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2Terra da Magia
Terra da
magia
Gian Danton
(Organizador)
Capa JJ Marreiro e Fernando Lima
3Terra da Magia
Terra da Magia
Antologia organizada por Gian Danton
Autores:
A.Z.Cordenonsi -Alexandre Lobão -Bruna Louzada
– Jefferson Nunes -Joe de Lima - Lucas Lourenço -
Roberta Spindler - Rodolfo Santos
DANTON, Gian. Terra da magia. Curitiba:
Quadrinhopole, 2014. E-book.
ISBN 978-85-917606-3-3
4Terra da Magia
Apresentação
Embora tenha antecedentes famosos,
entre eles os mitos de Gilgamesh e a Odisseia, a
literatura de fantasia moderna surge, não por
acaso, com o romantismo.
O romantismo aparece no contexto
ocidental como uma reação à estética neo-clássica
e ao racionalismo iluminista. O iluminismo
prometia tirar o homem das trevas e do
misticismo da Idade Média para colocá-lo numa
era de razão e progresso. Os românticos viam isso
como uma falácia. A razão não era o caminho para
a humanidade, mas o sentimento.
Não por acaso, um dos romances mais
importantes do período, e pedra fundamental do
5Terra da Magia
que viria a ser a ficção-científica era uma crítica à
ciência: Frankstein ou moderno prometeu
mostrava os perigos da razão sem ética.
A ficção científica só viria a se tornar um
gênero próprio, separado da fantasia, décadas
mais tarde, quando Júlio Verne, influenciado pelo
samsionismo, imaginou um mundo que
maravilhas podiam ser conseguidas através da
ciência, seja chegar à Lua, seja viajar ao fundo
mar.
O neo-clássico volta-se para a Grécia
antiga, berço da razão. A fantasia, em oposição,
volta-se para a Idade Média, época de misticismo
e mistério.
A Idade Média tinha forte tradição de
romances de cavalaria (uma mistura de mitologia
6Terra da Magia
cristã e pagã) repletos de misticismo, heróis,
feitceiros, espectros, animais místicos, objetos
mágicos e seres elementais, ligados à natureza e
vindos diretamente das tradições dos povos
bárbaros.
Ítalo Calvino no livro Contos Fantásticos
do Século XIX relaciona o conto fantástico com a
especulação filosófica do período:
“Seu tema é a relação entre a realidade
do mundo que habitamos e conhecemos por meio
da percepção, e a realidade do mundo do
pensamento que mora em nós e nos comanda. O
problema da realidade daquilo que se vê – coisas
extraordinárias que talvez sejam alucinações
projetadas por nossa mente; coisas habituais que
talvez ocultem, sob a aparência mais banal uma
segunda natureza inquietante, misteriosa,
7Terra da Magia
aterradora – é a essência da literatura fantástica,
cujos melhores efeitos se encontram na oscilação
de níveis de realidade inconciliáveis”.
Segundo Calvino, a literatura fantástica
nasceu com o romantismo alemão, mas se
espraiou por toda a produção do período. Difícil
encontrar autor romântico que não tenha
colocado o maravilhoso, o inexplicável em suas
obras, em especial Edgar Alan Poe, o pai da
literatura de gênero. No Brasil um autor que se
aventurou pelo fantástico foi Álvares de Azevedo.
Seu livro de contos Noite na Taverna é um dos
melhores exemplos disso.
Essa fuga para o passado irá se
transformar na alta fantasia, quase sempre
ambientada na Idade Média, real o ou imaginária,
ou na Espada e magia, ambientada em um
8Terra da Magia
passado ainda mais distante, como em Conan, ou
em mundos muito diversos do nosso, em que o
fantástico torna-se normal, como em Elric.
A ópera O anel de Nibelungo, de Richard
Wagner, obra-prima do romantismo, representa
essa tendência, e irá influenciar um dos maiores
nomes do gênero, Tolkien, até mesmo no tema do
anel de poder.
Tzevetan Todorov, no livro Introdução à
literatura fantástica explica que a fantasia ocorre
num mundo em que não é exatamente o nosso,
um mundo povoado por diabos, sílfides, vampiros,
no qual produz-se acontecimentos que não
podem ser explicados pelas leis de nosso mundo.
Diante dele, leitor e herói se vêm diante de duas
possibilidades: ou o que ocorreu é fruto da
imaginação, ou sonho (como Narizinho, que
9Terra da Magia
acorda no final do primeiro livro infantil de
Monteiro Lobato ou em Alice no país da
Maravilhas) ou o acontecimento é real e, nesse
caso, essa realidade é regida por leis que nos são
desconhecidas. O fantástico é essa hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis
naturais, diante de um acontecimento
aparentemente sobrenatural.
Para Todorov, portanto, o fantástico
implica não só a existência de um acontecimento
estranho, mas é preciso que o texto obrigue o
leitor a considerar o mundo das personagens
estranhas como um mundo de criaturas vivas e a
hesitar entre uma explicação natural e
sobrenatural. Essa hesitação é normalmente
experimentada por um dos personagens da
narrativa, muitas vezes o herói.
10Terra da Magia
Roberto de Sousa Causo, no livro Rumo
à Fantasia, cita a definição do The Oxford
Companion to English Language: “geralmente se
concorda que (a fantasia) é ambientada em um
mundo distante da experiência comum, alguns ou
todos os personagens são diferentes de qualquer
criaturas conhecidas, o mundo de fantasia tem as
suas próprias regras e lógica, e é normalmente
bem ordenado dentro delas, e qualquer
personagem quotidiano que entre nesse mundo
tem que se conformar ao novo modo de vida. De
modo semelhante, criaturas fantásticas podem
entrar no mundo familiar, e quando o fazem os
seus poderes frequentemente prevalecem”.
O mesmo Roberto Causo lembra que a
fantasia se consolidou como gênero literário no
mercado editorial a partir de 1923, com a criação
11Terra da Magia
da revista Weird Tales. Foi nela que surgiu o
gênero Espada e Magia, representado
principalmente por Conan, de Robert A. Howard,
que escreveu para essa e outras publicações.
A outra corrente famosa é a alta
fantasia, representada principalmente por J.R.R.
Tolkien de O Hobbit e O senhor dos anéis. Nessa
vertente, o autor cria todo um mundo próximo,
mas diferente do nosso. Esse mundo é descrito
em detalhes culturais, geográficos e históricos ao
longo da narrativa e o leitor se acostuma à regras
desse novo mundo (vale lembrar que Robert A.
Howard também definiu muito bem o mundo de
Conan, mas com outro enfoque).
Vários outros autores da época se
debruçaram sobre o gênero, com destaque para
As crônicas de Narnia, de C.S. Lewis, que colocou
12Terra da Magia
heróis humanos normais atravessando para um
mundo de contos de fadas, em que existem
duendes, centauros, magos, feiticeiras e muitos
outros, numa quase apresentação prática dos
princípios de Todorov.
Embora tenha feito um sucesso relativo
na época de sua publicação (1954-1955), a saga de
O senhor dos Anéis só se tornou um sucesso
estrondoso na década de 1960, quando um
editora americana aproveitou o fato de que o livro
não havia sido registrado nos EUA para lançar uma
versão não-autorizada e barata. O livro fez
enorme sucesso com os hippies, uma geração
muito parecida com a dos românticos do século
XIX que transformaram a fantasia em um gênero
literário. Como os românticos, a geração dos anos
1960 criticava o racionalismo e pregava uma volta
13Terra da Magia
a um mundo menos tecnológico e mais
sentimental.
O gênero ganhou ainda mais
popularidade com a criação do RPG Dungeons
and Dragons e da série televisiva derivada, A
caverna do dragão, um sucesso extraordinário até
hoje. A animação da Disney A espada era a lei
também merece destaque por retomar o mito
arturiano, assim como o filme História sem fim
(baseado no livro do escritor alemão Michael
Ende).
Finalmente, tivemos recentemente o
fenômeno Harry Potter e os filmes de O senhor
dos anéis, Crônicas de Narnia e Guerra dos
Tronos, que aumentaram ainda mais o interesse
pela fantasia fazendo com que ela concorra
fortemente com a ficção científica.
14Terra da Magia
Hoje duendes, dragões, sereias elfos
fazem parte do imaginário popular de milhões de
pessoas. Mas, se os primeiros escritores
germânicos que se debruçaram sobre o gênero
tinham uma rica mitologia para explorar, nós
também temos: mapinguaris, sacis, mãe-d´água,
cobra grande, os exemplos são muitos.
Infelizmente essa riqueza raramente
vem para a literatura. São raras as iniciativas de
utilizar a mitologia nacional para criar um universo
de fantasia.
Talvez falte um diálogo com a mitologia
clássica da fantasia, um encontro dos sacis com
hobbitts, de sereias com a mãe d´água, de dragões
com a cobra grande.
15Terra da Magia
Essa é a proposta da antologia Terra da
Magia: provocar um diálogo de duas mitologias,
criando histórias tipicamente de fantasia, mas
com um sabor regional.
Gian Danton
16Terra da Magia
O Despertar de Boiúna
Roberta Spindler
O sol era forte e o calor, tipicamente
equatorial, grudava as roupas no corpo. Mesmo
com aquele clima abafado, a praça daquela
metrópole amazônica estava movimentada. Vários
corredores se exercitavam, senhoras passeavam
com seus cachorros e as barracas de água de coco
fervilhavam. No meio de tanta gente, um homem
de cabelos cinzentos e olhos amarelados
descansava em um banco de madeira,
aproveitando a sombra de uma samaumeira. Era
impossível não notá-lo. Sua pele era de uma
palidez incomum, quase doentia, e as roupas que
usava não condiziam em nada com o verão local.
17Terra da Magia
Observava com curiosidade as garças que se
empoleiravam no topo da grande árvore, mas não
estava alheio aos comentários sussurrados e a
desconfiança daqueles que passavam ao seu lado.
— Não importa onde estamos, Liz, os
olhares são sempre os mesmo — comentou de
maneira casual, ainda com os olhos fixos nas
graciosas aves sobre sua cabeça.
O bolso da frente de seu casaco preto se
movimentou e uma cabeça minúscula com orelhas
pontudas apareceu. Olhos astutos percorreram a
praça em menos de um minuto e depois voltaram
a desaparecer no interior da veste.
— Ainda não compreendi o motivo de
estarmos aqui, Damian — a voz era fina e
delicada, mas demonstrava bastante irritação. —
Com tantas propostas de trabalho, por que
18Terra da Magia
aceitou justamente aquela que ficava do outro
lado do oceano?
O homem chamado Damian riu de
maneira divertida. Estava na capital paraense fazia
apenas algumas horas, mas sua pequena
companheira não parava de reclamar.
— Liz, você está se tornando uma fada
bastante irritante. Desse jeito vou ter que
procurar uma nova assistente.
— Você diz isso porque não está preso
em um bolso de couro que mais parece uma
sauna! E por falar nisso, quantas vezes tenho que
lembrá-lo de usar desodorante?
Aquela reivindicação fez Damian
gargalhar alto, atraindo olhares confusos dos
transeuntes próximos. Estava pronto para
19Terra da Magia
responder à altura, quando um inesperado tremor
tomou conta da praça.
As garças levantaram voo e as folhas das
árvores caíram, criando uma verdadeira chuva
verde. Os corredores pararam, as senhoras
gritaram e os cachorros uivaram. Nas ruas, carros
frearam bruscamente, alguns chegando a colidir.
O caos durou exatamente dois minutos e se foi
tão rápido quanto surgiu. Percebendo que o pior
tinha passado, as pessoas começaram a se
acalmar. Um vendedor de coco soltou uma
imprecação quando viu a maioria de sua
mercadoria espalhada pela calçada.
— Esse já é o terceiro terremoto essa
semana! Mas que diabos está acontecendo?
Damian estreitou os olhos ao ouvir
aquele comentário. Pensou em ir até o vendedor e
20Terra da Magia
questioná-lo sobre os tais tremores, mas sua
atenção acabou se voltando para a bela mulher
que caminhava em direção ao banco de madeira.
— Isso está ficando bem interessante —
ele abriu um sorriso e observou a beldade.
Ela tinha a pele morena, seus cabelos
lisos e negros quase ultrapassavam a cintura.
Vestia um jeans desbotado e uma camiseta
branca, trazia no pescoço colares feitos com
sementes de cores e formatos variados.
Demonstrando segurança e sensualidade, sentou-
se ao lado do estrangeiro e cruzou as pernas.
— Desculpa o atraso, caçador. Como
podes ver, a cidade está um tanto caótica — seus
olhos negros perscrutaram Damian com bastante
interesse. — Fico feliz que tenhas atendido ao
nosso chamado.
21Terra da Magia
Damian sentiu o efeito do olhar da
mulher misteriosa, mas conseguiu disfarçar. Em
seu bolso, Liz se movia com impaciência. Ela
sempre agia daquela maneira quando estava
diante de um ser mágico.
— A carta foi um tanto vaga, mas
conseguiu me deixar curioso — assumiu seu
habitual tom de negócios. — Espero que possa
esclarecer minhas dúvidas, senhorita...
— Yara, meu nome é Yara — os lábios
carnudos formaram um sorriso. — Vim até aqui
justamente para te levar até aquele que tem as
respostas.
Na garupa de uma moto, Damian foi
conduzido até um dos bairros mais antigos da
cidade. Os prédios tornaram-se mais escassos e as
22Terra da Magia
ruas se estreitaram. As casas comerciais eram
maioria, mutilando vários casarões coloniais. Os
azulejos portugueses que um dia embelezaram
diversas moradias agora eram escassos, roubados
ou destruídos por vândalos. O caçador logo
percebeu que estava entrando em um local
poderoso, onde a aura de magia ainda era forte
apesar da urbanização desenfreada e do descaso.
Quanto mais adentravam na chamada
Cidade Velha, Damian também percebeu que
aquela região fora a mais afetada pelos tremores.
O comércio estava de portas fechadas e vários
entulhos de casas desabadas tornavam as ruelas
ainda mais apertadas. Curioso, questionou Yara
sobre aquele estrago, mas a motorista
permaneceu calada até o final da viajem.
23Terra da Magia
A moto entrou em uma ruazinha de
paralelepípedos, cercada por casarões ou
destroços deles. Yara desligou o motor e
caminhou até uma casa de paredes descascadas.
Aproveitando a quietude do lugar, Liz
deixou o bolso do casaco. Suas asas bateram
rápidas e o corpo esguio agradeceu o vento
úmido. Pousou no ombro de Damian e confessou
suas preocupações:
— Não gosto da aura deste lugar e não
gosto do jeito que você olha para essa mulher.
Mesmo que aquela frase tenha sido
sussurrada, Yara conseguiu ouvi-la.
— Não precisa ficar com ciúmes, fadinha
— retirou uma chave de ferro das vestes e
destrancou a pesada porta de madeira. — Nossa
relação será estritamente profissional.
24Terra da Magia
Assim que a porta foi aberta, a aura
mágica aumentou subitamente e calou os
protestos de Liz. Quando entrou na casa, Damian
sentiu como se uma corrente elétrica passasse por
seu corpo. Sorriu. Adorava aquela sensação de
perigo iminente.
Adentrou na sala — de móveis
quebrados e ar mofado — e encontrou um grupo
bastante peculiar. Sentada em uma poltrona
bolorenta, uma velha com roupas pretas e cabelos
desgrenhados se distraia fumando um cigarro.
