me ensinara que o rei Midas transformava em ouro tudo o
que tocava. Mas eu transformava em defuntos todos os parentes
e amigos. Pensei no entanto que poderia casar, desde que não
15
tivesse a esposa sempre ao meu lado.
Lidia Tsurayuki, uma nissei, era em pouco tempo minha
noiva. Fui buscá-la a Guaraniuva e casamos. Não consegui, po-
rém, convencê-la de que deveríamos ter quartos separados e
comer em horas diferentes. O caso de Lidia foi, realmente, o de
um amor fatal: quando eu esperava que ela me desse, em breve,
o meu primeiro nissei, o seu sangue começou a desfazer-se em
água. Tudo foi questão de alguns dias e, então, desesperado,
resolvi vingar-me de alguém.
X
RÁDIO-HOMIC1DIO
Voltei à roça de Inojiro, entreguei o jipe a Joaquim e pedi-
lhe perdão e um emprego. O caboclo vivia feliz com a mulher
e um filho pequeno, e também com o trator e as máquinas de
Inojiro Mizikame. Transformei-me na sombra da família, sempre
serviçal e dedicado. Era enxadeiro e mecânico, moço de recados
e copeiro. Em seis ou sete meses o extermínio começou. Adoe-
ceu primeiro o menino, mas quando me arrependi já era tarde:
nem o Buda de Camacura nem S. Jacob Sisaí, de minha nova
devoção, me ouviram. Atrás do menino foram os pais e a esse
tempo já os empregados e agregados começavam a adoecer. Foi
então que se espalhou por aqui a lenda de que sou bruxo, feiti-
ceiro e envenenador, de que mato com mau-olhado e com suco
de ervas más. Ninguém mais se aproxima de mim, mas sei que,
a qualquer momento, cairei na ponta de uma faca ou varado por
uma bala”.
XI
ASSASSÍNIO PÓSTUMO
A conclusão desta história não poderia estar na carta de
Takeo Matuzaki. Eu a acrescentarei. Certa manhã o corpo do
japonês — disse um jornal — apareceu cortado a faca e cha-
muscado pelo fogo. Enterraram-no em S. José do Abacateiro,
e alguns meses depois o zelador do cemitério morria anêmico,
16
evidentemente nagasaquiado. Ao redor da campa de Takeo as
plantas que não secaram mudaram de aspecto. Sob a terra o
seu esqueleto continuava — e continuará — a matar, muito em-
bora o seu espírito maligno já tenha sido convenientemente es-
conjurado por aqueles que estão seguros de que Matusaki foi a
própria encarnação do Diabo, o Diabo em carne e osso, ou pelo
menos o esqueleto do Diabo.
17
18
Com certeza, no futuro, talvez antes de um século, este
episódio pertencerá ao historiador, ao cronista. Por certo, num
amanhã não muito remoto, surgirá quem relate todas as minú-
cias. Por certo, os bardos cantarão os feitos, surgirá a lenda,
criar-se-á paralelamente o mito. Assim como no passado, na
era das conquistas, no tempo da expansão sobre a Terra, houve
historiadores e cronistas, assim também será no porvir. Não fal-
tarão homens como Prescott ou Bancroft, como aqueles escribas
que acompanhavam as naus européias nos périplos fantásti-
cos demandando o desconhecido. E então a minha história bem
pouco valerá. Portanto, mesmo sem a perspectiva das conse-
qüências, sem o impacto transcendental e filosófico, lhes dou o
meu relato de simples repórter, de olheiro da humanidade que
lá ficou. Fui o primeiro que assistiu à cena, atônito e emudecido,
na bolha atmosférica que parecia uma gota vista de cima, das
elevações que cercam o Mar da Fecundidade.
Eu era o único que não tinha interesse no sorteio. Lá fica-
ria quanto quisesse, pois o meu contrato não estipulava prazo.
Não era astronauta de profissão, mas apenas um corresponden-
te. E, sendo o único, escolhido mais por minhas aptidões físicas
do que intelectuais, não tinha compromissos ou concorrência.
Anotava, escrevia e, se desejasse, ia pessoalmente no vôo men-
sal recolher os meus proventos, entreter-me por semanas com
Doroteia, beber com Gustavo, ouvir as lamentações sem fim de
Emiliana. Era cômodo, confortável, chegava mesmo a ser diver-
tido e, além disso, utilitário que sou, sumamente compensa-
dor. Todos comiam por minhas mãos, distribuía meu alimento
a peso de ouro. Afinal, como eleito, sem linha política que me
19
incompatibilizasse com as duas facções, era sobretudo neutro,
e um só, o que reforçava minha independência. Senhor, pois,
naquele satélite de escravos, não me importava com os dias de
sorteio, esquecendo-me que meus companheiros não pensavam
assim.
Vínhamos então pelo vale em passo acelerado, atentos
para não transgredirmos as imposições da baixa gravidade, em
passos estugados mas bem medidos para não virarmos saltões
naquele mundo de pesadelo. Éramos oito, todos do Grupo A, da
equipe internacional, do Quadrante Dois, da Base de Petavius.
Naquela manhã havíamos tentado algo novo: o alpinismo lunar.
Fomos os primeiros a galgar a protuberância mais elevada de
Altai e a flâmula da EICLU (Equipe Internacional da Conquista
Lunar) ficou estática no cenário espoliado de atmosfera.
Recordo-me que o cansaço nos aniquilava. Caminhávamos
com os interfones ligados mas nenhum som se ouvia, apenas
chiados de pulmões ofegantes que inflavam ao máximo nossos
trajes de pressão, dando-nos aspectos de balões grotescos. Dois
integrantes do grupo quase chegaram a perder a consciência.
Havíamos abusado. A caminhada fora longa e a ascensão peno-
sa. Vários descanços, quase um pedido de socorro. Mas, como
previa o Regulamento, até três baixas, tudo era tolerável. Não
seria solicitado auxílio a não ser em risco de aniquilamento to-
tal. Assim fora na catástrofe de Cassini, por pouco no desastre
do Mar dos Humores.
Eu marchava no meio, o único privilegiado que não trans-
portava equipamentos. À beira da exaustão, o líder lembrou-se
do acontecimento — a ação mágica de certas frases que soer-
guem o moral, levantam os ânimos, O chiado parou e a voz veio
sem distorção:
— Atenção, camaradas, hoje é dia de sorteio!
Um frêmito percorreu a fila indiana. Dir-se-ia que uma
injeção havia retesado os músculos, alteado as derradeiras re-
servas, incendiado lembranças, sobretudo despertado desejos.
A marcha acelerou-se quase ao limite da gravidade e vozes cru-
zadas com acentos eufóricos e interjeições de redivivos, estala-
ram nos fones:
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— Tenho certeza que desta vez serei um deles!
— Cheguei a apostar por fora. Não me interessa, venderei
meu passe!
— Meu filho me espera há mais de um ano. Como estará
êle?
— Não adianta, jamais tive sorte, desde menino...
Só eu não falei. Como já lhes disse, o sorteio não me in-
teressava. Mas devo esclarecer o que era esse sorteio. Ao todo —
naquela Base éramos cinqüenta homens e dez mulheres. A nata
da ciência, o sumo da animalidade. Cada aeronave só podia le-
var cinco elementos, e cada vôo era mensal, meses terrestres.
Maior espaço e mais passageiros naquela década era impossível.
E então ? No começo o rodízio, depois o sorteio preconizado pe-
los especialistas-tutôres. Uns, os mais afortunados, já haviam
regressado à Terra três ou quatro vezes. Outros sem sorte algu-
ma, lá estavam havia mais de ano, deglutindo doses de medi-
camentos que os ajustavam melhor ao meio planetário. Alguns
exemplos: o russo de Odessa fora três vezes em quatro sorteios;
o mexicano, técnico em comunicações, fora duas; o belga, gra-
duado em biônica, voltara quatro vezes em seis meses.
Outros porém, como o mais moço, o rapazinho cheio de
sardas, lá estavam havia mais de ano e meio e jamais tinham
conseguido o bilhete. E entre as mulheres? A mesma coisa. Pa-
rece que elas sentiam menos a terrível segregação. Os psicólogos
tinham razão. De fato, as mulheres se adaptavam melhor, não
apresentavam problemas, nem mesmo demandavam pílulas em
doses extras, como acontecia com a maioria dos homens. Sônia
e Olga haviam regressado uma vez. A inglesa, duas. A mais ve-
lha, com certeza norte-americana, voltara quatro vezes, ao pas-
so que a mais moça já se aproximava de um ano sem obter o
papelucho azul. E, ao que parece, bem pouco se aborrecia com
isso. Vivia metida em seu traje vermelho, como que escondendo
suas formas que deveriam ser das mais esguias, como afirma-
vam os que a haviam visto na bolha, em pleno trabalho, debru-
çada sobre o microscópio.
A lembrança do líder produziu o efeito desejado. Antes da
hora prevista a distância foi vencida e o pedido de auxílio deixou
21
de ser enviado. O jovem sardento caminhava na minha frente.
Quando passei a marchar ao seu lado busquei-lhe o rosto sob
o elmo. Notei-lhe certa expressão de indiferença e que também
não era do cansaço que agora ia ficando para trás, ligado às nos-
sas pegadas impressas no pó lunar até o final dos tempos.
Eu não podia falar-lhe diretamente, pois o sistema dos in-
terfones estava subordinado à escuta geral. As conversas parti-
culares eram proibidas, só permitidas em circunstâncias excep-
cionais. Ao líder do grupo cabia a iniciativa e todos os circuitos
deviam estar desimpedidos para as ordens e os contatos com
a Base e eu, mesmo isento da disciplina, estava de certa forma
sujeito aos regulamentos. Mas não raro os esquecia. Quebrava
o formalismo e minhas expansões eram toleradas. Afinal, eu
era o privilegiado. Segundo a lenda que corria, eu poderia falar
com o Presidente com a mesma facilidade com que me comuni-
cava com o chefe do meu jornal e isso por certo impunha algum
respeito.
Apressei a marcha. Levantava bem pouco minhas botas,
evitando assim que a poeira plúmbea flutuasse naquele páramo
desolado. Quase me encostei ao rapaz sardento. Como era mes-
mo seu nome? Charles ou Bill? José ou Demetrius? Não, creio
que não. Depois vim a saber que era canadense, que nascera
junto aos Grandes Lagos. Até aquele instante eu só sabia que
êle até então não regressara uma só vez à Terra. Recordo-me
que nos quatro últimos sorteios seus amigos mais chegados ti-
nham começado a preocupar-se. Nas primeiras vezes o jovem
dava demonstrações de decepção. Depois se tornou indiferen-
te. A princípio — e isto foi o seu companheiro de bolha quem
me contou — mal dormia nas vésperas dos sorteios. Largava os
livros, esquecia das transmissões terrestres, ficava do lado de
fora, encostado a algum pilone fitando o globo azul em torno do
qual girávamos mansamente. Pouco falava. Apenas o necessá-
rio com os amigos e talvez um pouco mais com os psicólogos,
sempre em solidão, metido com seus livros. Com certeza, até
àquela época tudo com êle ia bem. Segundo os especialistas, os
introvertidos agüentavam melhor. E isso de agüentar e de não
agüentar só será bem entendido por quem já viveu no espaço.
22
Mas, vamos à minha história, vamos ao que interessa. Lembro-
me que sabia apenas que o jovem sardento nunca voltara. Bati-
lhe então no ombro e violei a regra. Falei-lhe baixinho, como
se entre nós inexistisse o capacete, como se lhe segredasse ao
ouvido e minhas palavras não fossem ouvidas por todos os que
estivessem com os aparelhos ligados.
— Então? Anime-se. Não ouviu o que o chefe disse? Sim,
hoje é dia de sorteio!
Êle era mais jovem. Talvez vinte e um anos, vinte e dois ou
talvez menos. Continuei ao seu lado. Fixei-me no capacete do ra-
paz, levemente tocado pela poeira, e localizei a resposta para mi-
nha indagação. Apenas certo olhar mais detido que serviu para
revelar uma atitude de desesperança. Pude ver que êle respirava
com dificuldade. Examinei-lhe os registros do oxigênio e pressão
interna. Os marcadores estavam bem visíveis do lado de fora dos
elmos, como se fossem periscópios, em posição que pudessem
ser fiscalizados pelos companheiros. Isso era importante, pois
se evitavam assim acidentes fatais. Mas tudo ia bem, êle não
estava com deficiência respiratória. Tratava-se de mero cansaço
— a altitude da escalada, as longas milhas lunares, o cuidado
redobrado na passagem das falésias, a atenção para não levan-
tarmos poeira desnecessária, talvez a exaustão de quem está há
muito tempo no satélite como um exilado. E os médicos? Como
é que não o devolvem aos Grandes Lagos? Porque não o libertam
desse mundo monocromático e silencioso que não raro chega a
fazer com que ponhamos em dúvida a validade da própria exis-
tência? Não entendia. Mas, se nada faziam era porque tudo ia
bem. Eles eram eficientíssimos. Oniscientes. Examinavam-nos
(e eu, mesmo como agregado submetia-me voluntariamente à
rotina) todas as semanas. E não só o físico, mas sobretudo a
alma. Sim, meus amigos, a alma. Era importante, fundamen-
tal. Agora me recordo. Transmito-lhes este pormenor a título
de curiosidade, para colorir minha história, já que em outras
reportagens cuidei mais a fundo da matéria. Não foi porventura
na Lua que muitos homens se converteram? Não foi na capela
triangular de Endimião que muitos tiveram seu primeiro encon-
tro com Deus? E por que? Por que? indagavam os psicólogos,
23
os sacerdotes e os sábios da Igreja? Porque lá, no astro gelado
e abrasador, onde tudo é paradoxal, muitos encontravam-se e
dialogavam com suas próprias almas. Lá o homem se achava,
estando só. E então? poderiam argumentar os céticos. E então?
Esse isolamento também não existia na Terra? Nos desertos, nos
mares, nas profundidades oceânicas, nas calotas polares? Não,
não era a mesma coisa. Na Terra estavam de qualquer forma lá,
abrigados em seus lares, acorrentados ao solo do planeta que os
gerara, que os fecundara, indissolùvelmente ligados à mãe que
os protege, identificados pelo destino coletivo que cria uma série
ponderável de hábitos, motivo pelo qual nenhum espanto decor-
re do fenômeno vital. Mas na Lua tudo se desmantelava numa
solução antípoda. Lá em cima é que estava a Terra, sobre suas
cabeças é que se achavam os lares, lá na esfera assustadora é
que se achava albergada a vida. E então a existência de fora se
revestia das dimensões do sonho, era um sacrilégio, certa ofen-
sa, com o irracional das reincarnações. Na Lua todos se sentiam
ressuscitados. E da perplexidade e do pavor nascia o encontro
com o espírito. Ficava-se só consigo mesmo e o resultado eram
as conversões na capelinha escura de Endimião, protegida pela
bôlha-dupla.
Mas tudo isso pouco tem a ver com a minha história.
O menino sardento era um daqueles. Nos primeiros meses
não freqüentava o templo. Depois passou a ir amiúde e depois
ainda, num comportamento incomum, deixou de ir. Os espe-
cialistas-tutôres anotaram o fato. Testes, exames e entrevistas.
Mas tudo ia bem com a sua alma — afirmaram.
Quando procurei animá-lo a marcha foi apressada. O líder
cortou-me a segunda frase com uma determinação de serviço, e
pelo seu tom senti que me repreendia pelo uso indevido do cir-
cuito. Cumprindo a ordem, segui a fila até o instante em que
as comportas se abriram para receber-nos.
Mas, como se processava o sorteio? Cada homem tinha
um número, gravado numa plaquinha dependurada no pesco-
ço. Como no passado, se o homem morresse a família receberia
a placa de identificação. Tais placas eram depositadas numa
semi-esfera posteriormente bem revolvida pelo Administrador.
24
Em seguida, ligando-se a certa distância o eletroímã, imprimia-
se movimento circular ao receptáculo, que ficava numa coluna
sobre um eixo móvel. Pela ação do ímã as chapinhas agitavam-
se, empinavam-se debaixo da torcida geral, como que lutando
contra o magnetismo atuante. Após segundos, elas desligavam-
se e iam flutuando pelo espaço até se fixarem no pólo do apa-
relho, que era então desligado. Lia-se em voz alta o número do
felizardo. E assim, uma a uma, as placas saíam velozes, criando
ou destruindo ilusões, em meio à algazarra que sempre acom-
panhava o espetáculo.
O Administrador devolvia-a ao sorteado e no mesmo ins-
tante lhe entregava o bilhete azul que era exibido na partida.
Assim foi naquela noite. Tudo decorreu normalmente e só
no dia seguinte, pela oitava hora após o embarque, foi que se
descobriu tudo sem entretanto compreender-se a causa do de-
satino.
Admito que anotei a atitude do jovem sardento durante
o sorteio. Como era mesmo seu nome? Charles ou Bill? José
ou Demetrius? Não me recordo ao certo. Apenas sabia alguma
coisa de sua vida que por êle me foi contada nos períodos de
repouso. Naquela época êle tinha outra conduta. Positivamente
não era extrovertido, mas falava de si o normal, talvez um pouco
menos que a média, dentro dos padrões de quem se achava na
segunda fase de ajuste. Seu pai era chefe de usinas solares e
dois dos seus irmãos haviam morrido na descompressão de um
satélite. Tinha uma noiva ou namorada. As coisas de sempre
— saudades, cartas, retratos falados, sem nada de especial que
revelasse conduta assintomática. Só não consigo recordar-lhe o
nome. Na sala observei que se mantinha isolado, num dos can-
tos do bar, trajando ainda as roupas do exterior. Tinha alguma
coisa na mão que revolvia com insistência e ao seu lado, sobre
o balcão, os copos vazios indicavam que já consumira todos os
vales. Não se acercou do grupo formado ao redor do eletroímã.
Revirava os dedos o tempo inteiro o objeto brilhante e às vezes
ficava de costas para a semi-esfera, em atitude que me pare-
ceu ostensiva. Dir-se-ia mesmo que estava sendo perturbado
em suas cavilações pelo tumulto. Sua ausência era estranha
25
e poderia chamar a atenção dos especialistas. Mas, como suas
fichas continham as respostas exatas e os furos satisfatórios,
como as máquinas jamais se equivocam nos prognósticos, não
havia com o que se preocuparem. Apenas certo procedimento
incomum, sem perigo para o equilíbrio coletivo que, como num
sistema de vasos comunicantes, devia ser observado sob pena
de levar a convulsão a toda equipe. Em função dessa harmonia
se justificava o trabalho contínuo dos tutores. Tratava-se ape-
nas de um moço que desejava preservar a sua solidão. Proclamo
aqui a grande verdade que a esse respeito encontrei no livro de
um escritor do passado que gozou de algum renome no século
XX. Um certo Thomas Mann, que na sua novela preferida, tal-
vez levado pelo romantismo crônico que então se cuidava eterno
companheiro do homem, afirmou que a solidão e o silêncio, se
amadurecem a originalidade e a beleza audaz, também geram
a perversão e o absurdo, incitando as criaturas ao ilícito. A sá-
bia assertiva bem se aplica ao franco-canadense, explicando em
parte o episódio que desacreditou os especialistas e toda a sua
cibernética. Para conhecerem a alma talvez devessem ler os au-
tores do passado, meus velhos amigos Dostoievski, Shakespeare
ou Kafka, Faulkner ou Stendhall, enfim todos aqueles que há
muito foram banidos das bibliotecas por anacrônicos, sediços
e inaproveitáveis, alguns deles perniciosos mesmo. Deviam os
psicólogos, esquecendo-se das sondas mentais e detectores de
comportamento, valerem-se das experiências dos artistas, da
intuição incomparável daqueles que nas épocas anteriores eram
considerados gênios, o que não mais havia agora em nossa era
de progresso. Se assim fosse tudo talvez poderia ter sido previs-
to, sem a celeuma e o clamor despertado, afastando-se o inútil
das punições.
Terminado o sorteio, os contemplados exibindo os bilhetes
passaram ao bar, em triunfo. Em meio à alegria transitória fo-
ram poucos os que notaram a reação do rapaz. Este revirou o úl-
timo gole, limpou a boca na manga do blusão e saiu às pressas,
como se temesse contaminar-se pela euforia dos companheiros
que logo deixariam a Lua. Largou no meio dos copos o objeto
que tinha na mão e desapareceu em direção aos alojamentos.
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Aproximei-me do bar. Peguei aquilo com que êle brincava. Ape-
nas uma pedra, um bloco um pouco maior do que um punho fe-
chado, disforme e cheio de arestas, talvez resíduo de meteorito,
níquel e manganês, resto de sol morto ou de planeta destruído,
apanhado como lembrança das plagas lunares. Segurei o ca-
lhau e, sem medir as conseqüências, saí atrás do jovem para
devolver-lhe o achado. Apenas um pretexto para vê-lo. Talvez
não o devesse ter feito. Devia ter esperado, aguardado melhor
oportunidade. Quem sabe se com essa atitude contribuí invo-
luntariamente para o crime? Dei com êle deitado em seu catre,
na bolha coletiva. Semi-despido, os olhos esbugalhados, um li-
vro na mão, o olhar pregado no espaço. Devolvi-lhe a pedra. Êle
não respondeu, nem mesmo com um agradecimento. Esticou a
mão, balançou o pulso sentindo o peso do mineral e fixou-se em
mim com o mesmo ar atoleimado, insatisfeito, mas que conti-
nha algo de ameaçador. Fiquei sem saber o que fazer. Senti que
quebrara uma cogitação profunda e que isso não era bom, que o
havia despertado de um devaneio. Silenciei, não sei se me des-
culpei. Antes que eu saísse êle desligou o comutador. Voltei-me
ao cerrar o postigo e apenas lhe vi o vulto abatido, com aquela
coisa que brilhava na mão.
Na oitava hora depois da partida para a Terra, o respon-
sável pelos compressores encontrou a vítima. Estava escondida
debaixo de uma das máquinas, dobrada sobre si mesma, ves-
tida e equipada para o vôo espacial, apenas sem o elmo que se
colocava no momento de deixar a proteção gasosa. O coração
batia ainda, havia um tênue alento e o filête rubro escorria da
testa infiltrando-se pela camisa junto ao pescoço. Foi de pronto
reconhecida. Um dos sorteados, o russo de Odessa que voltara
três vezes. E, ao lado do corpo desfalecido, o calhau brilhante
que na penumbra refulgia como uma gema preciosa, agora de-
positado na mesa do Superintendente, transformado numa das
peças principais do inquérito. O bilhete azul não estava mais
nas mãos do russo. Alguém o retirara, alguém, protegido pelo
anonimato conferido pelas vestes do espaço e que já se acercava
dos Grandes Lagos.
A investigação foi sumária, tudo era evidente. Só o jovem
27
sardento não foi encontrado. As primeiras medidas foram to-
madas, feitas as comunicações com a Terra e transferida para
a chefia suprema a responsabilidade do julgamento. Fui ouvi-
do sobre os antecedentes e relatei-lhes a reação do rapaz ao
restituir-lhe a pedra. Segurei o seixo, aferi-lhe o peso. O golpe
fora violento, o russo só escapara por pouco. Mas os motivos,
as razões, as raízes diretas e remotas desse comportamento? A
equipe dos especialistas-tutôres foi a maior condenada. Tudo
conferia, tudo era normal, com os ponteiros, com os gráficos,
com as pastilhas, com o físico e com a alma.
A explicação só veio cerca de vinte dias depois, não des-
vendada nem mesmo pelo interrogatório do moço. Em plena ma-
drugada lunar, no momento em que se procedia à chamada das
mulheres para a expedição que partiria para o Mar das Crises.
