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Ninguém é feliz para sempre

                                ATO ÚNICO

      Trata-se de um restaurante de certo luxo, mas não muito. Sobre a mesa
      estão os pratos do casal, que estão no fim da refeição. Ela está sentada
      em sua cadeira, sorrindo. Ele está ajoelhado à frente d’Ela; na mão dele
      há uma caixinha de jóias com um anel dentro. Ele tem uma expressão
      de completa surpresa e desânimo.

Ele: Como não?
Ela: Não, ué. Agora senta no seu lugar que já tá todo mundo olhando.

      Ele se levanta e se senta no seu lugar, ainda atordoado. Pausa.

Ela: Mas o anel é muito bonito.
Ele: Por que você não me disse?
Ela: Não te disse o quê?
Ele: Que não ia casar comigo.
Ela: Essas coisas não se diz. Devia estar subentendido.
Ele: Não tava nada subentendido.
Ela: Pois é, devia estar.
Ele: Só o que tava subentendido é que você queria se casar comigo.
Ela: Não sei como.
Ele: Como estava subentendido?
Ela: Como eu iria casar com você.

      Pausa.

Ele: A gente namora há quatro anos.
Ela: Exatamente! Já vale como um casamento.
Ele: Claro que não! Casamento é diferente de namoro; tem cerimônia na igreja,
véu e grinalda, daminha de honra, festa. Tem noite de núpcias.
Ela: Não sei se você se lembra, mas nós já tivemos várias noites de núpcias...
Ele: Não é a mesma coisa.
Ela: É sim. A gente só não é mais virgem. E não seríamos de qualquer forma
se nos casássemos agora, né.
Ele: Como você diz uma coisa dessas?
Ela: O quê?
Ele: Que não teria nenhum sentimento, nenhum significado.
Ela: Então me diga você. Teria algum sentimento? Teria algum significado?
Isso aqui não é mais século vinte, não. Casar é coisa do passado. Nós,
inclusive, estamos há muito mais tempo juntos do que um monte de pessoas
que se casaram por aí.
Ele: Mas o que nós temos é real.
Ela: E quem é você pra julgar o que é real e o que não é? Cada um só pode
falar por si.
Ele: Quer dizer então... (esclarecido) Que você não me ama.
Ela: Ai, você já ta começando a delirar. Ó, eu vou ao banheiro retocar a
maquiagem e já volto, se recomponha.

       E sai. Ele se vira para a plateia.

Ele: Eu lembro quando a gente se conheceu. Eu entrei na sala do curso de
inglês e ela tava lá, rabiscando a última página do caderno. Coisa de criança.
(para si) Ela era ruiva na época. Sempre gostei de ruivas. (ao público
novamente) Toda vez que o professor perguntava alguma coisa a ela, ela
respondia errado. E eu corrigia, claro. Acho que foi daí que ela começou a ficar
com raiva de mim. Pelo menos eu acho que ela tinha raiva de mim, né. Parecia
que queria me matar. Ficava me olhando torto a aula toda com um olhar meio
estranho. Mas eu continuava corrigindo mesmo assim. Com mulher que se faz
de difícil a gente tem que zoar. Um dia, na prova oral, em dupla, eu calhei de
fazer com ela. Antes daquela prova ela nunca tinha falado diretamente comigo.
Na saída ela simplesmente me chamou pra beber com uns amigos. Eu fui,
lógico, não ia perder essa chance. Ficamos. Depois começamos a nos
conhecer melhor, começamos a namorar e agora estamos aqui. (pausa) A
questão é o que é “aqui”. (pausa) Quem entende as mulheres... Vinicius de
Morais, talvez. Eu não, definitivamente não. Às vezes acho que elas foram
feitas pra não serem entendidas mesmo. Talvez nós homens só tenhamos que
observar admirados enquanto elas nos destroem. E aceitar. É, aceitar.

       Ela volta e se senta como se nada tivesse acontecido.

Ela: Tava falando com quem?
Ele: Eu aceito.
Ela: Aceita o quê?
Ele: Aceito sua recusa ao casamento.

       A expressão d’Ela muda imediatamente. Ela tenta disfarçar, mas falha.

Ela: Não há nada pra você aceitar.
Ele: Há sim. Há muita coisa.
Ela: O que, por exemplo?
Ele: Sua recusa ao casamento.
Ela: Ah, por favor...
Ele: Eu não te entender.
Ela: Você aceita você não me entender?
Ele: Isso mesmo.
Ela: Não entendi.
Ele: Nem eu. Mas eu aceito.

