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“Solfieri” é a primeira das histórias contadas, como terríveis lembranças do passado, 
pelos seis convivas de Noite na Taverna. Em comum, todas elas apresentam acontecimentos 
impactantes, que fogem aos limites do que se entende por “normalidade”. Como anunciado 
em “Uma noite no século” – abertura do livro –, a narrativa de Solfieri possui características 
oníricas: a oscilação entre o real e o insólito, entre o racional e o sobrenatural, instiga a 
curiosidade do leitor, ao mesmo tempo que é capaz de produzir medo. 
O conto é ambientado na Itália, mais especificamente em Roma, um cenário comum 
aos romances góticos – principalmente aos romances canônicos de Ann Radcliffe. Roma possui 
certo prestígio, por estar ligada tanto à Antiguidade Clássica quanto ao cristianismo, 
conferindo um clima de mistério e misticismo à história de Solfieri. Mas, ao invés de um lugar 
religioso, o narrador apresenta Roma como “a cidade do fanatismo e da perdição” (AZEVEDO, 
2000, p. 568). Em tom crítico, ele anuncia que Roma é uma cidade blasfema, onde a 
religiosidade convive com o sacrilégio, onde pureza e fé não resistem a libertinagens, e a 
santidade mescla-se à hipocrisia humana – um tipo de crítica muito comum no romance gótico 
tradicional. 
A ambientação da narrativa é imprecisa: Solfieri estava só e vagava por ruas 
desconhecidas e escuras, até que se depara com uma figura curiosa, a sombra de uma mulher 
pálida como um fantasma, que desaparece tão logo ele se aproxima – é possível apenas ouvir 
o som de sua voz, cantando uma melodia triste, sôfrega e sombria. O encontro é descrito de 
modo a sugerir um evento sobrenatural. O leitor é levado, em um primeiro momento, a pensar 
que a sombra vista por Solfieri é, pois, um fantasma, um ser que não pertence ao mundo real. 
Tanto Solfieri quanto o leitor são atraídos pela estranha figura. Jeffrey Cohen (2000, p. 31)3 
afirma que o monstruoso, nesse caso entendido como o caráter sobrenatural da 
fantasmagórica moça de Solfieri, é um “convite a explorar novas espirais, novos e 
interconectados métodos de perceber o mundo. Diante do monstro, a análise científica e sua 
ordenada racionalidade se desintegram”. Por isso, nós, os leitores, não nos surpreendemos 
quando Solfieri segue a moça, sem pensar em qualquer consequência ou perigo. Em seu lugar, 
possivelmente, faríamos o mesmo e seguiríamos o vulto branco, até comprovarmos sua 
verdadeira natureza, apenas para satisfazer nossa curiosidade. 
A narrativa continua deixando em aberto a identidade da estranha criatura. Solfieri 
segue a suposta assombração até um cemitério, onde ela se ajoelha, parecendo chorar. Em 
seguida, o protagonista adormece misteriosamente, como por encanto ou como se dominado 
por uma força maior. Tanto o cemitério quanto o impreciso desfecho desse encontro nos dão 
impressão de que tudo não passou de um sonho, e estaríamos certos disso se o protagonista 
não encontrasse, ao acordar, uma pequena evidência material que vem se contrapor ao 
caráter sobrenatural do acontecimento: as urzes e cicutas quebradas, como se por sobre elas 
houvesse ajoelhado um ser humano de carne e osso. Tais evidências vão de encontro às 
nossas suspeitas e não podemos desconsiderá-las no nosso processo de “descobrimento”, pois 
elas podem acabar revelando-se essenciais para a compreensão do “monstro” em questão. 
Solfieri fica obcecado pela moça e volta a Roma. Atraído pelas condições misteriosas 
do estranho encontro, o próprio personagem admite: “Um ano depois voltei a Roma. Nos 
beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade me vinha aquela visão...” (Ibid.). 
Essa obsessão será fundamental para a compreensão da monstruosidade que surgirá em 
Solfieri, visto que o profundo desejo e atração que ele sente pela branca criatura motivarão o 
ato perverso que cometerá.
Novamente Álvares de Azevedo se vale de elementos que deixam a narrativa com um tom de 
incerteza – nada é muito preciso ou claro. Solfieri está embriagado pelos efeitos do vinho, vaga 
sem rumo por ruas sem nome, encontra um templo escuro que, não se sabe por qual motivo, 
está de portas abertas. Dentro do templo, o narrador encontra um caixão e uma defunta que o 
lembra da “aparição” anterior, de “uma ideia perdida” – ao que tudo indica, a mesma moça 
que ele encontrara em Roma anteriormente. O protagonista então tem uma “ideia singular”: 
sequestrar o cadáver. 