Lá estavam todas. Todas menos uma, a mais moça, a que ali se
achava havia mais tempo, aquela que se chamava apenas Ma-
ria. Inexplicável sua ausência. Saímos para a busca em grupos
organizados, já que não se encontrara no alojamento a bolha
individual da jovem. Maria era bióloga, encarregada de pesqui-
sas microbianas. Talvez tivesse saído da Base, talvez — pois
tinha relativa independência em seus movimentos — estivesse
nas imediações, como sempre fazia, colhendo material. Talvez
tivesse tido dificuldade no regresso. E lá segui eu com o grupo
que se internou pelas alturas de Godenius com a intenção de
vasculhar dois décimos do quadrante.
Fui o primeiro a avistar a protuberância, o ponto minús-
culo, a pequena gota pousada no Mar da Fecundidade, a menos
de duas horas da Base. Apenas fiz um gesto indicando a baixa-
da e lancei-me com ímpeto redobrado. Meu sangue de repórter
ferveu, queria ser o primeiro a chegar, já imaginando a notí-
cia, vislumbrando a possível tragédia. Adiantei-me aos compa-
nheiros, e a poucos metros da bolha individual, bem unida a
uma pequena cratera, vi em seu exíguo interior certa forma em
completo abandono. Aproximei-me. E antes de abrir o invólu-
cro assegurei-me de que a jovem estava com suas vestes. Mas
era um pesadelo o que eu via. Maria estava por certo morta ou
desfalecida. Imóvel, repousava na pequena área de seu abrigo,
28
sem o elmo e sem o traje que sempre lhe ocultava as formas.
Ao lado, bem unido aos condutos de oxigênio, o capacete reco-
bria alguma coisa rosada, envôlta em panos sanguinolentos, e
que pulsava lentamente. Compreendi. Afastei-me, recuei alguns
passos, tentei ordenar minhas idéias. Pela primeira vez, longe,
bem longe da Terra, o milagre renovava-se. Meus companheiros
já estavam próximos. Quando de novo olhei para o abrigo, tive
tempo ainda de ver, nos limites extremos do Mar da Fecundida-
de, o risco chamejante de um grande meteoro que se consumia
nos contrafortes da cordilheira. A claridade, o silêncio, o traço
persistente no espaço, efeméride cósmica a denunciar a contin-
gência humana.
E na semana seguinte a criança foi levada a capela de En-
dimião. Com que nome foi batizada? Bill ou Charles? Demetrius
ou José? Não me recordo, confesso.
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30
A loja de antigüidades tinha o cheiro de uma arca de sa-
cristia com seus panos embolorados e livros comidos de traça.
Com as pontas dos dedos, êle tocou numa pilha de quadros.
Uma mariposa levantou vôo e foi se chocar contra uma imagem
de mãos decepadas.
— Bonita imagem, disse êle.
A velha fechou no pescoço as pontas do xale.
— É um São Francisco.
Então êle se voltou lentamente para a tapeçaria, que to-
mava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A
velha aproximou-se também.
— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso...
Pena que esteja nesse estado.
O homem estendeu a mão até a tapeçaria mas não chegou
a tocá-la.
— Parece que hoje está mais nítida...
— Nítida? repetiu a velha pondo os óculos. Deslisou a mão
pela superfície puída. Nítida, como?
— As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma
coisa nela?
A velha encarou o homem. Achou-o tão pálido e perplexo
quanto a imagem do santo.
— Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergun-
ta?
— Notei uma certa diferença.
— Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a
mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que
está sustentando o tecido, acrescentou ela tirando do bolso as
31
agulhas de tricô. Lançou ao homem um olhar demorado. Foi um
desconhecido que me trouxe, precisava de dinheiro com urgên-
cia. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era
difícil encontrar comprador mas êle insistiu tanto. Preguei aí na
parede e aí ficou. Mas já faz anos, o senhor sabe? E o tal moço
nunca mais me apareceu.
— Extraordinário...
A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria
ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros.
— Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que
não vale mesmo a pena, na hora que se despregar é capaz de
cair em pedaços...
O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que
tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma
cena. E onde?...
Era uma caçada num bosque: no primeiro plano, estava o
caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espes-
sa. Num plano mais distante, o segundo caçador espreitava en-
tre árvores, mas esta era apenas uma silhueta vaga, cujo rosto
não passava de um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era
o primeiro caçador de barba, que se assemelhava a um esverdi-
nhado bolo de serpentes, tenso na expectativa, à espera de que
a caça levantasse para então desferir-lhe a seta.
O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tape-
çaria que tinha a côr esverdeada de um céu de tempestade. En-
venenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se man-
chas de um negro violáceo e que pareciam escorrer da folhagem,
infiltrar-se na roupa do caçador, deslisar-lhe pelas botas e es-
palhar-se no chão como um líquido denso. A touceira na qual a
caça estava escondida também tinha as mesmas manchas vis-
cosas e que tanto podiam fazer parte do próprio desenho como
ser simples efeito do tempo devorando o pano.
— Parece que hoje tudo está mais próximo, disse o homem
em voz baixa. É como se... Mas não está diferente ?
A velha apertou um pouco os olhos. Esticou o pescoço:
— Não vejo diferença nenhuma...
— Ontem não se podia ver se êle tinha ou não disparado
32
a seta...
— Que seta? O senhor está vendo alguma seta?
— Aquele pontinho ali no arco...
A velha suspirou.
— Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede
já está aparecendo, esses bichos dão cabo de tudo, lamentou
ela voltando-se para o tricô. Afastou-se sem ruído com suas chi-
nelas de lã. Antes, fêz um gesto evasivo: Fique aí à vontade,
enquanto vou fazer meu chá. Fique à vontade.
O homem deixou cair o cigarro apagado. Contraiu dolori-
damente os maxilares numa tentativa de sorriso. Sim, conhecia
perfeitamente esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia
tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfu-
me dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmi-
do da madrugada, mas isso tudo fora há tanto tempo! Há tan-
to tempo, meu Deus! Contudo, lembrava-se de que percorrera
aquela mesma vereda e numa madrugada assim verde, de céu
baixo... O caçador de barba encaracolada parecia sorrir, um sor-
riso perverso embuçado na barba. Teria sido esse caçador? Ou o
companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre
as árvores? Um personagem de tapeçaria! Mas qual ? Fixou-se
na touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio
e folhas empastadas na sombra. Mas sob as folhas, por detrás
das manchas negras pressentia o vulto arquejante, a carne em
pânico. Compadeceu-se da caça à espera de uma oportunida-
de para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve
movimento que fizesse e a seta implacável... A velha não a dis-
tinguira mas ela ainda estava no arco, reduzida a um pontinho
carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão.
O homem enxugou o queixo no dorso da mão e recuou
alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia
ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, com
as mesmas manchas malignas da tapeçaria. Cerrou os olhos.
E se tivesse sido o pintor que fêz o quadro? Quase todas as ta-
peçarias antigas eram reproduções de quadros, pois não eram?
Por isso podia, de olhos fechados, reproduzir a cena nas suas
minúcias: o contorno da folhagem, o céu sombrio, o caçador —
33
só músculos e nervos — apontando para a touceira... “Mas se
detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?” E se fosse
um simples espectador casual, desses que olham e passam —
não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no origi-
nal, a caçada não passava de uma ficção, vira o quadro antes do
aproveitamento na tapeçaria...
Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos ca-
belos, não, não ficara do lado de fora mas lá dentro, encravado
no cenário que hoje parecia mais nítido do que na véspera, mais
forte nas suas cores apesar da penumbra. O fascínio que se
desprendia dele vinha agora como um miasma mais traiçoeiro.
Mais velado.
Na rua, sentiu o corpo moído. As pálpebras pesadas. Anoi-
tecia. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir,
sentia desde já a insônia a vigiá-lo com seus olhos de coruja.
Levantou a gola do paletó. Esse frio era real ou a lembrança
apenas do frio da tapeçaria? “Que loucura!... E não estou louco”,
concluiu num sorriso triste. Seria uma solução fácil. “Mas não
estou louco.”
Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida
e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antigüida-
des, o nariz achatado na vitrine, tentando ver a tapeçaria lá no
fundo.
Já em casa, fechou-se no quarto e ficou de bruços na cama,
os olhos escancarados para a escuridão. Só quando as estrelas
empalideceram através da vidraça é que conseguiu dormir. Mas
logo veio vindo a voz da velha de dentro do travesseiro, uma voz
metida em chinelas de lã: “Que seta? Não estou vendo nenhuma
seta...” Misturada à voz da velha, começou o murmurejo das
traças em meio de risadinhas abafadas pelo algodão. As vozes
se entrelaçavam sinuosas tecendo um pano esverdinhado, com
manchas que se alastravam até o retângulo negro da tarja. Viu-
se enredado nos fios e quis fugir mas agora estava aprisionado
pela tarja a se alargar como um fosso. Lá no fundo, bem no fun-
do podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro.
Apalpou o queixo. “Sou o caçador?” Mas ao invés da barba, só
encontrou a viscosidade morna do sangue.
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Acordou com o próprio grito que se estendeu lancinante
dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Enro-
lou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tape-
çaria? Revia-a mais nítida ainda e tão próxima que podia sentir
até a umidade do vapor subindo em ondas do chão... Fechou os
punhos. Ah, haveria de destruí-la, não era verdade que além da-
quele trapo havia algo mais, tudo não passava de um retângulo
de pano sustentado pela poeira, bastava soprá-la! Soprá-la!
Encontrou a velha varrendo a calçada. Sorriu irônica ao
vê-lo:
— Hoje o senhor madrugou, hem?
— A senhora deve estar estranhando mas...
— Já não estranho mais nada. Pode entrar, pode entrar, o
senhor já conhece o caminho...
“Conheço o caminho”, murmurou êle seguindo por entre
os móveis. Dilatou as narinas. E parou num estremecimento ao
sentir o cheiro de folhagem e terra. Quis retroceder, agarrou-
se a um armário. E suas mãos resvalaram pelo tronco de uma
árvore: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés
afundando no chão empapado e negro. Em redor, tudo parado,
extático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro,
nem o farfalhar de uma folha. Lançou em volta um olhar esgaze-
ado. Inclinou-se arfante. Era o caçador? Ou a caça? Não impor-
tava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo, correndo
sem parar por entre o labirinto das árvores, caçando ou sendo
caçado. Ou sendo caçado!.. Passou as pontas dos dedos pelos
lábios gretados, enxugou no punho da camisa o suor que lhe
pingava do queixo. Então lembrou-se. “Não!” gritou ao mergu-
lhar numa touceira. Ouviu ainda o sibilar da seta varando a
folhagem.
“Não...” gemeu o homem ao tombar de joelhos. Tentou
agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando
fortemente o coração.
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Val-t chegou ao elevador particular. A gravidade reduzida
levou-o em poucos segundos até seu apartamento de solteiro.
Premiu o quarto botão, já manchado pelo uso e daí a pouco
comia o seu jantar, um pouco quente demais. Sentia falta de
companhia, alguém contente ao seu lado, que comentasse o que
ia vendo no “Trêsdê para o jantar”, com fundo musical diges-
tivo. Sorriu. Com a mão esquerda desligou tudo. Recostou-se
relaxando os músculos ainda tensos e começou a divagar. Não
o fazia sempre. Mesmo só, havia uma centena de coisas para se
distrair em seu apartamento “categoria especial”. Completara
vinte e oito anos e começava a achar falta de u’a mulher. Foi a
uma gaveta de documentos e puxou o seu “certificado extrapo-
lativo futuro”. Fora analisado aos quinze, vinte e vinte e cinco
anos. As conclusões, coincidentes e definitivas. Aos vinte e oito
anos seria o tempo ideal para unir-se a sua outra “metade”.
Uma velha expressão, de centenas de anos, que agora se aplica-
va exatamente.
No dia seguinte acordou com a mesma sensação. Ficou só
em casa até a tarde, pois em suas obrigações compulsórias com
o Estado tinha liberdade de horário. Nas correias-transporte,
encontrou Dab-I, um velho amigo com o qual gostava de discu-
tir. Contou-lhe da sua disposição: “Dab-I, chegou o tempo de me
unir. Talvez vá hoje a Cibernética Central.”
Dab-I sorriu, com uma ponta estranha de ironia: “Será que
você está mesmo com vontade de casar-se, ou o próprio anali-
sador que lhe meteu essa sugestão no cérebro?”. Dab-I era um
erudito especialista em História antiga. Empregava intencional-
mente palavras desusadas e tinha a estranha e perigosa mania
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de se voltar contra a ciência, repetição dos velhos conceitos de
discernimento pessoal, sensibilidade, impulsos intuitivos, que
desgraçaram em guerras os povos do 21.° século.
É evidente que Dab-I conhecia perfeitamente o artigo 3.°
das Tábuas Legais: “A reunião, em cadeia, dos organismos do
Instituto Cibernético Central, apresenta resultados e toma deci-
sões Justas, Perfeitas, Definitivas”.
Dab-I sabia que os poucos bilhões de suas células cere-
brais são alguns centímetros, contra os quilômetros valvitrô-
mcos do Computador Gigante. Porém, as novas leis aboliram
os recondicionamentos compulsórios e o resultado aí está. O
partido secreto dos Avalvitras a perturbar o ritmo de progresso
da sociedade.
Val-t deslisava pelos corredores do Instituto Uniocional, o
coração batendo mais depressa. Iria submeter-se aos exames e,
embora a surpresa que estes lhe trariam, agradável, perfeita e
definitiva, fosse certa (com raríssimas exceções), sua emoção era
a de um adolescente a jogar pela primeira vez o sexi-bo.
Na sala n. 2 tornou a ler o resumo do processo que todos
conheciam: “União amorosa e procriativa total e permanente”.
“1.° — O computador central procederá ao exame em duas
horas, nas salas designadas.
“2.° — O pensamento associativo, após a leitura dos textos
e a visão das imagens, deverá ser expontâneo, proibida a inges-
tão de drogas nos cinco dias anteriores. As faltas serão punidas,
conforme o regulamento.
“3.° — As constantes extrapoladas dos pensamentos, am-
bições, temperamento e possibilidades, são condensadas em
seus impulsos e imediatamente transmitidas para o Instituto
Central.
“4.° — As curvas de futuras possibilidades são recompos-
tas em bilhões de variações, com os tipos femininos coinciden-
tes, já selecionados em triagem inicial.
“5.° — O casal coincidente assinará os documentos de
união, dentro do prazo de dez dias, devendo unir-se após cinco
dias.”
O resto tratava dos casos especiais e outras precauções
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burocráticas. Val-t acompanhou um funcionário. Chegara sua
vez. Sentou-se na poltrona sensível e lhe colocaram o capacete.
Com a técnica do hipnocine, cenas reais transcorriam ao seu re-
dor. As emoções e pensamentos se registravam dentro da curva
analítica, classificando-o com fórmulas que o tornavam perfeita-
mente distinto e marcado entre bilhões de semelhantes. O com-
putador central separaria entre os outros bilhões de mulheres
aquela que seria sua perfeita metade, que nascera especialmen-
te para êle. Na antigüidade essa escolha era feita através de um
processo intuitivo fisiológico, chamado amor, palavra que até
hoje usam, embora desnecessariamente. É curioso saber que o
homem, durante séculos, só dispôs desse meio para casar-se,
expressão ainda empregada nos departamentos rurais. Através
de cálculos retrospectivos, sabe-se que o Amor assim intuitivo
só acertava em 0,012 por cento em média geral. Atualmente as
uniões perfeitas atingem 95,43 por cento, sendo que 4,57 trata-
se de deformações fisiológicas e cerebrais, a maior parte em re-
condicionamento nos institutos especializados.
Duas horas e meia se passaram e Val-t tinha nas mãos
o retrato da sua “metade”. Era exatamente o que sonhara (o
computador bem o sabia), os olhos, um certo trejeito dos lábios,
a voz suave... Não se analisa aquilo que nos vem exatamente
como desejamos. A aceitação é total, a expectativa ansiosa da
posse definitiva. Val-t assinou imediatamente os documentos de
solicitação.
A-Rubi (era o nome dela), recebeu comunicado de pro-
posta uma hora após. Tinha vinte e dois anos e sua ocasião
propícia chegara. Estranhamente, porém, não assinou logo sua
anuência. Pensou românticamente no assunto e só decidiu-se
no dia seguinte, o que, cientificamente, era um absurdo, pois
nossa mente não pode chegar a nenhuma conclusão diferente
de um computador, que não seja uma tolice. Enfim, esse era um
problema que vinha na raiz dos tempos. Uma das matérias im-
portantes do Instituto Central era a análise das “Contradições,
paradoxos e decisões ilógicas do grand-pin mental feminino”.
Dias depois, tudo regularizado, eles se encontraram pela
primeira vez. A-Rubi viajara milhares de quilômetros tranqüila-
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mente, mas quando Val-t vinha se aproximando no passeio ro-
lante, sorrindo para ela, seu coração bateu mais forte. Quando
êle a abraçou, beijando-a no rosto, sentiu as pernas bambas,
uma vontade de ficar ali, protegida por aqueles braços. Quando
fora examinada pela máquina enorme e incompreensível, nunca
pensou que ela lhe descobrisse um homem assim, que lhe fazia
bater o coração, antes mesmo de conhecê-lo melhor.
Val-t tomou-a pela mão e foram para casa. A-Rubi pare-
cia-lhe uma daquelas bebidas proibidas, que trazem alegria e
exaltação. Êle era um entusiasta do progresso, seu apartamento
tinha mais botões e controles do que os de todos seus amigos.
Sabia que um bom computador podia prever um espirro com
um mês de antecedência, mas há coisas fantásticas da ciência
que não nos dizem respeito, não nos atingem diretamente. Mas
sua mulher ali estava e com o passar dos dias sua paixão au-
mentava. Trazia-lhe rosas frescas dos campos externos, levava-a
a passear pelos lugares da sua infância, contava-lhe as traves-
suras, o aparelho voador que fizera aos onze anos e espatifara
depois de vôos arriscados, onde puzera em risco a vida dos mo-
leques vizinhos. A-Rubi era carinhosa, compreensiva, mas Val-t
surpreendia-se às vezes com uma recusa ou discordância que o
punha impaciente. Procurava controlar-se, pois o Computador
dera-lhe exatamente o que buscava. Logo, aquela ânsia polêmi-
ca que êle possuía, devia ser parte do seu temperamento, talvez
precisasse mesmo ficar nervoso de vez em quando. Reconhecia
que A-Rubi tinha defeitos. Um deles, que o incomodava, era o
de ser completamente anti-científica. Nem chegava a isso. Não
tomava conhecimento de nenhuma lei cibertrônica nem seus
princípios a afetavam. Val-t, ao chegar a tarde, já não apertava
o botão correspondente para o jantar. A-Rubi alegara que aque-
las refeições preparadas com todos os elementos exatos, não
tinham sabor nenhum. Comprara um fogão portátil, que que-
brara as linhas exatamente combinadas da cozinha. Um cheiro
forte de iguarias inundava tudo. Val-t prometeu ir imediatamen-
te adquirir um neutralizador de odores, mas A-Rubi, admirada,
o proibiu terminantemente, pois o prazer de preparar e antever
uma refeição, incluía aspirar o seu “perfume”. Parecia ter sido
40
transplantada de um mundo antigo, pois suas opiniões ela as
baseava em convicções, às vezes gratuitas. Val-t nunca a vira
procurar uma tabela ou bater uma consulta para o Computador
Central. Dizia bobagens como: “Parece que amanhã vai chover”,
quando qualquer pessoa recorria à previsão para afirmar fatos
exatos. Quando sua mulher pedia-lhe explicações Val-t sentia-
se lisonjeado. Fazia-lhe longas exposições, dignas de um au-
ditório maior. Êle era senhor de uma lógica perfeita e de um
frio raciocínio. A-Rubi olhava-o enquanto falava e era inegável
a sua admiração, o brilho orgulhoso de posse que seus olhos
contavam. Val-t, entretanto, era extraordinariamente perspicaz
e percebia que a mulher admirava e se orgulhava de que ele
fosse capaz de saber e dizer todas aquelas coisas. Mas, as con-
clusões e aplicações das verdades expostas, isso praticamente
não a atingiam. Discutiam animadamente, ela com uma espe-
cial habilidade de abandonar o assunto central, para enveredar
por meandros onde até Val-t lutava para escapar. Os ânimos se
exaltavam, A-Rubi gritava que o detestava, que êle deveria dor-
mir com todas as máquinas que adorava.
Val-t orgulhava-se de nunca perder a calma, de não dizer
nada que fosse exagerado ou se afastasse da verdade. Realmen-
te êle era capaz disso. Sua calma, porém, referia-se ao significa-
do das frases, a linha da sua argumentação. Êle possuía uma
voz alta e aguda, que conferia às palavras mais simples uma
dureza implacável. A-Rubi batia-se com êle valentemente, mas
sua resistência era pequena. Os defeitos que Val-t lhe apontava,
expondo-os a um frígido exame, iam derrubando suas forças,
ela sentia-se derreter para transformar-se numa coisa insigni-
ficante e desprezível. Chorava em desespero, para logo atirar-se
atrás do companheiro, que ia para o inter-fon chamar um mé-
dico. Val-t aceitava contrariado as razões da mulher. Para êle a
diferença entre temperamento e doença devia ser medida pelas
vibrações do grand-pin mental. Fazia um esforço enorme para
suportar os absurdos e nem sequer podia sugerir um recondi-
cionamento, pois provocaria uma nova crise, A-Rubi a gritar que
não se importava quantas vibrações emitia e que não ia deixar
nenhuma máquina alterá-las.
41
Isso passava. Val-t tomava mep-14 e reconciliavam-se
com mútuas declarações. A-Rubi chorava no seu ombro dizendo
que o amava, enquanto êle sentia o prazer de tê-la nos braços,
desamparada e frágil, ao mesmo tempo que não se conformava
de que ela não se “tratasse” no Instituto Central, o que resolve-
ria tudo de maneira simples e científica.
Passavam por períodos calmos, sua vida transcorrendo
maravilhosamente. Algo insignificante podia desencadear nova
disputa e Val-t resolvera não mais tomar mep-14 para reconci-
liar-se. Era um processo artificial e injusto, pois varria todas as
suas objeções com uma felicidade condicionada que apagava as
divergências, mas não entrava em suas causas. Val-t esforçava-
se numa autocrítica severa, procurava mudar seu temperamen-
to, adaptar seus modos de ver com os da mulher. O Compu-
tador Central, justo e infalível, a escolhera em bilhões como a
mais perfeita companheira. Urgia desbastar aquelas arestas es-
tranhas, que Val-t não observava em nenhum casal conhecido,
geralmente pacífico, concordando-se mutuamente com tudo.
Crente justificado na justiça valvitrônica, supunha que talvez
fosse êle mais culpado, nas divergências com a mulher. Tentava
mudar de métodos, tratá-la de maneira diferente, com e sem
resultados. A questão básica, com a qual êle menos se confor-
mava, era a recusa de A-Rubi de fazer qualquer tratamento. Sua
antipatia pelas máquinas valvitrônicas ou mecânicas era tão
grande quanto a paixão que Val-t por elas sentia. A-Rubi reu-
nira uma pequena coleção de antigüidades. Eram alguns livros
impressos em papel, máquinas fotográficas ainda com películas
sensíveis, um rádio-anel etc. Val-t achava tudo aquilo obsoleto
e desinteressante. Não o dizia freqüentemente, pois ela se abor-
receria, mas julgava que sua teimosia era resquício de épocas
ultrapassadas. Embora se controlassem diante de estranhos, às
vezes deixavam escapar palavras mais altas. Muitos lhes reco-
mendavam um recondicionamento geral o que, pelas convicções
arcaicas de A-Rubi, era uma grave ofensa. Em compensação,
seus transportes de amor também surpreendiam os outros, que
se entendiam com uma boa dose de mep-14 e se amavam depois
como alunos bem comportados e contidos dos seus deveres.