       Ela faz cara de debocha.

Ele: Foi uma surpresa você ter recusado, sabia?
Ela: (mais delicada, surpresa com a pergunta) Foi, é?
Ele: Sim, foi. Depois de todos os sinais, todas as dicas, tudo...
Ela: Tudo?
Ele: É. Tudo.
Ela: Mas ainda não passou tudo.
Ele: Eu não sei se ainda tem algo pra passar.
Ela: Claro que tem coisa pra passar! Tem muita coisa pra passar ainda!
Ele: Eu não teria tanta certeza.

      Ele levanta a mão, aparece o garçom.

Garçom: Algo mais, senhor?
Ele: Traz a conta pra mim, por favor.
Garçom: Pois não.
Ela: Peraí, por que trazer a conta agora; a gente nem acabou de jantar.
Ele: Eu já. (faz sinal para o garçom, que sai)
Ela: Mas e a sobremesa?
Ele: Não tem sobremesa.
Ela: Claro que tem, tem que ter.
Ele: Eu não quero.
Ela: Vamos terminar a garrafa de vinho, então.
Ele: Eu to dirigindo e ainda tenho que te levar em casa. Chega pra mim.
Ela: Um segundo prato?
Ele: Eu estou FARTO.

      Pausa. O garçom traz a conta. Ele saca a carteira do bolso e paga.
      Enquanto caminham até o carro vão conversando.

Ela: Você também é muito incompreensível, sabia?
Ele: Não vejo porquê.
Ela: Você vem, me pede em casamento, e aí, do nada, diz que tá farto.
Ele: Não foi do nada.
Ela: Ah, é? Então me diz o que aconteceu que te fez mudar assim tão
subitamente.
Ele: Você recusou o pedido de casamento.

      Pausa.

Ela: (dramática) O que é que tá acontecendo?

      Entram no carro.

Ele: O que acontece é que você não me ama mais.
Ela: Larga de ser ridículo! É óbvio que eu amo!
Ele: Ama mesmo?
Ela: Amo.
Ele: De verdade?
Ela: De verdade.
Ele: Pra sempre?
Ela: Pra sempre.
Ele: Então por que você não quis casar comigo?

      Pausa.
Ela: Não sei.
Ele: Pois é.

      Ele liga o carro e começa a dirigir.

Ela: Tava tudo tão bem.
Ele: Ninguém é feliz para sempre.

      Pausa.

Ela: Acho que a gente só pode ser feliz sem depender de mais ninguém.

      Ele dá a entender que está parando o carro.

Ela: Por que você tá parando?
Ele: Preciso fumar um cigarro.

      Ele sai do carro e acende seu cigarro. Ela se vira para a plateia.

Ela: Eu lembro quando a gente se conheceu. Ele entrou na sala do curso de
inglês e eu tava lá, rabiscando a última página do caderno. Coisa de criança.
(para si) Ele usava cabelo grande na época. Sempre gostei de caras com
cabelo grande. (ao público novamente) Toda vez que o professor perguntava
alguma coisa pra mim eu respondia errado. De propósito, claro. Ele sempre me
corrigia. Só assim dava pra notar que ele sabia que eu existia. Eu nunca fui
muito tímida mas, sei lá, com ele foi diferente. E ele também não vinha falar
comigo então a gente ficava nisso. Eu ficava só olhando pra ele, e acho que
ele percebia. Deve ter sido daí que ele começou a se interessar por mim. Pelo
menos eu acho que ele tinha interesse por mim, né. Com homem que esnoba a
gente tem que se fazer de difícil. Um dia, na prova oral, em dupla, eu calhei de
fazer com ele. Mais tarde eu ia sair com uns amigos, e a nossa prova correu
tão bem que na saída eu o convidei pra ir. Ele aceitou de cara, foi aí que tive
certeza. Ficamos. Depois começamos a nos conhecer melhor, começamos a
namorar e agora estamos aqui. (pausa) A questão é o que é “aqui”. (pausa)
Ninguém entende as mulheres além de nós mesmas... Vinicius de Morais,
talvez. Ele (aponta para Ele) não, definitivamente não. Às vezes acho que nós
fomos feitas pra não sermos entendidas mesmo. Talvez os homens só tenham
que nos observar admirados enquanto mandamos na nossa vida E na deles. E
aceitar. É, aceitar.

