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Critério Unilateral

Raphael Vaz

Pedrinho acorda radiante. É o seu primeiro dia de aula no segundo ano (antiga 1.ª série). Ele coloca seu uniforme,
toma sua mochila, lancheira e segue para a escola. Chegando lá, a professora saúda com carinho todos os novos
alunos e anuncia que a primeira matéria a ser estudada será matemática. Mais especificamente, adição. Pedrinho
aprende rapidamente que um mais um são dois, e daí por diante desenvolve o raciocínio para saber como somar
um número a outro e obter seu resultado. Os dias se passaram.

O ano letivo terminou. Pedrinho foi aprovado e saiu de férias com sua família para o litoral. Caminhando com sua
mãe pela orla, coletaram diversas conchas que o mar havia fincado na areia da orla. Para exercitar e testar os
conhecimentos de Pedrinho, sua mãe sugere que eles façam uma brincadeira com as conchas e pergunta com
quantas conchas ela ficaria se juntasse às cinco que já tinha na mão mais três que estavam na areia. Pedrinho não
hesitou em responder oito. A mãe ficou num misto de felicidade e surpresa com a presteza do filho em responder
à questão. Em seguida, emendou com quantas conchas ficaria se das oito que tinha nas mãos, subtraísse três.
Pedrinho se calou. Olhou para a mãe e para os lados, como se estivesse procurando a resposta, mas não foi capaz
de dizer à sua mãe quantas conchas restariam.

Panorama

Nova no mercado. Este seria o principal adjetivo para caracterizar a revista Scientific American Brasil. Publicada
pela Editora Duettos, teve seu primeiro exemplar comercializado em terras tupiniquins desde junho de 2002.
Porém, a revista não pode ser considerada científica. Entenda. Revistas científicas são aquelas onde cientistas e
pesquisadores científicos publicam seus trabalhos para que eles passem por uma espécie de sanção por um corpo
de editores que validam ou não o estudo. A Scientific também faz uso de colaboradores em suas páginas, mas não
se limita a esses e nem possui uma comissão que analise esses artigos, validando ou não estas publicações. Por
isso, ela se enquadraria dentro da categoria de revistas de divulgação científica.

A revista tem como função atender ao leitor mais exigente de informação científica, mas não se limita a esses.
Ela se situa numa zona intermediária que mescla caráter científico com os traços populares de uma Veja ou Su-
perinteressante, por exemplo. Como resultado dessa fusão entre científico e popular, é perceptível nas matérias
algumas rasuras desse “biotipo”. A linguagem da revista é acessível quando se trata do material produzido pelos
repórteres e editores da mesma. Quando se trata do texto de colaboradores, no entanto, é indispensável um pré-
conhecimento geral de biologia, química e outras vertentes que compõe a ciência.

Sem misturar fruta

Limpeza. Nada de poluição visual ou algo que possa interferir na ligação com o leitor. Um fundo azul frio, trans-
mitindo tranqüilidade. No meio da página um raio de luz focando pequenas moléculas interligadas entre si. A idéia
retrata com clareza o conceito de “uma luz no fim do túnel”. Logo acima do pequeno clarão, em letras grandes o
título da matéria.

“Uma origem mais simples da vida” é um dos artigos publicados na edição de julho de 2007 na Scientific. Escrita
pelo professor e colaborador Robert Shapiro, desenvolve a idéia de que “pequenas moléculas movidas por energia
têm melhores chances como iniciadoras da vida” do que o RNA. A teoria mais aceita no meio científico anterior e
essa era de que a capacidade de se autocopiar do RNA dera origem a vida. Shapiro faz uma abordagem teórica,
valendo-se em grande parte de suas próprias experiências, mas também de estudos ou artigos publicados por
outros cientistas, em sua maioria contemplados pelo Prêmio Nobel.

Segundo o dicionário Aurélio, criacionismo é a “doutrina segundo a qual a origem dos seres é um ato de criação, e
não o resultado de um processo contínuo de evolução”. Já o evolucionismo, segundo a mesma fonte, é a “doutrina
filosófica ou teoria científica fundada na idéia da evolução”. Na composição de seu artigo, em nenhum momento
Shapiro se valeu de algum conceito criacionista, mas repare nas definições que ambas as teorias, criacionismo
e evolucionismo, tratam sobre o tema que dá título ao artigo: origem.

Trata-se então de um texto tendencioso, que se vale de apenas um dos lados da história? Para o editor da re-
vista, Ulisses Capazzoli, tudo não passa de critério. “Se nós estamos abordando um tratamento científico, temos
de ter critério científico. Criacionismo é religioso”, ressalta. Segundo Capazzoli, criacionismo não é um assunto
científico e por esse motivo não se pode “misturar as frutas”.