Encostado na parede ao seu lado, um jovem
atraente, vestido inteiramente de branco, ajeitava
o chapéu na cabeça para cumprimentar os recém-
chegados. Liz pareceu bastante impressionada
com aquela cortesia.
25Terra da Magia
Yara ignorou aqueles dois e se dirigiu
diretamente ao terceiro integrante do grupo. Um
homem de meia-idade, com pele morena e
cabelos da cor do carvão.
— Pajé, aqui está o estrangeiro.
O homem deu um sorriso fraco, parecia
não dormir fazia anos.
— Damian, o meio-elfo. Decapitador de
gigantes e exterminador de lobisomens. Carrasco
de Tiamati, a rainha dos dragões — nomeava
aquelas conquistas, mas não parecia
impressionado. — Espero que sua coragem e força
não sejam apenas histórias.
Damian deu de ombros e cruzou os
braços.
26Terra da Magia
— Pelo visto minha fama me precede —
forçou um sorriso. — Sou o melhor matador de
monstros que irá encontrar. Conte-me mais sobre
o monstro que move as entranhas dessa cidade e
eu irei destruí-lo.
A mulher fumante soltou um assovio e
depois deu uma risada seca.
— Vejo que ele é mais esperto do que
parece — soprou fumaça pela boca torta. — Mas
será mesmo capaz de deter Boiúna quando ela
despertar?
O poder que envolvia aquele nome
causou um mal-estar em todos na sala, até mesmo
Liz se encolheu. Ao observar o rosto aflito do pajé,
a ansiedade tomou conta de Damian. Os
momentos que precediam as caçadas eram
sempre os mais excitantes.
27Terra da Magia
O grande e derradeiro tremor atingiu
Belém logo após o nascer do sol. O centro da
cidade desmoronou como um castelo de cartas de
baralhos. Os prédios viraram uma cascata de
concreto e as casas encobertas pela poeira
sufocante. As ruas foram divididas em longos
veios, que seguiram seu caminho tortuoso até
chegar à catedral metropolitana. A secular igreja
da Sé — patrimônio histórico e religioso — teve
suas paredes alvas rachadas em alguns segundos.
No Largo da Sé, praça localizada bem em
frente à igreja, Damian observava a destruição
com uma calma incomum. Pessoas morriam ao
seu redor, gritos de socorro ecoavam por todos os
cantos, mas o caçador só estava interessado na
sua presa.
28Terra da Magia
— As armas, Liz — ele disse, enquanto
conjurava alguns símbolos de proteção.
Sem perder tempo, a fada abriu um
portal de luz no chão. Damian se agachou e
retirou uma reluzente espada de prata. Prendeu-a
nas costas e voltou a remexer no depósito mágico.
Dessa vez, extraiu da luz uma bazuca AT-4 e dois
fuzis.
— Fique preparada Liz, acho que vou
precisar de muita munição.
A catedral desmoronou, levantando
uma espessa fumaça branca. O sino da torre
atingiu o solo com um sonoro estrondo e ficou
badalando por alguns instantes, camuflando o
urro odioso da criatura das profundezas. A cobra
gigante se ergueu com uma graça incompatível ao
seu tamanho descomunal. A pele era negra e
29Terra da Magia
brilhante e os olhos vermelhos lampejavam
malícia.
Ao avistar a cabeça triangular de Boiúna,
Damian entendeu o desespero que havia se
abatido sobre o pajé que o contatara. E de
repente, a bazuca lhe parece quase um pedaço de
pau.
O ódio dela vai varrer tudo do mapa. As
palavras do pajé voltaram a sua mente, como um
aviso de mau agouro.
— Isso é um ser abissal, Damian! Nós
dois não estamos preparados para vencer algo
assim! — Liz gritou ao pousar em seu ombro.
— Então, ainda bem que não vamos
fazer isso sozinhos — ele se ajoelhou e preparou a
bazuca para o primeiro tiro. Ao seu lado, montada
30Terra da Magia
em um cavalo com chamas no lugar da cabeça,
Yara apareceu. Sorriu de maneira nervosa.
— Estamos prontos.
Damian meneou a cabeça em
consentimento e avistou seus companheiros de
batalha. A velha de cabelos desgrenhados estava
lá, juntamente com o homem de roupas brancas,
mas também havia caras novas. Eram mais de
vinte criaturas, uma mais bizarra que a outra.
Dentre elas, um homem de cabelos de fogo e pés
tortos e uma assustadora criatura de mais de dois
metros de altura — coberta por pelos vermelhos e
com uma boca que ia do peito até a barriga —
chamaram a atenção do caçador.
Sentindo a confiança de alguém que não
conhecia a derrota, Damian apertou o gatilho.
Aquela seria, sem dúvidas, a batalha mais
31Terra da Magia
fantástica de todos os seus duzentos e cinquenta
anos de vida.
Roberta Spindler nasceu em Belém do Pará, em 1985.
Graduada em publicidade, atualmente trabalha como
editora de vídeos. Nerd confessa, adora quadrinhos, games
e RPG. Escreve desde a adolescência e é apaixonada por
literatura fantástica. Tem contos publicados em diversas
antologias e é coautora do romance Contos de Meigan – A
Fúria dos Cártagos. Twitter: @robertaspindler Blog:
www.ruidocriativo.wordpress.com
32Terra da Magia
Teatro do invisível
Gian Danton
- Você pensa neles? De vez em quando
você pensa neles?
Olhei para o homem à minha frente.
Não parecia um louco. Estava bem vestido,
embora de maneira informal. Usava uma calça
jeans e camiseta branca. Nada de “Eu acredito em
Ufos” ou “O fim está próximo, irmão!”. Apenas
uma camisa branca. Eu não havia tido
oportunidade de ver seus sapatos, mas acreditava
que ele usasse um simplório tênis. Ainda assim
aquele homem havia se sentado na minha frente
na lanchonete e começado a falar coisas sem
sentido.
- Pensar? Pensar em quem?
- Neles, nos duendes, fadas, sacis,
mapinguaris, na mãe d´água...
- Por favor, eu já estou...
33Terra da Magia
Fiz sinal de levantar. Meu lanche estava
no meio e eu estava disposto a sacrificar o resto
para me livrar daquele maluco, mas ele me
agarrou pelo ombro e me fez sentar.
- Não, eu não digo pensar da mesma
forma que se pensa em uma lenda, ou em discos
voadores. Eu digo pensar neles de fato, como
seres que existem...
O homem era totalmente pirado. Olhei à
volta em busca de um segurança, mas não achei
nenhum.
- Sei o que está pensando.
- Sabe?
- Sim, você acha que sou louco. Não
espero que acredite em mim, mas quero que ouça
uma coisa, quero que ouça minha história e estará
livre para ir embora.
Concordei e rezei para que a história
fosse curta.
34Terra da Magia
Ele bebeu um pouco do refrigerante e
me olhou diretamente nos olhos.
- Nós éramos todos crianças. Mas eu era
o mais velho de nós. Bia tinha só o que? Uns oito
anos? Provavelmente. Havia também o Bruno,
com uns 9-10 anos. Todos primos. Estávamos de
férias na casa de nosso avô. Hoje existe luz até nos
lugares mais remotos, mas naquela época toda a
luz que tínhamos no sítio de noite vinha de
lamparinas ou, no máximo, uma lanterna. A luz
elétrica matou o encanto. Dava medo. O senhor já
entrou na mata à noite, senhor... senhor?
- Jonas.
- O senhor já entrou na mata de noite,
senhor Jonas?
- Já fui no parque...
- À noite?
- Não, de dia.
35Terra da Magia
- Então o senhor não sabe o que é o
medo. As crianças têm medo de dormir à noite no
escuro do quarto e talvez esse medo ancestral
seja uma lembrança do tempo em que
morávamos na floresta e víamos o que nenhum
humano deveria ver. E nós duvidamos da pequena
Bia quando ela nos contou o que viu...
Um segurança da lanchonete se
aproximou. Pensei em chamá-lo, mas o que diria?
Que estava diante de um louco? A não ser que ele
estivesse rasgando dinheiro, duvido que
acreditassem em mim. Além disso, devo admitir, a
história já começa a me intrigar.
- Bia, você disse? O que ela viu?
- Ela nos disse que acordou de noite e
teve vontade de ir ao banheiro. Ninguém
acreditou porque o banheiro ficava do lado de
fora da casa, era necessário andar por uma ponte
em pleno breu, mas hoje acho que foi exatamente
o que ela fez. Ao invés de ir para o trapiche como
todos nós fazíamos e fazer na água, ela foi na
36Terra da Magia
direção oposta. Crianças são assim, acho. Fazem o
que lhes foi dito, mesmo que vá contra todos os
seus medos. Pelo menos algumas crianças são
assim. Pelo menos Bia. Enquanto andava pela
ponte, ela sentiu alguma coisa, como olhos que a
seguiam. E ouviu vozes.
- Vozes?
- Traga seus primos, diziam as vozes.
Traga seus primos! Ela correu para dentro e se
meteu na rede, cobrindo o rosto com o lençol. Só
nos contou no dia seguinte. Como disse, ninguém
acreditou. Mas a curiosidade é mais forte que
tudo. Na noite seguinte, eu não encontrava
posição para dormir. Traga seus primos, dizia a
voz. O que era aquela voz? O que queria? Seria
uma armadilha? Só havia uma forma de descobrir
as respostas. Nosso avô estava dormindo, de
modo que tive que tomar muito cuidado para
surrupiar a lamparina.
Mas pelo jeito eu não fora o único a ter
essa ideia. Mal comecei a andar e meus três
37Terra da Magia
primos estava atrás de mim. “Eles vão falar com a
gente?”, perguntou Bia. “Não sei”, respondi. Eu
não sabia de nada, mas podia sentir como que
uma pontada no cérebro. Acho que chamam isso
de intuição. Comecei a ouvir pequenos barulhos à
nossa volta, como se uma multidão de pequenos
animais estivessem na mata, espreitando-nos com
seus olhos febris que apenas adivinhávamos.
Finalmente chegamos ao fim do trapiche
que levava ao banheiro. O cheiro era forte e não
havia porque continuar em frente, mas mesmo
assim eu desci e segui pela terra. Olhei para trás,
para dizer aos primos que não me seguissem, mas
eles estava lá, logo atrás de mim. “Vamos?”,
indagou Bruno. Era uma provocação. Se um
fedelho de nove anos se sentia corajoso a ponto
de querer continuar em frente, por que eu não
faria o mesmo?
Hoje em dia eu penso: como
poderíamos ter certeza de que nada nos iria
acontecer? A mata era perigosa à noite, com ou
sem seres fantásticos. Onças, cobras, aranhas... a
38Terra da Magia
quantidade de perigos era infindável, mas mesmo
assim fomos em frente. A floresta foi se fechando
à nossa volta e sons estranhos pareciam emergir
dela. Um pássaro martelava seu piado de tempos
em tempos. O vento dedilhava as folhas das
árvores. A madeira das árvores estalava. Mas os
sons mais perturbadores eram aqueles que não
podíamos ouvir, mas apenas imaginar.
Nem sei como, mas quando demos por
nós mesmos, estávamos no meio de uma clareira.
E havia gente à nossa volta. Podíamos percebê-los
por entre as folhas e a penumbra. Lá no alto, uma
lua cheia despejava seus raios, que penetravam,
poucos, por entre as folhas. Apesar da penumbra,
podíamos observar uma incrível variedade de
seres: havia alguns muito pequenos, mas não
eram crianças, pareciam anões. Havia gigantes. Vi
um cavalo que parecia normal até eu entrever um
chifre sobre sua testa. De repente algo passou
voando por entre nós. Pensei que fosse uma
libélula enorme, mas Bia gritou: “É uma fada!”.
39Terra da Magia
Restabelecido do susto, percebi uma
figura estranha, que parecia ter crescido tanto
para o alto quanto para os lados. No meio do que
deveria ser seu estômago, uma miríade de
pequenos dentes afiados cintilavam à luz do luar.
Um dos seres se adiantou. Era difícil ver
seu rosto, encoberto por uma luminosidade
avermelhada. Pareciam cabelos da cor de fogo,
mas logo percebi que era muito mais do que isso:
de fato, todo ele estava em chamas, cada fio
voluteando como a chama de uma vela. Ele andou
até nós, suas pegadas deixando rastros ao
contrário na terra, e se dirigiu primeiro à Bia:
“Vejo que trouxe seus primos”. Ele falava e suas
palavras pareciam o murmúrio das folhas na
floresta. “Precisamos de vocês”, disse, mas olhava
para mim. “Um de nós só pode ser salvo por
humanos”. “Um de nós?” “Norato”.
Ele não falou nada além disso, mas nós
soubemos. Era como um filme que passava diante
de nós. Vislumbramos o nascimento de duas
crianças índias. Mas eram crianças encantadas.
40Terra da Magia
Mal nasceram e uma transformação se operou
sobre elas. Suas peles, antes rosadas e suaves,
tornaram-se grossas e escuras, repletas de
escamas. A cabeça se alongou, assim como o
corpo. Como num filme, vimos os dois bebês se
transformarem em cobras e se arrastarem para o
rio. Eles cresceram e ganharam nome: o macho
era Norato, a fêmea, Caninana.
Norato, apesar de sua aparência
assustadora, era tinha um coração de ouro:
salvava pessoas em naufrágios, impedia que seres
malignos se aproximassem da casa dos
ribeirinhos... Era um protetor.
Caninana era o seu oposto. A maldade
corria em suas veias. Não havia barco ou canoa
que passasse por ela que não experimentasse o
chicote atordoante de seu rabo. Os pobres
náufragos eram deixados à própria sorte, ou
afogados. Caninana nadava pelos rios destruindo
trapiches, comendo criações, alastrando o horror
por onde passava.
41Terra da Magia
Mas Nonato era triste. Suas feições
monstruosas não combinavam com sua
personalidade e ele ansiava por ter novamente a
pele macia com a qual nascera. Norato queria
voltar a ser gente, mas só havia uma maneira
disso acontecer...
A visão se desfez como uma névoa
soprada pelo vento. À nossa frente apareceu o
homem pequeno de pés tortos e cabelos em fogo.
Na penumbra eu adivinhei um ser enorme, que
respirava pesadamente e soltava lufadas de fogo a
cada expiração.
- Só existe uma maneira de fazer isso... e
deve ser feita por humanos... por vocês. – disse o
rapaz de cabelos em fogo. Um de vocês deverá
cortar a cabeça de Norato com um machado de fio
virgem. O outro deverá verter por ele uma
lágrima.
Eu e meus primos nos entreolhamos...
estaríamos à altura dessa tarefa? Quem de nós
42Terra da Magia
empunharia o machado e quem verteria uma
lágrima por uma cobra monstruosa?
Mas não tínhamos opção, tínhamos?
Desde o início parece estar escrito que íamos nos
envolver naquela jornada louca pela floresta em
plena noite.
O senhor já viu uma gravura do mestre
Goya? Na época eu não a conhecia, mas desde
então, toda vez que vejo a imagem, lembro
daquela noite. O título? “O sono da razão produz
monstros”. E era exatamente o que acontecia
naquela noite perdida.
Fomos de barco, enquanto os seres
pareciam nos acompanhar, alguns por terra, pela
margem. Outros pela água. Um boto passou por
nós, rápido, e saltou sobre a canoa, como que a
nos dizer que estava ali.
De resto, a viagem era silenciosa. O
barco singrava calmamente as águas sem a
necessidade de remos, como que puxado por uma
43Terra da Magia
força invisível. Não sabíamos para onde íamos ou
quanto tempo levaria.