      Ela sai do carro também e vai de encontro a Ele.

Ela: Tem outro aí?

      Ele saca a cartela do bolso e dá um cigarro a Ela. Quando vai acendê-lo
      com o isqueiro, ela faz que não e acende seu cigarro pela ponta do
      cigarro d’Ele.

Ela: Desculpa pelo vexame que eu te fiz passar.
Ele: Que vexame?
Ela: Ter recusado seu pedido lá no restaurante. Todo mundo ficou olhando.
Ele: (com risadinha) Ah, tem nada de mais não.
Ela: É. (traga o cigarro) Se eu dissesse agora que quero casar contigo, você
ainda casaria comigo?
Ele: Talvez, mas acho que não.
Ela: Hum... (dá outra tragada) Eu aceito.
Ele: Aceita se casar comigo?
Ela: Aceito tudo.

      Ele a encara por um momento e então joga o resto de cigarro no chão e
      pisa em cima.

Ele: Eu vou te esperar lá no carro.
Ela: Não, espera aí, eu vou também.

      Ela joga o cigarro quase inteiro no chão e pisa em cima. Ambos voltam
      ao carro e se sentam indiferentes. De repente, ela começa a o beijar
      fervorosamente, ele retribui, mas o calor logo passa, e voltam ao estado
      anterior.

Ele: Nada?
Ela: Nada.
Ele: É, vamos pra casa.

      Ele liga o carro e partem.

Ele: Chegamos.
Ela: Quer entrar?
Ele: Pra quê?
Ela: Tem razão.

      Quando Ela está quase saindo de cena Ele a chama.

Ele: Ei.
Ela: O quê?
Ele: (saindo do carro) O que você quis dizer quando disse que aceita tudo?
Ela: Quis dizer que aceito tudo.
Ele: Até o casamento?
Ela: (sorrindo) Quatro anos já é um casamento.
Ele: Mas há pouco você disse que nós não temos nada.
Ela: Então eu aceito o nada. Afinal, nada é tudo o que temos, né?

      Ambos sorriem. Ele se aproxima.

Ele: Se não há nada então tem espaço pra ter alguma coisa.
Ela: É, uma coisa ou outra acho que dá pra ter.
Ele: Sem casamento?
Ela: Sem casamento.