42
Para um homem tão apaixonado pelo progresso e regulamentos,
como Val-t, talvez fossem os eventuais e emocionantes êxtases
de amor e compreensão que lhe davam forças para reconciliar-
se com A-Rubi, perdoá-la e recomeçarem cheios de esperanças.
Embora êle pudesse se considerar um cientista perto da mu-
lher, seus arraigados conceitos tentavam novos caminhos. Não
ásperos e desinteressantes como se poderia deduzir, mas com
aquela porcentagem de imprevisto interesse e selvagem fascina-
ção, com os quais os pioneiros desbravaram as selvas de Marte
ou enveredavam pela cadeia hibenstein em primitivos foguetes.
Afinal, a valvitrônica lhe escolhera a companheira exata. Sentia
sua falta, sua companhia lhe era estimulante, e não havia ne-
nhum regulamento obrigatório que recomendasse mep-14, ob-
nomemória ou qualquer outro recurso fora dos naturais, para
garantir a felicidade de um casal. Val-t tinha de admitir que
aprendera com a mulher a extrair prazer na leitura de velhos
textos. Era fatigante descobrir o significado de palavras esqueci-
das, penetrar o drama de situações atualmente impossíveis. Seu
amigo Dab-I achava-o mudado, com uma compreensão mais
“humana” dos problemas. Val-t não concordava, dizendo não
ser essa a explicação. Êle continuava acreditando na sabedoria
da nova civilização, onde a palavra “humano” era símbolo de
atraso, parcialidade, ambição criminosa etc. Nenhum aspecto
ou resolução “humana” poder-se-ia comparar com a Verdade
matemática, extrapolada pelo Computador Central. “Veja, por
exemplo, a minha união”, argumentava Val-t, “com todas essas
incompreensões que ainda não acertamos, como é perfeita, gra-
ças a valvitrônica. Eu amo minha mulher porque a soma total
de suas características, em todo o universo, é a que mais se
adapta às minhas. Fôssemos nos encontrar de maneira intui-
tiva e “humana”, como há séculos, e o resultado seria aqueles
filhos mentalmente desequilibrados, as traições sexuais resolvi-
das por crimes estúpidos”. Este argumento, nas discussões com
a mulher, servia a ambos em situações completamente opostas.
Quando tudo ia bem, êle o invocava como símbolo da sabedoria
valvitrônica que comandava o mundo. Se brigavam, a mulher
que o lembrava, para dizer que o Computador Central nada sa-
43
bia e que êle não a achava a companheira ideal.
O ambiente era tenso, mas também vibrante. Val-t adqui-
riu alguns requintes, como o de preferir esta ou aquela iguaria,
que A-Rubi lhe fazia no fogão portátil, sem consultar nenhuma
tabela de hidratos de carbono ou vitaminas. Verdadeira regres-
são aos tempos empíricos onde o prazer de comer estava aci-
ma de suas finalidades funcionais. Os Avalvitras, cujo símbolo
um tanto infantil, consistia no desenho de uma válvula positron
quebrada, tentavam reconstituir certos valores naturais que
eles julgavam melhores às infalíveis decisões valvitrônicas. Val-t
os considerava um bando completamente fora da realidade, a
reivindicar liberdades antigas, esquecendo-se dos seus funestos
resultados. Os Avalvitras, além disso, podiam se dar ao luxo de
exaltar liberdades passadas, o homem expontâneo e suas enga-
nadoras vantagens. Nenhum deles dispensava as previsões do
Computador Gigante, ou deixava as esteiras rolantes para an-
dar a pé. Muitos dos mais exaltados eram técnicos cibernéticos,
ocupando posições importantes na hierarquia. Dab-I, impres-
sionado com as modificações de Val-t, convidou-o para aderir ao
partido. Val-t, assegurando-lhe que não o denunciaria, recusou.
Não poderia concordar com aquela gente idealisticamente enga-
nada que, palmilhando as trilhas da segurança e comodidade
que as máquinas lhes davam, investiam contra elas, esquecidos
de que foi o homem que as inventou e aperfeiçoou, preenchendo
os vazios da nossa capacidade de discriminação. A-Rubi não o
condenou por isso. Se suas maneiras de encarar as coisas coin-
cidia com a dos Avalvitras, não queria dizer que o fizesse por
convicções ideológicas. Ela não tomava conhecimento do parti-
do, sendo uma praticante inocente.
As transformações de Val-t já eram uma boa vitória em re-
lação ao seu temperamento inflexível. Os próprios amigos perce-
biam, admirados, que A-Rubi tinha-o tornado muito mais sim-
pático e acessível. Entretanto, muito do que ele fazia ou deixava
de fazer para agradar a mulher, surgia de um esforço consciente
e pouca convicção. Passavam os meses e explodiam novas dis-
cussões, onde tudo vinha novamente à baila, Val-t tornando a
pedir exames e recondicionamentos, A-Rubi a acusá-lo com exa-
44
gero (que ela não sabia controlar). Entravam no círculo vicioso,
as acusações já perdoadas voltando com o mesmo peso, Val-t
ameaçando denúncias de toda aquela “anormalidade”. Após um
desentendimento, onde ambos se excederam, Val-t saiu, num
impulso e foi até o Instituto Uniocional. Um Ciberneta-mental o
recebeu, repreendendo-o com veemência por não ter vindo antes.
Impunha-se um reexame e nova extrapolação dos dados do ca-
sal. O Ciberneta-mental voltou daí a pouco. Estava constrangi-
do e foi com hesitações e circunlóquios que explicou a Val-t. Na
época em que êle se uniu com A-Rubi, descobriram exatamente
232 casos onde houvera total sabotagem nos resultados. Um
partidário Avalvitra, funcionário nos estágios positrônicos, tro-
cara um corretor de vibrações, anulando o indicador de defeitos.
No dia seguinte vários circuitos estavam fundidos e o crime foi
descoberto. Durante aquelas horas, o gigante infalível cometera
232 enganos completos. O Ciberneta entregou-lhe um certifica-
do. Com este o Instituto Central anularia sua união, seriam in-
denizados, A-Rubi voltaria para seu distante agrupamento e êle
se submeteria a um novo e garantido exame, para ganhar, dessa
vez, sua legítima metade. Val-t nunca imaginara uma surpresa
assim. Voltou para casa e disse a A-Rubi que a união deles fora
um erro cibernético. Não eram duas metades, mas pessoas com-
pletamente diversas que nem sequer empregaram os empíricos
métodos dos antepassados para se encontrarem. Val-t não es-
tava com a voz aguda e antipática com a qual discutia. Contou
tudo isso em um tom narrativo e cansado. A-Rubi desatou em
pranto. Val-t levantou-se calmamente, foi segurá-la pelo ombro:
“Não é preciso chorar A-Rubi. Afinal não aconteceu nenhuma
desgraça. Veja, aquele prato está se queimando. Vamos comer
como todos os dias...” A-Rubi se aquietou, foi terminar a re-
feição. Comeram lentamente, conversando com cerimônia em
outros assuntos. Val-t olhava para ela, os olhos vermelhos, o
trejeito dos lábios, a voz suave... Ao deitarem-se evitavam olhar
um para o outro. A cabeça no travesseiro, A-Rubi recomeçou
os soluços. Val-t puxou-a para si, beijou as pálpebras úmidas,
consolou-a e se amaram como nos melhores dias.
Por falta de tempo Val-t não levava o certificado do engano
45
ao Instituto Central para a competente anulação. Na verdade,
era uma preguiça quase intencional. O fato de saberem que não
eram feitos um para o outro e que não constituíam duas meta-
des infalivelmente reunidas, dava-lhes uma inédita compreen-
são para evitarem as disputas. A possibilidade de que outro ho-
mem de suas relações, pudesse ser mais um pouco a metade de
A-Rubi do que êle, fazia Vai-t sentir ciúmes, emoção vergonhosa
que há muito o Computador Central tinha sepultado em seus
circuitos. A-Rubi tornara-se mais fascinante e sedutora, desde
que ninguém a ameaçava mais com o pesadelo das máquinas.
Com o passar doa dias, embora atenuadas, as rusgas re-
tornavam. Fosse qual fosse o começo, A-Rubi acabava por se
referir ao certificado do engano, devidamente guardado na ga-
veta dos documentos. Fazia ironias quanto a sua preciosidade,
e desafiava Val-t a levá-lo ao Instituto Central, a liquidar aquela
falsa união na qual êle não acreditava.
Desde, jovem, em seu trabalho, Val-t dispunha de com-
putadores para as decisões importantes. Condicionado a pouco
confiar nas frágeis circunvoluções cerebrais humanas, era lento
nas próprias resoluções. Muito do seu equilíbrio era fruto de
uma grande força de vontade, a certeza de que todas as decisões
tomadas quando as vibrações do grand-pin mental excediam
um certo limite, eram perigosas, porque não levavam em conta
a fria realidade. Porém, o exemplo da mulher, que dizia o que
vinha à cabeça para se arrepender ou transformar depois, aca-
bava influenciando-o. Já lançava uns impropérios, nas horas
de exaltação. Vindos dele, suas afirmativas adquiriam um valor
que impressionava A-Rubi. “Tudo o que eu digo”, queixava-se
êle, “você toma como minha exata vontade e pensamento. Não
tenho o direito, como você, de gritar tolices e retirá-las depois”.
Como o assunto não mais surgiu, Val-t erradamente acre-
ditou que a mulher se esquecera ou não se importava mais com
o célebre certificado do engano, com o qual poderiam revogar
sua união. Um dia houve uma discussão mais acerba, que lem-
brava aquelas violentas de outros tempos. A-Rubi acusou-o de
covarde, pois que não a amava nem tinha coragem de se sepa-
rar. Que ela própria pegaria o documento e o levaria ao Instituto
46
Central. Val-t, num repente, abriu a gaveta, jogou-lhe no colo o
papel, mandou que ela fosse imediatamente. A-Rubi devolveu-
lhe, dizendo que o odiava, fosse êle mesmo, quando voltasse êle
não a encontraria mais.
Val-t saiu com o certificado. Ia terminar com aquele contra-
senso. Chegou até o Instituto Central, mas não entrou. Sentou-
se em um nicho da praça, uma estranha sensação de melanco-
lia e isolamento. Procurava reviver aquele tempo com A-Rubi,
analisá-lo racionalmente. Seria submetido a um novo exame e
teria então a companheira sonhada. Esforçava-se para imaginá-
la uma perfeita mulher, comparando-a com aquilo que o desa-
gradava em A-Rubi. Val-t não podia evitar uma angustiada per-
turbação. Êle não se conformava em perder a mulher. Mesmo
com seus defeitos, comparados com as maravilhas da próxima.
Provasse o Valvitron Gigante os seus enganos, Val-t começava
a gostar do erro e não queria libertar-se. Naquele nicho isolado
na praça imensa, com um sol agradável suavizado pela cúpula,
respirando o ar filtrado mais puro do que o marinho, Val-t se
debatia na luta dos seus sentimentos contra a indiscutível e in-
falível cultura valvitrônica acumulada em séculos. Levantou-se
com uma decisão, que lhe dava um prazer secreto, um gosto de
enfrentar o problema por si só, embora mais difícil o caminho
e maior a responsabilidade. Lembrou-se de que ela ameaçara
partir. Passou para o rolante mais rápido, numa ânsia tremenda
de chegar depressa. Seu elevador nunca lhe pareceu tão lento.
Quando a porta deslizou, êle gritou o nome da mulher. Ela es-
tava no quarto, atirada na cama, a mala vazia aberta ao lado.
Val-t, sem uma palavra, tirou o “certificado de engano” do bolso,
rasgou-o com esforço de ambas as mãos, atirou tudo no incine-
rador. A-Rubi olhava, desconfiada, como quem duvida. Depois
se abraçaram com desespero e seria impossível reproduzir as
palavras de amor, as promessas exageradas, as confissões ditas
entre carinhos, inclusive as anti-científicas blasfêmias proferi-
das (com enorme injustiça) contra o Computador Central.
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El-Rey Dom Fernando gostava muyto de caça e ia de onde
sabia que as havia boas, tendo em isso grande prazer e desenfa-
damento; e porque o certificado que em terra da Beira, e por riba
de Coa, havia bons montes e porcos em gramde abundância,
fez-se prestes com toda sua casa, e da Raynha, e muitos montei-
ros, com sabujos e alaãos, e levou caminho daquela comarca.
Em chegando aaquele logar em muyto se espantou de que
verde e bello havia. De tantas e tais cores que muyto se enfadou
de ali não habitar.
E fazemdo naquelles campos gramdes andamssas, heis
um dia encontraram um logar muy destruído e queimado. E es-
tranharam que em campos tais a naturesza se houvera tão mal.
Pois sy todo ao redor havia de bon, muyto espanto teve com o
campo destruído.
El-Rey Dom Fernando pensou em sabedoria: o homem
não deve fazer a outrem aquillo que não queria que fosse feito a
êlle. E assym pensando viu que em tal campo haveria coisas tais
que aa naturesza não combinava. Sobre o que pertence aa virtu-
de da prudência, a mym parece que em muy bom sênsso agiu e
disse aos seos que se foram e que muy distamte ficassem.
De toda busca que allí perquiriu, de nada encontrou.
— Tempo que eu vemçia a todo! — comta-sse que bradava
El-Rey. E antes não o houvera dito, porque então, vimdo de
riba um gramde ser sy mostrou, de um tamanho tão gramde,
muyto mayor que duas sallas do castelo de El-Rey, de brilho de
Sol e a êlle parecido, inda que deitado. E tão gramde era que ao
tocar o solo até parecia tremê-lo todo. El-Rey, de muy corajoso
que sy mostrava, não pôde em suas reais pernas sy suster, de
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onde ao chão veio. E seos vassalos e sua molher e seos filhos se
puzeram a correr que de onde podiam.
E de muy distante sy olhava El-Rey al solo e de estranhos
seres que do sol brilhamte dessiam ao chão e a El-Rey falavam.
E de nada sy ouvia que de longe sy estava.
Comta-nos El-Rey Dom Fernando:
“O estranho dessêo do sol e levantou de pesada mão e inda
parecia acenar quando um romco surgiu de suas entranhas.
Apontou para o céo — e outro romco vibrou meos ouvidos! Bai-
xou a gramde mão como gaivota que plaina sobre o Mondêgo e
apontou o sol brilhamte de omde sayra. Emtão roncou de mais
forte inda, raivoso como cão batido. A mya coragem ía e voltava.
Em fé que mais ía, do que voltava. Respondí-lhe, tocando com
fervor a cruz do Cristo: “Vade retro...” murmurei e com voz firme
ainda: “Satanás”! O monstro confirmou sua pestilencial origem
repetindo “Satanás, Satanás” em sua infernal voz, e apontando a
terra sob nossos pés. “Vade retro!” repetí-lhe dasafiador tocando
com unção a cruz em meo peito e Satan a reconheceu dado que
inclinou o corpo em respeito. Tal é a essência do Diabo, porém,
que ao logo após me cobre de nojo imitando meo gesto, batendo
no próprio peito, e falando sua lingua diabólica: “Sssiósss”. En-
tão, depois da heresia, procura algo no chão e apanhando um
pequeno galho fez-me com a horrenda mão um gesto. Queria
mynha real pessoa junto a sy. Com toda a coragem que me levou
al combate dos infiéis muçulmanos, vemcendo-os em batalha
viril, aproxeguei-me. Apontou êlle o Sol que representa nosso
Deos e nossa Vida e desenhou um círculo no chão. Agora eo
compreendia todo. Queria êlle jogar a salvação de mynha vida.
E — diabólico! — jogá-la com o infantil Jogo da Velha. Sorri,
sombranceiro que minha vida ao Demo valesse tão pouco. Num
ímpeto apanhei de outro graveto e completei o jogo: dous traços
verticais, dous traços horizontais a cruzá-los, e deixei seo cír-
culo no centro. O Demo me olhou em pasmo, bem percebendo
a sutileza de mynha jogada ao prendê-lo na seqüência certa.
Não hesitei mais e desenhei a Cruz de Cristo no canto superior
direito tirando-lhe um caminho. O Diaço me olhou com o terror
espantando olhos. Bem percebi quão trêmulas suas garras fica-
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ram. E êle apontou a Cruz e a mym. Com um sorriso confiante
respondi: “Sy! A cruz de Cristo me protegerá!” Ao que êlle ficou
bem contrafeito. Com cautela para não passar sobre meo sinal
divino, desenhou outro círculo ao acaso; mas já lhe preparara
o jogo e apus minha resposta no caminho da vitória. Belzebú
soergueu o corpanzil medonho e sua cabeça luzidia brilhava de
furor. Desenhou o terceiro círculo mais distamte, batemdo com
insistemcia com o pauzinho, e eo coloquei minha cruz protetora,
fazemdo o traço que me deo Vitória! Assy me ergui e voltei-lhe
as costas me afastando com orgulho. O Malcheiroso, temente
aa Deos meo Salvador, fugiu em seo círculo de chamas para
os céos, de onde ao Inferno foi precipitado por Cristo Nosso Se-
nhor.”
Essa historia deixo escritto para que a recebam em manda
o futuro: de cousas estranhas sy passaram que nom se expli-
cam. Por muyta coragem que teve El-Rey, pouco sy pôde comtra
o desconhecido, e os moços naturalmente devem obedecer aos
velhos, que tem mayor speriencia das cousas y som mais pru-
dentes.
E os que isto quiserem bem aprender, leiam-no de come-
ço, pouco, passo, e bem apontado, tornando algumas vozes ao
que já leram para saberem melhor; porque se o leram ryjo, e
muyto juntamente, como livro destorias, logo desprezará, e se
enfadarão dele, por não o poderem tão bem entender nem relem-
brar, porque regra geral ha, desta maneira se devem ler todos os
livros de alguma ensinamça ou sciencia.
De uma crônica do séc. XIV
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Há uma grande diferença entre o viajante ocasional, o tu-
rista e o viajante crônico. Sou, por força de minha profissão,
um veterano das linhas de ônibus que cruzam os estados do
sul do país. Já percorri quilômetros suficientes para duas via-
gens de ida e volta à Lua. E qualquer indivíduo, depois de pas-
sar constantemente pelas mesmas estradas, perde o interesse
pela paisagem e pelos eventuais bate-papos com o companheiro
de banco. Os detalhes do caminho são conhecidos, sabe-se em
qual parada se pode tomar um bom cafezinho, qual é o boteco
do portuga simpático que oferece uns bolinhos deliciosos e ...
inofensivos.
A gente aprende, inclusive, a avaliar à primeira vista o vi-
zinho de banco e decidir se vale a pena ou não (ah, aquela loira!)
manter uma conversação.
Quando farejava um desses chatos itinerantes, eu me
transformava na mais impenetrável esfinge, qual fortaleza inex-
pugnável aos violentos ataques palradores do colega de viagem,
fazendo-o desistir após o terceiro ou quarto assalto.
Sempre tive a consciência de ter agido em defesa de meu
próprio sossego e me orgulhava de ter um olho clínico infalível
— ao menos até o dia em que aquele velhote subiu no ônibus.
Aparentando uns sessenta anos, malas, capa, embrulhos
sobraçados num verdadeiro caos ambulante, veio para meu
lado, o guarda-chuva em riste como se estivesse num torneio
medieval. Ajeitou precariamente as malas e pacotes na bagagei-
ra, sorriu, apontou para o assento vazio a meu lado, junto da
janela, e perguntou:
— É o número 16, não é?
53
Naquele dia eu estava particularmente mal-humorado.
— Hummm! — foi a eloqüente resposta que êle obteve. E
voltei a concentrar-me nas histórias em quadrinhos do jornal
que estava lendo.
— Dá licença... Se o senhor preferir a janela pode trocar
de lugar, que eu não me importo. — Sorriu de novo, com ar de
quem não se iria dar por vencido.
— Hummm, — respondi, levantando-me para lhe dar pas-
sagem.
— Vamos ter uma excelente viagem, com a temperatura
tão fresca e agradável, não é? Eu detesto viajar antes das qua-
tro, pois o calor nesta época do ano é infernal, o senhor não
acha?
— É — concordei, num rasgo de eloqüente oratória. Creio
que o velhote ficou tão impressionado com meus dons de con-
versador que se recolheu humildemente a seu canto, e ficou a
observar a paisagem. Depois, abriu uma surrada pasta de car-
tão — dessas que as mocinhas usam para carregar músicas.
Da pasta saíram, em desordem, várias folhas de papel cheias
de garatujas que eu tentei entender. Nem o próprio Champolion
conseguiria decifrá-las, àquela distância e com o ônibus saco-
lejando daquela forma! Mas o velhote lia cuidadosamente com
os olhos um tanto vesgos pela proximidade do papel, mantido a
um palmo do nariz em virtude da parca luz do entardecer, das
lentes de míope precisando de substituição, e da excelência da
estrada — experiência inebriante para turistas que jamais en-
traram numa perfuradora pneumática...
Escureceu rapidamente e antes que me propusesse a dar
uma cochilada, ainda pude observar meu companheiro anotan-
do coisas num bloco de papel, utilizando-se dos mesmos gar-
ranchos que cobriam as páginas já escritas, mas com um toque
nervoso ali e acolá provocado pelas súbitas oscilações do ônibus.
Acordei algumas vezes e percebi que meu companheiro adorme-
cera, pelo delicado ruído de trovão gutural que emitia. Dei-lhe
uma suave cotovelada e êle interrompeu o ronco. Dormi como
um justo até que, sobressaltado, acordei. (Estava sonhando que
um monstro se atirara sobre mim). O monstro articulou uma
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desculpa, apanhou suas malas, maletas, embrulhos, a pasta e
desceu apressado em busca da cidadezinha que quase passara
desapercebida.
Resmunguei alguma coisa gentil a respeito da ascendên-
cia de gente que pisa nos pés dos que dormem inocentemente e
voltei a recostar-me.
Amanhecera e o ônibus estava chegando em São Paulo
quando acordei com aquele gosto característico de maçaneta de
porta de repartição pública na boca. Apanhei o cigarro; a caixa
de fósforos caiu no chão e ao abaixar-me vi embaixo do banco
as folhas manuscritas que o velhote deixara, em seu sono, cair.
Provavelmente, na pressa de saltar, esquecera-as.
Recolhi-as e comecei a ler por simples curiosidade. Até
hoje me arrependo.
Se alguém quiser saber porquê — e não admito que venha
me culpar por sua própria curiosidade — aqui está a cópia do
manuscrito.
Leia-a, por sua conta e risco.
O MANUSCRITO
Barbosa definhava. Já não se tratava de um problema a
resolver no plano lógico. Era um desafio, alguma coisa de pes-
soal entre êle e a Máquina. Em cima da mesa, como um gnomo
acocorado a olhar para êle irradiando malignidade, aquela coisa
diabólica parecia imóvel em seu perpétuo movimento. Barbosa
olhava a Máquina e sentia calafrios. Não era o movimento inces-
sante, o girar ininterrupto de rotores e engrenagens. Era mais
que isso: era o Indestrutível, o inexorável, o eterno, que estava
ali presente.
