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DEBATE
O QUE É DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA?
Henrique César da Silva
O uso de textos de divulgação
científica no ensino de ciências vem sendo
amplamente divulgado já há vários anos e
parece hoje ser uma prática corrente em
muitas escolas. Mas, quando dizemos:
“isso é um texto de divulgação científica”,
de que tipo de texto estamos falando?
Na verdade, pretendo muito menos
dar uma resposta a essa questão do que
mostrar o quanto isso é difícil, o quanto o
que chamamos de divulgação científica
compreende um conjunto tão grande e
diverso de textos, envolvidos em
atividades tão diferentes, que todas as
tentativas de definição e categorização a-
históricas acabam malogradas. A aparente
obviedade da expressão divulgação
científica faz-nos esquecer sua associação
a todo um conjunto de representações e
valores sobre a própria ciência, os textos
que lhe são associados e o imaginário que
os diferencia em termos de legitimação
com relação ao conhecimento que
veiculam os lugares por onde este e não
aquele texto pode/deve circular. O que
está em jogo é a questão da multiplicidade
de textualizações do conhecimento
científico. Coloquem-se lado a lado uma
reportagem da revista Veja sobre
clonagem ou células tronco embrionárias,
textos da Ciência Hoje sobre os mesmos
assuntos, um da Superinteressante, um
artigo publicado num jornal pela Mayana
Zatz, um livro do biólogo Richard
Lewontin intitulado A tripla hélice1
, o
testemunho de um cientista sobre
mudança climática no Congresso norte-
americano, um relatório escrito por um
cientista sobre mudança climática a
pedido de uma organização financiada
pela indústria petrolífera ou por uma ONG
ambientalista, o sumário para políticos do
IPCC2
sobre o estado da arte das pesquisas
sobre mudanças climáticas, e ainda, o
filme Gattaca e uma peça de teatro como
Casca de Noz3
baseada no livro As
cosmicômicas de Ítalo Calvino.
Dificilmente se poderia dizer o que é e o
que não é divulgação científica nesse
conjunto. Parece que o termo divulgação
científica, longe de designar um tipo
específico de texto, está relacionado à
forma como o conhecimento científico é
produzido, como ele é formulado e como
ele circula numa sociedade como a nossa4
.
E isso, também tem a sua história.
Para começar nossa conversa,
alguém poderia indagar: “a divulgação
científica seria uma atividade recente,
1
Lewontin, R. A tripla hélice: gene, organismo e ambiente.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
2
Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas foi
criado em 1988 pela ONU e pela Organização Meteorológica
Mundial, reúne cientistas do mundo todo para produção de
relatórios baseados nas pesquisas científicas sobre possíveis
causas antropogências das mudanças climáticas. O terceiro e
último é de 2001.
3
Peça teatral do Grupo Armazém Cia. de Teatro, Rio de
Janeiro, 2003.
4
O leitor encontrará artigos interessantes sobre o tema em
Guimarães, E. (org.). Produção e circulação do conhecimento:
Estado, Mídia, Sociedade. Campinas, SP: Pontes, 2001.
53
A produção de livros
ditos de divulgação
científica escritos por
cientistas percorre todos
os séculos e
praticamente todas as
áreas da ciência desde,
pelo menos, o século
XVIII.
típica da era da comunicação de massa,
da era do conhecimento e do 'mass
media'?”.
Não há dúvida que no contexto atual,
muitas atividades consideradas como
sendo de divulgação científica ganhem
amplitudes jamais vistas, seja no formato
escrito, como em jornais, revistas e livros,
seja no formato audiovisual, como em
documentários e outros programas da
televisão. No entanto, ela não pode ser
considerada uma atividade recente,
característica da época atual. Atividades
de divulgação científica surgiram junto
com a própria ciência moderna5
.
Já no século XVIII6
anfiteatros
europeus enchiam-se de um público ávido
por conhecer novas máquinas e
demonstrações de
fenômenos pneumáticos,
elétricos e mecânicos,
apenas para citar alguns
exemplos. Algumas
exposições e palestras,
relacionadas à física, à
química ou à medicina,
eram itinerantes,
percorrendo diversas
cidades e, às vezes,
diversos países7
.
Eram verdadeiros shows científicos,
aparentemente bem ao estilo de muitas
atividades de divulgação científica atuais.
Alguns desses divulgadores são
5
Sobre a divulgação científica no Brasil confira o livro de
Massarani, L., Moreira, I. e Brito, F. Ciência e Público:
caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro:
Casa da Ciência; Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da
UFRJ, 2002. Sitio: www.casadaciencia.ufrj.br.
6
Para melhor situarmo-nos historicamente é preciso lembrar
que Newton morre em 1727; o século XVIII é o século do
Iluminismo, da queda da Bastilha em 1789 (Revolução
Francesa); é o século de Bernoulli, Euler, D’Alambert,
Lagrange, Lavoisier.
7
Cf. o sítio do Science Museum (Inglaterra):
www.sciencemuseum.org.uk/collections/exhiblets/george3/sta
rt.asp.
personagens históricos bem conhecidos de
nós, como é o caso de Marat (1743-1793),
um dos personagens centrais da
Revolução Francesa, eleito um dos
dirigentes da Comuna de Paris e depois
assassinado por outros revolucionários.
