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Cruz do Santo Lenho Mogol
No Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, guarda-se um invulgar conjunto de peças de fun-
ção litúrgica, uma cruz relicário e um par de galhetas, de evidente manufactura oriental ao estilo
mogol, datados de finais do século xvii e princípios do século xviii. d O seu material constituinte
principal, a nefrite verde (uma variedade de jade), e a decoração vegetalista materializada em ouro,
segurando quase 300 rubis polidos em cabuchão, são fortes indicadores desta proveniência. O par
de galhetas, utilizado para levar o vinho e a água para a consagração na Eucaristia, faz conjunto com
a cruz, tendo em comum, além do estojo, o material constituinte principal, a nefrite, e a decoração
vegetalista dourada, que segura vidros azuis, quartzos com forro colorido e apenas um rubi, poden-
do quase dizer-se que se tratam de pedras de imitação. O enriquecimento mais faustoso da cruz,
com rubis, será porventura mais consentâneo com a dignidade da relíquia que para aí era destinada.
São raros os objectos religiosos de culto católico feitos em jade, em especial com marcadas caracte-
rísticas de arte mogol, sendo este povo conhecido apreciador de trabalhos em jade com aplicações
de ouro e pedrarias. Este conjunto será, assim, uma provável peça feita de encomenda, porventura
no período em que os jesuítas portugueses frequentaram a corte mogol, a qual, embora muçulmana,
demonstrava grande interesse e curiosidade pela iconografia e arte cristãs33 .
Tal como foi referido, o material constituinte da cruz relicário e do par de galhetas em apreço é a
nefrite, uma variedade de jade. Cumpre, então, esclarecer que a expressão jade é meramente uma
designação de um conjunto de minerais com determinadas características texturais, em concreto
a mencionada nefrite e a jadeíte, que apesar das semelhanças visuais são materiais diferentes com
propriedades também diferentes. A nefrite, que ocorre noutras cores além do verde (e. g. branco,
creme), é de utilização muito ancestral na China, sendo-lhe associado um forte simbolismo do culto
dos mortos enraizado nas culturas taoísta e budista. Os portugueses de Quinhentos chamavam a            d
                                                                                                        Raro conjunto de cruz relicário e par de galhetas
                                                                                                        ao estilo mogol, datado de finais do séc. xvii a princípios
este mineral “pedra da ilharga”, designação que foi utilizada pelos conquistadores espanhóis coe-       do séc. xviii e de evidente fabrico oriental. O jade (nefrite)
                                                                                                        é o material gemológico fundamental, estando
vos para descrever um material semelhante encontrado em artefactos olmecas e maias na Meso-             enriquecido com aplicações de ouro e prata dourada
                                                                                                        que seguram, no caso da cruz, quase 300 rubis
-América que, na realidade, é a outra variedade deste grupo, a jadeíte, procedente da actual Guate-     em cabuchão e, nas galhetas, essencialmente vidros
                                                                                                        e quartzos.
mala. Uma sucessão de corruptelas deu origem à expressão “piedra da hijada” que depois derivou na
                                                                                                        Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto
palavra jade, ficando aqui sugerido que esta palavra tem, no fundo, uma origem portuguesa.              Foto: IMC / DDF / José Pessoa




                                                                                          Relicários    53

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  • 1. Cruz do Santo Lenho Mogol No Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, guarda-se um invulgar conjunto de peças de fun- ção litúrgica, uma cruz relicário e um par de galhetas, de evidente manufactura oriental ao estilo mogol, datados de finais do século xvii e princípios do século xviii. d O seu material constituinte principal, a nefrite verde (uma variedade de jade), e a decoração vegetalista materializada em ouro, segurando quase 300 rubis polidos em cabuchão, são fortes indicadores desta proveniência. O par de galhetas, utilizado para levar o vinho e a água para a consagração na Eucaristia, faz conjunto com a cruz, tendo em comum, além do estojo, o material constituinte principal, a nefrite, e a decoração vegetalista dourada, que segura vidros azuis, quartzos com forro colorido e apenas um rubi, poden- do quase dizer-se que se tratam de pedras de imitação. O enriquecimento mais faustoso da cruz, com rubis, será porventura mais consentâneo com a dignidade da relíquia que para aí era destinada. São raros os objectos religiosos de culto católico feitos em jade, em especial com marcadas caracte- rísticas de arte mogol, sendo este povo conhecido apreciador de trabalhos em jade com aplicações de ouro e pedrarias. Este conjunto será, assim, uma provável peça feita de encomenda, porventura no período em que os jesuítas portugueses frequentaram a corte mogol, a qual, embora muçulmana, demonstrava grande interesse e curiosidade pela iconografia e arte cristãs33 . Tal como foi referido, o material constituinte da cruz relicário e do par de galhetas em apreço é a nefrite, uma variedade de jade. Cumpre, então, esclarecer que a expressão jade é meramente uma designação de um conjunto de minerais com determinadas características texturais, em concreto a mencionada nefrite e a jadeíte, que apesar das semelhanças visuais são materiais diferentes com propriedades também diferentes. A nefrite, que ocorre noutras cores além do verde (e. g. branco, creme), é de utilização muito ancestral na China, sendo-lhe associado um forte simbolismo do culto dos mortos enraizado nas culturas taoísta e budista. Os portugueses de Quinhentos chamavam a d Raro conjunto de cruz relicário e par de galhetas ao estilo mogol, datado de finais do séc. xvii a princípios este mineral “pedra da ilharga”, designação que foi utilizada pelos conquistadores espanhóis coe- do séc. xviii e de evidente fabrico oriental. O jade (nefrite) é o material gemológico fundamental, estando vos para descrever um material semelhante encontrado em artefactos olmecas e maias na Meso- enriquecido com aplicações de ouro e prata dourada que seguram, no caso da cruz, quase 300 rubis -América que, na realidade, é a outra variedade deste grupo, a jadeíte, procedente da actual Guate- em cabuchão e, nas galhetas, essencialmente vidros e quartzos. mala. Uma sucessão de corruptelas deu origem à expressão “piedra da hijada” que depois derivou na Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto palavra jade, ficando aqui sugerido que esta palavra tem, no fundo, uma origem portuguesa. Foto: IMC / DDF / José Pessoa Relicários 53