O zumbido contínuo testemunhava a sua própria impotên-
cia. A Máquina descobrira que lubrificação era um fator indis-
pensável ao seu estado de rendimento ótimo, e agora sintetizava
graxas e óleos a partir de quantidades infinitesimais de lipóides
e ácidos graxos presentes no pólen, no suor, no ar exalado pe-
los animais e que compunham em traços a atmosfera. Barbosa
desconfiava que, ainda em um sistema isolado no espaço, a Má-
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quina seria capaz de criar matéria a partir de longínquas fontes
de energia de outras galáxias. Era algo fabuloso — e também
horrível. Havia naquela pequena caixa a energia das linhagens
biológicas, o mistério da criação de universos e talvez até algo
maior, mais incompreensível. Era o Absoluto manifestando-se
mecanicamente.
O zumbido não cessa... Ela gira, gira...
Os olhos não se despregam do rotor... gira... gira...
Há uma semana Barbosa não vai à Repartição. No começo
era uma pilhéria:
“Olha, ó Souza: o Barbosa vai ficar rico. Inventou o moto-
contínuo!”
Todos se riam; Barbosa também ria e explicava:
— Não é só isso; é coisa muito mais importante, A Máqui-
na opera com campos de energia infra-atômica. É indestrutível.
E comentou com Januário, na hora da caipirinha:
— Mesmo eu não compreendo como é que a coisa aconte-
ceu. Tinha a idéia de que daria certo, mas não esperava realizar
experimentalmente as soluções de Kirilov para a criação de ma-
téria...
Januário encolhia os ombros:
— Não pesquei nada. Mas já que é assim importante, va-
mos a outra rodada para comemorar.
Barbosa já não lia mais. Os livros, última possibilidade,
nada lhe sugeriam.
A Máquina gira, gira, zumbe... ri, gargalha, maligna!
Êle não suporta mais; com olhos injetados, a boca num
rictus, apanha a garrafa vazia e atira-a contra a Máquina. Algo
se quebra numa explosão de fagulhas e cacos de vidro. O zumbi-
do pára. Há uma reorganização de campos de força, a máquina
geme como se estivesse dando à luz a si própria, há uma queda
de corrente. As luzes amortecem e depois volta o zumbido mo-
nótono.
Barbosa está febril, as mãos se contraindo em raiva impo-
tente, a Máquina zumbindo, zombando, zumbindo...
“Seu Barbosa, os outros inquilinos não agüentam mais o
barulho. Na semana passada o senhor disse que...”
56
“Eu sei, dona Gertrudes. Lhe prometo que amanhã darei
um jeito”.
Dar um jeito... que jeito, meu Deus?
... Zumbindo... zombando... zumbindo...
Mas deve haver um jeito! Como parar esta maldita coi-
sa?
... Zumbindo... zumbindo...
Desde ontem não como. Esse demônio não pára; alimenta-
se do nada! Como posso parar a Máquina, se ela só precisa do
Nada para existir?... O que é menos que Nada?... Acho que estou
ficando louco. Isto é um pesadelo. É a lenda do Frankenstein.
Como é possível que eu tenha criado uma máquina e agora não
consiga fazê-la parar?
A Máquina gira. Barbosa cerra os olhos. Quisera cerrar os
ouvidos!...
Ontem achei uma solução... é isso... a única... Beber até
não mais ouvi-la! Me embriagar... dormir ... morrer, quem sabe...
Não há dúvidas, estou bêbado, isto é o Hamlet... Maldita! Eu vou
parar esse demônio nem que tenha de destruir o Universo para
isso!
O martelo bate em louca fúria, arrebentando, destroçan-
do, espatifando. A Máquina grita, as válvulas explodem, o zum-
bido se transforma num uivo de animal ferido. Súbito tudo pára.
Barbosa cái exausto. Silêncio, escuridão. As luzes se apagaram,
os fusíveis queimados. ..
Nada, a não ser o ruído de répteis estranhos, rastejan-
do pela escuridão do quarto. Um cheiro acre de ozônio, garras,
unhas, asas, alguma coisa que se arrasta pelo chão. Barbosa,
alucinado, ouve todos os pequenos ruídos como a uma procis-
são de demônios desfilando sobre o cadáver da Máquina devas-
tada.
...Não é um cadáver... São só ferragens, fios, metal e vidro!
E está morta!... Tem de estar...
Lento, grave, depois num crescendo, o zumbido volta a se
fazer ouvir.
Um vizinho está no corredor, maldizendo a escuridão. Al-
guém pede uma vela, outros acodem com fusíveis e as luzes
57
se acendem e a Máquina......a Máquina está de novo girando,
girando, zumbindo...
Tudo isso Barbosa não vê,
zombando
No banheiro, a gilette ensangüentada,
zombando
testemunha a vitória .. .vitória?
zombando
de Barbosa, que já não ouve mais
o zumbir da Máquina
zumbindo
zumbindo
zombando...
— E a senhora foi quem achou o corpo?
— Foi sim, doutor. Coitado, era tão distinto, quem iria
imaginar...
— Como foi que a senhora descobriu?
— Bom... eu fui fazer a limpeza do quarto, pois pensei
que tivesse saído para o serviço. Êle tinha deixado aquela coisa
funcionando. Mas não suporto essas coisas barulhentas e então
desliguei a máquina. Então ouvi o barulho da torneira e...
— Espere. Aqui nas últimas páginas do diário do Dr. Bar-
bosa êle afirma que não conseguia fazer parar a máquina e que
isso o estava transtornando. Como foi que a senhora, dona Ger-
trudes, conseguiu fazê-lo?
— Ora, doutor, não vê que...
*
Neste ponto, ao virar a página, havia uma última folha...
em branco. O diabo do velhote, com sua miopia, suas velhas
lentes, seus olhos de toupeira, já não conseguia continuar com
a pouca luz do entardecer e o violento sacolejar do ônibus.
As noites de insônia, a curiosidade de saber ou aventar
com uma solução para o enigma, estão me levando à neurose.
58
Se alguém conhecer o velhote, ou o final da história, — por fa-
vor! — conte-me como parar essa maldita máquina!
Stanford, novembro de 1963
59
60
I — BERENICE NO HOSPITAL
O doutor Bernstein olhava a clarabóia da sala de jantar. O
último temporal introduzira por baixo das telhas algumas folhas
secas de plátanos que agora formavam curiosos desenhos por
cima do vidro, interceptando a claridade. Esfregou lentamente
as mãos e olhou-me.
— Foi terrível — disse em voz sumida.
— Não compreendo — disse eu. — Meu primo era um ra-
paz normal. Traria ela, então, alguma tara?
— Um dos dois foi responsável, sem dúvida. Trata-se de
um caso positivo, embora extraordinário, de atavismo.
— Não posso compreender como é que duas pessoas
sãs...
— As leis da hereditariedade são discutíveis. Há casos que
elas não explicam, como esse. Sabe-se que as energias heredi-
tárias conservam suas forças e qualidades originais nos genes
e a cromatina das células reprodutoras é portadora das heran-
ças da espécie, o que chamamos de “mnema hereditária”, princi-
palmente dos nossos ascendentes diretos, como Richard Simon
deixou claro. Mas...
— Um momento, dr. Bernstein. Que quer dizer isso em
linguagem simples?
— Quer dizer que cada um de nós resume a evolução da
espécie, desde os mais longínquos antepassados. O embrião hu-
mano reproduz, durante a vida intra-uterina, quase todas as
fases da evolução do homem. Creio que poderíamos dizer que o
homem não morre. Não morreu desde que apareceu a vida sobre
61
a terra. Êle vem se transportando, integral, na pequena célula
germinativa que dá origem ao seu descendente direto. Todos os
nossos antepassados estão latentes em nós...
O doutor foi interrompido pela entrada de um enfermeiro.
— Doutor — disse êle — Começou de novo.
— Quer vir? — perguntou Bernstein. — É ela.
Falava de Berenice, viúva de meu primo Flávio. Levantei-
me e acompanhei-os. Sobre o leito agitava-se uma forma huma-
na. Aproximei-me e Berenice me pareceu linda, como sempre.
Seus cabelos de ouro tinham admiráveis reflexos fulvos sob a
luz esverdeada. Seu rosto, que eu conhecera corado, vivo, ilu-
minado pelos brilhantes olhos azuis — estava emaciado pela luz
estranha que lhe dava tons de mármore e as formas perfeitas da
testa, do nariz, dos lábios, do queixo, destacavam-se na fronha
amarrotada.
Meu primo conhecera-a no colégio, em Santa Maria, quan-
do tinham 13 anos e logo os uniu indestrutível afeição. Durante
os quatro anos que êle passou nos Estados Unidos, estudando
física nuclear num laboratório de energia atômica, a saudade
parecia querer matá-los e êle voltou, deixando a carreira para
se casar. E agora, ali estava ela, tão linda como se tivesse ainda
20 anos. Tinham sido muito felizes. Visitei-os todas as vezes em
que vim ao Sul. Depois, meus afazeres me levaram para longe e
perdemos contato. Agora, aquele telegrama me chamara e eu ali
estava, olhando Berenice que se agitava na cama, dizia frases
desconexas, chorava.
— É outra crise — disse o doutor. — Aplique-lhe uma in-
jeção.
Esperamos até que Berenice caísse na sonolência benéfi-
ca e depois deixamos o quarto. Era hora do almoço e fomos ao
Renner.
II — NASCE O MENINO
Flávio e Berenice casaram-se por amor aos 23 anos. E
como viviam se adorando, passavam mais tempo isolados na
Estância da Serra do que no Sobrado de Santa Maria.
62
Quando estava para ser mãe, Berenice quis ter seu filho
na estância por mais que Flávio insistisse em que deviam ir
para Porto Alegre. Bernstein, velho amigo da família, consulta-
do, achou que não havia mal em se atender ao desejo da moça.
Estava tudo muito bom. Não era provável que houvesse perigo.
— Tua esposa tem razão, Flávio. Ela sabe o que lhe con-
vém. Se quer ter o filho na estância, não sei porque não o há de
ter lá. Para que você fique mais tranqüilo, ofereço-me para ir
com vocês. Para mim serão férias.
O parto não foi muito fácil e enquanto o dr. Bernstein e
uma enfermeira atendiam à moça, no quarto, Flávio suava frio
na grande varanda envidraçada. Quando o doutor apareceu tra-
zia no rosto sinais de preocupação que impressionaram meu
primo.
— Doutor! — disse êle, alterado. — Aconteceu alguma coi-
sa?
— Não. Nada. Tudo... normal.
Flávio encaminhou-se para a porta do quarto, mas o mé-
dico reteve-o.
— Um momento, Flávio. Espere.
— Doutor! Diga logo! Que é que aconteceu?
— Não grite, Flávio. Berenice vai ouvi-lo. Ela está perfei-
tamente bem.
— E a criança?
— Está muito bem. Não há por que se preocupar.
— Mas por que esse mistério, então? Não os posso ver?
— Pode, mas espere um pouco. Quero lhe dizer alguma
coisa...
O médico foi caminhando para o fundo da varanda e sen-
tou-se numa espreguiçadeira. Flávio seguiu-o, angustiado.
— Diga logo, doutor. Que aconteceu? O meu filho...
— Não aconteceu coisa alguma. Os dois estão bem. Ape-
nas... — Houve uma pausa. Flávio falava com os olhos, os lá-
bios apertados. — Parece-me que a criança não é perfeitamente
normal.
— Que quer dizer?
— Êle está bem, reage normalmente. Mas não é uma crian-
63
ça como as outras.
— Quero ver meu filho! — disse Flávio, num ímpeto.
— Um momento. Fique aqui, por agora. Vamos esperar
que Berenice adormeça. Não se trata de nada pavoroso, como
você talvez esteja pensando. Mas eu tinha que lhe dizer, antes
que o visse. Afinal é isto: Parece que o seu filho não completou
a evolução normal. Compreende? Está atrasado, como criança
nascida antes do tempo. Mas não apresenta as deficiências des-
sas crianças. Compreende?
— Compreendo — disse Flávio, num suspiro, deixando-se
cair na poltrona de vime, de certo modo aliviado, pois esperava
algo pior — compreendo sim.
— Bem. Assim é melhor.
— Berenice já sabe?
— Não. Há tempo para isso. Precisamos ter certo cuida-
do.
— Conte-me, dr. Bernstein... Como é... êle?
— Bem... o pior é que nasceu com um rudimento de cau-
da...
Flávio arregalou os olhos angustiados.
— Cauda, doutor? Cauda?
— Espere. O feto humano, até certo ponto de sua evolu-
ção, no útero materno, tem mesmo uma cauda, você sabe disso.
Mas antes dos nove meses, essa cauda é absorvida. Estou certo
de que ela desaparecerá em pouco tempo. Compreende? Você é
culto, sabe disso.
— Que mais, doutor?
— Pequenos indícios de evolução incompleta. Pelagem
avermelhada no corpo todo. Maxilar proeminente. Testa fugi-
dia... Unhas...
— Meu filho é um monstro! Diga logo!
— Tire isso da cabeça, Flávio. É uma criança sadia, viva,
forte mas imperfeitamente desenvolvida. Veja se aceita isso com
calma.
Flávio mergulhou num desespero mudo. Pensava na ale-
gria de Berenice ao se aproximar o parto; como ela imagina-
va seu filho lindo, louro, perfeito. E agora teria nos braços um
64
monstrozinho... de cauda! Esteve assim, mudo, absorto, até que
a enfermeira se aproximou trazendo nos braços um volume en-
volto na manta azul.
— Aqui está êle, Flávio — disse o médico recebendo o pe-
queno fardo e depositando-o cuidadosamente sobre os joelhos.
Flávio quase saltou, despertado de seus pensamentos e olhou,
fascinado.
A primeira coisa que viu foi um rostinho côr-de-rosa, co-
berto de penugem avermelhada, os olhinhos fechados, o maxilar
inferior projetado. Reparou nas arcadas super-ciliares, espes-
sas, proeminentes; na testa fugidia. Era um rosto humano, sem
dúvida. Mais humano do que esperava. Mas tinha algo de ani-
malesco.
Dominando-se, esforçando-se para desfazer o nó que sen-
tia na garganta, Flávio murmurou:
— Parece um macaquinho, doutor...
— Ficou num estágio de evolução anterior. Biològicamen-
te, é admissível. Mas êle acabará por se desenvolver e se tornará
normal.
— Acha que sim?
— Claro. Não podemos desesperar disso.
— E Berenice? Berenice, meu Deus! Coitada! Como é que
ela vai receber essa criança?
—- Não se preocupe com isso, Flávio. O amor de mãe faz
milagres. Verá...
Quando Berenice viu o filho, sofreu complicada reação.
Dor e piedade. Chorando, abraçava o pequenino que fora lumi-
nosa esperança e se transformava em amarga desilusão. O me-
nino correspondia às carícias da mãe, mamando frenèticamente
e cravando no seio as pequenas unhas como garras. Sugava o
leite com tanta sófreguidão que arrancava à moça lágrimas de
dor. Ela, porém, acariciava-lhe a cabecinha desconforme e, deli-
cadamente, procurava tirar de sobre a pele ferida as mãozinhas
cobertas de pelagem avermelhada.
— Meu filho, meu filhinho, meu amor! Berenice chorava
e as lágrimas punham pequenas manchas escuras no cabelo
avermelhado do menino. Sofria mais pensando que êle teria de
65
crescer talvez carregando uma tara que o infelicitaria para toda
vida. Como o receberiam as outras crianças? Seria repelido, in-
juriado. E depois?
O seio doía-lhe. As pequenas unhas arranhavam a pele,
feriam-na.
Flávio fugia de perto. Chegava a sentir raiva daquele filho
que viera destruir a felicidade do casal; que, em vez de ser mo-
tivo de alegria, era-o de sofrimento. Depois vinha-lhe piedade.
Afagava doidamente o menino, beijava-o, deixava-se arranhar
por êle.
Durante um mês o dr. Bernstein não se afastou, acompa-
nhando atentamente o desenvolvimento do pequeno e sua pre-
sença contribuiu muito para atenuar o desespero dos pais. Flá-
vio parecia conformado. Pelo menos, dominava-se muito bem,
para não aumentar o sofrimento da esposa. Lá no fundo, porém,
sentia repulsão pelo pequeno. Jamais o amaria como a um fi-
lho.
Passado o mês, o dr. Bernstein, que batizara o menino,
teve que voltar para Santa Maria e Flávio, enquanto o levava em
seu auto, conversava com êle.
— Então, compadre.. que lhe parece?
— Você e Berenice emagreceram. Precisam tomar cuida-
do.
— Sim. Mas Carlinhos...
— É preciso ter paciência.
— Quer dizer que não há esperança de vir a ser uma cria-
tura normal?
— A cauda tem diminuído. Desaparecerá...
— E o resto? Pode dizer o que pensa.
— É preciso esperar. A natureza é sábia. O maxilar, a fron-
te, as unhas parece que não se modificaram ainda...
— Diga, Bernstein. Carlos crescerá como um macaco ...
— Não, Flávio. Que idéia! Será um homem. Feio, talvez.
Mas homem. A beleza de um homem não está no rosto e nas
mãos. Êle pode vir a ser o que se chama “um belo homem”. Co-
ragem, compadre! Vocês têm que viver com êle e educá-lo. Seja
forte por você e por ela.
66
Flávio foi encontrar Berenice chorando.
— Que aconteceu, querida?
— O menino... O Carlinhos... — soluçava ela.
— Que foi? Onde está êle?
— Está dormindo... Não aconteceu nada. Êle é tão, tão...
— e Berenice rompeu em pranto convulso.
— Tranqüilize-se. — Não se deixe impressionar. Bernstein
me disse ainda agora, que Carlinhos se transformará num belo
homem. Êle é muito forte, não é? Está ficando mais bonito, não
está?
— Está — respondia ela, entre soluços. — Mas aquele
pêlo... Não é como as outras crianças... A cabeça...
— Não se deixe impressionar, querida. De qualquer modo,
é nosso filho...
— Mas a voz dele, Flávio. O modo como chora...
— Não pense nessas coisas, Berenice. Temos que cuidar
dele, para que cresça feliz.
— É verdade, Flávio...
Berenice limpou mais uma vez as lágrimas e foi olhar o
campo através das vidraças da varanda. Flávio foi dar ordens ao
tratorista que o esperava no alpendre.
III — O MENINO E A MATA
Carlinhos estava com três meses. Todo seu corpo era co-
berto de pelagem ruiva; os braços longos demais; as pernas leve-
mente arqueadas e fortes; os pés grandes, chatos, de dedos mui-
to móveis; caixa toráxica muito desenvolvida. O rudimento de
cauda ia sendo absorvido, mas o cóccix se transformava numa
calosidade. Cabeça pequena; testa curta e fugidia; arcadas su-
perciliares muito grandes; olhos pequenos no fundo das órbi-
tas. Não se podia ignorar a semelhança que o rapaz apresentava
com os macacos. E tinha nas mãos força incrível. Agarrando os
dedos do pai, mantinha-se suspenso por muito tempo, sem dar
mostra de fraqueza. As unhas cresciam-lhe duras e escuras.
Cortá-las causava-lhe sofrimento.
Como Bernstein dissera, o amor de mãe faz milagres. Be-
Além do tempo e do espaço
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Além do tempo e do espaço

  • 1. 1
  • 2. 2
  • 4. 4
  • 5. 5 ALÉM DO TEMPO E DO ESPAÇO 13 CONTOS DE CIENCIFICÇÃO
  • 6. 6
  • 7. 7
  • 8. 8 “Minha vida é muito mais complicada do que uma novela policial” — disse-me o japonês ao erguer-se da mesa do carro- restaurante. E acrescentou: “Um dia contarei tudo ao senhor”. Ora, nós nos conhecêramos apenas meia hora antes, na- quele trem da Alta Paulista. Conversáramos sobre vários assun- tos e eu lhe dera algumas informações profissionais sobre par- cerias agrícolas. Dos problemas da parceria tínhamos passado aos do cinema e destes aos da novela policial. Hoje estou certo de que a vida de Takeo pode servir de tema a uma novela como- vente. Trocamos os nossos cartões de visita e dois ou três anos correram sem que eu tivesse notícias do nipônico. Mas um dia fui surpreendido por uma longa carta, de difíceis garranchos que alinhavam uma língua mista e quase indecifrável. Corri os olhos pelas garatujas e joguei, desanimado, a car- ta ao fundo de uma gaveta. Meio ano depois, ao ter notícia do estranho fato que estava celebrizando o cemitério de S. José do Abacateiro, e recordando que o japonês me falara sobre tal localidade ainda não mencionada nos mapas do Estado, corri à gaveta e iniciei a leitura, tradução e decifração daquelas vinte folhas fechadas pela assinatura de Takeo Matusaki. I “NASCI EM CHIMABARA” Não foi fácil arrumar em frases claras o emaranhado de palavras que se acotovelavam no papelório do nipão. Na verdade reescrevi a carta, aproveitando-lhe as idéias e as informações
  • 9. 9 e omitindo alguns elementos desnecessários, inclusive o meu nome, que se repetia na abertura de todos os parágrafos, es- tropiado mas reconhecível. A versão que aproveitei é a que tem início na linha seguinte. “Nasci em Chimabara, cidade plantada no lado oriental de uma ilha perto de Nagasáqui, e tinha onze anos quando o Imperador entrou na guerra mundial. Nessa época morávamos na ilha de Quio-Chu, em Facuoca, e meu pai exercia o ofício de mecânico. A guerra não o deixou em casa: seguiu como mecâ- nico de viaturas. Então eu e minha mãe fomos para a casa de uma tia, em Omura, subúrbio de Nagasáqui. Lá vivemos alguns anos e eu ia crescendo enquanto meu pai servia nas ilhas do Pacífico. II O COGUMELO Apesar de tudo a vida era agradável. As notícias da guerra eram sempre boas e na escola falava-se todos os dias de incríveis atos de heroísmo. Mas houve em nossa vida aquele momento em que ouvimos um estalo, e tivemos a impressão de que a terra se fendera de cima a baixo. Um clarão iluminou o céu, do lado de Nagasáqui, e depois um enorme cogumelo de fumo se plantou, frondoso, sobre a terra e foi subindo vagarosamente. Os dias seguintes foram marcados por uma chuva de boa- tos e tudo era confuso. Firochima também fora destruída. Eu e outros meninotes começamos então a nos aproximar das cinzas de Nagasáqui, embora tal coisa fosse ferozmente proibida. Renovavam-se os avisos: ninguém deveria chegar perto da cidade arrasada. Ninguém deveria beber a água dos riachos e das fontes da região. E nós, que ouvíamos as recomendações, jurávamos não beber tal água. Mas a verdade é que — como vo- cês ensinam — ninguém pode dizer “dessa água não beberei”... III OS FRUTOS DA MORTE
  • 10. 10 As semanas e os meses correram e as cautelas foram re- laxando. Nos matos apareciam animais deformados, arbustos diferentes, e nas árvores surgiam frutos jamais vistos. As mães recomendavam: “Não comam esses frutos”; mas o fruto proibi- do é uma tentação em qualquer parte, e a água proibida não é menos tentadora. Por isso bebi água de muitas fontes e comi frutos espantosos. Nada me aconteceu, embora tenham morrido alguns rapazes que beberam e comeram. Outras causas os ma- taram, naturalmente. Alguns meses depois do armistício meu pai voltou incó- lume, apesar dos lança-chamas. Lamentou os parentes mortos em Nagasáqui e resolveu procurar emprego em lugar distante. Achou-o, graças a um camarada de campanha, em Iocoama, o grande porto a meia hora de Tóquio. Seguimos para lá, mas, para não passarmos por Firochima, embarcamos em Nacatso e fomos por mar até Osaca. Lá, apanhamos um trem e passamos por Quioto, Nagoia, Ocasaqui, Odaura, e pronto: estávamos em nossa nova terra. A viagem foi belíssima, apesar da tristeza geral e das tropas de ocupação. Um mês depois meu pai teve de ir a Camacura e levou- me para que eu visse o Daibutsu. Devo dizer que éramos bu- distas da seita Xin-Xu, fundada pelo veneravel Shinhran. Logo depois fomos conhecer a grande capital do Império. Passamos por Canagáua e Canasáqui e chegamos a Chinagáua, o primeiro subúrbio. De lá meu pai dirigiu o caminhão para Tacanáua e já estávamos na cidade imensa. Ainda me lembro do deslum- bramento com que vi a avenida das Lanternas, tão falada na escola! A vida ia correndo bem, mas em fins de 46 meu pai co- meçou a queixar-se de sintomas estranhos. Dois meses depois estava num hospital e morreu em princípios de 47. As explica- ções dos médicos não foram nada claras, mas um enfermeiro deu-nos o diagnóstico terrível, com um neologismo não menos maligno: o senhor Matusaki foi nagasaquiado.