Ele não apenas escreveu inúmeras
monografias sobre o calor, óptica e
eletricidade como proferiu inúmeras
palestras públicas cheias de
demonstrações e experimentos8
. Alguns
palestrantes eram considerados famosos
profissionais nessa atividade. Desaguliers,
curador de experimentos da Royal Society
de Londres, é considerado por
historiadores como um dos mais
influentes da Europa9
. Várias palestras
eram divulgadas num mesmo e específico
veículo impresso, e
algumas formavam séries
cuja lista de conteúdos
também era impressa e
publicamente
distribuída.10
Também já podemos
encontrar no século XVIII
diversos livros escritos por
cientistas e destinados a
um público que no atual
discurso da “divulgação científica” seria
chamado de não-especializado ou leigo.
Também o público infantil já fazia
parte dessas atividades. Em 1770, são
publicados os primeiros livros infantis de
ciências.11
A grande quantidade e
variedade de livros e textos “de divulgação
8
Heering, P. “Public experiments and their analysis with the
replication method”. In: “From the itinerant lectures of the 18th
century to popularizing physics in the 21st
century – exploring
the relationship between learning and entertainment.
Proceedings of Pognana Conference, Itália, junho de 2003.
Disponível em: www.deutsches-
museum.de/bildung/veroeff/img/pognana.pdf.
9
Science Museum (op.cit.).
10
Idem.
11
Idem.
54
Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006
científica” do século XVIII na Europa
incluíam um livro especificamente voltado
para mulheres intitulado A filosofia de Sir
Isaac Newton explicada para o uso das
damas, do italiano Francesco Algarotti,
traduzido na Inglaterra em 173912
.
A produção de livros ditos de
divulgação científica escritos por
cientistas percorre todos os séculos e
praticamente todas as áreas da ciência
desde, pelo menos, o século XVIII. O
matemático Euler publicou entre 1768-72,
em três volumes, o livro Cartas a uma
Princesa da Alemanha, também destinado
ao público em geral. O livro Worlds in the
making13
do químico e prêmio Nobel
Svante Arrhenius é publicado em 1908,
com o mesmo propósito.
No entanto, no século XVIII, a
ciência moderna estava nascendo e,
paulatinamente, se institucionalizando. Na
verdade, esse público “especializado”
estava, lentamente, começando a se
formar à medida que a atividade científica
aos poucos se profissionalizava. As
divisões entre pesquisa científica e
popularização, entre pesquisa, formação
de profissionais e entretenimento eram
muitas vezes praticamente inexistentes.
Alguns profissionais, como farmacêuticos,
assistiam a aulas privadas, ou seja,
proferidas em locais não especificamente
voltados para o ensino formal, como as
universidades, com o objetivo de
aprimorarem seus conhecimentos
profissionais em vista da então nascente
ciência Química. A figura do cientista, do
expert ou especialista, detentor de um
diploma e de uma pós-graduação que lhe
conferem essa posição ainda não existia tal
como hoje. Os periódicos especializados
12
Idem.
13
Não há tradução para o português dessa obra, mas numa
versão livre o título poderia ser “Mundos em construção”.
surgiram não fazia muito tempo, ainda
eram em número reduzido e seu estilo,
embora já novo no século XVII em relação
a outros estilos de textos, estava em
desenvolvimento até chegar ao formato
atual14
. Apesar de terem um número
reduzido de assinantes, esse grupo não era
claramente delineado como um grupo
profissional. A razão da pequena tiragem
estaria muito mais relacionada aos custos
e à estrutura de mercado para esse novo
tipo de literatura do que a uma
especialização de conteúdos e temas e uma
homogeneização de audiência.15
Enfim, no século XVIII, a atividade
de produção de conhecimento e de
divulgação, os lugares de produtores e
divulgadores estavam pouco
diferenciados. Mas, com a ciência se
constituindo aos poucos como um certo
tipo de instituição vinculada a uma certa
forma de produção de conhecimento, já
havia uma tensão pela diferenciação.
Filósofos naturais acadêmicos da época do
Iluminismo esforçavam-se por parecerem
diferentes dos chamados “vendedores
científicos”, com suas palestras e shows
itinerantes.16
***
Embora a atividade científica, ao
longo dos séculos, se profissionalize, se
institucionalize, ganhando uma certa
autonomia em relação a outras atividades
sociais, econômicas e culturais, ela se dá, e
sempre se deu, dentro da sociedade, e esta
14
Cf. Bazerman,C. Shaping Written Knowledge: The Genre
and Activity of the Experimental Article in Science. WAC
Clearinghouse Landmark Publications in Writing Studies:
http://wac.colostate.edu/aw/books/bazerman_shaping/. 2000.
15
Cf. Broman, T. H. “The literary market and periodical
publishing in the 18th century”. HSS Annual Meeting
Proceedings, 1999. Resumo disponível em <
http://depts.washington.edu/hssexec/annual/1999/program99.h
tml >.
16
Hochadel, O. “Instrument makers and itinerant lectures in
the German Englitenment”. Proceedings of Pognana
Conferece, op. cit.
55
autonomia é apenas relativa. Ainda que as
relações entre a esfera científica e outras
esferas da sociedade tenham se alterado
com o passar dos séculos, ainda que
variem conforme a área de conhecimento,
de tecnologia e do país em questão, o fato
de ela jamais ser totalmente
independente, faz com que as
interlocuções envolvidas em sua produção
não se restrinjam exclusivamente ao
campo dos especialistas.
A questão do que é “interno” ou
“externo” à atividade científica é uma
questão complexa se considerarmos que a
ciência se produz na sociedade e que sua
produção é algo extremamente complexo
cujos atores envolvidos, direta ou
indiretamente, jamais são exclusivamente
os cientistas.