Duas balanças, dois fiéis

O jornalismo cumpre diversas funções sociais. É basicamente informar, trazer a notícia, mas também age como
fator de incentivo à reflexão sobre os temas que propõe. Se uma revista é puramente científica, deve-se limitar
à divulgação. Se for jornalística, deve criticar. É o que afirma a própria revista, na edição de março de 2006. O
biólogo e jornalista Eduardo Geraque sugere no artigo “Os polegares do panda” que “o jornalismo sobre ciência
precisa, no mínimo, amadurecer, ser crítico e não tentar continuar fazendo, em grande parte do tempo, apenas
divulgação”. Para Geraque, esta é uma incumbência dos cientistas interessados no tema.

Scientific American Brasil é uma revista que se situa na zona intermediária. É uma revista que se propõe tanto a
ser científica como popular. Logo, precisa não só divulgar, mas analisar criticamente o que divulga. Para se anal-
isar criticamente, um dos preceitos básicos do jornalismo é a busca pela imparcialidade. E a imparcialidade se dá
pela apuração de todos os lados. Logo, é nítido que a revista se situa em meio a um dilema existencial. No que
diz respeito à parte científica, Scientific responde adequadamente às prerrogativas. Já no quesito jornalismo,
esqueceu-se de ouvir todos os lados. Independente de não ser ciência, o criacionismo é a teoria que difere do
evolucionismo e deveria ser consultada quando se abordam a origem da vida ou outros temas tocantes às duas
teorias, como por exemplo, o artigo “A Evolução dos Gatos”, dos colaboradores Stephen J. O’Brien e Warren E.
Johnson (agosto de 2007).

Além de informar, noticiar e criticar, o jornalismo também educa. Todos os dias, os trabalhos de vários jornalistas
chegam às mãos de vários Pedrinhos e suas conchas, sedentos pela informação. Quando optamos por dizer que
“na Antiguidade, na ausência de um relato científico, o percurso do homem na Terra foi explicado com a ajuda
de mitos”, como afirma a revista no editorial eletrônico do exemplar sete da edição especial Science – História da
Ciência, fechamos o foco em apenas uma vertente. Formamos cidadãos sem direito à reflexão. Delimitamos aos
Pedrinhos da vida somente o aprendizado dessa parte. Impomos que comam apenas uma fruta quando muitos
gostariam de comer das duas para descobrir qual delas é a mais gostosa.