  • 11. 11 IV LUTO NO ASILO Ficamos na maior penúria e comecei a fazer alguns ser- viços no cais, para que minha mãe não passasse fome. Essa responsabilidade não pesou sobre os meus ombros muito tem- po. Como o marido, ela começou a definhar e, antes do fim da primavera, fechou as pálpebras. Ninguém estranhava que pessoas vindas da ilha de Quio- Chu morressem, e por isso eu também tinha medo que chegasse a minha vez. Não sem algum pânico, corri para Tóquio na espe- rança de que certa família amiga me acolhesse. Mas o que essa pobre família — cujos homens tinham morrido, quase todos, nas Filipinas e em Sumatra — pôde fazer por mim, foi recolher- me a um asilo, nos arredores da cidade. Eu já era, porém, taludo e fiquei lá menos de dois anos. Não foi um estágio tranqüilo. Quando lá cheguei, nem to- dos os meninos eram saudáveis. Alguns tinham vindo de Firo- chima ou arredores e houve mesmo dois ou três que morreram no primeiro ano de minha permanência. Nos três ou quatro me- ses seguintes morreram mais três, que eram, aliás, meus com- panheiros de dormitório. E quando saí de lá, para ocupar um emprego de ajudante de mecânico em Chinagáua, deixei mais dois na enfermaria. Para mim, o pó da morte já se havia espa- lhado por todo o país, e todos nós seríamos nagasaquiados em poucos anos. Esta idéia começou a atormentar-me como uma obsessão na oficina do sr. Susumo Udihara, em Chinagáua. V A TERRA DA UIÁRA Às vezes aparecia na oficina o senhor Minesako Udihara, filho mais velho do patrão, e o seu assunto predileto era uma ter- ra distante e cheia de rios, do outro lado do mundo, onde tinha morado alguns anos. Êle nos garantia que naqueles rios — prin- cipalmente no Pararaparema, aparecia uma moça bonita como uma gueixa, que morava na água. Era a Uiára. Êle mesmo tinha
  • 12. 12 visto uma e soube, por ela, que os homens mais antigos daquele país tinham ido da Terra do Sol Nascente para lá! Naquele país de árvores altas ninguém morria do mal de Nagasáqui. Trabalhei muito na oficina Udihara e transformei-me num mecânico hábil. Mas o idoso Susumo não tinha o dom da imor- talidade: em fins de 49 adoeceu e poucos dias depois os seus calcanhares se uniam. O seu filho mais velho, senhor Minesako, já tinha a essa altura voltado para a terra dos grandes rios e por isso a oficina foi fechada. O casal tivera outro filho — Asami— que jazia no bojo de um submarino, no fundo do mar do Coral. É verdade que cheguei a assumir a direção da oficina, mas logo tive a amargura de ver que a viúva Udihara, a idosa senhora Mieko, começava a encorujar. Desde que chegara a Chinagáua, eu residia na casa de uma família xintoísta, que dava pensão. Meu companheiro de quarto era um jovem jogador de “baseball”, o cristão Akeda. Era bonito ver, sobre a mesma mesa, uma miniatura do Daibutsu ao lado da imagem do mártir São Paulo Miki. Mas o dono da casa, senhor Sugano, nos reprovava e atribuía às crenças “estrangei- ras” as desgraças nacionais. Tudo acontecera porque tínhamos abandonado o culto da deusa Amaterasu, do deus Izanági e dos Kami. Pois bem: o atlético cristão Akeda morreu uma semana depois do enterro do senhor Udihara. E, no pensar nesse e em outros mortos, eu sorri muitas vezes da ingenuidade com que minha mãe me proibira de beber água ou comer frutos dos ar- redores de Nagasáqui. Eu bebera e comera e os outros iam morrendo.. . VI O ESQUELETO Em março de 50 deixei Chinagáua, no mesmo dia em que a senhora Mieko era levada para um hospital da cidade. Mine- sako falara muito daquele grande país cheio de sol e uiáras, que ficava do outro lado do mundo. Comecei a cuidar dos papéis para a grande viagem e para fugir do mal de Nagasáqui. Tinha algum dinheiro e arranjei uma pensão perto do centro de Tó-
  • 13. 13 quio. A obtenção da licença para viajar e do visto era, porém, demorada, e por isso arranjei um novo emprego, para me agüen- tar durante a espera. Por várias razões gastei quase um ano e meio até que tudo se formalizasse. Viver durante esse tempo foi, porém, um alívio para mim, pois, se no primeiro ano tudo correu bem na pen- são, nos últimos três meses tinham morrido dois pensionistas. O fato e a causa mortis alertaram as autoridades sanitárias e eu mesmo — com outros hóspedes — fui submetido a longo exame clínico. Mas o meu estado de saúde era aparentemente ótimo — disseram-me. Um dia, finalmente, recebi o passaporte e demais docu- mentos para a viagem. Na véspera do embarque apanhei a vo- lumosa mala, já pronta, e fui a Iokoama despachá-la. Voltei a Tóquio para passar a última noite na pensão. Ao chegar, tive uma notícia triste, mas já esperada; o dono da pensão, senhor Mizumoto, morrera no hospital. No dia seguinte, ao amanhecer, eu me preparava para sair, com a minha maleta de mão, quando a pensão foi invadida por policiais e médicos. Em Iokoama o navio me esperava, mas nada pude fazer: fui levado com mais cinco pensionistas para um hospital. Fomos admitidos a vários exames e quando meu dorso foi submetido à radioscopia, o médico soltou um brado de espanto: “o esqueleto deste homem parece feito de luz fluores- cente!”. VII À GRANDE VIAGEM Nada me perguntaram, nem ao menos o nome. Meteram-me numa ambulância, talvez para que, confina- do em alguma cela de cimento, eu acabasse os meus dias. Mas as poucas peças de ferramenta que eu tinha na maleta muda- ram o programa. Após meia hora de viagem arranquei as dobra- diças da porta da ambulância e, na primeira parada, forçada por um cruzamento com o leito da estrada de ferro, desci tranqüi- lamente. Três horas depois o “Osaca Maru” levantava ferros em
  • 14. 14 Iocoama e fazia-se ao largo. Num dos seus camarotes de classe geral eu repousava com este esqueleto radioativo que continua- va a luzir dentro de mim. VIII COMPANHEIROS Éramos quatro no camarote e cada um tinha um destino. Só eu não sabia o que fazer depois de saltar em terra. O destino de Iojiro — um de nós — era S. José do Abacateiro, um arraial entre algodoais. — “Lá é bom. Há banqueiros patrícios que emprestam di- nheiro para comprar terra”. — “Como é que você sabe?” — “Eu já estive lá. Comprei terra que tinha mais dois do- nos: João e José. João matou José e foi morto por Antônio, filho do mesmo José. Antônio foi preso e eu fiquei com a terra.” Fizemos camaradagem e afinal Iojiro convidou-me para trabalhar no sítio dele: — “Há sempre serviço de mecânico” — explicou. E havia. Êle tinha um trator, um jipe e algumas máquinas agrícolas. Colhemos uma safra, entrou dinheiro e tudo ia bem. Um dia êle foi montar um baio, meteu o pé no estribo, e não teve força para alçar o corpo. Encarei-o: estava pálido. Foi enterrado daí a dois meses e então apareceu Joaquim, filho do defunto João, com uns papéis e soldados. Tomou a terra, o rancho e tudo mais, e eu só pude fugir com o jipe e minhas ferramentas para Bauru. IX AMOR FATAL Viver só é muito triste. É mais triste ainda quando mata- mos aqueles com quem convivemos. Na escola de Omura o pro- fessor me ensinara que o rei Midas transformava em ouro tudo o que tocava. Mas eu transformava em defuntos todos os parentes e amigos. Pensei no entanto que poderia casar, desde que não
  • 15. 15 tivesse a esposa sempre ao meu lado. Lidia Tsurayuki, uma nissei, era em pouco tempo minha noiva. Fui buscá-la a Guaraniuva e casamos. Não consegui, po- rém, convencê-la de que deveríamos ter quartos separados e comer em horas diferentes. O caso de Lidia foi, realmente, o de um amor fatal: quando eu esperava que ela me desse, em breve, o meu primeiro nissei, o seu sangue começou a desfazer-se em água. Tudo foi questão de alguns dias e, então, desesperado, resolvi vingar-me de alguém. X RÁDIO-HOMIC1DIO Voltei à roça de Inojiro, entreguei o jipe a Joaquim e pedi- lhe perdão e um emprego. O caboclo vivia feliz com a mulher e um filho pequeno, e também com o trator e as máquinas de Inojiro Mizikame. Transformei-me na sombra da família, sempre serviçal e dedicado. Era enxadeiro e mecânico, moço de recados e copeiro. Em seis ou sete meses o extermínio começou. Adoe- ceu primeiro o menino, mas quando me arrependi já era tarde: nem o Buda de Camacura nem S. Jacob Sisaí, de minha nova devoção, me ouviram. Atrás do menino foram os pais e a esse tempo já os empregados e agregados começavam a adoecer. Foi então que se espalhou por aqui a lenda de que sou bruxo, feiti- ceiro e envenenador, de que mato com mau-olhado e com suco de ervas más. Ninguém mais se aproxima de mim, mas sei que, a qualquer momento, cairei na ponta de uma faca ou varado por uma bala”. XI ASSASSÍNIO PÓSTUMO A conclusão desta história não poderia estar na carta de Takeo Matuzaki. Eu a acrescentarei. Certa manhã o corpo do japonês — disse um jornal — apareceu cortado a faca e cha- muscado pelo fogo. Enterraram-no em S. José do Abacateiro, e alguns meses depois o zelador do cemitério morria anêmico,
  • 16. 16 evidentemente nagasaquiado. Ao redor da campa de Takeo as plantas que não secaram mudaram de aspecto. Sob a terra o seu esqueleto continuava — e continuará — a matar, muito em- bora o seu espírito maligno já tenha sido convenientemente es- conjurado por aqueles que estão seguros de que Matusaki foi a própria encarnação do Diabo, o Diabo em carne e osso, ou pelo menos o esqueleto do Diabo.
  • 17. 17
  • 18. 18 Com certeza, no futuro, talvez antes de um século, este episódio pertencerá ao historiador, ao cronista. Por certo, num amanhã não muito remoto, surgirá quem relate todas as minú- cias. Por certo, os bardos cantarão os feitos, surgirá a lenda, criar-se-á paralelamente o mito. Assim como no passado, na era das conquistas, no tempo da expansão sobre a Terra, houve historiadores e cronistas, assim também será no porvir. Não fal- tarão homens como Prescott ou Bancroft, como aqueles escribas que acompanhavam as naus européias nos périplos fantásti- cos demandando o desconhecido. E então a minha história bem pouco valerá. Portanto, mesmo sem a perspectiva das conse- qüências, sem o impacto transcendental e filosófico, lhes dou o meu relato de simples repórter, de olheiro da humanidade que lá ficou. Fui o primeiro que assistiu à cena, atônito e emudecido, na bolha atmosférica que parecia uma gota vista de cima, das elevações que cercam o Mar da Fecundidade. Eu era o único que não tinha interesse no sorteio. Lá fica- ria quanto quisesse, pois o meu contrato não estipulava prazo. Não era astronauta de profissão, mas apenas um corresponden- te. E, sendo o único, escolhido mais por minhas aptidões físicas do que intelectuais, não tinha compromissos ou concorrência. Anotava, escrevia e, se desejasse, ia pessoalmente no vôo men- sal recolher os meus proventos, entreter-me por semanas com Doroteia, beber com Gustavo, ouvir as lamentações sem fim de Emiliana. Era cômodo, confortável, chegava mesmo a ser diver- tido e, além disso, utilitário que sou, sumamente compensa- dor. Todos comiam por minhas mãos, distribuía meu alimento a peso de ouro. Afinal, como eleito, sem linha política que me
  • 19. 19 incompatibilizasse com as duas facções, era sobretudo neutro, e um só, o que reforçava minha independência. Senhor, pois, naquele satélite de escravos, não me importava com os dias de sorteio, esquecendo-me que meus companheiros não pensavam assim. Vínhamos então pelo vale em passo acelerado, atentos para não transgredirmos as imposições da baixa gravidade, em passos estugados mas bem medidos para não virarmos saltões naquele mundo de pesadelo. Éramos oito, todos do Grupo A, da equipe internacional, do Quadrante Dois, da Base de Petavius. Naquela manhã havíamos tentado algo novo: o alpinismo lunar. Fomos os primeiros a galgar a protuberância mais elevada de Altai e a flâmula da EICLU (Equipe Internacional da Conquista Lunar) ficou estática no cenário espoliado de atmosfera. Recordo-me que o cansaço nos aniquilava. Caminhávamos com os interfones ligados mas nenhum som se ouvia, apenas chiados de pulmões ofegantes que inflavam ao máximo nossos trajes de pressão, dando-nos aspectos de balões grotescos. Dois integrantes do grupo quase chegaram a perder a consciência. Havíamos abusado. A caminhada fora longa e a ascensão peno- sa. Vários descanços, quase um pedido de socorro. Mas, como previa o Regulamento, até três baixas, tudo era tolerável. Não seria solicitado auxílio a não ser em risco de aniquilamento to- tal. Assim fora na catástrofe de Cassini, por pouco no desastre do Mar dos Humores. Eu marchava no meio, o único privilegiado que não trans- portava equipamentos. À beira da exaustão, o líder lembrou-se do acontecimento — a ação mágica de certas frases que soer- guem o moral, levantam os ânimos, O chiado parou e a voz veio sem distorção: — Atenção, camaradas, hoje é dia de sorteio! Um frêmito percorreu a fila indiana. Dir-se-ia que uma injeção havia retesado os músculos, alteado as derradeiras re- servas, incendiado lembranças, sobretudo despertado desejos. A marcha acelerou-se quase ao limite da gravidade e vozes cru- zadas com acentos eufóricos e interjeições de redivivos, estala- ram nos fones:
  • 20. 20 — Tenho certeza que desta vez serei um deles! — Cheguei a apostar por fora. Não me interessa, venderei meu passe! — Meu filho me espera há mais de um ano. Como estará êle? — Não adianta, jamais tive sorte, desde menino... Só eu não falei. Como já lhes disse, o sorteio não me in- teressava. Mas devo esclarecer o que era esse sorteio. Ao todo — naquela Base éramos cinqüenta homens e dez mulheres. A nata da ciência, o sumo da animalidade. Cada aeronave só podia le- var cinco elementos, e cada vôo era mensal, meses terrestres. Maior espaço e mais passageiros naquela década era impossível. E então ? No começo o rodízio, depois o sorteio preconizado pe- los especialistas-tutôres. Uns, os mais afortunados, já haviam regressado à Terra três ou quatro vezes. Outros sem sorte algu- ma, lá estavam havia mais de ano, deglutindo doses de medi- camentos que os ajustavam melhor ao meio planetário. Alguns exemplos: o russo de Odessa fora três vezes em quatro sorteios; o mexicano, técnico em comunicações, fora duas; o belga, gra- duado em biônica, voltara quatro vezes em seis meses. Outros porém, como o mais moço, o rapazinho cheio de sardas, lá estavam havia mais de ano e meio e jamais tinham conseguido o bilhete. E entre as mulheres? A mesma coisa. Pa- rece que elas sentiam menos a terrível segregação. Os psicólogos tinham razão. De fato, as mulheres se adaptavam melhor, não apresentavam problemas, nem mesmo demandavam pílulas em doses extras, como acontecia com a maioria dos homens. Sônia e Olga haviam regressado uma vez. A inglesa, duas. A mais ve- lha, com certeza norte-americana, voltara quatro vezes, ao pas- so que a mais moça já se aproximava de um ano sem obter o papelucho azul. E, ao que parece, bem pouco se aborrecia com isso. Vivia metida em seu traje vermelho, como que escondendo suas formas que deveriam ser das mais esguias, como afirma- vam os que a haviam visto na bolha, em pleno trabalho, debru- çada sobre o microscópio. A lembrança do líder produziu o efeito desejado. Antes da hora prevista a distância foi vencida e o pedido de auxílio deixou
  • 21. 21 de ser enviado. O jovem sardento caminhava na minha frente. Quando passei a marchar ao seu lado busquei-lhe o rosto sob o elmo. Notei-lhe certa expressão de indiferença e que também não era do cansaço que agora ia ficando para trás, ligado às nos- sas pegadas impressas no pó lunar até o final dos tempos. Eu não podia falar-lhe diretamente, pois o sistema dos in- terfones estava subordinado à escuta geral. As conversas parti- culares eram proibidas, só permitidas em circunstâncias excep- cionais. Ao líder do grupo cabia a iniciativa e todos os circuitos deviam estar desimpedidos para as ordens e os contatos com a Base e eu, mesmo isento da disciplina, estava de certa forma sujeito aos regulamentos. Mas não raro os esquecia. Quebrava o formalismo e minhas expansões eram toleradas. Afinal, eu era o privilegiado. Segundo a lenda que corria, eu poderia falar com o Presidente com a mesma facilidade com que me comuni- cava com o chefe do meu jornal e isso por certo impunha algum respeito. Apressei a marcha. Levantava bem pouco minhas botas, evitando assim que a poeira plúmbea flutuasse naquele páramo desolado. Quase me encostei ao rapaz sardento. Como era mes- mo seu nome? Charles ou Bill? José ou Demetrius? Não, creio que não. Depois vim a saber que era canadense, que nascera junto aos Grandes Lagos. Até aquele instante eu só sabia que êle até então não regressara uma só vez à Terra. Recordo-me que nos quatro últimos sorteios seus amigos mais chegados ti- nham começado a preocupar-se. Nas primeiras vezes o jovem dava demonstrações de decepção. Depois se tornou indiferen- te. A princípio — e isto foi o seu companheiro de bolha quem me contou — mal dormia nas vésperas dos sorteios. Largava os livros, esquecia das transmissões terrestres, ficava do lado de fora, encostado a algum pilone fitando o globo azul em torno do qual girávamos mansamente. Pouco falava. Apenas o necessá- rio com os amigos e talvez um pouco mais com os psicólogos, sempre em solidão, metido com seus livros. Com certeza, até àquela época tudo com êle ia bem. Segundo os especialistas, os introvertidos agüentavam melhor. E isso de agüentar e de não agüentar só será bem entendido por quem já viveu no espaço.
  • 22. 22 Mas, vamos à minha história, vamos ao que interessa. Lembro- me que sabia apenas que o jovem sardento nunca voltara. Bati- lhe então no ombro e violei a regra. Falei-lhe baixinho, como se entre nós inexistisse o capacete, como se lhe segredasse ao ouvido e minhas palavras não fossem ouvidas por todos os que estivessem com os aparelhos ligados. — Então? Anime-se. Não ouviu o que o chefe disse? Sim, hoje é dia de sorteio! Êle era mais jovem. Talvez vinte e um anos, vinte e dois ou talvez menos. Continuei ao seu lado. Fixei-me no capacete do ra- paz, levemente tocado pela poeira, e localizei a resposta para mi- nha indagação. Apenas certo olhar mais detido que serviu para revelar uma atitude de desesperança. Pude ver que êle respirava com dificuldade. Examinei-lhe os registros do oxigênio e pressão interna. Os marcadores estavam bem visíveis do lado de fora dos elmos, como se fossem periscópios, em posição que pudessem ser fiscalizados pelos companheiros. Isso era importante, pois se evitavam assim acidentes fatais. Mas tudo ia bem, êle não estava com deficiência respiratória. Tratava-se de mero cansaço — a altitude da escalada, as longas milhas lunares, o cuidado redobrado na passagem das falésias, a atenção para não levan- tarmos poeira desnecessária, talvez a exaustão de quem está há muito tempo no satélite como um exilado. E os médicos? Como é que não o devolvem aos Grandes Lagos? Porque não o libertam desse mundo monocromático e silencioso que não raro chega a fazer com que ponhamos em dúvida a validade da própria exis- tência? Não entendia. Mas, se nada faziam era porque tudo ia bem. Eles eram eficientíssimos. Oniscientes. Examinavam-nos (e eu, mesmo como agregado submetia-me voluntariamente à rotina) todas as semanas. E não só o físico, mas sobretudo a alma. Sim, meus amigos, a alma. Era importante, fundamen- tal. Agora me recordo. Transmito-lhes este pormenor a título de curiosidade, para colorir minha história, já que em outras reportagens cuidei mais a fundo da matéria. Não foi porventura na Lua que muitos homens se converteram? Não foi na capela triangular de Endimião que muitos tiveram seu primeiro encon- tro com Deus? E por que? Por que? indagavam os psicólogos,
  • 23. 23 os sacerdotes e os sábios da Igreja? Porque lá, no astro gelado e abrasador, onde tudo é paradoxal, muitos encontravam-se e dialogavam com suas próprias almas. Lá o homem se achava, estando só. E então? poderiam argumentar os céticos. E então? Esse isolamento também não existia na Terra? Nos desertos, nos mares, nas profundidades oceânicas, nas calotas polares? Não, não era a mesma coisa. Na Terra estavam de qualquer forma lá, abrigados em seus lares, acorrentados ao solo do planeta que os gerara, que os fecundara, indissolùvelmente ligados à mãe que os protege, identificados pelo destino coletivo que cria uma série ponderável de hábitos, motivo pelo qual nenhum espanto decor- re do fenômeno vital. Mas na Lua tudo se desmantelava numa solução antípoda. Lá em cima é que estava a Terra, sobre suas cabeças é que se achavam os lares, lá na esfera assustadora é que se achava albergada a vida. E então a existência de fora se revestia das dimensões do sonho, era um sacrilégio, certa ofen- sa, com o irracional das reincarnações. Na Lua todos se sentiam ressuscitados. E da perplexidade e do pavor nascia o encontro com o espírito. Ficava-se só consigo mesmo e o resultado eram as conversões na capelinha escura de Endimião, protegida pela bôlha-dupla. Mas tudo isso pouco tem a ver com a minha história. O menino sardento era um daqueles. Nos primeiros meses não freqüentava o templo. Depois passou a ir amiúde e depois ainda, num comportamento incomum, deixou de ir. Os espe- cialistas-tutôres anotaram o fato. Testes, exames e entrevistas. Mas tudo ia bem com a sua alma — afirmaram. Quando procurei animá-lo a marcha foi apressada. O líder cortou-me a segunda frase com uma determinação de serviço, e pelo seu tom senti que me repreendia pelo uso indevido do cir- cuito. Cumprindo a ordem, segui a fila até o instante em que as comportas se abriram para receber-nos. Mas, como se processava o sorteio? Cada homem tinha um número, gravado numa plaquinha dependurada no pesco- ço. Como no passado, se o homem morresse a família receberia a placa de identificação. Tais placas eram depositadas numa semi-esfera posteriormente bem revolvida pelo Administrador.