Poderíamos citar inúmeros
exemplos. Um deles está relacionado aos
debates em torno da polêmica sobre as
mudanças climáticas envolvendo
cientistas cujas pesquisas são financiadas
por empresas petrolíferas17
, posições de
políticos como G. W. Bush contra o
protocolo de Kyoto, cientistas buscando
convencer (o público?) as esferas
governamentais da necessidade de mais
verbas para esse tipo de pesquisa diante
das inúmeras incertezas do conhecimento
científico atual sobre a questão. Outro
exemplo recente está estampado nas
páginas de revistas e jornais com fotos de
cientistas junto de políticos e de ONGs a
favor da aprovação da lei de biossegurança
nacional diretamente ligada à questão das
pesquisa com células tronco embrionárias
(cuja polêmica foi amplamente divulgada
pela mídia)18
e à questão das alimentos
17
“'Cético' do aquecimento global recebe dinheiro de
termelétrica”. Folha de São Paulo. Seção Ciência. São Paulo,
28 de julho de 2006.
18
Os debates sobre o tema envolvendo o parlamento inglês
transgênicos (já não tão divulgada e cuja
regulamentação estava embutida na
mesma lei).19
Nessas interlocuções entre essas
diferentes esferas, política, empresarial e
industrial, “científica”, “pública”, são
produzidos diferentes textos. Não porque
se trata de simplificar a ciência para um
outro público, mas porque diferentes
interlocuções implicam em diferentes
memórias, em diferentes posições e,
portanto, em diferentes textualizações.
A atividade científica, ou seja, uma
das atividades de produção de
conhecimento, e, com certeza, a de maior
prestígio e legitimidade atualmente, se dá,
portanto, por uma multiplicidade
complexa de relações interlocutivas. Essas
relações produzem textos, orais, escritos,
visuais ou audiovisuais e, como são muitas
e variadas, assim, como são muitos e
variados os interlocutores, os textos são
diferentes. Na medida em que as
comunidades científicas foram se
constituindo e a atividade científica foi se
profissionalizando, alguns de seus textos,
envolvidos nesse processo cada vez mais
profissional e cada vez mais circunscrito a
um número limitado de pessoas20
,
acabaram ganhando, paulatinamente,
certa estabilidade em termos de gênero e
de estilos de escritura, como é o caso dos
chamados papers, ou artigos científicos.
Outros emprestam para si outros gêneros
contribuíram para mudanças de conceitos “dentro” da própria
biologia.
19
A Lei de Biossegurança Nacional foi aprovada pelo
Congresso Nacional e sancionada pelo presidente em março
de 2005. As imagens às quais me refiro podem ser encontradas
em Revista Scientific American Brasil, ano 4, n. 39, agosto,
2005, p. 77 e p. 82, por exemplo.
20
Sobre as características desses textos e sua relação com a
produção do conhecimento científico, manutenção e
reprodução da comunidade científica, sugerimos a leitura de
Bachelard, “A formação do espírito científico”, Kuhn, “A
estrutura das revoluções científicas” e Comte, “Curso de
filosofia positivista”.
56
A produção científica
se dá num espaço
polêmico de
interlocução.
Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006
textuais ou orais, e às vezes os adaptam21
.
No entanto, se olharmos a produção
textual como aspecto da produção,
formulação e circulação de discursos e,
estes últimos, como constituintes
simultaneamente de sentidos e de sujeitos,
podemos considerar que diferentes
textualidades produzem diferentes efeitos-
leitores, produzem/reproduzem diferentes
relações sociais entre os sujeitos.
Mas, na medida em que estes textos
foram excluindo outras
possibilidades de dizer e
produzindo efeitos-leitores
específicos e restritivos,
outros textos foram sendo
produzidos, e provavelmente, também se
modificando ao longo do tempo.
A produção científica se dá num
espaço polêmico de interlocução. Como
diz Bruno Latour, “quando nos
aproximamos dos lugares onde são criados
fatos [científicos] e máquinas, entramos
no meio das controvérsias”22
. Artigos
científicos são os principais textos pelos
quais são travadas essas polêmicas. Ainda
segundo Latour, o leitor de um artigo
científico pode ser considerado um leitor
discordante. Em vista da imagem desse
leitor, o artigo é construído, o discurso
científico é nele textualizado, antecipando-
se às possíveis críticas desse leitor
discordante. Há um efeito-leitor23
particular nessa textualidade. Um efeito-
leitor construído historicamente com a
institucionalização da ciência.
Mas o artigo científico não é o único
espaço em que se travam debates,
discordâncias, polêmicas constitutivas da
21
Cf. Mora, A. M. S. A divulgação científica como literatura.
Rio de Janeiro: Casa da Ciência; Editora da UFRJ, 2002.
22
Latour, B. Ciência em ação. São Paulo: Editora da Unesp,
2000, p. 53.
23
Sobre a noção de efeito-leitor ver Orlandi, E. Discurso e
texto. 2ª ed. Campinas SP: Pontes, 2005.
produção do conhecimento científico.
Como todo texto, um artigo científico
comporta determinados tipos de
formulações e enunciados e não outros.
Questões de cunho filosófico,
epistemológico, ontológico e, às vezes,
ético e moral, envolvidas nessas polêmicas
têm pouco espaço para serem formuladas
num artigo científico. Quando Einstein
intitulou seu artigo “Sobre um ponto de
vista heurístico sobre a produção e
transformação da luz”, em
1905, a expressão “ponto de
vista heurístico”
representava um ponto de
vista de natureza
epistemológica e ontológica sobre a teoria
quântica, nos primórdios de seu
desenvolvimento, envolvido desde então
num debate cujos termos não estavam
formulados no próprio artigo, mesmo que,
ao formular seu título dessa forma, o autor
já tomasse uma posição nessa polêmica
que iria se arrastar durante décadas. É em
outros textos produzidos também na
interlocução cientista-cientista, como,
neste caso, nas cartas entre Einstein e
Bohr, ou nos livros (de divulgação
científica?) publicados por Einstein que
vamos encontrar argumentações mais
detalhadas sobre esses aspectos
intimamente relacionados à produção do
conhecimento científico sobre a física
quântica. Podemos encontrar algo análogo
nos livros (de divulgação científica?) de
Stephen Jay Gould sobre o darwinismo,
até hoje envolvido em grandes
controvérsias, ou de Lewontin sobre
genética.