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  • 1. Critério Unilateral Raphael Vaz Pedrinho acorda radiante. É o seu primeiro dia de aula no segundo ano (antiga 1.ª série). Ele coloca seu uniforme, toma sua mochila, lancheira e segue para a escola. Chegando lá, a professora saúda com carinho todos os novos alunos e anuncia que a primeira matéria a ser estudada será matemática. Mais especificamente, adição. Pedrinho aprende rapidamente que um mais um são dois, e daí por diante desenvolve o raciocínio para saber como somar um número a outro e obter seu resultado. Os dias se passaram. O ano letivo terminou. Pedrinho foi aprovado e saiu de férias com sua família para o litoral. Caminhando com sua mãe pela orla, coletaram diversas conchas que o mar havia fincado na areia da orla. Para exercitar e testar os conhecimentos de Pedrinho, sua mãe sugere que eles façam uma brincadeira com as conchas e pergunta com quantas conchas ela ficaria se juntasse às cinco que já tinha na mão mais três que estavam na areia. Pedrinho não hesitou em responder oito. A mãe ficou num misto de felicidade e surpresa com a presteza do filho em responder à questão. Em seguida, emendou com quantas conchas ficaria se das oito que tinha nas mãos, subtraísse três. Pedrinho se calou. Olhou para a mãe e para os lados, como se estivesse procurando a resposta, mas não foi capaz de dizer à sua mãe quantas conchas restariam. Panorama Nova no mercado. Este seria o principal adjetivo para caracterizar a revista Scientific American Brasil. Publicada pela Editora Duettos, teve seu primeiro exemplar comercializado em terras tupiniquins desde junho de 2002. Porém, a revista não pode ser considerada científica. Entenda. Revistas científicas são aquelas onde cientistas e pesquisadores científicos publicam seus trabalhos para que eles passem por uma espécie de sanção por um corpo de editores que validam ou não o estudo. A Scientific também faz uso de colaboradores em suas páginas, mas não se limita a esses e nem possui uma comissão que analise esses artigos, validando ou não estas publicações. Por isso, ela se enquadraria dentro da categoria de revistas de divulgação científica. A revista tem como função atender ao leitor mais exigente de informação científica, mas não se limita a esses. Ela se situa numa zona intermediária que mescla caráter científico com os traços populares de uma Veja ou Su- perinteressante, por exemplo. Como resultado dessa fusão entre científico e popular, é perceptível nas matérias algumas rasuras desse “biotipo”. A linguagem da revista é acessível quando se trata do material produzido pelos repórteres e editores da mesma. Quando se trata do texto de colaboradores, no entanto, é indispensável um pré- conhecimento geral de biologia, química e outras vertentes que compõe a ciência. Sem misturar fruta Limpeza. Nada de poluição visual ou algo que possa interferir na ligação com o leitor. Um fundo azul frio, trans- mitindo tranqüilidade. No meio da página um raio de luz focando pequenas moléculas interligadas entre si. A idéia retrata com clareza o conceito de “uma luz no fim do túnel”. Logo acima do pequeno clarão, em letras grandes o título da matéria. “Uma origem mais simples da vida” é um dos artigos publicados na edição de julho de 2007 na Scientific. Escrita pelo professor e colaborador Robert Shapiro, desenvolve a idéia de que “pequenas moléculas movidas por energia têm melhores chances como iniciadoras da vida” do que o RNA. A teoria mais aceita no meio científico anterior e essa era de que a capacidade de se autocopiar do RNA dera origem a vida. Shapiro faz uma abordagem teórica, valendo-se em grande parte de suas próprias experiências, mas também de estudos ou artigos publicados por outros cientistas, em sua maioria contemplados pelo Prêmio Nobel. Segundo o dicionário Aurélio, criacionismo é a “doutrina segundo a qual a origem dos seres é um ato de criação, e não o resultado de um processo contínuo de evolução”. Já o evolucionismo, segundo a mesma fonte, é a “doutrina filosófica ou teoria científica fundada na idéia da evolução”. Na composição de seu artigo, em nenhum momento
  • 2. Shapiro se valeu de algum conceito criacionista, mas repare nas definições que ambas as teorias, criacionismo e evolucionismo, tratam sobre o tema que dá título ao artigo: origem. Trata-se então de um texto tendencioso, que se vale de apenas um dos lados da história? Para o editor da re- vista, Ulisses Capazzoli, tudo não passa de critério. “Se nós estamos abordando um tratamento científico, temos de ter critério científico. Criacionismo é religioso”, ressalta. Segundo Capazzoli, criacionismo não é um assunto científico e por esse motivo não se pode “misturar as frutas”. Duas balanças, dois fiéis O jornalismo cumpre diversas funções sociais. É basicamente informar, trazer a notícia, mas também age como fator de incentivo à reflexão sobre os temas que propõe. Se uma revista é puramente científica, deve-se limitar à divulgação. Se for jornalística, deve criticar. É o que afirma a própria revista, na edição de março de 2006. O biólogo e jornalista Eduardo Geraque sugere no artigo “Os polegares do panda” que “o jornalismo sobre ciência precisa, no mínimo, amadurecer, ser crítico e não tentar continuar fazendo, em grande parte do tempo, apenas divulgação”. Para Geraque, esta é uma incumbência dos cientistas interessados no tema. Scientific American Brasil é uma revista que se situa na zona intermediária. É uma revista que se propõe tanto a ser científica como popular. Logo, precisa não só divulgar, mas analisar criticamente o que divulga. Para se anal- isar criticamente, um dos preceitos básicos do jornalismo é a busca pela imparcialidade. E a imparcialidade se dá pela apuração de todos os lados. Logo, é nítido que a revista se situa em meio a um dilema existencial. No que diz respeito à parte científica, Scientific responde adequadamente às prerrogativas. Já no quesito jornalismo, esqueceu-se de ouvir todos os lados. Independente de não ser ciência, o criacionismo é a teoria que difere do evolucionismo e deveria ser consultada quando se abordam a origem da vida ou outros temas tocantes às duas teorias, como por exemplo, o artigo “A Evolução dos Gatos”, dos colaboradores Stephen J. O’Brien e Warren E. Johnson (agosto de 2007). Além de informar, noticiar e criticar, o jornalismo também educa. Todos os dias, os trabalhos de vários jornalistas chegam às mãos de vários Pedrinhos e suas conchas, sedentos pela informação. Quando optamos por dizer que “na Antiguidade, na ausência de um relato científico, o percurso do homem na Terra foi explicado com a ajuda de mitos”, como afirma a revista no editorial eletrônico do exemplar sete da edição especial Science – História da Ciência, fechamos o foco em apenas uma vertente. Formamos cidadãos sem direito à reflexão. Delimitamos aos Pedrinhos da vida somente o aprendizado dessa parte. Impomos que comam apenas uma fruta quando muitos gostariam de comer das duas para descobrir qual delas é a mais gostosa.