De repente, a floresta pareceu parar.
Todos os ruídos cessaram, exceto o murmurejar
tímido do rio. Olhei para baixo e levei um susto.
Uma forma monstruosa se esgueirava lá embaixo,
arrastando a pele grossa contra o casco do
barquinho. Era Caninana, uma cobra tão grande
que se tornava difícil dizer qual seu comprimento.
Seu tronco era do tamanho de um tronco de
árvore. Pensei que ela iria nos atacar, mas apenas
passou por nós. Adivinhei seu objetivo: ela queria
encontrar Norato antes de nós... e matá-lo.
Era um silêncio perturbador, o silêncio
do medo que apavorava todos os animais da
floresta e os colocava em sobreaviso. Até mesmo
os seres fantásticos que nos seguiam pareciam
saber que um desastre se aproximava.
Súbito ouvimos um estrondo e o rio se
agitou. A canoa foi sacudida por uma mão
invisível, mas continuou seu percurso. Lá na frente
44Terra da Magia
o estrondo se transformara numa algazarra de
sons infernais. A luta começara. Ao dobrarmos
uma enseada, nos deparamos com um espetáculo
assombroso: as duas cobras gigantes se agitavam,
se abocanhavam, suas caldas derrubando árvores,
os corpos contorcidos provocando grandes ondas.
A muito custo conseguimos chegar à margem.
Ficamos lá, parados, hipnotizados pelo espetáculo
dantesco que se desenrolava. Apesar da
balbúrdia, era possível distinguir as duas cobras:
Norato era de cor clara, com uma grande lista da
cabeça ao rabo. Caninana era negra como a noite.
De repente Caninana cravou seus dentes
agudos no pescoço do irmão, que soltou um
guincho desesperado e depois estremeceu. Por
fim, a cabeça caiu na margem do rio, à nossa
frente. Era enorme, maior do que a de qualquer
animal que jamais vi. Apesar disso, tinha um olhar
triste. Ele nos olhou e soltou um som seco, um
pedido de socorro.
- Precisamos ajudá-lo. Ele vai morrer se
o encanto não for desfeito. – gritou Bia.
45Terra da Magia
Eu sabia disso, mas não conseguia me
mexer. Estava paralisado, o machado na mão.
- Vocês não entendem? Ele vai morrer! –
chorou Bia.
Isso me despertou: Bia estava chorando,
as lágrimas escorrendo por seu rosto. De todos
nós, só ela sentira de fato a alma boa de Norato.
Isso me deu coragem para levantar o machado. O
aço desceu sobre a testa do monstro e,
surpreendentemente, encontrou pouca
resistência. A massa encefálica se abriu para para
receber as lágrimas de minha prima.
Eu achava que tinha visto os fatos mais
estranhos de minha vida até então, mas a
transformação que se operou superou todo o
resto: a crosta escamosa foi se metamorfoseando
em uma pele humana bronzeada. O corpo foi
diminuindo de tamanho e ganhando membros.
Logo a transformação se completou e um índio
apareceu caído na lama da beira-rio enquanto a
cobra fêmea se afastava pelas águas turbulentas.
46Terra da Magia
De repente, parecemos despertar de um
sono. Estávamos todos nós no meio da floresta.
Não havia dragões, cobras-grandes, curupiras,
nenhum ser fantástico à nossa volta. Só a floresta,
densa em seus mistérios.
Mas não era um sonho. Como poderiam
quatro pessoas sonhar o mesmo sonho? E como
explicar que estávamos em plena mata, e não em
nossas redes? Não, aquilo aconteceu mesmo. Por
mais fantástico que fosse, aquilo era real.
O homem mordeu o último pedaço do
sanduiche e fez menção de se levantar. Mas
mudou de ideia:
- Mas há uma coisa que penso, às vezes:
será que aquilo tudo era realmente necessário?
Será que eles precisavam realmente de nós para
transformar Norato? Além disso, porque a
presença de Bruno, que no final não teve
importância nenhuma na transformação? De uns
tempos para cá tenho pensado em uma outra
47Terra da Magia
explicação: talvez aquilo tudo fosse uma espécie
de teatro.
- Teatro?
- Sim. Um teatro. Talvez os seres
fantásticos tenham simulado toda a história.
- Por que eles fariam isso?
- Para que acreditássemos neles. Para
que acreditássemos.
Gian Danton é roteirista de quadrinhos desde 1989. Entre
os seus trabalhos mais importantes na área estão Família
Titã (Opera Graphica), Manticore (Monalisa), Mad e
MSP+50 (Paninin). Tem participado de diversas
antologias de literatura de fantasia. É autor do livro
Galeão (9Bravos). Seu blog: ivancarlo.blogspot.com
48Terra da Magia
O guardador de versos
Lucas Lourenço
Os olhos do pequeno Crispanti
saltaram das órbitas assim que a relva se abriu e
ele adentrou o salão. Nunca tinham visto algo tão
belo.
A vereda escura e estreita, ladeada
pela mata densa de galhos pontiagudos, pela qual
os captores lhe guiaram, de repente abriu-se em
um círculo imenso e iluminado.
As árvores retorcidas e apertadas
umas às outras ficaram para trás. Outras novas,
muito mais altas, surgiram. As copas esmeraldas
encontravam-se lá em cima, numa abóbada
natural, permeada de cipós extensos. Macacos
arteiros dependuravam-se por toda parte.
Filtrada pelas folhas verdes, a luz do
sol chegava amena ao solo, recoberto por
49Terra da Magia
incontáveis folhas secas, que juntas formavam um
vasto pátio. Por ele, antas gordas caminhavam
sem medo ao lado das jaguatiricas, cotias
vasculhavam as tocas das mais venenosas cobras e
índios decorados com pigmentos azuis
fosforescentes faziam cafuné na barriga das onças
pardas.
Tucanos-tocos e as ararajubas batiam
as asas e cruzavam despreocupados o átrio, de
uma árvore a outra. Os cuxiús-pretos, suspensos
pelas caudas, mastigavam suas sementes
preferidas. Duas preguiças namoravam na paz e
paciência de suas lerdezas.
E a batida das asas de todos os
insetos, o craque-craque do jabiti-piranga
caminhando sobre as folhas, o cacarejar do galo-
da-serra, a jiboia roçando o couro entre os galhos
mais altos, o gavião-real limpando as penas e
livrando-se dos carrapatos, os uacaris dilacerando
a casca das frutas – e todo barulho, cada sussuro,
tapa, movimento brusco, canto, conversa, coçada,
grito, raspagem, assovio, cada passo, tropeço,
50Terra da Magia
rajada de vento, ribombar, remelexo, risada ou
lamento compunha a melodia inebriante daquele
salão no meio da floresta, que invadia as menores
frestas e sossegava a fúria mais escondida dos
seres.
O som da vida penetrou os ouvidos de
Crispanti e, feito mágica, tirou a angústia que lhe
esmagava o coração.
Tudo, entretanto, fez silêncio,
quando, do outro lado, o passo de um gigante
ecoou. Na galeria, as criaturas encolheram-se
atrás dos galhos e dentro das fendas. Os captores
apertaram ainda mais os braços curtos de
Crispanti, que despertou do torpor de paz e sentiu
mais uma vez os pulsos doerem.
O grandalhão aproximou-se. De cada
lado, trazia consigo duas onças-pintadas maiores
que qualquer outra da espécie. À distância
apropriada, parou e sentou-se no ar de pernas
cruzadas, à vontade como se estivesse sobre uma
almofada. Em seguida, fitou o pequeno detido
51Terra da Magia
com desprezo, arquejou o imenso corpo para
frente e perguntou, com nojo.
- Quem és tu?
Crispanti sentiu as pernas tremerem a
ponto de os captores terem de sustentá-lo em pé.
Tentou falar alguma coisa, mas o som
das palavras não lhe saía da boca. Por mais que se
esforçasse, era como se a presença à sua frente
lhe impusesse um respeito opressor e tomasse
conta de suas próprias vontades.
O ser imenso usava pintura
semelhante à dos índios que caminhavam pelo
salão. Mesmo de dia, os desenhos brilhavam em
azul e davam a ilusão de deixarem rastros
luminescentes no ar.
Diferença é que ele era o único a
ostentar um imenso cocar no alto da cabeça, cujas
penas coloridas feito o arco-íris desciam pelos
ombros, até a altura do abdômen. E fosforesciam
ainda mais que a tintura.
52Terra da Magia
- Responde ao filho de Tupã! –
ordenou um dos captores, dando um chacoalhão
no braço de Crispanti.
O gigante, no entanto, decidiu por
outra ideia. Sem mudar de posição, sequer sem
descruzar as pernas, levitou até a frente do
pequenino, a menos de um palmo de distância.
Antes que Crispanti pudesse bater os
cascos e recuar, Tibatatã, o caçula de Tupã,
estendeu o braço direito e tocou, com a ponta do
indicador, a testa do fauno.
O pequeno arregalou os olhos e
permitiu que seu mundo se abrisse à divindade.
***
Um sujeito muito branco, dos cabelos
louros penteados para trás, deitava-se na relva e
abria braços e pernas, como uma estrela. A leste,
o sol nascia. E o homem, de frente às cores turvas
que se transformavam no céu, dava um sorriso.
53Terra da Magia
Nas árvores espaçadas do pasto em
que se encontrava, o jovem ouvia o canto dos
primeiros pássaros despertos. Da janela aberta do
casebre onde morava, o café da velha tia-avó
impregnava o ar. As flores pequeninas escondidas
sob a grama alta abriam-se para receber a luz e
aproveitar o dia. Na ribanceira da colina, a ovelha
mais faminta despertou o restante do grupo com
um berro.
O homem não moveu um músculo,
sequer quando a noite já se recolhera por
completo e o sol pôs-se a caminhar, chegando ao
ponto mais elevado do céu. Era meio-dia, mas o
sujeito não tinha relógio e só almoçava quando o
estômago reclamava de fome. Dormia. Acordava.
Brincava com uma formiga. Dormia outra vez.
Então, de repente, sacou do bolso um
folheto de propaganda e um lápis mal apontado –
e escreveu no verso do papel.
Pensar é estar doente dos olhos.
54Terra da Magia
De trás dos montes, escondido em
posição privilegiada, Crispanti recolhia a luneta e,
depressa, anotava em um caderno o verso recém-
composto pelo outro, o 152º de sua lista.
O fauno tinha por hábito colecionar
coisas belas. E os poemas do jovem eram sua nova
paixão.
***
A camada mais profunda da noite
abateu-se sobre as colinas do Ribatejo. O barulho
dos grilos e de outros insetos da madrugada
pingava aqui e ali. A brisa movia devagar as
cortinas do quarto; deixara a janela aberta para se
refrescar. Gotas finas começaram a chover,
formando o clima ideal para se dormir. Ele, no
entanto, não tinha sono e, imóvel, fitava sombras
na parede sem reboco. No cômodo ao lado, a tia
velha roncava.
- Da mais alta janela da minha casa,
com um lenço branco digo adeus aos meus versos
55Terra da Magia
que partem para a humanidade – disse ele,
repentinamente.
Do lado de fora, molhado, escondido
atrás do beiral da janela, Crispanti dobrava-se
para dar um jeito de escrever o recém-criado
tesouro sem danificar o caderno. Logo se
atrapalhou e permitiu que a lua projetasse na
parede o vulto arredondado de seu corpo.
Desconfiou do erro. Encolheu-se de
volta. Coração batendo forte. Era hora de ir
embora, mas a curiosidade o fazia ficar.
- Quem és?
Um sujeito muito branco, debruçado
na janela, observava-o com um sorriso boboca nos
lábios.
***
Deitado, com as patas cruzadas e a
cabeça recostada em um pedaço de lenha
56Terra da Magia
abandonado, Crispanti folheava o caderno. A
tarde pachorrenta não o incomodava.
- O que nós vemos das cousas são as
cousas. Por que veríamos nós uma cousa se
houvesse outra? – leu o fauno em voz alta.
Voltou a virar as páginas, até parar
em outros versos.
- Acho tão natural que não se pense,
que me ponho a rir às vezes, sozinho, não sei bem
de quê, mas é de qualquer cousa que tem que ver
com haver gente que pensa...
Bocejou e deitou o caderno de lado.
Aprendera a obedecer de imediato às vontades do
próprio corpo. Há três dias não retornava para
casa e não via isto como um problema. O conforto
retangular e as tarefas múltiplas do Templo não o
agradavam há um bom tempo.
De certa forma, a Natureza agora era
sua religião. O fauno, porém, não pensava nela
desta forma. A Natureza era o que se via,
57Terra da Magia
cheirava, ouvia, tocava, provava. Era o que era, e
nada mais.
Apanhou novamente o caderno e
folheou as páginas mais uma vez.
- Oxalá a minha vida seja sempre isto:
o dia cheio de sol, ou suave de chuva, ou
tempestuoso como se acabasse o Mundo.
Alguém lhe cutucou o ombro.
- Que lês?
Crispanti sorriu ao ver o semblante do
amigo.
- Teu livro está pronto, creio eu.
Algo, entretanto, estava errado. Um
amarelo baço encobria os olhos do poeta, que
ficou nervoso com o olhar desconfiado do fauno e
começou a tossir sobre um lenço, aflito.
- Que tens? – quis saber Crispanti,
levantando de imediato, em prontidão para
atender o amigo.
58Terra da Magia
- Falta um último poema – respondeu
o outro, estendendo o pedaço de pano para o
amigo.
Uma nódoa vermelha borrava a
superfície branca.
***
Pesado cobertor repousava sobre o
corpo magro do poeta. De olhos fechados, deitado
de barriga para cima, apenas a luz oscilante de um
toco de vela lhe fazia companhia. A tia velha batia
o terço no altarzinho da cozinha. Crispanti
mantinha o velho costume e escondia-se atrás do
beiral da janela. Não gostava de aparecer para
outros humanos. Assustavam-no.
Muito tempo se passou sem que nada
se alterasse entre os três.
Até que um murmúrio chegou aos
ouvidos do fauno.
Ele se levantou, olhou para os cantos
e viu que o enfermo ainda estava só. O poeta
59Terra da Magia
esforçava-se para chamá-lo quando pressentiu a
movimentação do outro e fez um sinal trêmulo
para que Crispanti se aproximasse. Ele pulou a
janela e, batendo de leve os cascos, prostrou-se à
beirada da cama.
- Bom amigo, preciso de um favor teu
antes que eu me vá – disse o poeta, os olhos azuis
acesos de emoção.
- Não digas isso, cedo vais te
recuperar.
O doente sacudiu a cabeça, em
negativa e voltou a falar.
- Quero que queimes o teu
caderninho e liberte os meus versos. Não os quero
presos a papéis e às memórias de ninguém.
***
Tibatatã afastou o dedo da testa do
fauno, que cambaleou e só não caiu pois foi
sustentado pelos captores.
60Terra da Magia
Estava exausto. Antes de morrer, o
poeta obrigou-o a destruir o caderno de versos
nas chamas do toco de vela. As páginas crepitaram
até que restasse apenas um chumaço negro nas
mãos do fauno.
Aliviado, o enfermo sorriu em
agradecimento e logo em seguida deu o último
suspiro.
Crispanti sentiu o desespero tomar-
lhe conta do coração. Perdera o único amigo,
inspirador, que durante os meses de convívio
ensinara-lhe a enxergar as coisas sem vesti-las
com o véu da metafísica.