O que chamamos de divulgação
científica é o reflexo de um modo de
produção de conhecimento restringido e,
conseqüentemente da constituição de um
57
efeito-leitor específico relacionado à
institucionalização, profissionalização e
legitimação da ciência moderna, e que
opõe produtores e usuários/consumidores
e, cria a figura do divulgador, que viria,
imaginariamente, restabelecer a cisão, e
minimizar a tensão instaurada ao longo da
história no tecido social da modernidade.
Essa cisão não é mantida sem tensão, sem
a (re)produção tensa de um imaginário
que a mantém. É nesse imaginário que
trabalha a divulgação científica.
***
Alguém ainda poderia perguntar,
“mas a divulgação científica não pode ser
considerada uma atividade de
disseminação do conhecimento científico
para um público leigo?”.
Além dos problemas associados ao
termo “disseminação”, essa formulação
atualiza um imaginário que vê na
divulgação científica uma atividade
unidirecional produto da interlocução
exclusiva entre cientista (ou jornalista) e o
não-cientista. Esta formulação não dá
conta de que a divulgação científica
também está envolvida na interlocução
cientista-cientista. Dado o grau de
especialização da atividade científica atual,
um cientista é sempre mais ou menos leigo
em campos que não sejam estritamente
vinculados ao seu próprio trabalho.
Embora cientista, um artigo científico não
é especialmente dirigido a ele. No entanto,
há outro aspecto relacionado à formulação
dessa questão. Ela opõe dois sujeitos: de
um lado, o cientista, de outro, o não-
cientista. De um lado o sujeito produtor do
conhecimento científico numa posição de
autoridade altamente legitimada e de
outro, o consumidor do conhecimento
científico, o sujeito interessado em
atualização cultural, sem nenhum
conhecimento sobre ciência. Para
compreender essa questão é preciso
pensar sobre que tipo de oposição é essa,
como ela vem se dando ao longo da
história e retomar alguns aspectos da
produção do conhecimento científico.
***
Se não há algo que caracteriza
especificamente um texto de divulgação
científica, seja em relação ao público a que
se destina, seja em relação a outros
critérios, o que faz dessa expressão nos dar
a sensação de que designa algo específico e
particular? Enfim, o que é divulgação
científica? Seu efeito não estaria em
participar do imaginário necessário à
circunscrição de espaços de interlocução,
em diferenciar um espaço que seria
“interior” e um espaço que seria “exterior”
à ciência?
Vários autores têm apontado sobre o
discurso da divulgação científica o fato de
ela produzir o efeito de exterioridade da
ciência24
. Há um lugar interlocutivo que
não se pode entrar. Pelo menos, não pode
entrar qualquer um. Uma exterioridade
que nos posiciona diante dela de certas
maneiras, constituindo diversos efeitos-
leitores. O cientista pode sair do seu lugar
“próprio” de interlocução legitimada com
outro cientista para produzir interlocuções
com outros leitores, não cientistas. Esse
lugar é preciso não ser confundido, é
preciso ser diferenciado. A expressão
“divulgação científica” cumpre esse papel.
Instaura uma outra cena, como mostra
Authier-Revuz25
. E isso tem a ver com a
produção de diferentes textualizações e,
simultaneamente, com o imaginário que
24
Cf. Guimarães (2001), op. cit..
25
Authier-Revuz, J. A encenação da comunicação no discurso
de divulgação científica. In: ____. Palavras incertas: as não-
coincidências do dizer. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
1998, p.107-131.
58
Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006
produz uma diferenciação e
hierarquização de status entre esses
diferentes textos em relação ao discurso
que veiculam.
Trata-se de uma nova versão das
relações entre conhecimento, poder,
circulação e acesso que em relação às que
existiram em outras épocas, como aquela
medieval, representada no livro e no filme
“O nome da rosa”: o acesso aos textos
(simbolizado por um livro de Aristóteles
sobre o riso) era dificultado pela
localização das únicas bibliotecas em
mosteiros, restringido pelo próprio
funcionamento institucional dos mosteiros
medieval, pela forma da própria biblioteca
em labirinto, pela função do bibliotecário
que guardava o conhecimento do labirinto
cujos segredos eram passados
exclusivamente a outro bibliotecário, até
ações de interdição que culminavam com a
própria morte daquele que ousasse e
conseguisse atravessar toda essa estrutura
de poder e acesso ao conhecimento. E, do
lado de fora das muralhas do mosteiro, a
população, faminta e, analfabeta. O fato de
bibliotecas não ficarem mais em mosteiros
cercados por muralhas não significa que a
circulação do conhecimento não deixou de
ser controlada. E esse controle tem a ver,
simultaneamente, com o modo como o
conhecimento científico é produzido, com
o modo como ele é formulado e com o
modo como ele circula.
O fato que quero apontar é o de que
textos constituem sentidos e
simultaneamente sujeitos, posições de
leitura, posições de interlocuções, posições
que constituem o tecido social. Nossa
sociedade, da forma como os
conhecimentos são produzidos, precisa
constituir reafirmar, produzir, com a
evidência de uma naturalidade, a
diferenciação entre produtores e
consumidores de conhecimento. Separar
e, encenar o reencontro.
