Ensemble canônico: descrição estatística de sistemas abertos
1. Cap´
ıtulo 1
O Ensemble Canˆnico
o
No cap´ıtulo anterior discutimos a abordagem estat´ ıstica de sistemas que est˜o isolados, no con-
a
texto do ensemble canˆnico. Embora tenhamos condi¸˜es de resolver um n´mero grande de
o co u
problemas com estas caracter´ ısticas, o ensemble microcanˆnico tem uma utilidade mais te´rica
o o
do que pr´tica. A raz˜o ´ simples: os sistemas em condi¸˜es de laborat´rio n˜o est˜o isolados.
a a e co o a a
Colocamos nossas amostras em contato t´rmico com fornos e criostatos, o reservat´rio em que
e o
estas est˜o confinadas s˜o comprimidos e expandidos, trocamos part´
a a ıculas com reservat´rios,
o
etc. Assim, precisamos achar uma forma de estudar do ponto de vista estat´ ıstico sistemas aber-
tos, ou seja, que n˜o est˜o isolados. Isto ser´ feito neste cap´
a a a ıtulo atrav´s do chamado ensemble
e
canˆnico.
o
1.1 Defini¸˜o estat´
ca ıstica
O ensemble canˆnico ´ usado na descri¸˜o de um sistema que n˜o est´ isolado, e sim em contato
o e ca a a
t´rmico com um reservat´rio de calor (ou reservat´rio t´rmico). Assim, este sistema tem o
e o o e
n´mero de part´
u ıculas N fixo, j´ que suas paredes s˜o imperme´veis, e V fixo, pois suas paredes
a a a
s˜o fixas. Por fim, como as paredes que cercam o sistema em estudo s˜o diat´rmicas, o sistema
a a e
pode trocar calor com o reservat´rio exterior, tal que sua temperatura T ´ fixa e igual a do
o e
reservat´rio. Por conta destas caracter´
o ısticas, o ensemble ´ conhecido na literatura como o
e
ensemble N V T . Assim, considere um sistema termodinˆmico A, em contato com outro sistema,
a
muito maior do que A, que chamaremos de reservat´rio A . No formula¸˜o do ensemble canˆnico,
o ca o
a pergunta que queremos responder sobre o sistema aberto A ´ a seguinte:
e
“No equil´
ıbrio, qual ´ a probabilidade Pr de encontrarmos o sistema A num particular
e
microestado r de energia Er ?”
Para responder esta quest˜o, come¸amos analizando o sistema composto A(0) = A + A , na
a c
formula¸˜o microcanˆnica, pois A(0) est´ isolado. Neste caso, a energia total E (0) do sistema
ca o a
composto ´ constante, ou seja,
e
A(0) = A + A =⇒ E (0) = Er + E , (1.1)
onde Er ´ a energia do estado r no qual o sistema A se encontra, e E ´ a energia do reservat´rio
e e o
A . Assim, enquanto A tem energia Er , o reservat´rio A tem uma energia E = E (0) − Er .
o
Neste caso, o n´mero de estados acess´
u ıveis para o sistema composto ´ dado por
e
Ω(0) = Ω(E)Ω (E ) , (1.2)
1
2. 2 CAP´ ˆ
ITULO 1. O ENSEMBLE CANONICO
onde o sistema A tem energia entre E e E + δE. Como o postulado da igual probabilidade
ıbrio, A(0) pode ser encontrado em qualquer um dos seus estados
a priori afirma que, no equil´
acess´
ıveis,
P (E) = CΩ(0) (E) (1.3)
´ a probabilidade de encontrarmos o sistema A(0) numa configura¸˜o onde A tem energia entre
e ca
E e E + δE, ou seja,
P (E) = CΩ(E)Ω (E (0) − E) . (1.4)
Como estamos admitindo que A est´ num particular estado r de energia Er , Ω(E) = 1, tal que
a
Pr = CΩ (E (0) − E) . (1.5)
A constante de proporcionalidade C na equa¸˜o (1.5) pode ser obtida da condi¸˜o de nor-
ca ca
maliza¸˜o,
ca
Pr = 1 , (1.6)