O mistério das cousas? Sei lá o que é
mistério! O único mistério é haver quem pense no
mistério.
Crispanti, no entanto, sabia que, no
fundo, não era bem assim e se lembrou dos versos
de outro sábio, um bardo que conheceu séculos
atrás, quando morava em um Templo próximo a
Stradford.
61Terra da Magia
There are more things in heaven and
earth, Horatio, than are dreamt of in your
philosophy.
Quando viu Crispanti pela primeira vez,
o poeta do Ribatejo não se impressionou. Um
anão com pernas e chifres de bode, o que pode
ser isso?, poderia ter-se perguntado. Na ocasião,
entretanto, o homem sorriu e pensou: eis um
anão com pernas e chifres de bode. Como vai?
Já o fauno, quando deixou o Templo
para um passeio descompromissado e por acaso
se deparou com o poeta em plena criação
espontânea, considerou os versos tão limpos e
diretos e livres de preconceito que logo concluiu o
óbvio: apesar da aparência, o poeta não era um
ser humano comum. Na verdade, sequer era
humano.
- Isto que tenho em mãos eram versos
de uma divindade – disse Crispanti, tirando o
62Terra da Magia
caderninho destruído da algibeira e entregando-o
a Tibatatã.
O filho de Tupã folheou as páginas
negras e retorcidas. Não era possível ler palavra
alguma, uma letra sequer.
O pequeno fauno, no entanto, sabia
que em todo mundo aquela entidade gigantesca
era uma das poucas capazes de recuperar as
páginas. Crispanti cruzara o Atlântico e
atravessara as terras selvagens do Brasil, pois
sabia que tinha posse de um tesouro inestimável.
Quando um deus fala, os seres
inferiores escutam, mesmo que não queiram.
- Não posso devolver a vida para este
caderno – respondeu Tibatatã, entregando o
objeto de volta ao fauno.
- Como não? Tu também és um deus!
- Não posso dar vida ao que nunca foi
vivo – disse o gigante, sacudindo os ombros.
63Terra da Magia
Os olhos de Crispanti turvaram de
decepção.
Antes que o fauno recuasse de temor,
Tibatatã avançou e tocou mais uma vez a testa do
pequeno, que cerrou os olhos.
- Mas, posso reviver o que já foi vivo –
concluiu.
Entre córregos de pensamentos
apressados e desconexos, a mente de Crispanti
iluminou-se. E, sobre uma folha branca feita de
luz, em letras negras e bem-feitas, os versos
perdidos do poeta gravaram-se mais uma vez.
Instantaneamente.
Lucas Lourenço é jornalista, escritor e desenhista. Já
publicou contos e HQs em revistas e antologias nacionais.
É autor da série infantojuvenil O Laboratório da Margô, à
venda na Amazon e disponível no
blog www.laboratoriomargo.blogspot.com. Também
publica no blog www.epeste.blogspot.com, além de ser o
responsável pelas tirinhas Pequeno Sertão, veiculadas
em www.pequenosertao.blogspot.com e
64Terra da Magia
em www.facebook.com/pequenosertao. Quadros, desenhos
e ilustrações emwww.lucaslourenco.blogspot.com. No
twitter e instagram: @lucaslofer.
Email:lucaslofer@yahoo.com.br.
65Terra da Magia
O Uirapuru Negro
A.Z.Cordenonsi
Armênio se arrastou para fora do
avião com dificuldade. Sua cabeça estava zonza e
ele mal conseguia respirar. Ele sentia uma dor
latejante na coxa direita, mas não podia se
preocupar com isso agora. O cheiro inconfundível
do combustível gotejando do motor fumegante o
enchia de pavor. Ele precisava se afastar do
monomotor semidestruído antes que tudo fosse
pelos ares.
Trincando os dentes, Armênio se
levantou sobre os cotovelos e engatinhou para o
mais longe possível, deixando um rastro vermelho
de sangue e suor para trás. Então, o pequeno
monomotor explodiu e uma lufada de calor e
66Terra da Magia
destroços o cobriu como um vagalhão. Armênio
foi atirado contra uma árvore e sua cabeça bateu
violentamente contra o tronco. Ele apagou na
mesma hora.
Dia 1
A luz do sol tinha dificuldades para
passar por entre as folhas das copas das árvores.
Pássaros chilreavam enquanto um gotejar fino
escorria pelos galhos, fruto de uma chuva rápida
que irrompera junto com o crepúsculo matutino.
Armênio acordou sentindo a boca seca, apesar do
corpo molhado. Ele levou alguns minutos para
entender onde estava e se lembrar do acidente.
Piscando, imagens desconexas passavam pela sua
mente, como se flutuassem da berlinda da sua
percepção diretamente para a sua retina,
desaparecendo tão rápido quanto surgiam. O
67Terra da Magia
piloto, a pista de terra, a pane de motor, uma
explosão.
Armênio abriu completamente as
pálpebras, arfando. Ele olhou para a floresta
amazônica que se estendia até onde seus olhos
enxergavam. Com um misto de pânico e
incredulidade, ele puxou um dos medalhões que
trazia pendurado no pescoço e beijou a pequena
ferradura de ouro para trazer sorte. Enquanto sua
respiração lutava para voltar ao normal, ele sentiu
uma dor lancinante na sua coxa direita. Ele puxou
um pequeno punhal que trazia preso à cintura e
abriu a calça, revelando o estrago que o acidente
lhe causara. Havia um corte profundo ali, que lhe
rasgara boa parte dos músculos. Sangue
coagulado espalhava-se pela pele e uma boa dose
de sujeira estava entranhada junto ao ferimento.
68Terra da Magia
Apertando os lábios, ele conseguiu se
levantar. Armênio arrancou os restos da camisa de
linho branco e usou a água que ficara represada
nas folhagens para limpar as bandagens
improvisadas. Ele sabia o que estava fazendo,
afinal, sua avó era curandeira do seu grupo e ele a
ajudara por anos no tratamento de doenças e
machucados. Os romani não gostam de médicos,
dizia-lhe ela. Sua avó resmungava que o rapaz
tinha o dom para a cura, mas o garoto fez ouvidos
moucos a sua ladainha. Ele queria ver o mundo e
não ficar preso num carroção cheio de incenso. No
fim, Armênio fez valer sua vontade e ele foi
trabalhar com o seu pai.
O romani limpou o machucado o
melhor que pode e enrolou os restos da sua
camisa para fazer um torniquete. Suando, ele se
69Terra da Magia
atirou ao chão, exausto. Mas ainda restava uma
coisa a fazer. Tateando com os dedos grossos, ele
puxou outro amuleto do pescoço, que mostrava
uma reluzente lua engastada. Era um amuleto de
cura, sua avó lhe dissera, antes de preveni-lo:
somente quem possuía o dom poderia utilizá-lo.
Ele mordeu os lábios. Estava na hora de
ver se a velhota tinha razão.
Inspirando profundamente, Armênio
apertou o amuleto contra a perna e entoou um
antigo canto em romani. Ele sentiu as pontas dos
dedos formigarem e um calor incomum cobriu a
ferida. Ao abrir os olhos por um momento, uma
imagem fugaz passou por entre seus olhos. Era
uma moça, de traços finos e delicados. Seria sua
avó, quando jovem? Não saberia dizer. Logo
depois, ele desmaiou.
70Terra da Magia
Dia 2
Quando ele acordou, o sol nascia no
horizonte. Armênio sentiu dores horríveis pelo
corpo inteiro, estava fraco e com sede. Sua
primeira reação foi passar a mão na coxa. A
bandagem estava levemente avermelhada, mas a
dor excruciante havia sumido. Ele chegou a abrir
um sorriso invulgar quando notou o que havia à
sua frente.
O romani se assustou e se agarrou ao
tronco de uma figueira que crescia, imponente, às
suas costas. Uma folha de bananeira estava
estendida no chão, com uma cumbuca
improvisada da casca de cuietê cheia de água
fresca. Ao seu lado, uma pilha de frutas deixava
escorrer o suor gelado da madrugada.
71Terra da Magia
Armênio virou o pescoço para todas as
direções, mas não havia ninguém. Ele esperou sua
respiração voltar ao normal antes de se
aproximar. Seria algum tipo de armadilha? Estaria
a comida envenenada?
Ele franziu o cenho. Ninguém precisava
envenena-lo. Provavelmente, estaria morto em
poucos dias. Suspirando fundo, ele se aproximou
da folha de bananeira. Ele deu um beijo em uma
estrela de cinco pontas que estava tatuada no seu
pulso e agarrou a cumbuca. Logo, ele já tinha
esquecido seus receios e comia e bebia com
sofreguidão. As frutas não podiam estar mais
doces ou frescas, e o sumo viscoso escorria por
entre seus lábios enquanto Armênio devorava o
presente que a floresta lhe trouxera.
72Terra da Magia
Quando ele terminou, um calor
relaxante invadiu sua mente. Ele piscou os olhos e
as pontas dos seus dedos se tornaram úmidas. Ele
tentou focar a vista, mas não conseguiu. Sua
respiração se tornara leve como uma pluma e seus
músculos afrouxaram.
Então, ele percebeu algo. A floresta
havia silenciado. Desde que acordara, o zumbido
da mata estivera sempre lá, ao fundo, uma
miríade de sons que misturavam o gorjeio de
pássaros com o saltitar de macacos que
passeavam entre os galhos. Um vento leve fazia as
folhas rangerem baixinho, enquanto o gotejar
úmido escorria pelos troncos e caules. Agora, tudo
havia desaparecido, como que por encanto.
Armênio se levantou, assustado, a
imagem de um felino à espreita passando ao largo
73Terra da Magia
da sua mente. Então, ele ouviu. Um pio agudo e
triste, tão melancólico e longo, que o romani
sentiu seu coração se apequenar. Sem querer, ele
se viu arfando e uma tristeza profunda arranhou
sua alma. Poucos instantes depois, um pássaro
como ele nunca vira pousou num galho de um
ingá.
Ele ficou longos minutos fitando o
pássaro, encantado com sua beleza singular, sua
plumagem negra e sua garganta avermelhada. O
pássaro cantou por cerca de quinze minutos, mas
o romani mal viu o tempo passar. De repente, ele
parou e alçou voo, deslizando por alguns metros
até parar em árvore mais distante. Sem saber o
que estava fazendo, Armênio seguiu o pássaro.
Aquilo continuou por horas a fio. O
romani se aproximava e o pássaro fugia mais para
74Terra da Magia
dentro da mata, parando ao longe, sempre
esperando por ele. Armênio não saberia explicar o
que estava fazendo, nem por que. Mas, de alguma
forma, algo lhe dizia que ele precisava seguir o
pássaro.
Quando a tarde findou, o pássaro se
empoleirou no alto de uma tucumã e cessou seu
canto. O romani entendeu a deixa e, depois de
improvisar uma cama com as folhas de uma
palmeira que ele encontrou no local, adormeceu.
Dia 3
Quando Armênio se levantou, não
chegou a se assustar ao perceber que uma nova
folha de bananeira havia sido depositada aos seus
pés. Faminto, ele comeu e bebeu com gosto,
sentindo uma leveza incomparável atravessar seus
75Terra da Magia
músculos. Ele nunca se sentira tão bem. Ele
poderia dançar e cantar um dia inteiro. Sorrindo, o
romani se levantou bem na hora que o pássaro
cantou.
Eles voltaram a se embrenhar na
floresta, Armênio seguindo a ave que assobiava o
seu canto mágico. Ao entardecer, eles se
aproximaram de um vale profundo, onde as
árvores cresciam tão densas que mal era possível
ver alguns metros à frente. O romani, parou,
sentindo um desconforto crescer dentro de si. O
pássaro cantou mais forte e Armênio fez menção
de seguir em frente, mas seus amuletos
começaram a esquentar e ele se sentiu
desconfortável. Se o romani fechasse os olhos, ele
quase podia ouvir a voz da sua avó gritando na sua
76Terra da Magia
mente, mas sua fala era confusa e seus sentidos
pareciam embotados.
O romani hesitou. O que estava
fazendo, afinal de contas? Seguindo um pássaro
canoro para dentro da mata? O que havia dado
nele?
A ave sentiu sua indecisão e voltou,
girando e piando sobre a sua cabeça, as asas
negras brilhando no lusco-fusco. Armênio se
sentiu atordoado, como se sua alma estivesse
sendo rasgada ao meio, dilacerada entre a
vontade de fugir ou de correr para dentro da
mata.
Seu cérebro queimava e o canto do
pássaro se tornava mais forte e mais atordoante,
como se ele tivesse sendo atacado por um
77Terra da Magia
enxame de abelhas que o picavam por dentro,
impedindo-o de pensar. Ele se viu cambaleando
de um lado para o outro até que seu pé pisou em
falso; desequilibrado, ele caiu por entre dois
troncos de árvores retorcidos. Armênio tentou se
segurar, mas foi em vão. Rolando, ele despencou
para dentro do vale, arrastando folhas e pedras
enquanto se debatia. Pouco tempo depois ele
bateu contra algo mais duro e parou.
O romani levou a mão à boca e sentiu o
sangue quente escorrer de um corte profundo que
rasgara sua língua e seus lábios. Seu corpo inteiro
doía e sua respiração estava fraca. No entanto,
sua mente clareara. Pela primeira vez, ele parecia
poder pensar coerentemente.
Devagar, Armênio se recostou no que
havia batido e se levantou. Por longos momentos,
78Terra da Magia
sua vista se espalhou pelo vale, o horror lhe
subindo pelas entranhas como uma aranha
tecendo a sua teia. Ele estava no que lhe parecia
ser um cemitério a céu aberto. Ossos se
espalhavam aos milhares, alguns tão velhos e
quebradiços que ele sabia que se desfaçariam em
pó se ele os tocasse; outros eram
assustadoramente novos e vestígios de carne
apodrecida reuniam nuvens de insetos em montes
enegrecidos. Mas isso não era o mais assustador.
Os ossos, e Armênio conhecia um pouco de
anatomia, devido aos ensinamentos da avó;
aqueles ossos não eram normais!
Havia esqueletos de homens e mulheres
tão compridos quanto um gigante e outros tão
baixos que poderiam ser confundidos com
crianças se não fossem os membros atarracados.
79Terra da Magia
Ossos disformes se espalhavam pelo chão, com
calombos estranhos e apêndices que não eram
naturais. Carcaças de cavalos jaziam mais a frente,
mas de suas costas subiam estruturas ovalares
que Armênio não conseguia distinguir. Ao seu
lado, jazia uma pilha de ossos de seres que
lembravam homens, mas suas arcadas dentárias
eram protuberantes e seus crânios eram
compridos, com focinhos arreganhados e caninos
compridos. Ao fundo, o romani distinguiu uma
grande ossada, muito maior que um elefante. Ela
lembrava uma figura de um velho dinossauro.
Mas, então, o que seriam aqueles ossos que
brotavam das suas costas e se espalhavam como
pétalas?
Enquanto Armênio gastava o resto das
suas forças para não sucumbir ao terror que lhe
80Terra da Magia
infligia à mente, o estranho pássaro rodopiou a
sua frente e pousou suavemente em uma arcada
ressequida. Quando a noite surgiu, iluminada por
uma lua avermelhada, um brilho estranho invadiu
o vale e o pássaro deu lugar a uma bela e jovem
mulher. Ela se aproximou com os passos eretos e
a testa erguida.