Mas tudo isso não se dá sem falhas,
sem resistências, sem tensões, sem
deslocamentos. É nesse espaço que se
encontra a escola, as leituras da ciência
produzidas dentro dela e as diferentes
textualizações do conhecimento científico
que ali circulam, ou não circulam (e como
circulam) como parte dessas tensões, da
produção/reprodução desses imaginários,
dessas posições, desses efeitos-leitores...ou
de outros...
________________________________
Henrique César da Silva é membro do gepCE
e professor do Instituto de Geociências da
Unicamp.
E-mail: henriquecsilva@ige.unicamp.br
59

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  • 1. Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006 DEBATE O QUE É DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA? Henrique César da Silva O uso de textos de divulgação científica no ensino de ciências vem sendo amplamente divulgado já há vários anos e parece hoje ser uma prática corrente em muitas escolas. Mas, quando dizemos: “isso é um texto de divulgação científica”, de que tipo de texto estamos falando? Na verdade, pretendo muito menos dar uma resposta a essa questão do que mostrar o quanto isso é difícil, o quanto o que chamamos de divulgação científica compreende um conjunto tão grande e diverso de textos, envolvidos em atividades tão diferentes, que todas as tentativas de definição e categorização a- históricas acabam malogradas. A aparente obviedade da expressão divulgação científica faz-nos esquecer sua associação a todo um conjunto de representações e valores sobre a própria ciência, os textos que lhe são associados e o imaginário que os diferencia em termos de legitimação com relação ao conhecimento que veiculam os lugares por onde este e não aquele texto pode/deve circular. O que está em jogo é a questão da multiplicidade de textualizações do conhecimento científico. Coloquem-se lado a lado uma reportagem da revista Veja sobre clonagem ou células tronco embrionárias, textos da Ciência Hoje sobre os mesmos assuntos, um da Superinteressante, um artigo publicado num jornal pela Mayana Zatz, um livro do biólogo Richard Lewontin intitulado A tripla hélice1 , o testemunho de um cientista sobre mudança climática no Congresso norte- americano, um relatório escrito por um cientista sobre mudança climática a pedido de uma organização financiada pela indústria petrolífera ou por uma ONG ambientalista, o sumário para políticos do IPCC2 sobre o estado da arte das pesquisas sobre mudanças climáticas, e ainda, o filme Gattaca e uma peça de teatro como Casca de Noz3 baseada no livro As cosmicômicas de Ítalo Calvino. Dificilmente se poderia dizer o que é e o que não é divulgação científica nesse conjunto. Parece que o termo divulgação científica, longe de designar um tipo específico de texto, está relacionado à forma como o conhecimento científico é produzido, como ele é formulado e como ele circula numa sociedade como a nossa4 . E isso, também tem a sua história. Para começar nossa conversa, alguém poderia indagar: “a divulgação científica seria uma atividade recente, 1 Lewontin, R. A tripla hélice: gene, organismo e ambiente. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 2 Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas foi criado em 1988 pela ONU e pela Organização Meteorológica Mundial, reúne cientistas do mundo todo para produção de relatórios baseados nas pesquisas científicas sobre possíveis causas antropogências das mudanças climáticas. O terceiro e último é de 2001. 3 Peça teatral do Grupo Armazém Cia. de Teatro, Rio de Janeiro, 2003. 4 O leitor encontrará artigos interessantes sobre o tema em Guimarães, E. (org.). Produção e circulação do conhecimento: Estado, Mídia, Sociedade. Campinas, SP: Pontes, 2001. 53
  • 2. A produção de livros ditos de divulgação científica escritos por cientistas percorre todos os séculos e praticamente todas as áreas da ciência desde, pelo menos, o século XVIII. típica da era da comunicação de massa, da era do conhecimento e do 'mass media'?”. Não há dúvida que no contexto atual, muitas atividades consideradas como sendo de divulgação científica ganhem amplitudes jamais vistas, seja no formato escrito, como em jornais, revistas e livros, seja no formato audiovisual, como em documentários e outros programas da televisão. No entanto, ela não pode ser considerada uma atividade recente, característica da época atual. Atividades de divulgação científica surgiram junto com a própria ciência moderna5 . Já no século XVIII6 anfiteatros europeus enchiam-se de um público ávido por conhecer novas máquinas e demonstrações de fenômenos pneumáticos, elétricos e mecânicos, apenas para citar alguns exemplos. Algumas exposições e palestras, relacionadas à física, à química ou à medicina, eram itinerantes, percorrendo diversas cidades e, às vezes, diversos países7 . Eram verdadeiros shows científicos, aparentemente bem ao estilo de muitas atividades de divulgação científica atuais. Alguns desses divulgadores são 5 Sobre a divulgação científica no Brasil confira o livro de Massarani, L., Moreira, I. e Brito, F. Ciência e Público: caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Ciência; Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da UFRJ, 2002. Sitio: www.casadaciencia.ufrj.br. 6 Para melhor situarmo-nos historicamente é preciso lembrar que Newton morre em 1727; o século XVIII é o século do Iluminismo, da queda da Bastilha em 1789 (Revolução Francesa); é o século de Bernoulli, Euler, D’Alambert, Lagrange, Lavoisier. 