r
onde a soma se extende sobre todos os estados acess´ ıveis de A. Se A ´ muito menor do que A ,
e
ou seja, A ´ um reservat´rio t´rmico, Er
e o e E (0) , tal que podemos expandir Ω (E ) na equa¸˜o
ca
(1.5) em torno do valor E = E (0) , ou em termos do seu logaritmo (pois este tem uma varia¸˜oca
mais lenta),
∂ ln Ω 1 ∂ 2 ln Ω
ln Ω (E (0) − Er ) = ln Ω (E (0) ) − Er + 2
Er + . . . (1.7)
∂E E =E (0) 2 ∂E 2 E =E (0)
Nota que o termo quadr´tico na expans˜o pode ser reescrito como
a a
∂ 2 ln Ω ∂ ∂ ln Ω ∂β 1 ∂ 1
2
= = = →0, (1.8)
∂E ∂E ∂E ∂E kB ∂E T
pois para o reservat´rio A a temperatura T ´ fixa. Assim, em (1.7) teremos
o e
ln Ω (E (0) − Er ) = ln Ω (E (0) ) − βEr =⇒ Ω (E (0) − Er ) = Ω (E (0) )e−βEr , (1.9)
onde j´ tomamos β = β, pois o sistema A est´ em equil´
a a ıbrio com o reservat´rio A . Como
o
Ω (E (0) ´ uma constante que independe do estado r, a equa¸˜o (1.10) pode ser reescrita como
e ca
Pr = Ce−βEr , (1.10)
onde C pode agora ser calculada usando (1.6),
1
C= . (1.11)
e−βEr
r
Com isto,
e−βEr
Pr = , (1.12)
Z
onde
Z≡ e−βEr (1.13)
r
´ a fun¸˜o de parti¸˜o canˆnica1 do sistema. A equa¸˜o (1.12) ´ a distribui¸˜o de pro-
e ca ca o ca e ca
babilidade canˆnica. O termo e−βEr ´ conhecido como o fator de Boltzmann. Assim, uma
o e
poss´ defini¸˜o para o ensemble canˆnico ´ a que se segue:
ıvel ca o e
1 Esta terminologia ´ derivada do termo em alem˜o Zustandsumme, o que significa soma sobre estados.
e a
3. ´ ˆ
1.2. VALORES MEDIOS NO ENSEMBLE CANONICO 3
“O ensemble canˆnico ´ constitu´ pelo conjunto de microestados {r}, associados `
o e ıdo a
distribui¸˜o de probabilidade canˆnica (1.12), acess´
ca o ıveis a um sistema A, em contato
com um reservat´rio t´rmico A a temperatura T .”
o e
Podemos generalizar o resultado (1.12), calculando a probabilidade P (E) que o sistema A
tenha uma energia no intervalo entre E e E + δE, ou seja2 ,
P (E) = Pr , (1.14)
r
onde r ´ tal que E < Er < E + δE. Mas como todos estes estados tˆm a mesma probabilidade
e e
de ocorrˆncia dentro do ensemble,
e
P (E) = CΩ(E)e−βE . (1.15)
Esta fun¸˜o tem um comportamento bem caracter´
ca ıstico com a energia: enquanto Ω(E) cresce
com E, e−βE decresce rapidamente com E. Assim, P (E) apresenta um m´ximo em torno do
a
˜
valor mais prov´vel E.
a
1.2 Valores m´dios no ensemble canˆnico
e o
Dada a distribui¸˜o de probabilidade canˆnica, podemos calcular valores m´dios. Assim, se y ´
ca o e e
uma quantidade que assume o valor yr no estado r do sistema A, o valor m´dio de y ser´ dado
e a
por
yr e−βEr
r
y= . (1.16)
e−βEr
r
Podemos ent˜o calcular algumas quantidades m´dias importantes. Comecemos com o valor
a e
m´dio da energia,
e
Er e−βEr
r 1 ∂ −βEr 1 ∂
E = = − e = − e−βEr
e −βEr
e −βEr
r
∂β e −βEr ∂β r
r r r
1 ∂Z
= − , (1.17)
Z ∂β
onde estamos usando a defini¸˜o (1.13) para a fun¸˜o de parti¸˜o canˆnica. Podemos reescrever
ca ca ca o
a equa¸˜o (1.17) como
ca
∂ ln Z
E=− . (1.18)
∂β
A dispers˜o (ou variˆncia) da energia pode ser facilmente calculada,
a a
2
(∆E)2 ≡ (E − E)2 = E 2 − E . (1.19)
2 As probabilidades se somam, pois se A est´ num dado microestado i, automaticamente exclu´
a ımos os outros
j microestados contidos no intervalo E e E + δE.