      E se beijam.                                                     FIM

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Ninguém é feliz para sempre

  • 1. Ninguém é feliz para sempre ATO ÚNICO Trata-se de um restaurante de certo luxo, mas não muito. Sobre a mesa estão os pratos do casal, que estão no fim da refeição. Ela está sentada em sua cadeira, sorrindo. Ele está ajoelhado à frente d’Ela; na mão dele há uma caixinha de jóias com um anel dentro. Ele tem uma expressão de completa surpresa e desânimo. Ele: Como não? Ela: Não, ué. Agora senta no seu lugar que já tá todo mundo olhando. Ele se levanta e se senta no seu lugar, ainda atordoado. Pausa. Ela: Mas o anel é muito bonito. Ele: Por que você não me disse? Ela: Não te disse o quê? Ele: Que não ia casar comigo. Ela: Essas coisas não se diz. Devia estar subentendido. Ele: Não tava nada subentendido. Ela: Pois é, devia estar. Ele: Só o que tava subentendido é que você queria se casar comigo. Ela: Não sei como. Ele: Como estava subentendido? Ela: Como eu iria casar com você. Pausa. Ele: A gente namora há quatro anos. Ela: Exatamente! Já vale como um casamento. Ele: Claro que não! Casamento é diferente de namoro; tem cerimônia na igreja, véu e grinalda, daminha de honra, festa. Tem noite de núpcias. Ela: Não sei se você se lembra, mas nós já tivemos várias noites de núpcias... Ele: Não é a mesma coisa. Ela: É sim. A gente só não é mais virgem. E não seríamos de qualquer forma se nos casássemos agora, né. Ele: Como você diz uma coisa dessas? Ela: O quê? Ele: Que não teria nenhum sentimento, nenhum significado. Ela: Então me diga você. Teria algum sentimento? Teria algum significado? Isso aqui não é mais século vinte, não. Casar é coisa do passado. Nós, inclusive, estamos há muito mais tempo juntos do que um monte de pessoas que se casaram por aí. Ele: Mas o que nós temos é real. Ela: E quem é você pra julgar o que é real e o que não é? Cada um só pode falar por si. Ele: Quer dizer então... (esclarecido) Que você não me ama.
  • 2. Ela: Ai, você já ta começando a delirar. Ó, eu vou ao banheiro retocar a maquiagem e já volto, se recomponha. E sai. Ele se vira para a plateia. Ele: Eu lembro quando a gente se conheceu. Eu entrei na sala do curso de inglês e ela tava lá, rabiscando a última página do caderno. Coisa de criança. (para si) Ela era ruiva na época. Sempre gostei de ruivas. (ao público novamente) Toda vez que o professor perguntava alguma coisa a ela, ela respondia errado. E eu corrigia, claro. Acho que foi daí que ela começou a ficar com raiva de mim. Pelo menos eu acho que ela tinha raiva de mim, né. Parecia que queria me matar. Ficava me olhando torto a aula toda com um olhar meio estranho. Mas eu continuava corrigindo mesmo assim. Com mulher que se faz de difícil a gente tem que zoar. Um dia, na prova oral, em dupla, eu calhei de fazer com ela. Antes daquela prova ela nunca tinha falado diretamente comigo. Na saída ela simplesmente me chamou pra beber com uns amigos. Eu fui, lógico, não ia perder essa chance. Ficamos. Depois começamos a nos conhecer melhor, começamos a namorar e agora estamos aqui. (pausa) A questão é o que é “aqui”. (pausa) Quem entende as mulheres... Vinicius de Morais, talvez. Eu não, definitivamente não. Às vezes acho que elas foram feitas pra não serem entendidas mesmo. Talvez nós homens só tenhamos que observar admirados enquanto elas nos destroem. E aceitar. É, aceitar. Ela volta e se senta como se nada tivesse acontecido. Ela: Tava falando com quem? Ele: Eu aceito. Ela: Aceita o quê? Ele: Aceito sua recusa ao casamento. A expressão d’Ela muda imediatamente. Ela tenta disfarçar, mas falha. Ela: Não há nada pra você aceitar. Ele: Há sim. Há muita coisa. Ela: O que, por exemplo? Ele: Sua recusa ao casamento. Ela: Ah, por favor... Ele: Eu não te entender. Ela: Você aceita você não me entender? Ele: Isso mesmo. Ela: Não entendi. Ele: Nem eu. Mas eu aceito. Ela faz cara de debocha. Ele: Foi uma surpresa você ter recusado, sabia? Ela: (mais delicada, surpresa com a pergunta) Foi, é? Ele: Sim, foi. Depois de todos os sinais, todas as dicas, tudo... Ela: Tudo? Ele: É. Tudo.