7 Cf. o sítio do Science Museum (Inglaterra): www.sciencemuseum.org.uk/collections/exhiblets/george3/sta rt.asp. personagens históricos bem conhecidos de nós, como é o caso de Marat (1743-1793), um dos personagens centrais da Revolução Francesa, eleito um dos dirigentes da Comuna de Paris e depois assassinado por outros revolucionários. Ele não apenas escreveu inúmeras monografias sobre o calor, óptica e eletricidade como proferiu inúmeras palestras públicas cheias de demonstrações e experimentos8 . Alguns palestrantes eram considerados famosos profissionais nessa atividade. Desaguliers, curador de experimentos da Royal Society de Londres, é considerado por historiadores como um dos mais influentes da Europa9 . Várias palestras eram divulgadas num mesmo e específico veículo impresso, e algumas formavam séries cuja lista de conteúdos também era impressa e publicamente distribuída.10 Também já podemos encontrar no século XVIII diversos livros escritos por cientistas e destinados a um público que no atual discurso da “divulgação científica” seria chamado de não-especializado ou leigo. Também o público infantil já fazia parte dessas atividades. Em 1770, são publicados os primeiros livros infantis de ciências.11 A grande quantidade e variedade de livros e textos “de divulgação 8 Heering, P. “Public experiments and their analysis with the replication method”. In: “From the itinerant lectures of the 18th century to popularizing physics in the 21st century – exploring the relationship between learning and entertainment. Proceedings of Pognana Conference, Itália, junho de 2003. Disponível em: www.deutsches- museum.de/bildung/veroeff/img/pognana.pdf. 9 Science Museum (op.cit.). 10 Idem. 11 Idem. 54
  • 3. Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006 científica” do século XVIII na Europa incluíam um livro especificamente voltado para mulheres intitulado A filosofia de Sir Isaac Newton explicada para o uso das damas, do italiano Francesco Algarotti, traduzido na Inglaterra em 173912 . A produção de livros ditos de divulgação científica escritos por cientistas percorre todos os séculos e praticamente todas as áreas da ciência desde, pelo menos, o século XVIII. O matemático Euler publicou entre 1768-72, em três volumes, o livro Cartas a uma Princesa da Alemanha, também destinado ao público em geral. O livro Worlds in the making13 do químico e prêmio Nobel Svante Arrhenius é publicado em 1908, com o mesmo propósito. No entanto, no século XVIII, a ciência moderna estava nascendo e, paulatinamente, se institucionalizando. Na verdade, esse público “especializado” estava, lentamente, começando a se formar à medida que a atividade científica aos poucos se profissionalizava. As divisões entre pesquisa científica e popularização, entre pesquisa, formação de profissionais e entretenimento eram muitas vezes praticamente inexistentes. Alguns profissionais, como farmacêuticos, assistiam a aulas privadas, ou seja, proferidas em locais não especificamente voltados para o ensino formal, como as universidades, com o objetivo de aprimorarem seus conhecimentos profissionais em vista da então nascente ciência Química. A figura do cientista, do expert ou especialista, detentor de um diploma e de uma pós-graduação que lhe conferem essa posição ainda não existia tal como hoje. Os periódicos especializados 12 Idem. 13 Não há tradução para o português dessa obra, mas numa versão livre o título poderia ser “Mundos em construção”. surgiram não fazia muito tempo, ainda eram em número reduzido e seu estilo, embora já novo no século XVII em relação a outros estilos de textos, estava em desenvolvimento até chegar ao formato atual14 . Apesar de terem um número reduzido de assinantes, esse grupo não era claramente delineado como um grupo profissional. A razão da pequena tiragem estaria muito mais relacionada aos custos e à estrutura de mercado para esse novo tipo de literatura do que a uma especialização de conteúdos e temas e uma homogeneização de audiência.15 Enfim, no século XVIII, a atividade de produção de conhecimento e de divulgação, os lugares de produtores e divulgadores estavam pouco diferenciados. Mas, com a ciência se constituindo aos poucos como um certo tipo de instituição vinculada a uma certa forma de produção de conhecimento, já havia uma tensão pela diferenciação. Filósofos naturais acadêmicos da época do Iluminismo esforçavam-se por parecerem diferentes dos chamados “vendedores científicos”, com suas palestras e shows itinerantes.16 *** Embora a atividade científica, ao longo dos séculos, se profissionalize, se institucionalize, ganhando uma certa autonomia em relação a outras atividades sociais, econômicas e culturais, ela se dá, e sempre se deu, dentro da sociedade, e esta 14 Cf. Bazerman,C. Shaping Written Knowledge: The Genre and Activity of the Experimental Article in Science. WAC Clearinghouse Landmark Publications in Writing Studies: http://wac.colostate.edu/aw/books/bazerman_shaping/. 2000. 15 Cf. Broman, T. H. “The literary market and periodical publishing in the 18th century”. HSS Annual Meeting Proceedings, 1999. Resumo disponível em < http://depts.washington.edu/hssexec/annual/1999/program99.h tml >. 16 Hochadel, O. “Instrument makers and itinerant lectures in the German Englitenment”. Proceedings of Pognana Conferece, op. cit. 55
  • 4. autonomia é apenas relativa. Ainda que as relações entre a esfera científica e outras esferas da sociedade tenham se alterado com o passar dos séculos, ainda que variem conforme a área de conhecimento, de tecnologia e do país em questão, o fato de ela jamais ser totalmente independente, faz com que as interlocuções envolvidas em sua produção não se restrinjam exclusivamente ao campo dos especialistas. A questão do que é “interno” ou “externo” à atividade científica é uma questão complexa se considerarmos que a ciência se produz na sociedade e que sua produção é algo extremamente complexo cujos atores envolvidos, direta ou indiretamente, jamais são exclusivamente os cientistas. Poderíamos citar inúmeros exemplos. Um deles está relacionado aos debates em torno da polêmica sobre as mudanças climáticas envolvendo cientistas cujas pesquisas são financiadas por empresas petrolíferas17 , posições de políticos como G. W. Bush contra o protocolo de Kyoto, cientistas buscando convencer (o público?) as esferas governamentais da necessidade de mais verbas para esse tipo de pesquisa diante das inúmeras incertezas do conhecimento científico atual sobre a questão. Outro exemplo recente está estampado nas páginas de revistas e jornais com fotos de cientistas junto de políticos e de ONGs a favor da aprovação da lei de biossegurança nacional diretamente ligada à questão das pesquisa com células tronco embrionárias (cuja polêmica foi amplamente divulgada pela mídia)18 e à questão das alimentos 17 “'Cético' do aquecimento global recebe dinheiro de termelétrica”. Folha de São Paulo. Seção Ciência. São Paulo, 28 de julho de 2006. 