Armênio sabia que precisava fugir, mas
ele não tinha forças para tanto. Respirando forte,
ele viu a jovem se aproximar, notando a cor ocre
da sua pele reluzente e os adereços delicados que
lhe cobriam os pulsos e o pescoço. A jovem estava
nua e seus olhos cravaram no rosto tenso do
romani. Ele queria gritar, mas sua boca estava
cheia de sangue. Então, uma voz clara e límpida
surgiu na sua mente, cantada no tom do pássaro
negro.
81Terra da Magia
“Sua centelha é fraca, mas sua origem
é velha como o mundo.”
O romani tentou balbuciar algo, que saiu
em um gorgolejo. Ela continuou.
“Eles também queriam se apossar da
Luz da Velha Floresta” – disse, apontando para as
ossadas – “E, agora, sua centelha nos torna mais
fortes”.
Armênio subitamente entendeu. Ele
puxou os medalhões do pescoço, suplicando em
palavras inúteis. Ele não era um curandeiro. Nunca
fora. Aquilo pertencera à sua avó.
A jovem agarrou os medalhões com
brusquidão, atirando-os longe. “Superstições tolas
não tem lugar aqui. A centelha está no seu
sangue” – declarou, se aproximando dele.
82Terra da Magia
O romani tentou levantar as mãos, mas
o terror paralisou seus músculos. A jovem se
abaixou e sua boca se escancarou em fileiras de
caninos como um jacaré. Houve um grito agudo na
floresta e, depois, o silêncio.
A.Z.Cordenonsi é um autor gaúcho de fantasia e aventura.
Escreve sobre o que lhe passa na cabeça e não o deixa
dormir à noite, quando as ideias se derramam no teclado
como um trem descarrilado. Apaixonado por tecnologia
antiga, divide seu tempo entre ser pai, marido, professor e
escritor. É romancista e contista, espalhando fantasia e
terror por antologias diversas.
83Terra da Magia
A Presa do Metamorfo
Rodolfo Santos
Naroa era uma boa amiga, simpática e
sorridente. Isto era algo no mínimo estranho para
uma meio-Iara, em suma hostis e inseguras
quanto a aproximação das demais raças. Dotada
de uma inteligência acima da média humana e de
uma aparência atraente e sedutora, eu a tinha
como uma companheira para todas as horas,
mantendo-a no disfarce de pernas falsas,
camuflando o caminhar destreinado com um
rebolado provocante, apesar de não-intencional.
Em minha mente, sua imagem era
risonha e alegre, com os braços abertos para um
abraço úmido e gélido, marcas das quais nunca
poderia se livrar. Sacudia os fios lisos e dourados
84Terra da Magia
num balançar de dançarinas, cantarolava cada
palavra melhor do que orquestras profissionais
seriam capazes de fazer. Um destaque,
certamente, em todas as atividades que contavam
com sua ilustre presença, assim como um traço
chamativo para todos os homens, o que facilitava
em muito nossa aquisição de informações.
Vê-la coberta por sangue e tripas, como
via naquele momento, era algo que até mesmo a
frieza de meus sentimentos não seria capaz de
suportar.
—Ela foi assassinada a sangue frio —
disse-me um dos assistentes da equipe de
investigadores sobrenaturais, um estagiário com
traços de vidência e percepção além do alcance.
—Quem quer que seja o assassino, não é um
homem comum.
85Terra da Magia
E não era. Eu sabia o nome do
responsável por aquela morte. Conhecia-o melhor
do que ninguém, talvez melhor do que a mim
mesma. Um inimigo do passado, algo próximo de
um rival, o único que jamais consegui aprisionar
dentre todas as minhas buscas.
O Metamorfo.
—O que vai fazer?
O novato continuou a falar, mas eu o
ignorei sem perceber. Cacei o sobretudo num dos
cabides, acertei-o no corpo como um peso extra,
exótico para um tecido como aquele. Estava
preparada para matar e, acima de tudo, para
morrer.
—Avise que estou partindo —falei, sem
me virar para o parceiro de profissão. —Vou atrás
86Terra da Magia
do Metamorfo. Volto com sua cabeça, ou sem a
minha.
Aquela floresta parecia soprar o terror
em meus ouvidos, unindo a melodia fúnebre da
brisa com o ranger doentio dos galhos retorcidos.
Tinha nas mãos uma pistola prateada com
munição de caçador, os melhores projéteis
encontrados em nosso mundo, trabalhados no
bronze celeste e na pólvora com extrato de
inferno. Nunca me perguntei como eram feitos
aqueles cartuchos, pois não era esta a minha
função. Meu trabalho, resumidamente, era
apertar o gatilho, permitindo o encontro de
aberrações com o Deus que acreditavam, ou
levando-as ao descanso merecido após
atrocidades cometidas em lugares pacatos.
87Terra da Magia
Afundei as botas num pântano que me
pareceu uma armadilha, pois a terra sólida era
enganosa sobre a imundice aquosa que me
acolheu. Empurrei os tornozelos cada vez mais
pesados para frente, movendo a água negra e
transformando o silêncio em ondas miúdas. Nos
arredores, sapos grotescos saltavam sobre raízes
raquíticas, enquanto olhos animalescos
acompanhavam meus movimentos, esfomeados
pelo odor do frescor de minha carne. Serpentes se
arrastavam nos galhos mais altos, duas delas
estavam próximas, sibilando acima das águas.
Uma soprou fogo, caracterizando-a como o
Boitatá que era. Marcou-me com os olhos
chamejantes, mas não me atacou. Talvez por
sentir em minha alma a fragrância de ancestrais
destruídos por minhas caçadas anteriores. Talvez
88Terra da Magia
por interesses próprios e distintos. Que diferença
faria?
Nas frestas das árvores, algo truculento
me observava, como um lobo em espreita de sua
presa. Ombros largos e humanoides, cobertos por
pelos de fera, salivando entre os uivos famintos e
torturantes. Assim como a serpente de chamas, o
Lobisomem não parecia ansiar por um ataque
enlouquecido, uma atitude exótica para sua raça.
Tirei das vestes uma segunda pistola, o que aliviou
parte do peso daquele traje obscuro. Algo estava
errado naquele lugar.
Escutei uma melodia. Um cântico
soturno e agradável, de voz feminina e bela.
A voz de Naroa.
—Que merda é essa? —falei em voz alta
o que deveria ser um pensamento.
89Terra da Magia
Abri caminho entre a densidão das
folhas, livrando-me de alguns arbustos com odor
de lamaçal. Saltei para escapar do terreno
pantanoso que tentava me saborear, apenas para
me deparar com uma cena que mente alguma
estaria preparada para aceitar.
Era um lago, e lá encontrei Iaras. Havia
muitas delas, debruçadas sobre troncos
derrubados ou rochas cobertas de musgos,
exibindo corpos esculturais, peles macias e rostos
monstruosos, com lábios feridos pelas presas fora
do comum. Elas cantavam baixo, acompanhando a
voz de minha amiga, ou ao menos a voz que me
trazia suas lembranças. Não poderia ser Naroa. Ela
estava morta, eu sabia. Vi seu corpo carregado até
nosso local de trabalho, assisti os exames. A voz
era de Naroa, mas Naroa não mais existia.
90Terra da Magia
Esgueirei-me entre os ramos pesados
para estudar o fenômeno exótico que se sucedia à
minha frente. Além das águas escuras daquele
lago de sereias, Curupiras dançavam com a
deformidade de seus pés, instigando passos
desastrados e assustadores. Além da primeira
serpente de chamas encontrada anteriormente,
outras cinco ou seis circundavam o espetáculo,
sibilando junto da música, em coro com o uivar de
um batalhão de Lobisomens. Feiticeiras com
corpos de fera e cabeças de crocodilo
cantarolavam suas atrocidades numa língua sem
sentido, encantando a natureza de maneira
maligna, ocasionando a perversão da água, das
folhas e do próprio ar. Três delas desenhavam
estrelas com os dedos envoltos em membranas,
parindo a simbologia antepassada naquele
91Terra da Magia
santuário catastrófico, onde se reuniam tantas
abominações.
No centro daquela multidão de seres,
um homem se levantava do solo aquoso. Sua
barba escarlate estava impregnada pelo lodo, e o
mesmo acontecia a seus cabelos e seu corpo
despido, coberto por uma vestimenta gosmenta e
asquerosa. Esticou os braços para os lados,
lembrava muito um velho mundano, de físico
treinado e olhos foscos. O que o diferenciava da
simplicidade de um humano eram os dentes
pontiagudos, surgindo num sorriso lodoso
enquanto o ser grunhia sua parte do ritual.
—Um Barba Ruiva! —deixei escapar,
surpresa por encontrar uma criatura que até o
presente momento não tinha provas de
existência. Lendas e boatos contavam sobre o
92Terra da Magia
velho coberto de lodo, mas eu nunca derrubara
um daqueles. Talvez aquela fosse uma das
melhores chances.
Algo ao meu lado farfalhou, cobri-me
com as vestes. O escudo da noite me auxiliou na
camuflagem, e assim não fui avistada quando um
grupamento de Sacis saltitou sobre as águas,
tomados por uma brisa mágica e malcheirosa. Eles
poderiam me encontrar com facilidade, mas algo à
frente chamou mais atenção, mesmo a minha, que
tentava manter os olhos concentrados nos
acontecimentos. Eram passos, mas cada um
destes fazia com que o solo tremulasse,
dispersando a sensação de um ensaio de
tambores. Aquilo surgiu por entre as árvores,
derrubou muitas delas para permitir que seu
corpanzil passasse na sinuosa trilha existente
93Terra da Magia
naquela floresta. Com mais de cinco metros de
terror, o Mapinguari me recordava dias difíceis,
nos quais eu e Naroa enfrentamos dois daqueles
monstros similares a macacos truculentos com
pelugem de agulhas. Perdia-me nos devaneios
ante a morte de minha parceira, mas a existência
de uma voz clonada me fazia frágil, facilmente
abalada pela falta de sua presença.
Foi então que aconteceu. Ela se ergueu
das águas, cantando como uma princesa coberta
de imundice, deslizando os braços numa
coreografia delicada e alegre. Tudo de Naroa
estava lá, desde sua voz até seu corpo sereiano,
seus cabelos longos e seus olhos serenos. Vi seu
corpo estripado, mas agora ela estava ali, viva e
alegre, destruindo minha mente com uma
presença que me causava saudades. Esperei em
94Terra da Magia
meu lugar, ainda que minha vontade fosse correr
e saltar sobre ela, abraçá-la com um choro de
alegria. Mantive-me impassível, e nada fiz.
Ela aplaudiu, e a música cessou,
restando o silêncio. Fora a sua própria voz aquela
a ecoar no breu noturno.
—Vejam, companheiros! —disse ela,
exibindo os seios nus, o estômago magricela e os
cabelos sem cacho algum. —Assistam à minha
renovação, entendam o retorno! Aqui, tudo se
renova, cresce fortalecido, como a natureza
manda. Aceitem o chicote que hoje vos castiga,
pois amanhã terão a benção de nossa mãe e
criadora, tornando-se os primogênitos de nossa
magia!
Alguns dos monstros murmuraram
sozinhos, outros grunhiram sons toscos. Ouvi um
95Terra da Magia
relinchar, Mulas-Sem-Cabeça estavam se
aproximando. Uma delas bateu os cascos contra a
água, saltou no lago tomado pelas criaturas, o
fogo não se extinguiu. O Barba Ruiva acariciou seu
couro resistente, sorriu com a deformidade de sua
existência e brandiu um facão de caçada, até
então escondido nas vestes barrosas.
—Entreguem-se à realidade, filhos de
uma única mãe —continuou Naroa, parecia liderar
aquele exército de horrores. —Entendam que a
dor será o menor dos males, tragada por um
mundo de prazeres e recompensas.
O primeiro a se entregar foi um
Lobisomem, atirando-se no facão sem que fosse
necessário esforço algum do Barba Ruiva. A prata
enfeitiçada cintilou, assim como o lago encantado,
ambos clamaram por uma nova vítima. Um
96Terra da Magia
Curupira se ofereceu, pulverizado com facilidade.
Brilho, um novo pedido, aqueles que assistiam
hesitavam. Uma das Mulas-Sem-Cabeça foi
sacrificada, relinchou e chamejou até que nada
restasse de seu corpo. Seguiram alguns Boitatás,
outros Lobisomens, mesmo o Mapinguari aceitou
a morte como um presente.
Ouvi cada um dos gritos, até que nada
restou para se ouvir.
Nem mesmo o canto de Naroa.
Quando o Barba Ruiva atravessou a
lâmina na própria garganta, o lago todo brilhou.
Naroa caminhou até a arma, mas ao simples
contato do metal com sua pele, não mais havia
meia-Iara. O porte masculino entregava o segredo
do sexo, mas da aparência nada se via, sombreado
por uma aura amaldiçoada. O ser retirou a arma
97Terra da Magia
do corpo do Barba Ruiva, que desapareceu como
todos os outros. Com uma língua eriçada, similar
àquelas existentes nas bocas de camaleões, o
Metamorfo lambeu a sujeira da lâmina,
deliciando-se com o sabor do sangue de cada
criatura que morrera naquela mentira.
—Como pôde?
Falei sem perceber, mas não fez
diferença. O Metamorfo sabia de minha presença.
Ele sempre sabia de tudo.
—Matar todos eles? —sorria. —É
simples, quando se é o criador.
—Não diga asneiras, monstro.
—É como homens me chamam,
caçadora. Monstro. Monstros são menos ousados,
no entanto. Chamam-me de criador. De mãe.
98Terra da Magia
A mãe de todos os monstros daquela
crença, temida e respeitada pelos índios. Histórias
que zombei, baboseiras que me tiraram risos.
Estava ali, à minha frente.
O Metamorfo era uma atuação.
Aquela era Ci.
—O que você quer, criatura? —abusei
de minha valentia. Por dentro, sentia cada
músculo tremer, hesitando no conflito com aquela
entidade poderosa.
Senti as mãos formigarem, abandonei as
pistolas. Ci tomava conta de minha mente, de meu
corpo.
—Quero todos eles, meus filhos —me
respondeu. —Quero todos para mim. Serei única
99Terra da Magia
outra vez, pois é preciso. Beberei do sangue de
cada um deles.
—De cada um...
Engoli em seco. Tentei fugir, era incapaz.
Estava paralisada pelo terror.
—É uma de minhas crias, Anhangá —
falou ela, e tal nome retardou minha mente,
destruindo as memórias de uma vida de teatros.
—Será como elas, um alimento.
Não.
Eu mudei. Não era mais mulher, não era
mais caçadora. O sobretudo desabou junto das
armas, inutilizado. Ganhei o corpo de um cervo
platinado, com olhos faiscantes e pele marcada
por cruzes. Bati as patas contra o solo disforme,
vaguei como um fantasma.
100Terra da Magia
—Jamais serei uma caça.
Não sei se disse ou pensei, mas aquela
era minha vontade, então fugi. Ci não me caçou,
tinha seus motivos. Sequer olhei para trás naquele
avanço. Atirei-me para a liberdade, engolindo a
verdade da falsa vida que levei durante anos, até
que o medo me abandonasse.
Mas o medo nunca abandonava o
Metamorfo. Muito menos Ci.
—Fuja se desejar, Anhangá —falava
sozinho, mas sua voz estava em minha mente. —
Tornará as coisas divertidas. No final, todos serão
meus. Meus filhos. Minhas presas.