  • 24. 24 Em seguida, ligando-se a certa distância o eletroímã, imprimia- se movimento circular ao receptáculo, que ficava numa coluna sobre um eixo móvel. Pela ação do ímã as chapinhas agitavam- se, empinavam-se debaixo da torcida geral, como que lutando contra o magnetismo atuante. Após segundos, elas desligavam- se e iam flutuando pelo espaço até se fixarem no pólo do apa- relho, que era então desligado. Lia-se em voz alta o número do felizardo. E assim, uma a uma, as placas saíam velozes, criando ou destruindo ilusões, em meio à algazarra que sempre acom- panhava o espetáculo. O Administrador devolvia-a ao sorteado e no mesmo ins- tante lhe entregava o bilhete azul que era exibido na partida. Assim foi naquela noite. Tudo decorreu normalmente e só no dia seguinte, pela oitava hora após o embarque, foi que se descobriu tudo sem entretanto compreender-se a causa do de- satino. Admito que anotei a atitude do jovem sardento durante o sorteio. Como era mesmo seu nome? Charles ou Bill? José ou Demetrius? Não me recordo ao certo. Apenas sabia alguma coisa de sua vida que por êle me foi contada nos períodos de repouso. Naquela época êle tinha outra conduta. Positivamente não era extrovertido, mas falava de si o normal, talvez um pouco menos que a média, dentro dos padrões de quem se achava na segunda fase de ajuste. Seu pai era chefe de usinas solares e dois dos seus irmãos haviam morrido na descompressão de um satélite. Tinha uma noiva ou namorada. As coisas de sempre — saudades, cartas, retratos falados, sem nada de especial que revelasse conduta assintomática. Só não consigo recordar-lhe o nome. Na sala observei que se mantinha isolado, num dos can- tos do bar, trajando ainda as roupas do exterior. Tinha alguma coisa na mão que revolvia com insistência e ao seu lado, sobre o balcão, os copos vazios indicavam que já consumira todos os vales. Não se acercou do grupo formado ao redor do eletroímã. Revirava os dedos o tempo inteiro o objeto brilhante e às vezes ficava de costas para a semi-esfera, em atitude que me pare- ceu ostensiva. Dir-se-ia mesmo que estava sendo perturbado em suas cavilações pelo tumulto. Sua ausência era estranha
  • 25. 25 e poderia chamar a atenção dos especialistas. Mas, como suas fichas continham as respostas exatas e os furos satisfatórios, como as máquinas jamais se equivocam nos prognósticos, não havia com o que se preocuparem. Apenas certo procedimento incomum, sem perigo para o equilíbrio coletivo que, como num sistema de vasos comunicantes, devia ser observado sob pena de levar a convulsão a toda equipe. Em função dessa harmonia se justificava o trabalho contínuo dos tutores. Tratava-se ape- nas de um moço que desejava preservar a sua solidão. Proclamo aqui a grande verdade que a esse respeito encontrei no livro de um escritor do passado que gozou de algum renome no século XX. Um certo Thomas Mann, que na sua novela preferida, tal- vez levado pelo romantismo crônico que então se cuidava eterno companheiro do homem, afirmou que a solidão e o silêncio, se amadurecem a originalidade e a beleza audaz, também geram a perversão e o absurdo, incitando as criaturas ao ilícito. A sá- bia assertiva bem se aplica ao franco-canadense, explicando em parte o episódio que desacreditou os especialistas e toda a sua cibernética. Para conhecerem a alma talvez devessem ler os au- tores do passado, meus velhos amigos Dostoievski, Shakespeare ou Kafka, Faulkner ou Stendhall, enfim todos aqueles que há muito foram banidos das bibliotecas por anacrônicos, sediços e inaproveitáveis, alguns deles perniciosos mesmo. Deviam os psicólogos, esquecendo-se das sondas mentais e detectores de comportamento, valerem-se das experiências dos artistas, da intuição incomparável daqueles que nas épocas anteriores eram considerados gênios, o que não mais havia agora em nossa era de progresso. Se assim fosse tudo talvez poderia ter sido previs- to, sem a celeuma e o clamor despertado, afastando-se o inútil das punições. Terminado o sorteio, os contemplados exibindo os bilhetes passaram ao bar, em triunfo. Em meio à alegria transitória fo- ram poucos os que notaram a reação do rapaz. Este revirou o úl- timo gole, limpou a boca na manga do blusão e saiu às pressas, como se temesse contaminar-se pela euforia dos companheiros que logo deixariam a Lua. Largou no meio dos copos o objeto que tinha na mão e desapareceu em direção aos alojamentos.
  • 26. 26 Aproximei-me do bar. Peguei aquilo com que êle brincava. Ape- nas uma pedra, um bloco um pouco maior do que um punho fe- chado, disforme e cheio de arestas, talvez resíduo de meteorito, níquel e manganês, resto de sol morto ou de planeta destruído, apanhado como lembrança das plagas lunares. Segurei o ca- lhau e, sem medir as conseqüências, saí atrás do jovem para devolver-lhe o achado. Apenas um pretexto para vê-lo. Talvez não o devesse ter feito. Devia ter esperado, aguardado melhor oportunidade. Quem sabe se com essa atitude contribuí invo- luntariamente para o crime? Dei com êle deitado em seu catre, na bolha coletiva. Semi-despido, os olhos esbugalhados, um li- vro na mão, o olhar pregado no espaço. Devolvi-lhe a pedra. Êle não respondeu, nem mesmo com um agradecimento. Esticou a mão, balançou o pulso sentindo o peso do mineral e fixou-se em mim com o mesmo ar atoleimado, insatisfeito, mas que conti- nha algo de ameaçador. Fiquei sem saber o que fazer. Senti que quebrara uma cogitação profunda e que isso não era bom, que o havia despertado de um devaneio. Silenciei, não sei se me des- culpei. Antes que eu saísse êle desligou o comutador. Voltei-me ao cerrar o postigo e apenas lhe vi o vulto abatido, com aquela coisa que brilhava na mão. Na oitava hora depois da partida para a Terra, o respon- sável pelos compressores encontrou a vítima. Estava escondida debaixo de uma das máquinas, dobrada sobre si mesma, ves- tida e equipada para o vôo espacial, apenas sem o elmo que se colocava no momento de deixar a proteção gasosa. O coração batia ainda, havia um tênue alento e o filête rubro escorria da testa infiltrando-se pela camisa junto ao pescoço. Foi de pronto reconhecida. Um dos sorteados, o russo de Odessa que voltara três vezes. E, ao lado do corpo desfalecido, o calhau brilhante que na penumbra refulgia como uma gema preciosa, agora de- positado na mesa do Superintendente, transformado numa das peças principais do inquérito. O bilhete azul não estava mais nas mãos do russo. Alguém o retirara, alguém, protegido pelo anonimato conferido pelas vestes do espaço e que já se acercava dos Grandes Lagos. A investigação foi sumária, tudo era evidente. Só o jovem
  • 27. 27 sardento não foi encontrado. As primeiras medidas foram to- madas, feitas as comunicações com a Terra e transferida para a chefia suprema a responsabilidade do julgamento. Fui ouvi- do sobre os antecedentes e relatei-lhes a reação do rapaz ao restituir-lhe a pedra. Segurei o seixo, aferi-lhe o peso. O golpe fora violento, o russo só escapara por pouco. Mas os motivos, as razões, as raízes diretas e remotas desse comportamento? A equipe dos especialistas-tutôres foi a maior condenada. Tudo conferia, tudo era normal, com os ponteiros, com os gráficos, com as pastilhas, com o físico e com a alma. A explicação só veio cerca de vinte dias depois, não des- vendada nem mesmo pelo interrogatório do moço. Em plena ma- drugada lunar, no momento em que se procedia à chamada das mulheres para a expedição que partiria para o Mar das Crises. Lá estavam todas. Todas menos uma, a mais moça, a que ali se achava havia mais tempo, aquela que se chamava apenas Ma- ria. Inexplicável sua ausência. Saímos para a busca em grupos organizados, já que não se encontrara no alojamento a bolha individual da jovem. Maria era bióloga, encarregada de pesqui- sas microbianas. Talvez tivesse saído da Base, talvez — pois tinha relativa independência em seus movimentos — estivesse nas imediações, como sempre fazia, colhendo material. Talvez tivesse tido dificuldade no regresso. E lá segui eu com o grupo que se internou pelas alturas de Godenius com a intenção de vasculhar dois décimos do quadrante. Fui o primeiro a avistar a protuberância, o ponto minús- culo, a pequena gota pousada no Mar da Fecundidade, a menos de duas horas da Base. Apenas fiz um gesto indicando a baixa- da e lancei-me com ímpeto redobrado. Meu sangue de repórter ferveu, queria ser o primeiro a chegar, já imaginando a notí- cia, vislumbrando a possível tragédia. Adiantei-me aos compa- nheiros, e a poucos metros da bolha individual, bem unida a uma pequena cratera, vi em seu exíguo interior certa forma em completo abandono. Aproximei-me. E antes de abrir o invólu- cro assegurei-me de que a jovem estava com suas vestes. Mas era um pesadelo o que eu via. Maria estava por certo morta ou desfalecida. Imóvel, repousava na pequena área de seu abrigo,
  • 28. 28 sem o elmo e sem o traje que sempre lhe ocultava as formas. Ao lado, bem unido aos condutos de oxigênio, o capacete reco- bria alguma coisa rosada, envôlta em panos sanguinolentos, e que pulsava lentamente. Compreendi. Afastei-me, recuei alguns passos, tentei ordenar minhas idéias. Pela primeira vez, longe, bem longe da Terra, o milagre renovava-se. Meus companheiros já estavam próximos. Quando de novo olhei para o abrigo, tive tempo ainda de ver, nos limites extremos do Mar da Fecundida- de, o risco chamejante de um grande meteoro que se consumia nos contrafortes da cordilheira. A claridade, o silêncio, o traço persistente no espaço, efeméride cósmica a denunciar a contin- gência humana. E na semana seguinte a criança foi levada a capela de En- dimião. Com que nome foi batizada? Bill ou Charles? Demetrius ou José? Não me recordo, confesso.
  • 29. 29
  • 30. 30 A loja de antigüidades tinha o cheiro de uma arca de sa- cristia com seus panos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, êle tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi se chocar contra uma imagem de mãos decepadas. — Bonita imagem, disse êle. A velha fechou no pescoço as pontas do xale. — É um São Francisco. Então êle se voltou lentamente para a tapeçaria, que to- mava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também. — Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado. O homem estendeu a mão até a tapeçaria mas não chegou a tocá-la. — Parece que hoje está mais nítida... — Nítida? repetiu a velha pondo os óculos. Deslisou a mão pela superfície puída. Nítida, como? — As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? A velha encarou o homem. Achou-o tão pálido e perplexo quanto a imagem do santo. — Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergun- ta? — Notei uma certa diferença. — Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido, acrescentou ela tirando do bolso as
  • 31. 31 agulhas de tricô. Lançou ao homem um olhar demorado. Foi um desconhecido que me trouxe, precisava de dinheiro com urgên- cia. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar comprador mas êle insistiu tanto. Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos, o senhor sabe? E o tal moço nunca mais me apareceu. — Extraordinário... A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. — Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena, na hora que se despregar é capaz de cair em pedaços... O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?... Era uma caçada num bosque: no primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espes- sa. Num plano mais distante, o segundo caçador espreitava en- tre árvores, mas esta era apenas uma silhueta vaga, cujo rosto não passava de um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador de barba, que se assemelhava a um esverdi- nhado bolo de serpentes, tenso na expectativa, à espera de que a caça levantasse para então desferir-lhe a seta. O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tape- çaria que tinha a côr esverdeada de um céu de tempestade. En- venenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se man- chas de um negro violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, infiltrar-se na roupa do caçador, deslisar-lhe pelas botas e es- palhar-se no chão como um líquido denso. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas vis- cosas e que tanto podiam fazer parte do próprio desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano. — Parece que hoje tudo está mais próximo, disse o homem em voz baixa. É como se... Mas não está diferente ? A velha apertou um pouco os olhos. Esticou o pescoço: — Não vejo diferença nenhuma... — Ontem não se podia ver se êle tinha ou não disparado
  • 32. 32 a seta... — Que seta? O senhor está vendo alguma seta? — Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou. — Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, esses bichos dão cabo de tudo, lamentou ela voltando-se para o tricô. Afastou-se sem ruído com suas chi- nelas de lã. Antes, fêz um gesto evasivo: Fique aí à vontade, enquanto vou fazer meu chá. Fique à vontade. O homem deixou cair o cigarro apagado. Contraiu dolori- damente os maxilares numa tentativa de sorriso. Sim, conhecia perfeitamente esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfu- me dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmi- do da madrugada, mas isso tudo fora há tanto tempo! Há tan- to tempo, meu Deus! Contudo, lembrava-se de que percorrera aquela mesma vereda e numa madrugada assim verde, de céu baixo... O caçador de barba encaracolada parecia sorrir, um sor- riso perverso embuçado na barba. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Um personagem de tapeçaria! Mas qual ? Fixou-se na touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas sob as folhas, por detrás das manchas negras pressentia o vulto arquejante, a carne em pânico. Compadeceu-se da caça à espera de uma oportunida- de para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse e a seta implacável... A velha não a dis- tinguira mas ela ainda estava no arco, reduzida a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão. O homem enxugou o queixo no dorso da mão e recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, com as mesmas manchas malignas da tapeçaria. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fêz o quadro? Quase todas as ta- peçarias antigas eram reproduções de quadros, pois não eram? Por isso podia, de olhos fechados, reproduzir a cena nas suas minúcias: o contorno da folhagem, o céu sombrio, o caçador —
  • 33. 33 só músculos e nervos — apontando para a touceira... “Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?” E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam — não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no origi- nal, a caçada não passava de uma ficção, vira o quadro antes do aproveitamento na tapeçaria... Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos ca- belos, não, não ficara do lado de fora mas lá dentro, encravado no cenário que hoje parecia mais nítido do que na véspera, mais forte nas suas cores apesar da penumbra. O fascínio que se desprendia dele vinha agora como um miasma mais traiçoeiro. Mais velado. Na rua, sentiu o corpo moído. As pálpebras pesadas. Anoi- tecia. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, sentia desde já a insônia a vigiá-lo com seus olhos de coruja. Levantou a gola do paletó. Esse frio era real ou a lembrança apenas do frio da tapeçaria? “Que loucura!... E não estou louco”, concluiu num sorriso triste. Seria uma solução fácil. “Mas não estou louco.” Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antigüida- des, o nariz achatado na vitrine, tentando ver a tapeçaria lá no fundo. Já em casa, fechou-se no quarto e ficou de bruços na cama, os olhos escancarados para a escuridão. Só quando as estrelas empalideceram através da vidraça é que conseguiu dormir. Mas logo veio vindo a voz da velha de dentro do travesseiro, uma voz metida em chinelas de lã: “Que seta? Não estou vendo nenhuma seta...” Misturada à voz da velha, começou o murmurejo das traças em meio de risadinhas abafadas pelo algodão. As vozes se entrelaçavam sinuosas tecendo um pano esverdinhado, com manchas que se alastravam até o retângulo negro da tarja. Viu- se enredado nos fios e quis fugir mas agora estava aprisionado pela tarja a se alargar como um fosso. Lá no fundo, bem no fun- do podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. “Sou o caçador?” Mas ao invés da barba, só encontrou a viscosidade morna do sangue.
  • 34. 34 Acordou com o próprio grito que se estendeu lancinante dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Enro- lou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tape- çaria? Revia-a mais nítida ainda e tão próxima que podia sentir até a umidade do vapor subindo em ondas do chão... Fechou os punhos. Ah, haveria de destruí-la, não era verdade que além da- quele trapo havia algo mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira, bastava soprá-la! Soprá-la! Encontrou a velha varrendo a calçada. Sorriu irônica ao vê-lo: — Hoje o senhor madrugou, hem? — A senhora deve estar estranhando mas... — Já não estranho mais nada. Pode entrar, pode entrar, o senhor já conhece o caminho... “Conheço o caminho”, murmurou êle seguindo por entre os móveis. Dilatou as narinas. E parou num estremecimento ao sentir o cheiro de folhagem e terra. Quis retroceder, agarrou- se a um armário. E suas mãos resvalaram pelo tronco de uma árvore: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés afundando no chão empapado e negro. Em redor, tudo parado, extático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Lançou em volta um olhar esgaze- ado. Inclinou-se arfante. Era o caçador? Ou a caça? Não impor- tava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo, correndo sem parar por entre o labirinto das árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado!.. Passou as pontas dos dedos pelos lábios gretados, enxugou no punho da camisa o suor que lhe pingava do queixo. Então lembrou-se. “Não!” gritou ao mergu- lhar numa touceira. Ouviu ainda o sibilar da seta varando a folhagem. “Não...” gemeu o homem ao tombar de joelhos. Tentou agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando fortemente o coração.
  • 35. 35
  • 36. 36 Val-t chegou ao elevador particular. A gravidade reduzida levou-o em poucos segundos até seu apartamento de solteiro. Premiu o quarto botão, já manchado pelo uso e daí a pouco comia o seu jantar, um pouco quente demais. Sentia falta de companhia, alguém contente ao seu lado, que comentasse o que ia vendo no “Trêsdê para o jantar”, com fundo musical diges- tivo. Sorriu. Com a mão esquerda desligou tudo. Recostou-se relaxando os músculos ainda tensos e começou a divagar. Não o fazia sempre. Mesmo só, havia uma centena de coisas para se distrair em seu apartamento “categoria especial”. Completara vinte e oito anos e começava a achar falta de u’a mulher. Foi a uma gaveta de documentos e puxou o seu “certificado extrapo- lativo futuro”. Fora analisado aos quinze, vinte e vinte e cinco anos. As conclusões, coincidentes e definitivas. Aos vinte e oito anos seria o tempo ideal para unir-se a sua outra “metade”. Uma velha expressão, de centenas de anos, que agora se aplica- va exatamente. No dia seguinte acordou com a mesma sensação. Ficou só em casa até a tarde, pois em suas obrigações compulsórias com o Estado tinha liberdade de horário. Nas correias-transporte, encontrou Dab-I, um velho amigo com o qual gostava de discu- tir. Contou-lhe da sua disposição: “Dab-I, chegou o tempo de me unir. Talvez vá hoje a Cibernética Central.” Dab-I sorriu, com uma ponta estranha de ironia: “Será que você está mesmo com vontade de casar-se, ou o próprio anali- sador que lhe meteu essa sugestão no cérebro?”. Dab-I era um erudito especialista em História antiga. Empregava intencional- mente palavras desusadas e tinha a estranha e perigosa mania
  • 37. 37 de se voltar contra a ciência, repetição dos velhos conceitos de discernimento pessoal, sensibilidade, impulsos intuitivos, que desgraçaram em guerras os povos do 21.° século. É evidente que Dab-I conhecia perfeitamente o artigo 3.° das Tábuas Legais: “A reunião, em cadeia, dos organismos do Instituto Cibernético Central, apresenta resultados e toma deci- sões Justas, Perfeitas, Definitivas”. Dab-I sabia que os poucos bilhões de suas células cere- brais são alguns centímetros, contra os quilômetros valvitrô- mcos do Computador Gigante. Porém, as novas leis aboliram os recondicionamentos compulsórios e o resultado aí está. O partido secreto dos Avalvitras a perturbar o ritmo de progresso da sociedade. Val-t deslisava pelos corredores do Instituto Uniocional, o coração batendo mais depressa. Iria submeter-se aos exames e, embora a surpresa que estes lhe trariam, agradável, perfeita e definitiva, fosse certa (com raríssimas exceções), sua emoção era a de um adolescente a jogar pela primeira vez o sexi-bo. Na sala n. 2 tornou a ler o resumo do processo que todos conheciam: “União amorosa e procriativa total e permanente”. “1.° — O computador central procederá ao exame em duas horas, nas salas designadas. “2.° — O pensamento associativo, após a leitura dos textos e a visão das imagens, deverá ser expontâneo, proibida a inges- tão de drogas nos cinco dias anteriores. As faltas serão punidas, conforme o regulamento. “3.° — As constantes extrapoladas dos pensamentos, am- bições, temperamento e possibilidades, são condensadas em seus impulsos e imediatamente transmitidas para o Instituto Central. “4.° — As curvas de futuras possibilidades são recompos- tas em bilhões de variações, com os tipos femininos coinciden- tes, já selecionados em triagem inicial. “5.° — O casal coincidente assinará os documentos de união, dentro do prazo de dez dias, devendo unir-se após cinco dias.” O resto tratava dos casos especiais e outras precauções
  • 38. 38 burocráticas. Val-t acompanhou um funcionário. Chegara sua vez. Sentou-se na poltrona sensível e lhe colocaram o capacete. Com a técnica do hipnocine, cenas reais transcorriam ao seu re- dor. As emoções e pensamentos se registravam dentro da curva analítica, classificando-o com fórmulas que o tornavam perfeita- mente distinto e marcado entre bilhões de semelhantes. O com- putador central separaria entre os outros bilhões de mulheres aquela que seria sua perfeita metade, que nascera especialmen- te para êle. Na antigüidade essa escolha era feita através de um processo intuitivo fisiológico, chamado amor, palavra que até hoje usam, embora desnecessariamente. É curioso saber que o homem, durante séculos, só dispôs desse meio para casar-se, expressão ainda empregada nos departamentos rurais. Através de cálculos retrospectivos, sabe-se que o Amor assim intuitivo só acertava em 0,012 por cento em média geral. Atualmente as uniões perfeitas atingem 95,43 por cento, sendo que 4,57 trata- se de deformações fisiológicas e cerebrais, a maior parte em re- condicionamento nos institutos especializados. Duas horas e meia se passaram e Val-t tinha nas mãos o retrato da sua “metade”. Era exatamente o que sonhara (o computador bem o sabia), os olhos, um certo trejeito dos lábios, a voz suave... Não se analisa aquilo que nos vem exatamente como desejamos. A aceitação é total, a expectativa ansiosa da posse definitiva. Val-t assinou imediatamente os documentos de solicitação. A-Rubi (era o nome dela), recebeu comunicado de pro- posta uma hora após. Tinha vinte e dois anos e sua ocasião propícia chegara. Estranhamente, porém, não assinou logo sua anuência. Pensou românticamente no assunto e só decidiu-se no dia seguinte, o que, cientificamente, era um absurdo, pois nossa mente não pode chegar a nenhuma conclusão diferente de um computador, que não seja uma tolice. Enfim, esse era um problema que vinha na raiz dos tempos. Uma das matérias im- portantes do Instituto Central era a análise das “Contradições, paradoxos e decisões ilógicas do grand-pin mental feminino”. Dias depois, tudo regularizado, eles se encontraram pela primeira vez. A-Rubi viajara milhares de quilômetros tranqüila-
  • 39. 39 mente, mas quando Val-t vinha se aproximando no passeio ro- lante, sorrindo para ela, seu coração bateu mais forte. Quando êle a abraçou, beijando-a no rosto, sentiu as pernas bambas, uma vontade de ficar ali, protegida por aqueles braços. Quando fora examinada pela máquina enorme e incompreensível, nunca pensou que ela lhe descobrisse um homem assim, que lhe fazia bater o coração, antes mesmo de conhecê-lo melhor. Val-t tomou-a pela mão e foram para casa. A-Rubi pare- cia-lhe uma daquelas bebidas proibidas, que trazem alegria e exaltação. Êle era um entusiasta do progresso, seu apartamento tinha mais botões e controles do que os de todos seus amigos. Sabia que um bom computador podia prever um espirro com um mês de antecedência, mas há coisas fantásticas da ciência que não nos dizem respeito, não nos atingem diretamente. Mas sua mulher ali estava e com o passar dos dias sua paixão au- mentava. Trazia-lhe rosas frescas dos campos externos, levava-a a passear pelos lugares da sua infância, contava-lhe as traves- suras, o aparelho voador que fizera aos onze anos e espatifara depois de vôos arriscados, onde puzera em risco a vida dos mo- leques vizinhos. A-Rubi era carinhosa, compreensiva, mas Val-t surpreendia-se às vezes com uma recusa ou discordância que o punha impaciente. Procurava controlar-se, pois o Computador dera-lhe exatamente o que buscava. Logo, aquela ânsia polêmi- ca que êle possuía, devia ser parte do seu temperamento, talvez precisasse mesmo ficar nervoso de vez em quando. Reconhecia que A-Rubi tinha defeitos. Um deles, que o incomodava, era o de ser completamente anti-científica. Nem chegava a isso. Não tomava conhecimento de nenhuma lei cibertrônica nem seus princípios a afetavam. Val-t, ao chegar a tarde, já não apertava o botão correspondente para o jantar. A-Rubi alegara que aque- las refeições preparadas com todos os elementos exatos, não tinham sabor nenhum. Comprara um fogão portátil, que que- brara as linhas exatamente combinadas da cozinha. Um cheiro forte de iguarias inundava tudo. Val-t prometeu ir imediatamen- te adquirir um neutralizador de odores, mas A-Rubi, admirada, o proibiu terminantemente, pois o prazer de preparar e antever uma refeição, incluía aspirar o seu “perfume”. Parecia ter sido
  • 40. 40 transplantada de um mundo antigo, pois suas opiniões ela as baseava em convicções, às vezes gratuitas. Val-t nunca a vira procurar uma tabela ou bater uma consulta para o Computador Central. Dizia bobagens como: “Parece que amanhã vai chover”, quando qualquer pessoa recorria à previsão para afirmar fatos exatos. Quando sua mulher pedia-lhe explicações Val-t sentia- se lisonjeado. Fazia-lhe longas exposições, dignas de um au- ditório maior. Êle era senhor de uma lógica perfeita e de um frio raciocínio. A-Rubi olhava-o enquanto falava e era inegável a sua admiração, o brilho orgulhoso de posse que seus olhos contavam. Val-t, entretanto, era extraordinariamente perspicaz e percebia que a mulher admirava e se orgulhava de que ele fosse capaz de saber e dizer todas aquelas coisas. Mas, as con- clusões e aplicações das verdades expostas, isso praticamente não a atingiam. Discutiam animadamente, ela com uma espe- cial habilidade de abandonar o assunto central, para enveredar por meandros onde até Val-t lutava para escapar. Os ânimos se exaltavam, A-Rubi gritava que o detestava, que êle deveria dor- mir com todas as máquinas que adorava. Val-t orgulhava-se de nunca perder a calma, de não dizer nada que fosse exagerado ou se afastasse da verdade. Realmen- te êle era capaz disso. Sua calma, porém, referia-se ao significa- do das frases, a linha da sua argumentação. Êle possuía uma voz alta e aguda, que conferia às palavras mais simples uma dureza implacável. A-Rubi batia-se com êle valentemente, mas sua resistência era pequena. Os defeitos que Val-t lhe apontava, expondo-os a um frígido exame, iam derrubando suas forças, ela sentia-se derreter para transformar-se numa coisa insigni- ficante e desprezível. Chorava em desespero, para logo atirar-se atrás do companheiro, que ia para o inter-fon chamar um mé- dico. Val-t aceitava contrariado as razões da mulher. Para êle a diferença entre temperamento e doença devia ser medida pelas vibrações do grand-pin mental. Fazia um esforço enorme para suportar os absurdos e nem sequer podia sugerir um recondi- cionamento, pois provocaria uma nova crise, A-Rubi a gritar que não se importava quantas vibrações emitia e que não ia deixar nenhuma máquina alterá-las.