É possível perceber, na narrativa, a atração física de Solfieri pelo cadáver da moça, um 
comportamento incomum, transgressor e inadmissível de acordo com os tabus estabelecidos 
em nossa sociedade. Solfieri viola normas sociais ao ter relações sexuais com o que então 
supunha ser um cadáver. 
Ao nos chocar com a atrocidade cometida por Solfieri, Álvares de Azevedo acaba 
reforçando as práticas sexuais admitidas em nossa sociedade. A monstruosidade, através de 
sua diferença, revela o que há de pior no nosso sistema, o que há de impuro e incorreto e que 
nem sempre é dito às claras – como a prática da necrofilia. 
Para a nossa maior surpresa, o cadáver da moça reanima-se, e então temos um momento que 
inspira forte terror na narrativa, pois, até então, acreditávamos que a moça estivesse morta. 
Até o momento, a narrativa não deixava claro que espécie de criatura é a estranha e pálida 
moça com quem Solfieri se envolve. Essa é uma estratégia que mantém presa a nossa 
curiosidade, bem como inspira-nos certo terror. 
Afinal, a moça é um fantasma? Uma defunta? Ou ainda vive? Não temos certeza de sua 
condição e isso nos aterroriza; temos a certeza apenas que o ato cometido por Solfieri foi uma 
atrocidade em qualquer dos casos. 
No trecho acima nos é dada uma explicação científica desse terrível mistério: a catalepsia – 
uma saída racional, em contraposição às suspeitas sobrenaturais que foram levantadas até o 
momento. 
O manto da defunta nos serve de prova material do conto de Solfieri. Uma prova, 
certamente, terrível de ser apresentada e que nos causa impacto não apenas por ser uma 
capela fúnebre, de uma defunta, não apenas por estar “murcha e seca como um crânio”, mas 
também porque revela o que pode haver de mal e obscuro no mundo em que vivemos. É 
aterrador vislumbrar a possibilidade de que uma história como a de Solfieri tenha realmente 
acontecido e que os limites instaurados para uma boa convivência em nossa sociedade possam 
ser transgredidos tão facilmente pela monstruosidade. E é essa constatação que nos causa 
terror, repulsa e medo.

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Uma noite no século

  • 1. “Solfieri” é a primeira das histórias contadas, como terríveis lembranças do passado, pelos seis convivas de Noite na Taverna. Em comum, todas elas apresentam acontecimentos impactantes, que fogem aos limites do que se entende por “normalidade”. Como anunciado em “Uma noite no século” – abertura do livro –, a narrativa de Solfieri possui características oníricas: a oscilação entre o real e o insólito, entre o racional e o sobrenatural, instiga a curiosidade do leitor, ao mesmo tempo que é capaz de produzir medo. O conto é ambientado na Itália, mais especificamente em Roma, um cenário comum aos romances góticos – principalmente aos romances canônicos de Ann Radcliffe. Roma possui certo prestígio, por estar ligada tanto à Antiguidade Clássica quanto ao cristianismo, conferindo um clima de mistério e misticismo à história de Solfieri. Mas, ao invés de um lugar religioso, o narrador apresenta Roma como “a cidade do fanatismo e da perdição” (AZEVEDO, 2000, p. 568). Em tom crítico, ele anuncia que Roma é uma cidade blasfema, onde a religiosidade convive com o sacrilégio, onde pureza e fé não resistem a libertinagens, e a santidade mescla-se à hipocrisia humana – um tipo de crítica muito comum no romance gótico tradicional. A ambientação da narrativa é imprecisa: Solfieri estava só e vagava por ruas desconhecidas e escuras, até que se depara com uma figura curiosa, a sombra de uma mulher pálida como um fantasma, que desaparece tão logo ele se aproxima – é possível apenas ouvir o som de sua voz, cantando uma melodia triste, sôfrega e sombria. O encontro é descrito de modo a sugerir um evento sobrenatural. O leitor é levado, em um primeiro momento, a pensar que a sombra vista por Solfieri é, pois, um fantasma, um ser que não pertence ao mundo real. Tanto Solfieri quanto o leitor são atraídos pela estranha figura. Jeffrey Cohen (2000, p. 31)3 afirma que o monstruoso, nesse caso entendido como o caráter sobrenatural da fantasmagórica moça de Solfieri, é um “convite a explorar novas espirais, novos e interconectados métodos de perceber o mundo. Diante do monstro, a análise científica