Rodolfo Santos sonha acordado, mas jamais acorda
sonhando. Nasceu em Taubaté, interior de São Paulo,
ainda que mais lhe pareça uma cidadela de sol, cujo ar
101Terra da Magia
cheira a bonecas de pano e espigas de milho falantes.
Escrever pode ter sido uma escolha, uma opção, uma
vontade ou um acaso, mas a busca por uma história
perfeita lhe faz, ao mesmo tempo em que devora livros,
rabiscar infinitas ideias em guardanapos ou, quando
possível, ao vento.
102Terra da Magia
Em uma Terra Distante
Bruna Louzada
O animal estava agitado. Leonardo se
esforçava para tirá-lo do caminhão de carga sem
machucá-lo, mas parecia ser uma tarefa
impossível de se realizar. Desistiu, por fim, e parou
com as mãos na cabeça, tentando pensar em
algum modo mais eficiente. Mas seu raciocínio foi
quebrado pelo barulho de um motor. A
caminhonete parou a poucos metros de distância
e o rapaz franzino se apressou a abrir a porta do
passageiro. – Que diabos! O que o potro ainda
está fazendo aqui? Ele já devia estar pronto! – Um
senhor de feições respeitáveis impulsionou o
corpo para fora do carro. Carregava um longo
103Terra da Magia
cajado na mão direita, mais por acreditar na
magnificência que lhe era proporcionada pelo
objeto do que por alguma utilidade prática. Ele se
aproximou, estufou o peito e deferiu inúmeros
golpes de cajado na lataria do caminhão.
– Anda! Saí daí! Você não está no estado
de ser chamado de presente de aniversário. – O
único efeito que aquelas palavras tiveram foram o
de retrair ainda mais o animal, fazendo com que o
homem bufasse. – Dez mil dólares jogados no lixo.
Dá pra acreditar nisso?
Os empregados da fazenda se
entreolharam, porém, ninguém disse uma palavra.
Um silêncio quase sepulcral se instalou no lugar,
cortado ocasionalmente por relinchos de dor do
potro.
104Terra da Magia
– Deixem o Felicidade, ou Bombom, ou
Narigudo, ou qualquer que seja o nome que
minha filha vá dar a ele, aí. Uma hora ou outra ele
terá que sair. – Todos concordaram com a ordem
do chefe e, em menos de cinco minutos, Bree foi
deixado sozinho.
Bree. Não Felicidade, ou Bombom, ou
Narigudo, ou qualquer outro nome que lhe fosse
dado. Aquela seria a única forma pelo qual ele
atenderia: pelo nome dado pela sua mãe, o que
poderia trazer inúmeros problemas em seu
relacionamento com os humanos – não que ele se
importasse. Fora comprado pelo Sr. Nogueira (o
distinto homem do cajado, senhor daquele
imenso pedaço de terra entre Mato Grosso e
Amazonas, rodeado pela Floresta Amazônica)
quando ainda estava na barriga de sua mãe, na
105Terra da Magia
Grécia. O grego dono da égua havia prometido
uma cria da melhor raça possível, descendente de
uma linhagem pura de cavalos que, reza a lenda,
pertenceram aos grandes senhores da Grécia
antiga. De fato, a mãe era um ótimo indicativo do
que se esperar do filhote. Criada apenas para
reprodução, possuía pelagem negra brilhante,
postura perfeita e dentes alinhados. Bree nasceu
com quase todas as características da mãe, com
uma diferença inesperada: os pelos, tão brancos
que chegavam a brilhar em um tom prateado,
quando iluminados. O Sr. Nogueira acreditou estar
sendo trapaceado quando atendeu a ligação do
grego, recebendo a notícia, bem como um aviso
de que lhe haviam feito uma proposta melhor pela
cria. A indignação e fúria do brasileiro foram
indescritíveis. Se pudesse, teria atravessado o
106Terra da Magia
telefone e esganado aquele vendedor, mas
preferiu cobrir a oferta que o homem dizia ter
recebido. Não que houvesse alternativa, afinal,
havia prometido para sua filha que aquele seria o
presente que receberia em seu aniversário. Ao ver
o estado do animal ao chegar, teve ainda mais
certeza de que fora trapaceado, afinal, Bree
sofrera com os maus tratos e a longa viagem até o
país desconhecido, e não estava em sua melhor
forma.
Com o passar das horas, o sol pôs-se a
baixar, deixando o espaço do céu livre para a lua e
as estrelas. Bree não tinha nenhuma noção do
tempo. Tudo o que sabia era que estava com
dores e com sede, entretanto, não tinha nenhuma
vontade de se levantar. Sabia que se saísse
daquele lugar apertado não encontraria sua mãe
107Terra da Magia
ou suas irmãs ou os potros que dividiram o pasto
com ele por tão pouco tempo. Pela traseira aberta
do caminhão, podia ver um largo pasto, mas este
não parecia ser tão verde quanto o que conhecia.
Além disso, o clima daquela região não o instigava
a se levantar, nem mesmo quando a noite caiu
sobre ele. Aos poucos, Bree deixou-se tomar pela
dormência em seus músculos e pela fadiga. Era a
primeira vez em dias (talvez meses!) que não
estava preso em um caixa que balançava
insistentemente. Finalmente poderia descansar e,
quem sabe, melhorar sua disposição para
conhecer o lugar. Piscou os olhos algumas vezes,
até que eles tornaram-se pesados o suficiente
para não voltarem a abrir.
– Mas que...! – Bree acordou com o
barulho. A princípio, pensou que algum dos
108Terra da Magia
homens havia voltado, mas a cena que presenciou
não era o que esperava e o deixou transtornado.
Um humano (ou, ao menos, era isso que ele
pensava), estava agachado sobre sua crina. Chame
isso de instinto, pois não há maneira melhor de
explicar a sensação de Bree naquele momento.
Não sabia por que, porém sentia que precisava se
afastar daquele garoto. Havia visto crianças na
Grécia. Nenhuma parecida com aquela. Não só
pelo fato de ele ter apenas uma perna e pelo
estranho objeto que carregava na boca, mas
principalmente pelo olhar travesso, ligeiramente
malvado e impregnado de frustração.
– Por que, cavalo?! – Bree se recostou
ainda mais à parede fria do caminhão, enquanto o
garoto pulava de um lado para o outro, hora ou
outra retirando o objeto da boca. – Eu já fiz isso
109Terra da Magia
milhares de vezes! Uma mecha por cima da outra,
passa por baixo e zaz! Mas a sua... Essa trança não
fica parada de jeito nenhum!
O potro não entendia o que o garoto
queria dizer. Esticava o pescoço para ver sua crina,
mas ela permanecia completamente intacta e lisa,
sem sinais do que quer que fosse uma “trança”.
– ME DIZ O POR QUÊ!
– Eu não sei! – O que teria soado como
um relincho para qualquer ser humano, foi
entendido perfeitamente pelo Saci. – Eu... Não sei
sobre o que você está falando... Só quero a minha
mãe. – Uma lágrima brotou dos seus olhos.
– Mãe... Pfff... Pra que você quer a sua
mãe? Eu não tenho nenhuma e estou muito bem!
110Terra da Magia
– Ele é praticamente uma criança e está
assustado. Qualquer um nessa situação iria querer
sua mãe.
Bree e o Saci se viraram para a entrada
do caminhão, onde uma nova figura estava
parada, os observando. – Hey! Você não tem
negócio com esse carinha. Ele é meu. – O saci deu
um pulo para frente, de peito estufado, mas Bree
não reparou. Seus olhos estavam vidrados no
novo garoto à sua frente. Seus cabelos eram
vermelhos como o fogo e Bree podia jurar que vira
as madeixas vermelhas se movimentarem por
alguns segundos como uma labareda, porém
nunca pode confirmar esse fato. O potro não
reparou (por sorte, ou pensaria que todas as
crianças do novo país eram incrivelmente
estranhas) nos pés invertidos do Curupira, nem na
111Terra da Magia
forma como ele olhava desafiadoramente para o
Saci. Estava concentrado demais na sensação de
conforto e segurança que a cabeleira ruiva lhe
transmitia.
– Ao contrário! Ou devo lembrá-lo que
sou o protetor dos animais? Essa não é sua noite,
Saci. Vá aprontar com algum humano e deixe os
cavalos em paz.
O menino de um pé só passou o olhar
do moleque para o potro. Queria continuar com
sua diversão, embora estivesse incomodado com
o que havia acontecido antes.
– Por quê?
Ele não precisou completar a pergunta
para que o Curupira entendesse.
112Terra da Magia
– Ele não é um cavalo comum, por isso a
crina dele volta ao normal assim que você termina
a trança.
O Saci se deu por satisfeito pela
resposta. Não sabia o que o potro era, mas, ao
menos, descobrira que o problema não era ele.
Olhou mais uma vez para o animal antes de dar
uma longa risada e sair pulando para a mata,
assobiando e gritando “Saci Pererê, minha perna
dói como o quê!”.
– Venha. – Não foi preciso mais palavras
para que Bree se levantasse e seguisse o Curupira.
A transição do piso duro do caminhão para o
pasto macio foi prazerosa e reconfortante e Bree
deu um pequeno pulo em comemoração. A lua
iluminou seus pelos, um brilho prateado clareou
seu corpo por completo e, como mágica, as dores
113Terra da Magia
em seu corpo cessaram. – Você não nasceu para
ser prisioneiro dos humanos. Volte para seu lugar.
Ache aqueles da sua espécie.
Por alguns segundos, o potro observou a
lua, depois o pasto e a floresta para só então se
voltar ao menino.
– O que você quis dizer? Com eu não ser
um cavalo comum?
O Curupira sorriu.
– Você devia saber!
Bree teria franzido o cenho para a
resposta, se fosse capaz. Ainda assim, fez a melhor
cara de dúvida que um cavalo poderia fazer,
soltou um relincho baixo e voltou a olhar para a
114Terra da Magia
lua. Menino e potro permaneceram lado a lado
em silêncio, até que o ultimo voltou a falar.
– Uma noite. Eu me lembro da minha
mãe dizendo que eu não era filho de quem o
humano pensava. Que o dono de meu pai não era
humano, mas sim um deus. – O Curupira assentiu.
– Bree, você é um pégasus. Precisa abrir suas asas
e voar.
– Como você sabe tanto da minha
história?
– Meu trabalho é conhecer todas as
criaturas que eu preciso proteger.
– Certo... – Bree murmurou.
A história fazia sentido. Trotar pelo
campo nunca foi o suficiente para ele. Sentia que
115Terra da Magia
podia fazer mais e a cada passo que dava algo em
seu âmago lhe dizia que era capaz de fazer coisas
extraordinárias. Ainda assim, não sabia o que. Sua
mãe não havia contado sua história por completo.
Em parte porque queria que o potro estivesse
mais preparado para ouvir a história, em parte
porque não sabia que ele seria tirado de perto de
si tão cedo. Se soubesse que em pouco tempo seu
filho se encontraria sozinho em uma terra
desconhecida, sendo importunado por um Saci, o
teria preparado melhor. Agora, tudo o que restava
na mente do potro eram dúvidas.
– Como eu faço isso? – Bree voltou a
encarar o Curupira e este passou o olhar das
costas do animal para sua cara. – De fato, você
ainda é muito novo. Mas suas asas não demorarão
a nascer. – Ele se aproximou do potro, acariciando
116Terra da Magia
a leve protuberância que crescia em suas costas
(outro “defeito” de nascença que o grego não
mencionou ao Sr. Nogueira). – Vamos. Vou cuidar
de você até que você esteja pronto.
Bree assentiu timidamente para o novo
companheiro. Seu olhar dirigiu-se brevemente ao
caminhão e ele prometeu para si mesmo que
nunca mais seria preso em uma caixa como
aquela. No mesmo instante, uma brisa suave
cortou os corpos dos dois seres. O cabelo do
Curupira dançou ao sabor do vento, enquanto ele
esperava pacientemente pelo potro. Bree teve a
sensação de ter seus pelos acariciados de forma
quase paternal pela brisa, cujo sopro soou como
um sussurro encorajador e calmante. O potro
relinchou, apoiando-se nas patas traseiras,
117Terra da Magia
novamente sendo atingido pelo sentimento de ser
capaz de realizar coisas extraordinárias.
Assim, ele seguiu o Curupira, certo de
que estaria seguro e que, um dia, seria capaz de
voar de volta para sua terra natal para finalmente
reencontrar sua mãe e viver com seus
semelhantes.
É difícil entender como uma estudante de engenharia
mecatrônica pode ter tanta afinidade com algo além de sua
calculadora gráfica, principalmente se esse “algo” for a
escrita. A paulista Bruna Louzada entrou no mundo
literário aos trancos e barrancos, só aprendendo a
mergulhar verdadeiramente nos livros ao por as mãos na
série Harry Potter. Motivo pelo qual, no verão de 2006,
caiu nas graças de um fórum repleto de jovens fãs que
criavam as próprias histórias. Foi assim que suas
primeiras palavras literárias surgiram e fluíram para um
papel em branco, contando histórias de personagens que
pareciam ter vida própria. E como a libriana não seria
capaz de superar sozinha suas incertezas literárias, é
118Terra da Magia
preciso reservar um espaço em sua biografia para
agradecer ao namorado pelo apoio e incentivo.
119Terra da Magia
A Solidão é Verde
Jefferson Nunes
Era um amanhecer vermelho quando
chegamos aqui, assim contavam os mais velhos
nas canções de aprendizado que entoavam desde
tempos imemoriais.
Chegamos de um lugar distante, onde o
Sol deixou de brilhar e nosso mundo, verde e
vasto virou cinzas. Atravessamos tempestades
cósmicas, apocalipses estelares em uma imensa
nave.
Não lembro, éramos apenas ovos,
embriões dos sonhos de uma raça sem lar em
busca de refugio em algum mundo jovem. Guiados
120Terra da Magia
por alguns anciões e uma nave viva, que nos servia
de ninho e nos protegeu e nutriu no espaço.
Caímos no terceiro planeta, de um sol
recém nascido para os padrões cósmicos.
A nossa nave, localizou uma vastidão
verde, que lembrava muito nosso mundo mas a
queda não foi suave. A atmosfera queimou nossa
nave viva, que atingiu o solo já morta e nos
protegeu e aos anciões, na sua ultima missão.
Restaram poucos de nós. Da nave
sobrou apenas o suficiente para sobreviver
naquele mundo estranho e hostil.
Crescemos entre as arvores, a cada dia
nos tornávamos mais fortes e gigantes. Ao nosso
redor, lagartos dominavam o planeta, nos
olhavam como invasores que éramos e, com
121Terra da Magia
medo, nos refugiamos nas arvores gigantescas
onde criamos nossa civilização.
Um emaranhado, aparentemente
caótico, de arvores colossais interligadas por
galhos e cipós que se estendiam por milhas e onde
colocamos em pratica os ensinamentos que
sobraram da nave mãe morta.
Arquitetura, leis, filosofia, foi o auge da
nossa civilização exilada.
Desenvolvemos arte usando o verde
como inspiração, esculturas voadoras que
explodiam no ar e se recompunham para lembrar
e honrar nosso mundo morto.
Leis que nunca precisaram ser usadas
pois éramos poucos e estávamos longe de
sentimentos mesquinhos e fúteis.
122Terra da Magia
Treinamos nossos corpos e presas, com
táticas perdidas, para guerras que não foram
travadas, em campos de batalha que não existem
mais.