  • 41. 41 Isso passava. Val-t tomava mep-14 e reconciliavam-se com mútuas declarações. A-Rubi chorava no seu ombro dizendo que o amava, enquanto êle sentia o prazer de tê-la nos braços, desamparada e frágil, ao mesmo tempo que não se conformava de que ela não se “tratasse” no Instituto Central, o que resolve- ria tudo de maneira simples e científica. Passavam por períodos calmos, sua vida transcorrendo maravilhosamente. Algo insignificante podia desencadear nova disputa e Val-t resolvera não mais tomar mep-14 para reconci- liar-se. Era um processo artificial e injusto, pois varria todas as suas objeções com uma felicidade condicionada que apagava as divergências, mas não entrava em suas causas. Val-t esforçava- se numa autocrítica severa, procurava mudar seu temperamen- to, adaptar seus modos de ver com os da mulher. O Compu- tador Central, justo e infalível, a escolhera em bilhões como a mais perfeita companheira. Urgia desbastar aquelas arestas es- tranhas, que Val-t não observava em nenhum casal conhecido, geralmente pacífico, concordando-se mutuamente com tudo. Crente justificado na justiça valvitrônica, supunha que talvez fosse êle mais culpado, nas divergências com a mulher. Tentava mudar de métodos, tratá-la de maneira diferente, com e sem resultados. A questão básica, com a qual êle menos se confor- mava, era a recusa de A-Rubi de fazer qualquer tratamento. Sua antipatia pelas máquinas valvitrônicas ou mecânicas era tão grande quanto a paixão que Val-t por elas sentia. A-Rubi reu- nira uma pequena coleção de antigüidades. Eram alguns livros impressos em papel, máquinas fotográficas ainda com películas sensíveis, um rádio-anel etc. Val-t achava tudo aquilo obsoleto e desinteressante. Não o dizia freqüentemente, pois ela se abor- receria, mas julgava que sua teimosia era resquício de épocas ultrapassadas. Embora se controlassem diante de estranhos, às vezes deixavam escapar palavras mais altas. Muitos lhes reco- mendavam um recondicionamento geral o que, pelas convicções arcaicas de A-Rubi, era uma grave ofensa. Em compensação, seus transportes de amor também surpreendiam os outros, que se entendiam com uma boa dose de mep-14 e se amavam depois como alunos bem comportados e contidos dos seus deveres.
  • 42. 42 Para um homem tão apaixonado pelo progresso e regulamentos, como Val-t, talvez fossem os eventuais e emocionantes êxtases de amor e compreensão que lhe davam forças para reconciliar- se com A-Rubi, perdoá-la e recomeçarem cheios de esperanças. Embora êle pudesse se considerar um cientista perto da mu- lher, seus arraigados conceitos tentavam novos caminhos. Não ásperos e desinteressantes como se poderia deduzir, mas com aquela porcentagem de imprevisto interesse e selvagem fascina- ção, com os quais os pioneiros desbravaram as selvas de Marte ou enveredavam pela cadeia hibenstein em primitivos foguetes. Afinal, a valvitrônica lhe escolhera a companheira exata. Sentia sua falta, sua companhia lhe era estimulante, e não havia ne- nhum regulamento obrigatório que recomendasse mep-14, ob- nomemória ou qualquer outro recurso fora dos naturais, para garantir a felicidade de um casal. Val-t tinha de admitir que aprendera com a mulher a extrair prazer na leitura de velhos textos. Era fatigante descobrir o significado de palavras esqueci- das, penetrar o drama de situações atualmente impossíveis. Seu amigo Dab-I achava-o mudado, com uma compreensão mais “humana” dos problemas. Val-t não concordava, dizendo não ser essa a explicação. Êle continuava acreditando na sabedoria da nova civilização, onde a palavra “humano” era símbolo de atraso, parcialidade, ambição criminosa etc. Nenhum aspecto ou resolução “humana” poder-se-ia comparar com a Verdade matemática, extrapolada pelo Computador Central. “Veja, por exemplo, a minha união”, argumentava Val-t, “com todas essas incompreensões que ainda não acertamos, como é perfeita, gra- ças a valvitrônica. Eu amo minha mulher porque a soma total de suas características, em todo o universo, é a que mais se adapta às minhas. Fôssemos nos encontrar de maneira intui- tiva e “humana”, como há séculos, e o resultado seria aqueles filhos mentalmente desequilibrados, as traições sexuais resolvi- das por crimes estúpidos”. Este argumento, nas discussões com a mulher, servia a ambos em situações completamente opostas. Quando tudo ia bem, êle o invocava como símbolo da sabedoria valvitrônica que comandava o mundo. Se brigavam, a mulher que o lembrava, para dizer que o Computador Central nada sa-
  • 43. 43 bia e que êle não a achava a companheira ideal. O ambiente era tenso, mas também vibrante. Val-t adqui- riu alguns requintes, como o de preferir esta ou aquela iguaria, que A-Rubi lhe fazia no fogão portátil, sem consultar nenhuma tabela de hidratos de carbono ou vitaminas. Verdadeira regres- são aos tempos empíricos onde o prazer de comer estava aci- ma de suas finalidades funcionais. Os Avalvitras, cujo símbolo um tanto infantil, consistia no desenho de uma válvula positron quebrada, tentavam reconstituir certos valores naturais que eles julgavam melhores às infalíveis decisões valvitrônicas. Val-t os considerava um bando completamente fora da realidade, a reivindicar liberdades antigas, esquecendo-se dos seus funestos resultados. Os Avalvitras, além disso, podiam se dar ao luxo de exaltar liberdades passadas, o homem expontâneo e suas enga- nadoras vantagens. Nenhum deles dispensava as previsões do Computador Gigante, ou deixava as esteiras rolantes para an- dar a pé. Muitos dos mais exaltados eram técnicos cibernéticos, ocupando posições importantes na hierarquia. Dab-I, impres- sionado com as modificações de Val-t, convidou-o para aderir ao partido. Val-t, assegurando-lhe que não o denunciaria, recusou. Não poderia concordar com aquela gente idealisticamente enga- nada que, palmilhando as trilhas da segurança e comodidade que as máquinas lhes davam, investiam contra elas, esquecidos de que foi o homem que as inventou e aperfeiçoou, preenchendo os vazios da nossa capacidade de discriminação. A-Rubi não o condenou por isso. Se suas maneiras de encarar as coisas coin- cidia com a dos Avalvitras, não queria dizer que o fizesse por convicções ideológicas. Ela não tomava conhecimento do parti- do, sendo uma praticante inocente. As transformações de Val-t já eram uma boa vitória em re- lação ao seu temperamento inflexível. Os próprios amigos perce- biam, admirados, que A-Rubi tinha-o tornado muito mais sim- pático e acessível. Entretanto, muito do que ele fazia ou deixava de fazer para agradar a mulher, surgia de um esforço consciente e pouca convicção. Passavam os meses e explodiam novas dis- cussões, onde tudo vinha novamente à baila, Val-t tornando a pedir exames e recondicionamentos, A-Rubi a acusá-lo com exa-
  • 44. 44 gero (que ela não sabia controlar). Entravam no círculo vicioso, as acusações já perdoadas voltando com o mesmo peso, Val-t ameaçando denúncias de toda aquela “anormalidade”. Após um desentendimento, onde ambos se excederam, Val-t saiu, num impulso e foi até o Instituto Uniocional. Um Ciberneta-mental o recebeu, repreendendo-o com veemência por não ter vindo antes. Impunha-se um reexame e nova extrapolação dos dados do ca- sal. O Ciberneta-mental voltou daí a pouco. Estava constrangi- do e foi com hesitações e circunlóquios que explicou a Val-t. Na época em que êle se uniu com A-Rubi, descobriram exatamente 232 casos onde houvera total sabotagem nos resultados. Um partidário Avalvitra, funcionário nos estágios positrônicos, tro- cara um corretor de vibrações, anulando o indicador de defeitos. No dia seguinte vários circuitos estavam fundidos e o crime foi descoberto. Durante aquelas horas, o gigante infalível cometera 232 enganos completos. O Ciberneta entregou-lhe um certifica- do. Com este o Instituto Central anularia sua união, seriam in- denizados, A-Rubi voltaria para seu distante agrupamento e êle se submeteria a um novo e garantido exame, para ganhar, dessa vez, sua legítima metade. Val-t nunca imaginara uma surpresa assim. Voltou para casa e disse a A-Rubi que a união deles fora um erro cibernético. Não eram duas metades, mas pessoas com- pletamente diversas que nem sequer empregaram os empíricos métodos dos antepassados para se encontrarem. Val-t não es- tava com a voz aguda e antipática com a qual discutia. Contou tudo isso em um tom narrativo e cansado. A-Rubi desatou em pranto. Val-t levantou-se calmamente, foi segurá-la pelo ombro: “Não é preciso chorar A-Rubi. Afinal não aconteceu nenhuma desgraça. Veja, aquele prato está se queimando. Vamos comer como todos os dias...” A-Rubi se aquietou, foi terminar a re- feição. Comeram lentamente, conversando com cerimônia em outros assuntos. Val-t olhava para ela, os olhos vermelhos, o trejeito dos lábios, a voz suave... Ao deitarem-se evitavam olhar um para o outro. A cabeça no travesseiro, A-Rubi recomeçou os soluços. Val-t puxou-a para si, beijou as pálpebras úmidas, consolou-a e se amaram como nos melhores dias. Por falta de tempo Val-t não levava o certificado do engano
  • 45. 45 ao Instituto Central para a competente anulação. Na verdade, era uma preguiça quase intencional. O fato de saberem que não eram feitos um para o outro e que não constituíam duas meta- des infalivelmente reunidas, dava-lhes uma inédita compreen- são para evitarem as disputas. A possibilidade de que outro ho- mem de suas relações, pudesse ser mais um pouco a metade de A-Rubi do que êle, fazia Vai-t sentir ciúmes, emoção vergonhosa que há muito o Computador Central tinha sepultado em seus circuitos. A-Rubi tornara-se mais fascinante e sedutora, desde que ninguém a ameaçava mais com o pesadelo das máquinas. Com o passar doa dias, embora atenuadas, as rusgas re- tornavam. Fosse qual fosse o começo, A-Rubi acabava por se referir ao certificado do engano, devidamente guardado na ga- veta dos documentos. Fazia ironias quanto a sua preciosidade, e desafiava Val-t a levá-lo ao Instituto Central, a liquidar aquela falsa união na qual êle não acreditava. Desde, jovem, em seu trabalho, Val-t dispunha de com- putadores para as decisões importantes. Condicionado a pouco confiar nas frágeis circunvoluções cerebrais humanas, era lento nas próprias resoluções. Muito do seu equilíbrio era fruto de uma grande força de vontade, a certeza de que todas as decisões tomadas quando as vibrações do grand-pin mental excediam um certo limite, eram perigosas, porque não levavam em conta a fria realidade. Porém, o exemplo da mulher, que dizia o que vinha à cabeça para se arrepender ou transformar depois, aca- bava influenciando-o. Já lançava uns impropérios, nas horas de exaltação. Vindos dele, suas afirmativas adquiriam um valor que impressionava A-Rubi. “Tudo o que eu digo”, queixava-se êle, “você toma como minha exata vontade e pensamento. Não tenho o direito, como você, de gritar tolices e retirá-las depois”. Como o assunto não mais surgiu, Val-t erradamente acre- ditou que a mulher se esquecera ou não se importava mais com o célebre certificado do engano, com o qual poderiam revogar sua união. Um dia houve uma discussão mais acerba, que lem- brava aquelas violentas de outros tempos. A-Rubi acusou-o de covarde, pois que não a amava nem tinha coragem de se sepa- rar. Que ela própria pegaria o documento e o levaria ao Instituto
  • 46. 46 Central. Val-t, num repente, abriu a gaveta, jogou-lhe no colo o papel, mandou que ela fosse imediatamente. A-Rubi devolveu- lhe, dizendo que o odiava, fosse êle mesmo, quando voltasse êle não a encontraria mais. Val-t saiu com o certificado. Ia terminar com aquele contra- senso. Chegou até o Instituto Central, mas não entrou. Sentou- se em um nicho da praça, uma estranha sensação de melanco- lia e isolamento. Procurava reviver aquele tempo com A-Rubi, analisá-lo racionalmente. Seria submetido a um novo exame e teria então a companheira sonhada. Esforçava-se para imaginá- la uma perfeita mulher, comparando-a com aquilo que o desa- gradava em A-Rubi. Val-t não podia evitar uma angustiada per- turbação. Êle não se conformava em perder a mulher. Mesmo com seus defeitos, comparados com as maravilhas da próxima. Provasse o Valvitron Gigante os seus enganos, Val-t começava a gostar do erro e não queria libertar-se. Naquele nicho isolado na praça imensa, com um sol agradável suavizado pela cúpula, respirando o ar filtrado mais puro do que o marinho, Val-t se debatia na luta dos seus sentimentos contra a indiscutível e in- falível cultura valvitrônica acumulada em séculos. Levantou-se com uma decisão, que lhe dava um prazer secreto, um gosto de enfrentar o problema por si só, embora mais difícil o caminho e maior a responsabilidade. Lembrou-se de que ela ameaçara partir. Passou para o rolante mais rápido, numa ânsia tremenda de chegar depressa. Seu elevador nunca lhe pareceu tão lento. Quando a porta deslizou, êle gritou o nome da mulher. Ela es- tava no quarto, atirada na cama, a mala vazia aberta ao lado. Val-t, sem uma palavra, tirou o “certificado de engano” do bolso, rasgou-o com esforço de ambas as mãos, atirou tudo no incine- rador. A-Rubi olhava, desconfiada, como quem duvida. Depois se abraçaram com desespero e seria impossível reproduzir as palavras de amor, as promessas exageradas, as confissões ditas entre carinhos, inclusive as anti-científicas blasfêmias proferi- das (com enorme injustiça) contra o Computador Central.
  • 47. 47
  • 48. 48 El-Rey Dom Fernando gostava muyto de caça e ia de onde sabia que as havia boas, tendo em isso grande prazer e desenfa- damento; e porque o certificado que em terra da Beira, e por riba de Coa, havia bons montes e porcos em gramde abundância, fez-se prestes com toda sua casa, e da Raynha, e muitos montei- ros, com sabujos e alaãos, e levou caminho daquela comarca. Em chegando aaquele logar em muyto se espantou de que verde e bello havia. De tantas e tais cores que muyto se enfadou de ali não habitar. E fazemdo naquelles campos gramdes andamssas, heis um dia encontraram um logar muy destruído e queimado. E es- tranharam que em campos tais a naturesza se houvera tão mal. Pois sy todo ao redor havia de bon, muyto espanto teve com o campo destruído. El-Rey Dom Fernando pensou em sabedoria: o homem não deve fazer a outrem aquillo que não queria que fosse feito a êlle. E assym pensando viu que em tal campo haveria coisas tais que aa naturesza não combinava. Sobre o que pertence aa virtu- de da prudência, a mym parece que em muy bom sênsso agiu e disse aos seos que se foram e que muy distamte ficassem. De toda busca que allí perquiriu, de nada encontrou. — Tempo que eu vemçia a todo! — comta-sse que bradava El-Rey. E antes não o houvera dito, porque então, vimdo de riba um gramde ser sy mostrou, de um tamanho tão gramde, muyto mayor que duas sallas do castelo de El-Rey, de brilho de Sol e a êlle parecido, inda que deitado. E tão gramde era que ao tocar o solo até parecia tremê-lo todo. El-Rey, de muy corajoso que sy mostrava, não pôde em suas reais pernas sy suster, de
  • 49. 49 onde ao chão veio. E seos vassalos e sua molher e seos filhos se puzeram a correr que de onde podiam. E de muy distante sy olhava El-Rey al solo e de estranhos seres que do sol brilhamte dessiam ao chão e a El-Rey falavam. E de nada sy ouvia que de longe sy estava. Comta-nos El-Rey Dom Fernando: “O estranho dessêo do sol e levantou de pesada mão e inda parecia acenar quando um romco surgiu de suas entranhas. Apontou para o céo — e outro romco vibrou meos ouvidos! Bai- xou a gramde mão como gaivota que plaina sobre o Mondêgo e apontou o sol brilhamte de omde sayra. Emtão roncou de mais forte inda, raivoso como cão batido. A mya coragem ía e voltava. Em fé que mais ía, do que voltava. Respondí-lhe, tocando com fervor a cruz do Cristo: “Vade retro...” murmurei e com voz firme ainda: “Satanás”! O monstro confirmou sua pestilencial origem repetindo “Satanás, Satanás” em sua infernal voz, e apontando a terra sob nossos pés. “Vade retro!” repetí-lhe dasafiador tocando com unção a cruz em meo peito e Satan a reconheceu dado que inclinou o corpo em respeito. Tal é a essência do Diabo, porém, que ao logo após me cobre de nojo imitando meo gesto, batendo no próprio peito, e falando sua lingua diabólica: “Sssiósss”. En- tão, depois da heresia, procura algo no chão e apanhando um pequeno galho fez-me com a horrenda mão um gesto. Queria mynha real pessoa junto a sy. Com toda a coragem que me levou al combate dos infiéis muçulmanos, vemcendo-os em batalha viril, aproxeguei-me. Apontou êlle o Sol que representa nosso Deos e nossa Vida e desenhou um círculo no chão. Agora eo compreendia todo. Queria êlle jogar a salvação de mynha vida. E — diabólico! — jogá-la com o infantil Jogo da Velha. Sorri, sombranceiro que minha vida ao Demo valesse tão pouco. Num ímpeto apanhei de outro graveto e completei o jogo: dous traços verticais, dous traços horizontais a cruzá-los, e deixei seo cír- culo no centro. O Demo me olhou em pasmo, bem percebendo a sutileza de mynha jogada ao prendê-lo na seqüência certa. Não hesitei mais e desenhei a Cruz de Cristo no canto superior direito tirando-lhe um caminho. O Diaço me olhou com o terror espantando olhos. Bem percebi quão trêmulas suas garras fica-
  • 50. 50 ram. E êle apontou a Cruz e a mym. Com um sorriso confiante respondi: “Sy! A cruz de Cristo me protegerá!” Ao que êlle ficou bem contrafeito. Com cautela para não passar sobre meo sinal divino, desenhou outro círculo ao acaso; mas já lhe preparara o jogo e apus minha resposta no caminho da vitória. Belzebú soergueu o corpanzil medonho e sua cabeça luzidia brilhava de furor. Desenhou o terceiro círculo mais distamte, batemdo com insistemcia com o pauzinho, e eo coloquei minha cruz protetora, fazemdo o traço que me deo Vitória! Assy me ergui e voltei-lhe as costas me afastando com orgulho. O Malcheiroso, temente aa Deos meo Salvador, fugiu em seo círculo de chamas para os céos, de onde ao Inferno foi precipitado por Cristo Nosso Se- nhor.” Essa historia deixo escritto para que a recebam em manda o futuro: de cousas estranhas sy passaram que nom se expli- cam. Por muyta coragem que teve El-Rey, pouco sy pôde comtra o desconhecido, e os moços naturalmente devem obedecer aos velhos, que tem mayor speriencia das cousas y som mais pru- dentes. E os que isto quiserem bem aprender, leiam-no de come- ço, pouco, passo, e bem apontado, tornando algumas vozes ao que já leram para saberem melhor; porque se o leram ryjo, e muyto juntamente, como livro destorias, logo desprezará, e se enfadarão dele, por não o poderem tão bem entender nem relem- brar, porque regra geral ha, desta maneira se devem ler todos os livros de alguma ensinamça ou sciencia. De uma crônica do séc. XIV
  • 51. 51
  • 52. 52 Há uma grande diferença entre o viajante ocasional, o tu- rista e o viajante crônico. Sou, por força de minha profissão, um veterano das linhas de ônibus que cruzam os estados do sul do país. Já percorri quilômetros suficientes para duas via- gens de ida e volta à Lua. E qualquer indivíduo, depois de pas- sar constantemente pelas mesmas estradas, perde o interesse pela paisagem e pelos eventuais bate-papos com o companheiro de banco. Os detalhes do caminho são conhecidos, sabe-se em qual parada se pode tomar um bom cafezinho, qual é o boteco do portuga simpático que oferece uns bolinhos deliciosos e ... inofensivos. A gente aprende, inclusive, a avaliar à primeira vista o vi- zinho de banco e decidir se vale a pena ou não (ah, aquela loira!) manter uma conversação. Quando farejava um desses chatos itinerantes, eu me transformava na mais impenetrável esfinge, qual fortaleza inex- pugnável aos violentos ataques palradores do colega de viagem, fazendo-o desistir após o terceiro ou quarto assalto. Sempre tive a consciência de ter agido em defesa de meu próprio sossego e me orgulhava de ter um olho clínico infalível — ao menos até o dia em que aquele velhote subiu no ônibus. Aparentando uns sessenta anos, malas, capa, embrulhos sobraçados num verdadeiro caos ambulante, veio para meu lado, o guarda-chuva em riste como se estivesse num torneio medieval. Ajeitou precariamente as malas e pacotes na bagagei- ra, sorriu, apontou para o assento vazio a meu lado, junto da janela, e perguntou: — É o número 16, não é?