4. 4 CAP´ ˆ
ITULO 1. O ENSEMBLE CANONICO
Agora,
Er e−βEr
2
2
r 1 ∂ −βEr 1 ∂
E2 = = − e Er = − e−βEr
e −βEr
e −βEr
r
∂β e−βEr ∂β r
r r r
2
1∂ Z
= . (1.20)
Z ∂β 2
Por outro lado, podemos reescrever esta equa¸˜o em termos de E,
ca
2
∂ 1 ∂Z 1 ∂Z ∂E 2
E2 = + =− +E . (1.21)
∂β Z ∂β Z2 ∂β ∂β
Com isto,
∂E ∂ 2 ln Z
(∆E)2 = − = . (1.22)
∂β ∂β 2
Nota que (∆E)2 0. Com isto,
∂E ∂E
0 =⇒ 0, (1.23)
∂β ∂T
ou seja, a energia ´ uma fun¸˜o crescente da temperatura T .
e ca
Outra quantidade m´dia importante ´ a for¸a generalizada. Para defin´
e e c ı-la, suponha que o
sistema seja caracterizado por um unico parˆmetro externo x. Neste caso, considere um processo
´ a
quase-est´tico no qual o parˆmetro externo muda de x para x + dx. Neste caso, a energia do
a a
sistema no estado r muda de uma quantidade
∂Er
∆x Er = dx . (1.24)
∂x
Assim, o trabalho macrosc´pico dW feito pelo sistema, em fun¸˜o da varia¸˜o do parˆmetro x,
o ¯ ca ca a
´ dado por
e
∂Er
e−βEr − dx
r
∂x
dW =
¯ (1.25)
e−βEr
r
Esta equa¸˜o foi obtida a partir da rela¸˜o entre o trabalho e a for¸a generalizada m´dia
ca ca c e
conjugada ` x, ou seja,
a
∂Er
dW = Xdx =⇒ X ≡ −
¯ . (1.26)
∂x
Na equa¸˜o (1.25) podemos mais uma vez introduzir a fun¸˜o de parti¸˜o Z,
ca ca ca
∂Er 1 ∂ 1 ∂Z
e−βEr =− e−βEr =− , (1.27)
r
∂x β ∂x r
β ∂x
tal que
1 ∂Z 1 ∂ ln Z
dW =
¯ dx = dx . (1.28)
βZ ∂x β ∂x
5. ˜ ˆ
1.3. CONEXAO COM A TERMODINAMICA 5
Comparando com (1.26), podemos escrever a for¸a generalizada m´dia, conjugada com o
c e
parˆmetro x, como
a
1 ∂ ln Z
X= . (1.29)
β ∂x
Como exemplo, considere que o parˆmetro externo x ´ o volume V do sistema. Neste caso, o
a e
trabalho quase-est´tico macrosc´pico pode ser escrito como
a o
1 ∂ ln Z
dW = pdV =
¯ dV , (1.30)
β ∂V
tal que a press˜o do sistema pode ser escrita como
a
1 ∂ ln Z
p= . (1.31)
β ∂V
1.3 Conex˜o com a termodinˆmica
a a
Para obter a equa¸˜o que conecta a formula¸˜o estat´
ca ca ıstica canˆnica com a termodinˆmica, par-
o a
timos da defini¸˜o para a fun¸˜o de parti¸˜o canˆnica. Como a energia de um estado r ´ fun¸˜o
ca ca ca o e ca
do parˆmetro externo x, Er = Er (x), da defini¸˜o (1.13) para Z, podemos escrever Z = Z(β , x).
a ca
Com isto, quando submetemos o sistema a um processo quase-est´tico qualquer, Z varia como
a
∂ ln Z ∂ ln Z
d ln Z = dx + dβ = βXdx − Edβ = β¯ − Eβ .
dW (1.32)
∂x ∂β
Assim, podemos reescrever esta equa¸˜o em termos de uma varia¸˜o de E, como numa trans-
ca ca
forma¸˜o de Legendre,
ca
d ln Z = β¯ − d(Eβ) + βdE
dW =⇒ d(ln Z + βE) = β(¯ + dE) = β¯ ,
dW dQ (1.33)
onde usamos a 1a lei da termodinˆmica, dW + dE = dQ, quando associamos a energia m´dia com
a ¯ ¯ e
a energia interna do sistema. Como dQ ´ o calor absorvido pelo sistema, podemos relacionar
¯ e
esta ultima equa¸˜o com a 2a lei da termodinˆmica, ou seja, dS = dQ/T , se considerarmos a
´ ca a ¯
entropia do sistema escrita como
S = kB (ln Z + βE) . (1.34)
Esta ´ a defini¸˜o para a entropia termodinˆmica no ensemble canˆnico. Agora, se multiplicarmos
e ca a o
a equa¸˜o de defini¸˜o para S acima pela temperatura T , teremos
ca ca
T S = kB T ln Z + E =⇒ E − T S = −kB T ln Z , (1.35)
ou
F = −kB T ln Z , (1.36)
onde F = E − T S ´ a energia livre de Helmholtz do sistema. Esta ´ a equa¸˜o que conecta
e e ca
a formula¸˜o estat´
ca ıstica canˆnica, expressa pela fun¸˜o de parti¸˜o Z, com a termodinˆmica
o ca ca a
contida na energia livre F .