Arrastávamos nossos corpos reptilianos
com orgulho por entre ruas suspensas enquanto
fora dali a barbárie e a lei do mais forte dominava.
Nos alimentávamos dos frutos das arvores e às
vezes , um ou outro réptil que se aproximava dos
nossos domínios de forma distraída.
Pendurávamos-nos nas arvores com
nossas grandes caudas e os puxávamos pela
cabeça com nossas presas fortes e afiadas. Nosso
veneno os paralisava e o banquete estava servido.
Observavam-nos com desdém e medo
mas éramos jovens demais para enfrentá-los,
tínhamos o dom da paciência.
123Terra da Magia
Uma noite, quando a lua se escondeu
em algum lugar distante do céu, eles vieram,
Sorrateiros por entre as arvores, eram muitos,
milhares e nos surpreenderam em uma
emboscada sanguinária em busca de vingança.
Lutamos por dias, sangue manchava o
verde, conhecíamos as arvores, os emboscávamos
em volta delas, pilhas de corpos se amontoavam
em volta das arvores e o mal cheiro empesteava o
ar, nem os comedores de carniça se atreviam a
chegar perto.. Mas eles eram numerosos demais
e para cada morto, dois outros surgiam, Eles
vinham pelo ar e por terra, perdemos alguns
irmãos mas os rechaçamos. E eles voltaram para
onde vieram sem nem mesmo levar seus mortos.
Já éramos poucos e cada vez mais nosso
numero diminuía.
124Terra da Magia
Queimamos os corpos dos nossos
irmãos, como era o costume do nosso mundo, e
piras colossais iluminavam a escuridão lúgubre da
floresta.
Cantamos canções de morte, nossas
vozes e choro se espalharam pelo verde, e foram
ouvidas em todos os cantos.
Depois disso a paz reinou.
Os anos correram rápidos, e nossa
civilização entrava em decadência como deve ser.
Abandonamos tudo por lutas internas por poder,
que já dilaceravam nossa antiga sociedade em
nosso falecido Mundo. Tornamos-nos selvagens,
descemos das arvores e nos misturamos aos
outros seres. Caçávamos, às vezes por fome e as
125Terra da Magia
vezes por prazer, arrastávamos nossos corpos
gigantes pela relva.
Todos nos temiam.
Ate que veio o estranho dia. De repente,
uma imensa bola de fogo atravessou o céu em
uma manhã nublada e quieta. Nem os voadores
puderam fugir, quando o impacto do imenso
objeto, beijou o solo virgem da floresta.
Rapidamente o fogo se alastrou, e em minutos
destrui tudo aquilo que a natureza levou milênios
para tecer.
A morte não fez escolhas, seres vivos
morriam pelo calor das chamas, outros
queimavam como brasa e se jogavam,
inutilmente, nos rios ferventes e sulfurosos.
126Terra da Magia
Meus irmãos viraram cinzas, mas eu
escapei,
Sorte? Destino? Não, apenas estava
dormindo em uma caverna profunda, refastelado
por uma refeição. Meus olhos so observavam tudo
la do fundo da caverna, inebriado pela digestão, vi
meus irmãos morrerem em chamas.
As explosões eram ensurdecedoras la
fora, guinchos de seres mortos formavam uma
sinfonia macabra, que me acompanhou por anos a
fio.
“Estou só”, foi o ultimo pensamento que
passou pela minha mente, antes que uma imensa
pedra obstruísse a estreita entrada da caverna.
Entrei em um profundo e longo sono
naquela escuridão.
127Terra da Magia
Não sei quanto tempo se passou ate que
eu acordasse. Os antigos, agora todos mortos,
falavam do longo sono, mas achávamos ser
apenas uma lenda. Quanto errado estávamos.
Acordei e me arrastei pelo chão úmido e
frio da caverna. Os barulhos la fora haviam
cessado.
Empurrei a imensa pedra, usando a
força da minha cabeça, o esforço foi cansativo
mas logo a luz do sol apareceu.
Meus olhos meio cegos pela claridade
puderam ver que a floresta havia renascido, mas
agora outros seres habitavam seu chão e seus
céus.
Tinham cores e cheiros diferentes,
pulavam pelas arvores, coloriam os céus. Eu
128Terra da Magia
estava faminto e logo procurei alimento em meio
aqueles peludos animais.
Com o passar dos dias, eu avançava
floresta a dentro, e me convencia de que os
antigos e gigantescos animais que tanto combati,
não existiam mais e eu era o mais poderoso ser a
se arrastar pelo verde.
Os outros animais me temiam, se
escondiam quando escutavam o farfalhar das
folhas durante a minha passagem. Eu tinha me
tornado maior e mais forte, minha cauda ficava a
kilometros da minha cabeça.
Meus simples rastros eram suficientes
para os manter a distancia. Eu por algum motivo
estranho, gostei da solidão.
129Terra da Magia
Ate que um dia, avistei um animal
diferente de todos que já tinha visto.
Andava em duas pernas, ligeiro. Caçava
com estranhas armas, e vivia em bandos. Eu
vislumbrei suas aldeias e acompanhei seus dias.
Coemcei a caça-los, mais por esporte do
que fome. Engoli seus filhotes e fêmeas, quebrei
seus guerreiros mais valorosos.
Suas armas não me atingiam, eu era
grande demais para sentir suas setas.
Depois de anos de matança, eles se
renderam e vieram ate mim para me adorar como
um Deus. Serviam-me fêmeas em sacrifício e me
deram um nome, algo que de onde eu vim, não
importava.
130Terra da Magia
“Boiuna”, esse simples nome fazia os
homens tremerem, foram dias de gloria.
Continuei meu reinado na floresta ate
que os estranhos seres chegaram.
Eles vinham de longe em naves que
atravessaram o mar, eram brancos e diferentes
dos outros, falavam outra língua e traziam armas
estranhas e estranhos costumes.
Eu os observava escondia entre as
arvores, apenas meus olhos brilhantes eram vistos
a noite.
Mas eles não acreditavam em mim.
Uma noite, enfurecido pelo meu
orgulho, ataquei a aldeia. Usei toda a minha força
131Terra da Magia
para matar a todos inclusive os brancos, me
banquateei com seu sangue e fugi para a floresta.
Mas isso foi meu erro, as tribos se
uniram e junto ao homem branco, vieram me
caçar. Lutamos durante dias ou meses não
lembro.
Um certo dia, grupo de brancos e
selvagens tentou me cercar. Mas ali, em meio a
gigantescas árvores, eu reinava. Fui me livrando
da cada um deles. Apesar do meu tamanho
aprendi a ser sorrateira e mais perigosa.
Até que restou apenas um, branco e
ainda jovem, sua espada tremia por entre suas
mãos suadas e resolvi aparecer para ele, as vezes
o medo deles me alimentava.
132Terra da Magia
Ele me olhava espantado, trêmulo e
falava em sua língua estranha, mas que por algum
motivo, eu conseguia decifrar.
Ele me chamou de dragao, falou que
seus antepassados adoravam seres parecidos
comigo, mas que voavam livres nos céus.
E eu me perguntei se teríamos sido os
únicos a cair naquele mundo distante, se teríamos
irmãos em outras terras.
Ele baixou a cabeça e me fez uma
reverência antes de ser devorado, lhe dei uma
morte rápida e senti algo que não conhecia,
compaixão.
Um dia a vitoria era deles no outro
minha, assim seguia o equilíbrio.
133Terra da Magia
Até que dois homens, um selvagem e
um branco se uniram.
O branco trazia algo na mão que depois
soube ser uma cruz como chamavam e o outro
trazia suas crenças antigas e com elas chefiava
sete tribos.
Juntos cantaram uma estranha canção,
tentei atacá-los, mas foi inútil.
Algo ali impedia meus movimentos, eles
se deram as mãos e uma luz muito forte me
cegou. Procurei fugir para dentro da terra e fiz o
jogo deles.
A canção entoada pelo selvagem me
deixou tonto e fui uma presa fácil para o feitiço
jogado contra mim.
134Terra da Magia
A união de magia selvagem e cantos de
fé do branco não surtiram o efeito desejado. Eu
não tinha sido destruído e verdade, mas resolvi
me refugiar no fundo da Terra.
E lá fui esquecido em mais um sono
profundo.
Senti as coisas mudarem sobre minhas
costas, ouvi sons, senti o peso das construções,
ouvi quando os selvagens foram expulsos e
dizimados pelos brancos, escutei guerras e percebi
quando impérios ruíram.
Vi uma nova civilização nascer, senti as
pilastras de enormes construções sobre minha
cabeça.
E esperei.
135Terra da Magia
E nesse exato momento, consegui
mover minha cauda há muito adormecida. Resolvi
despertar e ver o Mundo que abandonei, ouvi o
estrondo e os gritos, movi minhas costas e a terra
tremeu, levantei a cabeça e a enorme construção,
onde uma mulher pisava em uma cobra, desabou.
Vi o medo em rostos estranhos, seus
imponentes prédios ruíram quando despertei.
Eu me arrastava pelo Mundo
novamente.
Jefferson Nunes é escritor, com diversos textos publicados
pela editora escala, blogueiro de um
universoparaleloqualquer.blogspot.com, e vai lançar seu
ebook de contos, Vírus Fantasma, ainda esse ano.
136Terra da Magia
Ensombração
Alexandre Lobão
Um dos homens na mesa ao lado se
levantou, com uma expressão indecifrável no
rosto. Parecendo embaraçado, acenou
brevemente como despedida e foi em direção à
porta, sem falar nem olhar para trás.
Quando o homem que restara se
levantou, levantei a mão em sua direção.
- Com licença...
- Sim?
- Perdoe-me, mas não pude evitar
escutar a história que você contou, senhor...?
- Lauro. Lauro Alves.
Apertei a mão que me era oferecida.
Titubeei antes de falar meu nome – afinal, nomes
têm poder – mas resolvi assumir o risco.
137Terra da Magia
- Martelli. Victor Martelli. É que... bem,
é que tive a intuição de que você procurava algo
mais com sua história. Alguma ajuda, talvez?
Ele suspirou e deixou os ombros caírem,
desanimado.
- É que Bia, minha prima, sumiu faz
alguns dias. A polícia deveria estar procurando,
mas segundo eles não há nenhuma pista do
raptor, se é que ela foi raptada... E que desde que
fui à casa dela, sinto que há algo... bem, algo
estranho...
Percebendo sua hesitação, fiz um sinal
para encorajá-lo.
- Acho que posso ajudá-lo. Sente-se
aqui, por favor.
Não esperei ele se arrumar na cadeira
para continuar.
- Sr. Lauro, explique exatamente porque
você acha que há algo de estranho no
desaparecimento de sua prima.
138Terra da Magia
O olhar dele mostrou a angústia, a força
que fazia para colocar aquilo para fora. As
palavras saíram todas de uma vez, em um
borbotão que não permitia interrupções.
- Bem, eu poderia dizer-lhe que foram as
circunstâncias do desaparecimento em si... mas a
verdade é que, ao entrar na casa dela com o
delegado, senti, e acho que vi, algo estranho.
Neste momento me veio a lembrança da aventura
que tivemos quando crianças, e eu soube que
havia ali algo além do que podíamos ver.
- Certo. Mas diga-me, o que você quis
dizer com “as circunstâncias do
desaparecimento”?
Lauro contou-me, então, como Bia
sempre fora a mais emotiva de toda a família,
como se deixava levar pelos instintos desde
pequena e como, mesmo depois de adulta, volta e
meia vinha com histórias de seus contatos com os
seres fantásticos que eles tinham visto quando
crianças. Há poucos anos, Lauro se aventurara a ir
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O Despertar da Magia Amazônica

  • 1.
  • 2. 2Terra da Magia Terra da magia Gian Danton (Organizador) Capa JJ Marreiro e Fernando Lima
  • 3. 3Terra da Magia Terra da Magia Antologia organizada por Gian Danton Autores: A.Z.Cordenonsi -Alexandre Lobão -Bruna Louzada – Jefferson Nunes -Joe de Lima - Lucas Lourenço - Roberta Spindler - Rodolfo Santos DANTON, Gian. Terra da magia. Curitiba: Quadrinhopole, 2014. E-book. ISBN 978-85-917606-3-3
  • 4. 4Terra da Magia Apresentação Embora tenha antecedentes famosos, entre eles os mitos de Gilgamesh e a Odisseia, a literatura de fantasia moderna surge, não por acaso, com o romantismo. O romantismo aparece no contexto ocidental como uma reação à estética neo-clássica e ao racionalismo iluminista. O iluminismo prometia tirar o homem das trevas e do misticismo da Idade Média para colocá-lo numa era de razão e progresso. Os românticos viam isso como uma falácia. A razão não era o caminho para a humanidade, mas o sentimento. Não por acaso, um dos romances mais importantes do período, e pedra fundamental do
  • 5. 5Terra da Magia que viria a ser a ficção-científica era uma crítica à ciência: Frankstein ou moderno prometeu mostrava os perigos da razão sem ética. A ficção científica só viria a se tornar um gênero próprio, separado da fantasia, décadas mais tarde, quando Júlio Verne, influenciado pelo samsionismo, imaginou um mundo que maravilhas podiam ser conseguidas através da ciência, seja chegar à Lua, seja viajar ao fundo mar. O neo-clássico volta-se para a Grécia antiga, berço da razão. A fantasia, em oposição, volta-se para a Idade Média, época de misticismo e mistério. A Idade Média tinha forte tradição de romances de cavalaria (uma mistura de mitologia
  • 6. 6Terra da Magia cristã e pagã) repletos de misticismo, heróis, feitceiros, espectros, animais místicos, objetos mágicos e seres elementais, ligados à natureza e vindos diretamente das tradições dos povos bárbaros. Ítalo Calvino no livro Contos Fantásticos do Século XIX relaciona o conto fantástico com a especulação filosófica do período: “Seu tema é a relação entre a realidade do mundo que habitamos e conhecemos por meio da percepção, e a realidade do mundo do pensamento que mora em nós e nos comanda. O problema da realidade daquilo que se vê – coisas extraordinárias que talvez sejam alucinações projetadas por nossa mente; coisas habituais que talvez ocultem, sob a aparência mais banal uma segunda natureza inquietante, misteriosa,
  • 7. 7Terra da Magia aterradora – é a essência da literatura fantástica, cujos melhores efeitos se encontram na oscilação de níveis de realidade inconciliáveis”. Segundo Calvino, a literatura fantástica nasceu com o romantismo alemão, mas se espraiou por toda a produção do período. Difícil encontrar autor romântico que não tenha colocado o maravilhoso, o inexplicável em suas obras, em especial Edgar Alan Poe, o pai da literatura de gênero. No Brasil um autor que se aventurou pelo fantástico foi Álvares de Azevedo. Seu livro de contos Noite na Taverna é um dos melhores exemplos disso. Essa fuga para o passado irá se transformar na alta fantasia, quase sempre ambientada na Idade Média, real o ou imaginária, ou na Espada e magia, ambientada em um
  • 8. 8Terra da Magia passado ainda mais distante, como em Conan, ou em mundos muito diversos do nosso, em que o fantástico torna-se normal, como em Elric. A ópera O anel de Nibelungo, de Richard Wagner, obra-prima do romantismo, representa essa tendência, e irá influenciar um dos maiores nomes do gênero, Tolkien, até mesmo no tema do anel de poder. Tzevetan Todorov, no livro Introdução à literatura fantástica explica que a fantasia ocorre num mundo em que não é exatamente o nosso, um mundo povoado por diabos, sílfides, vampiros, no qual produz-se acontecimentos que não podem ser explicados pelas leis de nosso mundo. Diante dele, leitor e herói se vêm diante de duas possibilidades: ou o que ocorreu é fruto da imaginação, ou sonho (como Narizinho, que
  • 9. 9Terra da Magia acorda no final do primeiro livro infantil de Monteiro Lobato ou em Alice no país da Maravilhas) ou o acontecimento é real e, nesse caso, essa realidade é regida por leis que nos são desconhecidas. O fantástico é essa hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural. Para Todorov, portanto, o fantástico implica não só a existência de um acontecimento estranho, mas é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens estranhas como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e sobrenatural. Essa hesitação é normalmente experimentada por um dos personagens da narrativa, muitas vezes o herói.