  • 53. 53 Naquele dia eu estava particularmente mal-humorado. — Hummm! — foi a eloqüente resposta que êle obteve. E voltei a concentrar-me nas histórias em quadrinhos do jornal que estava lendo. — Dá licença... Se o senhor preferir a janela pode trocar de lugar, que eu não me importo. — Sorriu de novo, com ar de quem não se iria dar por vencido. — Hummm, — respondi, levantando-me para lhe dar pas- sagem. — Vamos ter uma excelente viagem, com a temperatura tão fresca e agradável, não é? Eu detesto viajar antes das qua- tro, pois o calor nesta época do ano é infernal, o senhor não acha? — É — concordei, num rasgo de eloqüente oratória. Creio que o velhote ficou tão impressionado com meus dons de con- versador que se recolheu humildemente a seu canto, e ficou a observar a paisagem. Depois, abriu uma surrada pasta de car- tão — dessas que as mocinhas usam para carregar músicas. Da pasta saíram, em desordem, várias folhas de papel cheias de garatujas que eu tentei entender. Nem o próprio Champolion conseguiria decifrá-las, àquela distância e com o ônibus saco- lejando daquela forma! Mas o velhote lia cuidadosamente com os olhos um tanto vesgos pela proximidade do papel, mantido a um palmo do nariz em virtude da parca luz do entardecer, das lentes de míope precisando de substituição, e da excelência da estrada — experiência inebriante para turistas que jamais en- traram numa perfuradora pneumática... Escureceu rapidamente e antes que me propusesse a dar uma cochilada, ainda pude observar meu companheiro anotan- do coisas num bloco de papel, utilizando-se dos mesmos gar- ranchos que cobriam as páginas já escritas, mas com um toque nervoso ali e acolá provocado pelas súbitas oscilações do ônibus. Acordei algumas vezes e percebi que meu companheiro adorme- cera, pelo delicado ruído de trovão gutural que emitia. Dei-lhe uma suave cotovelada e êle interrompeu o ronco. Dormi como um justo até que, sobressaltado, acordei. (Estava sonhando que um monstro se atirara sobre mim). O monstro articulou uma
  • 54. 54 desculpa, apanhou suas malas, maletas, embrulhos, a pasta e desceu apressado em busca da cidadezinha que quase passara desapercebida. Resmunguei alguma coisa gentil a respeito da ascendên- cia de gente que pisa nos pés dos que dormem inocentemente e voltei a recostar-me. Amanhecera e o ônibus estava chegando em São Paulo quando acordei com aquele gosto característico de maçaneta de porta de repartição pública na boca. Apanhei o cigarro; a caixa de fósforos caiu no chão e ao abaixar-me vi embaixo do banco as folhas manuscritas que o velhote deixara, em seu sono, cair. Provavelmente, na pressa de saltar, esquecera-as. Recolhi-as e comecei a ler por simples curiosidade. Até hoje me arrependo. Se alguém quiser saber porquê — e não admito que venha me culpar por sua própria curiosidade — aqui está a cópia do manuscrito. Leia-a, por sua conta e risco. O MANUSCRITO Barbosa definhava. Já não se tratava de um problema a resolver no plano lógico. Era um desafio, alguma coisa de pes- soal entre êle e a Máquina. Em cima da mesa, como um gnomo acocorado a olhar para êle irradiando malignidade, aquela coisa diabólica parecia imóvel em seu perpétuo movimento. Barbosa olhava a Máquina e sentia calafrios. Não era o movimento inces- sante, o girar ininterrupto de rotores e engrenagens. Era mais que isso: era o Indestrutível, o inexorável, o eterno, que estava ali presente. O zumbido contínuo testemunhava a sua própria impotên- cia. A Máquina descobrira que lubrificação era um fator indis- pensável ao seu estado de rendimento ótimo, e agora sintetizava graxas e óleos a partir de quantidades infinitesimais de lipóides e ácidos graxos presentes no pólen, no suor, no ar exalado pe- los animais e que compunham em traços a atmosfera. Barbosa desconfiava que, ainda em um sistema isolado no espaço, a Má-
  • 55. 55 quina seria capaz de criar matéria a partir de longínquas fontes de energia de outras galáxias. Era algo fabuloso — e também horrível. Havia naquela pequena caixa a energia das linhagens biológicas, o mistério da criação de universos e talvez até algo maior, mais incompreensível. Era o Absoluto manifestando-se mecanicamente. O zumbido não cessa... Ela gira, gira... Os olhos não se despregam do rotor... gira... gira... Há uma semana Barbosa não vai à Repartição. No começo era uma pilhéria: “Olha, ó Souza: o Barbosa vai ficar rico. Inventou o moto- contínuo!” Todos se riam; Barbosa também ria e explicava: — Não é só isso; é coisa muito mais importante, A Máqui- na opera com campos de energia infra-atômica. É indestrutível. E comentou com Januário, na hora da caipirinha: — Mesmo eu não compreendo como é que a coisa aconte- ceu. Tinha a idéia de que daria certo, mas não esperava realizar experimentalmente as soluções de Kirilov para a criação de ma- téria... Januário encolhia os ombros: — Não pesquei nada. Mas já que é assim importante, va- mos a outra rodada para comemorar. Barbosa já não lia mais. Os livros, última possibilidade, nada lhe sugeriam. A Máquina gira, gira, zumbe... ri, gargalha, maligna! Êle não suporta mais; com olhos injetados, a boca num rictus, apanha a garrafa vazia e atira-a contra a Máquina. Algo se quebra numa explosão de fagulhas e cacos de vidro. O zumbi- do pára. Há uma reorganização de campos de força, a máquina geme como se estivesse dando à luz a si própria, há uma queda de corrente. As luzes amortecem e depois volta o zumbido mo- nótono. Barbosa está febril, as mãos se contraindo em raiva impo- tente, a Máquina zumbindo, zombando, zumbindo... “Seu Barbosa, os outros inquilinos não agüentam mais o barulho. Na semana passada o senhor disse que...”
  • 56. 56 “Eu sei, dona Gertrudes. Lhe prometo que amanhã darei um jeito”. Dar um jeito... que jeito, meu Deus? ... Zumbindo... zombando... zumbindo... Mas deve haver um jeito! Como parar esta maldita coi- sa? ... Zumbindo... zumbindo... Desde ontem não como. Esse demônio não pára; alimenta- se do nada! Como posso parar a Máquina, se ela só precisa do Nada para existir?... O que é menos que Nada?... Acho que estou ficando louco. Isto é um pesadelo. É a lenda do Frankenstein. Como é possível que eu tenha criado uma máquina e agora não consiga fazê-la parar? A Máquina gira. Barbosa cerra os olhos. Quisera cerrar os ouvidos!... Ontem achei uma solução... é isso... a única... Beber até não mais ouvi-la! Me embriagar... dormir ... morrer, quem sabe... Não há dúvidas, estou bêbado, isto é o Hamlet... Maldita! Eu vou parar esse demônio nem que tenha de destruir o Universo para isso! O martelo bate em louca fúria, arrebentando, destroçan- do, espatifando. A Máquina grita, as válvulas explodem, o zum- bido se transforma num uivo de animal ferido. Súbito tudo pára. Barbosa cái exausto. Silêncio, escuridão. As luzes se apagaram, os fusíveis queimados. .. Nada, a não ser o ruído de répteis estranhos, rastejan- do pela escuridão do quarto. Um cheiro acre de ozônio, garras, unhas, asas, alguma coisa que se arrasta pelo chão. Barbosa, alucinado, ouve todos os pequenos ruídos como a uma procis- são de demônios desfilando sobre o cadáver da Máquina devas- tada. ...Não é um cadáver... São só ferragens, fios, metal e vidro! E está morta!... Tem de estar... Lento, grave, depois num crescendo, o zumbido volta a se fazer ouvir. Um vizinho está no corredor, maldizendo a escuridão. Al- guém pede uma vela, outros acodem com fusíveis e as luzes
  • 57. 57 se acendem e a Máquina......a Máquina está de novo girando, girando, zumbindo... Tudo isso Barbosa não vê, zombando No banheiro, a gilette ensangüentada, zombando testemunha a vitória .. .vitória? zombando de Barbosa, que já não ouve mais o zumbir da Máquina zumbindo zumbindo zombando... — E a senhora foi quem achou o corpo? — Foi sim, doutor. Coitado, era tão distinto, quem iria imaginar... — Como foi que a senhora descobriu? — Bom... eu fui fazer a limpeza do quarto, pois pensei que tivesse saído para o serviço. Êle tinha deixado aquela coisa funcionando. Mas não suporto essas coisas barulhentas e então desliguei a máquina. Então ouvi o barulho da torneira e... — Espere. Aqui nas últimas páginas do diário do Dr. Bar- bosa êle afirma que não conseguia fazer parar a máquina e que isso o estava transtornando. Como foi que a senhora, dona Ger- trudes, conseguiu fazê-lo? — Ora, doutor, não vê que... * Neste ponto, ao virar a página, havia uma última folha... em branco. O diabo do velhote, com sua miopia, suas velhas lentes, seus olhos de toupeira, já não conseguia continuar com a pouca luz do entardecer e o violento sacolejar do ônibus. As noites de insônia, a curiosidade de saber ou aventar com uma solução para o enigma, estão me levando à neurose.
  • 58. 58 Se alguém conhecer o velhote, ou o final da história, — por fa- vor! — conte-me como parar essa maldita máquina! Stanford, novembro de 1963
  • 59. 59
  • 60. 60 I — BERENICE NO HOSPITAL O doutor Bernstein olhava a clarabóia da sala de jantar. O último temporal introduzira por baixo das telhas algumas folhas secas de plátanos que agora formavam curiosos desenhos por cima do vidro, interceptando a claridade. Esfregou lentamente as mãos e olhou-me. — Foi terrível — disse em voz sumida. — Não compreendo — disse eu. — Meu primo era um ra- paz normal. Traria ela, então, alguma tara? — Um dos dois foi responsável, sem dúvida. Trata-se de um caso positivo, embora extraordinário, de atavismo. — Não posso compreender como é que duas pessoas sãs... — As leis da hereditariedade são discutíveis. Há casos que elas não explicam, como esse. Sabe-se que as energias heredi- tárias conservam suas forças e qualidades originais nos genes e a cromatina das células reprodutoras é portadora das heran- ças da espécie, o que chamamos de “mnema hereditária”, princi- palmente dos nossos ascendentes diretos, como Richard Simon deixou claro. Mas... — Um momento, dr. Bernstein. Que quer dizer isso em linguagem simples? — Quer dizer que cada um de nós resume a evolução da espécie, desde os mais longínquos antepassados. O embrião hu- mano reproduz, durante a vida intra-uterina, quase todas as fases da evolução do homem. Creio que poderíamos dizer que o homem não morre. Não morreu desde que apareceu a vida sobre
  • 61. 61 a terra. Êle vem se transportando, integral, na pequena célula germinativa que dá origem ao seu descendente direto. Todos os nossos antepassados estão latentes em nós... O doutor foi interrompido pela entrada de um enfermeiro. — Doutor — disse êle — Começou de novo. — Quer vir? — perguntou Bernstein. — É ela. Falava de Berenice, viúva de meu primo Flávio. Levantei- me e acompanhei-os. Sobre o leito agitava-se uma forma huma- na. Aproximei-me e Berenice me pareceu linda, como sempre. Seus cabelos de ouro tinham admiráveis reflexos fulvos sob a luz esverdeada. Seu rosto, que eu conhecera corado, vivo, ilu- minado pelos brilhantes olhos azuis — estava emaciado pela luz estranha que lhe dava tons de mármore e as formas perfeitas da testa, do nariz, dos lábios, do queixo, destacavam-se na fronha amarrotada. Meu primo conhecera-a no colégio, em Santa Maria, quan- do tinham 13 anos e logo os uniu indestrutível afeição. Durante os quatro anos que êle passou nos Estados Unidos, estudando física nuclear num laboratório de energia atômica, a saudade parecia querer matá-los e êle voltou, deixando a carreira para se casar. E agora, ali estava ela, tão linda como se tivesse ainda 20 anos. Tinham sido muito felizes. Visitei-os todas as vezes em que vim ao Sul. Depois, meus afazeres me levaram para longe e perdemos contato. Agora, aquele telegrama me chamara e eu ali estava, olhando Berenice que se agitava na cama, dizia frases desconexas, chorava. — É outra crise — disse o doutor. — Aplique-lhe uma in- jeção. Esperamos até que Berenice caísse na sonolência benéfi- ca e depois deixamos o quarto. Era hora do almoço e fomos ao Renner. II — NASCE O MENINO Flávio e Berenice casaram-se por amor aos 23 anos. E como viviam se adorando, passavam mais tempo isolados na Estância da Serra do que no Sobrado de Santa Maria.
  • 62. 62 Quando estava para ser mãe, Berenice quis ter seu filho na estância por mais que Flávio insistisse em que deviam ir para Porto Alegre. Bernstein, velho amigo da família, consulta- do, achou que não havia mal em se atender ao desejo da moça. Estava tudo muito bom. Não era provável que houvesse perigo. — Tua esposa tem razão, Flávio. Ela sabe o que lhe con- vém. Se quer ter o filho na estância, não sei porque não o há de ter lá. Para que você fique mais tranqüilo, ofereço-me para ir com vocês. Para mim serão férias. O parto não foi muito fácil e enquanto o dr. Bernstein e uma enfermeira atendiam à moça, no quarto, Flávio suava frio na grande varanda envidraçada. Quando o doutor apareceu tra- zia no rosto sinais de preocupação que impressionaram meu primo. — Doutor! — disse êle, alterado. — Aconteceu alguma coi- sa? — Não. Nada. Tudo... normal. Flávio encaminhou-se para a porta do quarto, mas o mé- dico reteve-o. — Um momento, Flávio. Espere. — Doutor! Diga logo! Que é que aconteceu? — Não grite, Flávio. Berenice vai ouvi-lo. Ela está perfei- tamente bem. — E a criança? — Está muito bem. Não há por que se preocupar. — Mas por que esse mistério, então? Não os posso ver? — Pode, mas espere um pouco. Quero lhe dizer alguma coisa... O médico foi caminhando para o fundo da varanda e sen- tou-se numa espreguiçadeira. Flávio seguiu-o, angustiado. — Diga logo, doutor. Que aconteceu? O meu filho... — Não aconteceu coisa alguma. Os dois estão bem. Ape- nas... — Houve uma pausa. Flávio falava com os olhos, os lá- bios apertados. — Parece-me que a criança não é perfeitamente normal. — Que quer dizer? — Êle está bem, reage normalmente. Mas não é uma crian-
  • 63. 63 ça como as outras. — Quero ver meu filho! — disse Flávio, num ímpeto. — Um momento. Fique aqui, por agora. Vamos esperar que Berenice adormeça. Não se trata de nada pavoroso, como você talvez esteja pensando. Mas eu tinha que lhe dizer, antes que o visse. Afinal é isto: Parece que o seu filho não completou a evolução normal. Compreende? Está atrasado, como criança nascida antes do tempo. Mas não apresenta as deficiências des- sas crianças. Compreende? — Compreendo — disse Flávio, num suspiro, deixando-se cair na poltrona de vime, de certo modo aliviado, pois esperava algo pior — compreendo sim. — Bem. Assim é melhor. — Berenice já sabe? — Não. Há tempo para isso. Precisamos ter certo cuida- do. — Conte-me, dr. Bernstein... Como é... êle? — Bem... o pior é que nasceu com um rudimento de cau- da... Flávio arregalou os olhos angustiados. — Cauda, doutor? Cauda? — Espere. O feto humano, até certo ponto de sua evolu- ção, no útero materno, tem mesmo uma cauda, você sabe disso. Mas antes dos nove meses, essa cauda é absorvida. Estou certo de que ela desaparecerá em pouco tempo. Compreende? Você é culto, sabe disso. — Que mais, doutor? — Pequenos indícios de evolução incompleta. Pelagem avermelhada no corpo todo. Maxilar proeminente. Testa fugi- dia... Unhas... — Meu filho é um monstro! Diga logo! — Tire isso da cabeça, Flávio. É uma criança sadia, viva, forte mas imperfeitamente desenvolvida. Veja se aceita isso com calma. Flávio mergulhou num desespero mudo. Pensava na ale- gria de Berenice ao se aproximar o parto; como ela imagina- va seu filho lindo, louro, perfeito. E agora teria nos braços um
  • 64. 64 monstrozinho... de cauda! Esteve assim, mudo, absorto, até que a enfermeira se aproximou trazendo nos braços um volume en- volto na manta azul. — Aqui está êle, Flávio — disse o médico recebendo o pe- queno fardo e depositando-o cuidadosamente sobre os joelhos. Flávio quase saltou, despertado de seus pensamentos e olhou, fascinado. A primeira coisa que viu foi um rostinho côr-de-rosa, co- berto de penugem avermelhada, os olhinhos fechados, o maxilar inferior projetado. Reparou nas arcadas super-ciliares, espes- sas, proeminentes; na testa fugidia. Era um rosto humano, sem dúvida. Mais humano do que esperava. Mas tinha algo de ani- malesco. Dominando-se, esforçando-se para desfazer o nó que sen- tia na garganta, Flávio murmurou: — Parece um macaquinho, doutor... — Ficou num estágio de evolução anterior. Biològicamen- te, é admissível. Mas êle acabará por se desenvolver e se tornará normal. — Acha que sim? — Claro. Não podemos desesperar disso. — E Berenice? Berenice, meu Deus! Coitada! Como é que ela vai receber essa criança? —- Não se preocupe com isso, Flávio. O amor de mãe faz milagres. Verá... Quando Berenice viu o filho, sofreu complicada reação. Dor e piedade. Chorando, abraçava o pequenino que fora lumi- nosa esperança e se transformava em amarga desilusão. O me- nino correspondia às carícias da mãe, mamando frenèticamente e cravando no seio as pequenas unhas como garras. Sugava o leite com tanta sófreguidão que arrancava à moça lágrimas de dor. Ela, porém, acariciava-lhe a cabecinha desconforme e, deli- cadamente, procurava tirar de sobre a pele ferida as mãozinhas cobertas de pelagem avermelhada. — Meu filho, meu filhinho, meu amor! Berenice chorava e as lágrimas punham pequenas manchas escuras no cabelo avermelhado do menino. Sofria mais pensando que êle teria de
  • 65. 65 crescer talvez carregando uma tara que o infelicitaria para toda vida. Como o receberiam as outras crianças? Seria repelido, in- juriado. E depois? O seio doía-lhe. As pequenas unhas arranhavam a pele, feriam-na. Flávio fugia de perto. Chegava a sentir raiva daquele filho que viera destruir a felicidade do casal; que, em vez de ser mo- tivo de alegria, era-o de sofrimento. Depois vinha-lhe piedade. Afagava doidamente o menino, beijava-o, deixava-se arranhar por êle. Durante um mês o dr. Bernstein não se afastou, acompa- nhando atentamente o desenvolvimento do pequeno e sua pre- sença contribuiu muito para atenuar o desespero dos pais. Flá- vio parecia conformado. Pelo menos, dominava-se muito bem, para não aumentar o sofrimento da esposa. Lá no fundo, porém, sentia repulsão pelo pequeno. Jamais o amaria como a um fi- lho. Passado o mês, o dr. Bernstein, que batizara o menino, teve que voltar para Santa Maria e Flávio, enquanto o levava em seu auto, conversava com êle. — Então, compadre.. que lhe parece? — Você e Berenice emagreceram. Precisam tomar cuida- do. — Sim. Mas Carlinhos... — É preciso ter paciência. — Quer dizer que não há esperança de vir a ser uma cria- tura normal? — A cauda tem diminuído. Desaparecerá... — E o resto? Pode dizer o que pensa. — É preciso esperar. A natureza é sábia. O maxilar, a fron- te, as unhas parece que não se modificaram ainda... — Diga, Bernstein. Carlos crescerá como um macaco ... — Não, Flávio. Que idéia! Será um homem. Feio, talvez. Mas homem. A beleza de um homem não está no rosto e nas mãos. Êle pode vir a ser o que se chama “um belo homem”. Co- ragem, compadre! Vocês têm que viver com êle e educá-lo. Seja forte por você e por ela.
  • 66. 66 Flávio foi encontrar Berenice chorando. — Que aconteceu, querida? — O menino... O Carlinhos... — soluçava ela. — Que foi? Onde está êle? — Está dormindo... Não aconteceu nada. Êle é tão, tão... — e Berenice rompeu em pranto convulso. — Tranqüilize-se. — Não se deixe impressionar. Bernstein me disse ainda agora, que Carlinhos se transformará num belo homem. Êle é muito forte, não é? Está ficando mais bonito, não está? — Está — respondia ela, entre soluços. — Mas aquele pêlo... Não é como as outras crianças... A cabeça... — Não se deixe impressionar, querida. De qualquer modo, é nosso filho... — Mas a voz dele, Flávio. O modo como chora... — Não pense nessas coisas, Berenice. Temos que cuidar dele, para que cresça feliz. — É verdade, Flávio... Berenice limpou mais uma vez as lágrimas e foi olhar o campo através das vidraças da varanda. Flávio foi dar ordens ao tratorista que o esperava no alpendre. III — O MENINO E A MATA Carlinhos estava com três meses. Todo seu corpo era co- berto de pelagem ruiva; os braços longos demais; as pernas leve- mente arqueadas e fortes; os pés grandes, chatos, de dedos mui- to móveis; caixa toráxica muito desenvolvida. O rudimento de cauda ia sendo absorvido, mas o cóccix se transformava numa calosidade. Cabeça pequena; testa curta e fugidia; arcadas su- perciliares muito grandes; olhos pequenos no fundo das órbi- tas. Não se podia ignorar a semelhança que o rapaz apresentava com os macacos. E tinha nas mãos força incrível. Agarrando os dedos do pai, mantinha-se suspenso por muito tempo, sem dar mostra de fraqueza. As unhas cresciam-lhe duras e escuras. Cortá-las causava-lhe sofrimento. Como Bernstein dissera, o amor de mãe faz milagres. Be-