18 Os debates sobre o tema envolvendo o parlamento inglês transgênicos (já não tão divulgada e cuja regulamentação estava embutida na mesma lei).19 Nessas interlocuções entre essas diferentes esferas, política, empresarial e industrial, “científica”, “pública”, são produzidos diferentes textos. Não porque se trata de simplificar a ciência para um outro público, mas porque diferentes interlocuções implicam em diferentes memórias, em diferentes posições e, portanto, em diferentes textualizações. A atividade científica, ou seja, uma das atividades de produção de conhecimento, e, com certeza, a de maior prestígio e legitimidade atualmente, se dá, portanto, por uma multiplicidade complexa de relações interlocutivas. Essas relações produzem textos, orais, escritos, visuais ou audiovisuais e, como são muitas e variadas, assim, como são muitos e variados os interlocutores, os textos são diferentes. Na medida em que as comunidades científicas foram se constituindo e a atividade científica foi se profissionalizando, alguns de seus textos, envolvidos nesse processo cada vez mais profissional e cada vez mais circunscrito a um número limitado de pessoas20 , acabaram ganhando, paulatinamente, certa estabilidade em termos de gênero e de estilos de escritura, como é o caso dos chamados papers, ou artigos científicos. Outros emprestam para si outros gêneros contribuíram para mudanças de conceitos “dentro” da própria biologia. 19 A Lei de Biossegurança Nacional foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente em março de 2005. As imagens às quais me refiro podem ser encontradas em Revista Scientific American Brasil, ano 4, n. 39, agosto, 2005, p. 77 e p. 82, por exemplo. 20 Sobre as características desses textos e sua relação com a produção do conhecimento científico, manutenção e reprodução da comunidade científica, sugerimos a leitura de Bachelard, “A formação do espírito científico”, Kuhn, “A estrutura das revoluções científicas” e Comte, “Curso de filosofia positivista”. 56
  • 5. A produção científica se dá num espaço polêmico de interlocução. Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006 textuais ou orais, e às vezes os adaptam21 . No entanto, se olharmos a produção textual como aspecto da produção, formulação e circulação de discursos e, estes últimos, como constituintes simultaneamente de sentidos e de sujeitos, podemos considerar que diferentes textualidades produzem diferentes efeitos- leitores, produzem/reproduzem diferentes relações sociais entre os sujeitos. Mas, na medida em que estes textos foram excluindo outras possibilidades de dizer e produzindo efeitos-leitores específicos e restritivos, outros textos foram sendo produzidos, e provavelmente, também se modificando ao longo do tempo. A produção científica se dá num espaço polêmico de interlocução. Como diz Bruno Latour, “quando nos aproximamos dos lugares onde são criados fatos [científicos] e máquinas, entramos no meio das controvérsias”22 . Artigos científicos são os principais textos pelos quais são travadas essas polêmicas. Ainda segundo Latour, o leitor de um artigo científico pode ser considerado um leitor discordante. Em vista da imagem desse leitor, o artigo é construído, o discurso científico é nele textualizado, antecipando- se às possíveis críticas desse leitor discordante. Há um efeito-leitor23 particular nessa textualidade. Um efeito- leitor construído historicamente com a institucionalização da ciência. Mas o artigo científico não é o único espaço em que se travam debates, discordâncias, polêmicas constitutivas da 21 Cf. Mora, A. M. S. A divulgação científica como literatura. Rio de Janeiro: Casa da Ciência; Editora da UFRJ, 2002. 22 Latour, B. Ciência em ação. São Paulo: Editora da Unesp, 2000, p. 53. 23 Sobre a noção de efeito-leitor ver Orlandi, E. Discurso e texto. 2ª ed. Campinas SP: Pontes, 2005. produção do conhecimento científico. Como todo texto, um artigo científico comporta determinados tipos de formulações e enunciados e não outros. Questões de cunho filosófico, epistemológico, ontológico e, às vezes, ético e moral, envolvidas nessas polêmicas têm pouco espaço para serem formuladas num artigo científico. Quando Einstein intitulou seu artigo “Sobre um ponto de vista heurístico sobre a produção e transformação da luz”, em 1905, a expressão “ponto de vista heurístico” representava um ponto de vista de natureza epistemológica e ontológica sobre a teoria quântica, nos primórdios de seu desenvolvimento, envolvido desde então num debate cujos termos não estavam formulados no próprio artigo, mesmo que, ao formular seu título dessa forma, o autor já tomasse uma posição nessa polêmica que iria se arrastar durante décadas. É em outros textos produzidos também na interlocução cientista-cientista, como, neste caso, nas cartas entre Einstein e Bohr, ou nos livros (de divulgação científica?) publicados por Einstein que vamos encontrar argumentações mais detalhadas sobre esses aspectos intimamente relacionados à produção do conhecimento científico sobre a física quântica. Podemos encontrar algo análogo nos livros (de divulgação científica?) de Stephen Jay Gould sobre o darwinismo, até hoje envolvido em grandes controvérsias, ou de Lewontin sobre genética. O que chamamos de divulgação científica é o reflexo de um modo de produção de conhecimento restringido e, conseqüentemente da constituição de um 57