e sua ordenada racionalidade se desintegram”. Por isso, nós, os leitores, não nos surpreendemos quando Solfieri segue a moça, sem pensar em qualquer consequência ou perigo. Em seu lugar, possivelmente, faríamos o mesmo e seguiríamos o vulto branco, até comprovarmos sua verdadeira natureza, apenas para satisfazer nossa curiosidade. A narrativa continua deixando em aberto a identidade da estranha criatura. Solfieri segue a suposta assombração até um cemitério, onde ela se ajoelha, parecendo chorar. Em seguida, o protagonista adormece misteriosamente, como por encanto ou como se dominado por uma força maior. Tanto o cemitério quanto o impreciso desfecho desse encontro nos dão impressão de que tudo não passou de um sonho, e estaríamos certos disso se o protagonista não encontrasse, ao acordar, uma pequena evidência material que vem se contrapor ao caráter sobrenatural do acontecimento: as urzes e cicutas quebradas, como se por sobre elas houvesse ajoelhado um ser humano de carne e osso. Tais evidências vão de encontro às nossas suspeitas e não podemos desconsiderá-las no nosso processo de “descobrimento”, pois elas podem acabar revelando-se essenciais para a compreensão do “monstro” em questão. Solfieri fica obcecado pela moça e volta a Roma. Atraído pelas condições misteriosas do estranho encontro, o próprio personagem admite: “Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade me vinha aquela visão...” (Ibid.). Essa obsessão será fundamental para a compreensão da monstruosidade que surgirá em Solfieri, visto que o profundo desejo e atração que ele sente pela branca criatura motivarão o ato perverso que cometerá.
  • 2. Novamente Álvares de Azevedo se vale de elementos que deixam a narrativa com um tom de incerteza – nada é muito preciso ou claro. Solfieri está embriagado pelos efeitos do vinho, vaga sem rumo por ruas sem nome, encontra um templo escuro que, não se sabe por qual motivo, está de portas abertas. Dentro do templo, o narrador encontra um caixão e uma defunta que o lembra da “aparição” anterior, de “uma ideia perdida” – ao que tudo indica, a mesma moça que ele encontrara em Roma anteriormente. O protagonista então tem uma “ideia singular”: sequestrar o cadáver. É possível perceber, na narrativa, a atração física de Solfieri pelo cadáver da moça, um comportamento incomum, transgressor e inadmissível de acordo com os tabus estabelecidos em nossa sociedade. Solfieri viola normas sociais ao ter relações sexuais com o que então supunha ser um cadáver. Ao nos chocar com a atrocidade cometida por Solfieri, Álvares de Azevedo acaba reforçando as práticas sexuais admitidas em nossa sociedade. A monstruosidade, através de sua diferença, revela o que há de pior no nosso sistema, o que há de impuro e incorreto e que nem sempre é dito às claras – como a prática da necrofilia. Para a nossa maior surpresa, o cadáver da moça reanima-se, e então temos um momento que inspira forte terror na narrativa, pois, até então, acreditávamos que a moça estivesse morta. Até o momento, a narrativa não deixava claro que espécie de criatura é a estranha e pálida moça com quem Solfieri se envolve. Essa é uma estratégia que mantém presa a nossa curiosidade, bem como inspira-nos certo terror. Afinal, a moça é um fantasma? Uma defunta? Ou ainda vive? Não temos certeza de sua condição e isso nos aterroriza; temos a certeza apenas que o ato cometido por Solfieri foi uma atrocidade em qualquer dos casos. No trecho acima nos é dada uma explicação científica desse terrível mistério: a catalepsia – uma saída racional, em contraposição às suspeitas sobrenaturais que foram levantadas até o momento. O manto da defunta nos serve de prova material do conto de Solfieri. Uma prova, certamente, terrível de ser apresentada e que nos causa impacto não apenas por ser uma capela fúnebre, de uma defunta, não apenas por estar “murcha e seca como um crânio”, mas também porque revela o que pode haver de mal e obscuro no mundo em que vivemos. É aterrador vislumbrar a possibilidade de que uma história como a de Solfieri tenha realmente acontecido e que os limites instaurados para uma boa convivência em nossa sociedade possam ser transgredidos tão facilmente pela monstruosidade. E é essa constatação que nos causa terror, repulsa e medo.