  • 3. Ela: Mas ainda não passou tudo. Ele: Eu não sei se ainda tem algo pra passar. Ela: Claro que tem coisa pra passar! Tem muita coisa pra passar ainda! Ele: Eu não teria tanta certeza. Ele levanta a mão, aparece o garçom. Garçom: Algo mais, senhor? Ele: Traz a conta pra mim, por favor. Garçom: Pois não. Ela: Peraí, por que trazer a conta agora; a gente nem acabou de jantar. Ele: Eu já. (faz sinal para o garçom, que sai) Ela: Mas e a sobremesa? Ele: Não tem sobremesa. Ela: Claro que tem, tem que ter. Ele: Eu não quero. Ela: Vamos terminar a garrafa de vinho, então. Ele: Eu to dirigindo e ainda tenho que te levar em casa. Chega pra mim. Ela: Um segundo prato? Ele: Eu estou FARTO. Pausa. O garçom traz a conta. Ele saca a carteira do bolso e paga. Enquanto caminham até o carro vão conversando. Ela: Você também é muito incompreensível, sabia? Ele: Não vejo porquê. Ela: Você vem, me pede em casamento, e aí, do nada, diz que tá farto. Ele: Não foi do nada. Ela: Ah, é? Então me diz o que aconteceu que te fez mudar assim tão subitamente. Ele: Você recusou o pedido de casamento. Pausa. Ela: (dramática) O que é que tá acontecendo? Entram no carro. Ele: O que acontece é que você não me ama mais. Ela: Larga de ser ridículo! É óbvio que eu amo! Ele: Ama mesmo? Ela: Amo. Ele: De verdade? Ela: De verdade. Ele: Pra sempre? Ela: Pra sempre. Ele: Então por que você não quis casar comigo? Pausa.
  • 4. Ela: Não sei. Ele: Pois é. Ele liga o carro e começa a dirigir. Ela: Tava tudo tão bem. Ele: Ninguém é feliz para sempre. Pausa. Ela: Acho que a gente só pode ser feliz sem depender de mais ninguém. Ele dá a entender que está parando o carro. Ela: Por que você tá parando? Ele: Preciso fumar um cigarro. Ele sai do carro e acende seu cigarro. Ela se vira para a plateia. Ela: Eu lembro quando a gente se conheceu. Ele entrou na sala do curso de inglês e eu tava lá, rabiscando a última página do caderno. Coisa de criança. (para si) Ele usava cabelo grande na época. Sempre gostei de caras com cabelo grande. (ao público novamente) Toda vez que o professor perguntava alguma coisa pra mim eu respondia errado. De propósito, claro. Ele sempre me corrigia. Só assim dava pra notar que ele sabia que eu existia. Eu nunca fui muito tímida mas, sei lá, com ele foi diferente. E ele também não vinha falar comigo então a gente ficava nisso. Eu ficava só olhando pra ele, e acho que ele percebia. Deve ter sido daí que ele começou a se interessar por mim. Pelo menos eu acho que ele tinha interesse por mim, né. Com homem que esnoba a gente tem que se fazer de difícil. Um dia, na prova oral, em dupla, eu calhei de fazer com ele. Mais tarde eu ia sair com uns amigos, e a nossa prova correu tão bem que na saída eu o convidei pra ir. Ele aceitou de cara, foi aí que tive certeza. Ficamos. Depois começamos a nos conhecer melhor, começamos a namorar e agora estamos aqui. (pausa) A questão é o que é “aqui”. (pausa) Ninguém entende as mulheres além de nós mesmas... Vinicius de Morais, talvez. Ele (aponta para Ele) não, definitivamente não. Às vezes acho que nós fomos feitas pra não sermos entendidas mesmo. Talvez os homens só tenham que nos observar admirados enquanto mandamos na nossa vida E na deles. E aceitar. É, aceitar. Ela sai do carro também e vai de encontro a Ele. Ela: Tem outro aí? Ele saca a cartela do bolso e dá um cigarro a Ela. Quando vai acendê-lo com o isqueiro, ela faz que não e acende seu cigarro pela ponta do cigarro d’Ele. Ela: Desculpa pelo vexame que eu te fiz passar. Ele: Que vexame?
  • 5. Ela: Ter recusado seu pedido lá no restaurante. Todo mundo ficou olhando. Ele: (com risadinha) Ah, tem nada de mais não. Ela: É. (traga o cigarro) Se eu dissesse agora que quero casar contigo, você ainda casaria comigo? Ele: Talvez, mas acho que não. Ela: Hum... (dá outra tragada) Eu aceito. Ele: Aceita se casar comigo? Ela: Aceito tudo. Ele a encara por um momento e então joga o resto de cigarro no chão e pisa em cima. Ele: Eu vou te esperar lá no carro. Ela: Não, espera aí, eu vou também. Ela joga o cigarro quase inteiro no chão e pisa em cima. Ambos voltam ao carro e se sentam indiferentes. De repente, ela começa a o beijar fervorosamente, ele retribui, mas o calor logo passa, e voltam ao estado anterior. Ele: Nada? Ela: Nada. Ele: É, vamos pra casa. Ele liga o carro e partem. Ele: Chegamos. Ela: Quer entrar? Ele: Pra quê? Ela: Tem razão. Quando Ela está quase saindo de cena Ele a chama. Ele: Ei. Ela: O quê? Ele: (saindo do carro) O que você quis dizer quando disse que aceita tudo? Ela: Quis dizer que aceito tudo. Ele: Até o casamento? Ela: (sorrindo) Quatro anos já é um casamento. Ele: Mas há pouco você disse que nós não temos nada. Ela: Então eu aceito o nada. Afinal, nada é tudo o que temos, né? Ambos sorriem. Ele se aproxima. Ele: Se não há nada então tem espaço pra ter alguma coisa. Ela: É, uma coisa ou outra acho que dá pra ter. Ele: Sem casamento? Ela: Sem casamento. E se beijam. FIM