  • 6. efeito-leitor específico relacionado à institucionalização, profissionalização e legitimação da ciência moderna, e que opõe produtores e usuários/consumidores e, cria a figura do divulgador, que viria, imaginariamente, restabelecer a cisão, e minimizar a tensão instaurada ao longo da história no tecido social da modernidade. Essa cisão não é mantida sem tensão, sem a (re)produção tensa de um imaginário que a mantém. É nesse imaginário que trabalha a divulgação científica. *** Alguém ainda poderia perguntar, “mas a divulgação científica não pode ser considerada uma atividade de disseminação do conhecimento científico para um público leigo?”. Além dos problemas associados ao termo “disseminação”, essa formulação atualiza um imaginário que vê na divulgação científica uma atividade unidirecional produto da interlocução exclusiva entre cientista (ou jornalista) e o não-cientista. Esta formulação não dá conta de que a divulgação científica também está envolvida na interlocução cientista-cientista. Dado o grau de especialização da atividade científica atual, um cientista é sempre mais ou menos leigo em campos que não sejam estritamente vinculados ao seu próprio trabalho. Embora cientista, um artigo científico não é especialmente dirigido a ele. No entanto, há outro aspecto relacionado à formulação dessa questão. Ela opõe dois sujeitos: de um lado, o cientista, de outro, o não- cientista. De um lado o sujeito produtor do conhecimento científico numa posição de autoridade altamente legitimada e de outro, o consumidor do conhecimento científico, o sujeito interessado em atualização cultural, sem nenhum conhecimento sobre ciência. Para compreender essa questão é preciso pensar sobre que tipo de oposição é essa, como ela vem se dando ao longo da história e retomar alguns aspectos da produção do conhecimento científico. *** Se não há algo que caracteriza especificamente um texto de divulgação científica, seja em relação ao público a que se destina, seja em relação a outros critérios, o que faz dessa expressão nos dar a sensação de que designa algo específico e particular? Enfim, o que é divulgação científica? Seu efeito não estaria em participar do imaginário necessário à circunscrição de espaços de interlocução, em diferenciar um espaço que seria “interior” e um espaço que seria “exterior” à ciência? Vários autores têm apontado sobre o discurso da divulgação científica o fato de ela produzir o efeito de exterioridade da ciência24 . Há um lugar interlocutivo que não se pode entrar. Pelo menos, não pode entrar qualquer um. Uma exterioridade que nos posiciona diante dela de certas maneiras, constituindo diversos efeitos- leitores. O cientista pode sair do seu lugar “próprio” de interlocução legitimada com outro cientista para produzir interlocuções com outros leitores, não cientistas. Esse lugar é preciso não ser confundido, é preciso ser diferenciado. A expressão “divulgação científica” cumpre esse papel. Instaura uma outra cena, como mostra Authier-Revuz25 . E isso tem a ver com a produção de diferentes textualizações e, simultaneamente, com o imaginário que 24 Cf. Guimarães (2001), op. cit.. 25 Authier-Revuz, J. A encenação da comunicação no discurso de divulgação científica. In: ____. Palavras incertas: as não- coincidências do dizer. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1998, p.107-131. 58
  • 7. Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006 produz uma diferenciação e hierarquização de status entre esses diferentes textos em relação ao discurso que veiculam. Trata-se de uma nova versão das relações entre conhecimento, poder, circulação e acesso que em relação às que existiram em outras épocas, como aquela medieval, representada no livro e no filme “O nome da rosa”: o acesso aos textos (simbolizado por um livro de Aristóteles sobre o riso) era dificultado pela localização das únicas bibliotecas em mosteiros, restringido pelo próprio funcionamento institucional dos mosteiros medieval, pela forma da própria biblioteca em labirinto, pela função do bibliotecário que guardava o conhecimento do labirinto cujos segredos eram passados exclusivamente a outro bibliotecário, até ações de interdição que culminavam com a própria morte daquele que ousasse e conseguisse atravessar toda essa estrutura de poder e acesso ao conhecimento. E, do lado de fora das muralhas do mosteiro, a população, faminta e, analfabeta. O fato de bibliotecas não ficarem mais em mosteiros cercados por muralhas não significa que a circulação do conhecimento não deixou de ser controlada. E esse controle tem a ver, simultaneamente, com o modo como o conhecimento científico é produzido, com o modo como ele é formulado e com o modo como ele circula. O fato que quero apontar é o de que textos constituem sentidos e simultaneamente sujeitos, posições de leitura, posições de interlocuções, posições que constituem o tecido social. Nossa sociedade, da forma como os conhecimentos são produzidos, precisa constituir reafirmar, produzir, com a evidência de uma naturalidade, a diferenciação entre produtores e consumidores de conhecimento. Separar e, encenar o reencontro. Mas tudo isso não se dá sem falhas, sem resistências, sem tensões, sem deslocamentos. É nesse espaço que se encontra a escola, as leituras da ciência produzidas dentro dela e as diferentes textualizações do conhecimento científico que ali circulam, ou não circulam (e como circulam) como parte dessas tensões, da produção/reprodução desses imaginários, dessas posições, desses efeitos-leitores...ou de outros... ________________________________ Henrique César da Silva é membro do gepCE e professor do Instituto de Geociências da Unicamp. E-mail: henriquecsilva@ige.unicamp.br 59