  • 10. 10Terra da Magia Roberto de Sousa Causo, no livro Rumo à Fantasia, cita a definição do The Oxford Companion to English Language: “geralmente se concorda que (a fantasia) é ambientada em um mundo distante da experiência comum, alguns ou todos os personagens são diferentes de qualquer criaturas conhecidas, o mundo de fantasia tem as suas próprias regras e lógica, e é normalmente bem ordenado dentro delas, e qualquer personagem quotidiano que entre nesse mundo tem que se conformar ao novo modo de vida. De modo semelhante, criaturas fantásticas podem entrar no mundo familiar, e quando o fazem os seus poderes frequentemente prevalecem”. O mesmo Roberto Causo lembra que a fantasia se consolidou como gênero literário no mercado editorial a partir de 1923, com a criação
  • 11. 11Terra da Magia da revista Weird Tales. Foi nela que surgiu o gênero Espada e Magia, representado principalmente por Conan, de Robert A. Howard, que escreveu para essa e outras publicações. A outra corrente famosa é a alta fantasia, representada principalmente por J.R.R. Tolkien de O Hobbit e O senhor dos anéis. Nessa vertente, o autor cria todo um mundo próximo, mas diferente do nosso. Esse mundo é descrito em detalhes culturais, geográficos e históricos ao longo da narrativa e o leitor se acostuma à regras desse novo mundo (vale lembrar que Robert A. Howard também definiu muito bem o mundo de Conan, mas com outro enfoque). Vários outros autores da época se debruçaram sobre o gênero, com destaque para As crônicas de Narnia, de C.S. Lewis, que colocou
  • 12. 12Terra da Magia heróis humanos normais atravessando para um mundo de contos de fadas, em que existem duendes, centauros, magos, feiticeiras e muitos outros, numa quase apresentação prática dos princípios de Todorov. Embora tenha feito um sucesso relativo na época de sua publicação (1954-1955), a saga de O senhor dos Anéis só se tornou um sucesso estrondoso na década de 1960, quando um editora americana aproveitou o fato de que o livro não havia sido registrado nos EUA para lançar uma versão não-autorizada e barata. O livro fez enorme sucesso com os hippies, uma geração muito parecida com a dos românticos do século XIX que transformaram a fantasia em um gênero literário. Como os românticos, a geração dos anos 1960 criticava o racionalismo e pregava uma volta
  • 13. 13Terra da Magia a um mundo menos tecnológico e mais sentimental. O gênero ganhou ainda mais popularidade com a criação do RPG Dungeons and Dragons e da série televisiva derivada, A caverna do dragão, um sucesso extraordinário até hoje. A animação da Disney A espada era a lei também merece destaque por retomar o mito arturiano, assim como o filme História sem fim (baseado no livro do escritor alemão Michael Ende). Finalmente, tivemos recentemente o fenômeno Harry Potter e os filmes de O senhor dos anéis, Crônicas de Narnia e Guerra dos Tronos, que aumentaram ainda mais o interesse pela fantasia fazendo com que ela concorra fortemente com a ficção científica.
  • 14. 14Terra da Magia Hoje duendes, dragões, sereias elfos fazem parte do imaginário popular de milhões de pessoas. Mas, se os primeiros escritores germânicos que se debruçaram sobre o gênero tinham uma rica mitologia para explorar, nós também temos: mapinguaris, sacis, mãe-d´água, cobra grande, os exemplos são muitos. Infelizmente essa riqueza raramente vem para a literatura. São raras as iniciativas de utilizar a mitologia nacional para criar um universo de fantasia. Talvez falte um diálogo com a mitologia clássica da fantasia, um encontro dos sacis com hobbitts, de sereias com a mãe d´água, de dragões com a cobra grande.
  • 15. 15Terra da Magia Essa é a proposta da antologia Terra da Magia: provocar um diálogo de duas mitologias, criando histórias tipicamente de fantasia, mas com um sabor regional. Gian Danton
  • 16. 16Terra da Magia O Despertar de Boiúna Roberta Spindler O sol era forte e o calor, tipicamente equatorial, grudava as roupas no corpo. Mesmo com aquele clima abafado, a praça daquela metrópole amazônica estava movimentada. Vários corredores se exercitavam, senhoras passeavam com seus cachorros e as barracas de água de coco fervilhavam. No meio de tanta gente, um homem de cabelos cinzentos e olhos amarelados descansava em um banco de madeira, aproveitando a sombra de uma samaumeira. Era impossível não notá-lo. Sua pele era de uma palidez incomum, quase doentia, e as roupas que usava não condiziam em nada com o verão local.
  • 17. 17Terra da Magia Observava com curiosidade as garças que se empoleiravam no topo da grande árvore, mas não estava alheio aos comentários sussurrados e a desconfiança daqueles que passavam ao seu lado. — Não importa onde estamos, Liz, os olhares são sempre os mesmo — comentou de maneira casual, ainda com os olhos fixos nas graciosas aves sobre sua cabeça. O bolso da frente de seu casaco preto se movimentou e uma cabeça minúscula com orelhas pontudas apareceu. Olhos astutos percorreram a praça em menos de um minuto e depois voltaram a desaparecer no interior da veste. — Ainda não compreendi o motivo de estarmos aqui, Damian — a voz era fina e delicada, mas demonstrava bastante irritação. — Com tantas propostas de trabalho, por que
  • 18. 18Terra da Magia aceitou justamente aquela que ficava do outro lado do oceano? O homem chamado Damian riu de maneira divertida. Estava na capital paraense fazia apenas algumas horas, mas sua pequena companheira não parava de reclamar. — Liz, você está se tornando uma fada bastante irritante. Desse jeito vou ter que procurar uma nova assistente. — Você diz isso porque não está preso em um bolso de couro que mais parece uma sauna! E por falar nisso, quantas vezes tenho que lembrá-lo de usar desodorante? Aquela reivindicação fez Damian gargalhar alto, atraindo olhares confusos dos transeuntes próximos. Estava pronto para
  • 19. 19Terra da Magia responder à altura, quando um inesperado tremor tomou conta da praça. As garças levantaram voo e as folhas das árvores caíram, criando uma verdadeira chuva verde. Os corredores pararam, as senhoras gritaram e os cachorros uivaram. Nas ruas, carros frearam bruscamente, alguns chegando a colidir. O caos durou exatamente dois minutos e se foi tão rápido quanto surgiu. Percebendo que o pior tinha passado, as pessoas começaram a se acalmar. Um vendedor de coco soltou uma imprecação quando viu a maioria de sua mercadoria espalhada pela calçada. — Esse já é o terceiro terremoto essa semana! Mas que diabos está acontecendo? Damian estreitou os olhos ao ouvir aquele comentário. Pensou em ir até o vendedor e
  • 20. 20Terra da Magia questioná-lo sobre os tais tremores, mas sua atenção acabou se voltando para a bela mulher que caminhava em direção ao banco de madeira. — Isso está ficando bem interessante — ele abriu um sorriso e observou a beldade. Ela tinha a pele morena, seus cabelos lisos e negros quase ultrapassavam a cintura. Vestia um jeans desbotado e uma camiseta branca, trazia no pescoço colares feitos com sementes de cores e formatos variados. Demonstrando segurança e sensualidade, sentou- se ao lado do estrangeiro e cruzou as pernas. — Desculpa o atraso, caçador. Como podes ver, a cidade está um tanto caótica — seus olhos negros perscrutaram Damian com bastante interesse. — Fico feliz que tenhas atendido ao nosso chamado.
  • 21. 21Terra da Magia Damian sentiu o efeito do olhar da mulher misteriosa, mas conseguiu disfarçar. Em seu bolso, Liz se movia com impaciência. Ela sempre agia daquela maneira quando estava diante de um ser mágico. — A carta foi um tanto vaga, mas conseguiu me deixar curioso — assumiu seu habitual tom de negócios. — Espero que possa esclarecer minhas dúvidas, senhorita... — Yara, meu nome é Yara — os lábios carnudos formaram um sorriso. — Vim até aqui justamente para te levar até aquele que tem as respostas. Na garupa de uma moto, Damian foi conduzido até um dos bairros mais antigos da cidade. Os prédios tornaram-se mais escassos e as
  • 22. 22Terra da Magia ruas se estreitaram. As casas comerciais eram maioria, mutilando vários casarões coloniais. Os azulejos portugueses que um dia embelezaram diversas moradias agora eram escassos, roubados ou destruídos por vândalos. O caçador logo percebeu que estava entrando em um local poderoso, onde a aura de magia ainda era forte apesar da urbanização desenfreada e do descaso. Quanto mais adentravam na chamada Cidade Velha, Damian também percebeu que aquela região fora a mais afetada pelos tremores. O comércio estava de portas fechadas e vários entulhos de casas desabadas tornavam as ruelas ainda mais apertadas. Curioso, questionou Yara sobre aquele estrago, mas a motorista permaneceu calada até o final da viajem.
  • 23. 23Terra da Magia A moto entrou em uma ruazinha de paralelepípedos, cercada por casarões ou destroços deles. Yara desligou o motor e caminhou até uma casa de paredes descascadas. Aproveitando a quietude do lugar, Liz deixou o bolso do casaco. Suas asas bateram rápidas e o corpo esguio agradeceu o vento úmido. Pousou no ombro de Damian e confessou suas preocupações: — Não gosto da aura deste lugar e não gosto do jeito que você olha para essa mulher. Mesmo que aquela frase tenha sido sussurrada, Yara conseguiu ouvi-la. — Não precisa ficar com ciúmes, fadinha — retirou uma chave de ferro das vestes e destrancou a pesada porta de madeira. — Nossa relação será estritamente profissional.
  • 24. 24Terra da Magia Assim que a porta foi aberta, a aura mágica aumentou subitamente e calou os protestos de Liz. Quando entrou na casa, Damian sentiu como se uma corrente elétrica passasse por seu corpo. Sorriu. Adorava aquela sensação de perigo iminente. Adentrou na sala — de móveis quebrados e ar mofado — e encontrou um grupo bastante peculiar. Sentada em uma poltrona bolorenta, uma velha com roupas pretas e cabelos desgrenhados se distraia fumando um cigarro. Encostado na parede ao seu lado, um jovem atraente, vestido inteiramente de branco, ajeitava o chapéu na cabeça para cumprimentar os recém- chegados. Liz pareceu bastante impressionada com aquela cortesia.
  • 25. 25Terra da Magia Yara ignorou aqueles dois e se dirigiu diretamente ao terceiro integrante do grupo. Um homem de meia-idade, com pele morena e cabelos da cor do carvão. — Pajé, aqui está o estrangeiro. O homem deu um sorriso fraco, parecia não dormir fazia anos. — Damian, o meio-elfo. Decapitador de gigantes e exterminador de lobisomens. Carrasco de Tiamati, a rainha dos dragões — nomeava aquelas conquistas, mas não parecia impressionado. — Espero que sua coragem e força não sejam apenas histórias. Damian deu de ombros e cruzou os braços.
  • 26. 26Terra da Magia — Pelo visto minha fama me precede — forçou um sorriso. — Sou o melhor matador de monstros que irá encontrar. Conte-me mais sobre o monstro que move as entranhas dessa cidade e eu irei destruí-lo. A mulher fumante soltou um assovio e depois deu uma risada seca. — Vejo que ele é mais esperto do que parece — soprou fumaça pela boca torta. — Mas será mesmo capaz de deter Boiúna quando ela despertar? O poder que envolvia aquele nome causou um mal-estar em todos na sala, até mesmo Liz se encolheu. Ao observar o rosto aflito do pajé, a ansiedade tomou conta de Damian. Os momentos que precediam as caçadas eram sempre os mais excitantes.
  • 27. 27Terra da Magia O grande e derradeiro tremor atingiu Belém logo após o nascer do sol. O centro da cidade desmoronou como um castelo de cartas de baralhos. Os prédios viraram uma cascata de concreto e as casas encobertas pela poeira sufocante. As ruas foram divididas em longos veios, que seguiram seu caminho tortuoso até chegar à catedral metropolitana. A secular igreja da Sé — patrimônio histórico e religioso — teve suas paredes alvas rachadas em alguns segundos. No Largo da Sé, praça localizada bem em frente à igreja, Damian observava a destruição com uma calma incomum. Pessoas morriam ao seu redor, gritos de socorro ecoavam por todos os cantos, mas o caçador só estava interessado na sua presa.
  • 28. 28Terra da Magia — As armas, Liz — ele disse, enquanto conjurava alguns símbolos de proteção. Sem perder tempo, a fada abriu um portal de luz no chão. Damian se agachou e retirou uma reluzente espada de prata. Prendeu-a nas costas e voltou a remexer no depósito mágico. Dessa vez, extraiu da luz uma bazuca AT-4 e dois fuzis. — Fique preparada Liz, acho que vou precisar de muita munição. A catedral desmoronou, levantando uma espessa fumaça branca. O sino da torre atingiu o solo com um sonoro estrondo e ficou badalando por alguns instantes, camuflando o urro odioso da criatura das profundezas. A cobra gigante se ergueu com uma graça incompatível ao seu tamanho descomunal. A pele era negra e
  • 29. 29Terra da Magia brilhante e os olhos vermelhos lampejavam malícia. Ao avistar a cabeça triangular de Boiúna, Damian entendeu o desespero que havia se abatido sobre o pajé que o contatara. E de repente, a bazuca lhe parece quase um pedaço de pau. O ódio dela vai varrer tudo do mapa. As palavras do pajé voltaram a sua mente, como um aviso de mau agouro. — Isso é um ser abissal, Damian! Nós dois não estamos preparados para vencer algo assim! — Liz gritou ao pousar em seu ombro. — Então, ainda bem que não vamos fazer isso sozinhos — ele se ajoelhou e preparou a bazuca para o primeiro tiro. Ao seu lado, montada
  • 30. 30Terra da Magia em um cavalo com chamas no lugar da cabeça, Yara apareceu. Sorriu de maneira nervosa. — Estamos prontos. Damian meneou a cabeça em consentimento e avistou seus companheiros de batalha. A velha de cabelos desgrenhados estava lá, juntamente com o homem de roupas brancas, mas também havia caras novas. Eram mais de vinte criaturas, uma mais bizarra que a outra. Dentre elas, um homem de cabelos de fogo e pés tortos e uma assustadora criatura de mais de dois metros de altura — coberta por pelos vermelhos e com uma boca que ia do peito até a barriga — chamaram a atenção do caçador. Sentindo a confiança de alguém que não conhecia a derrota, Damian apertou o gatilho. Aquela seria, sem dúvidas, a batalha mais
  • 31. 31Terra da Magia fantástica de todos os seus duzentos e cinquenta anos de vida. Roberta Spindler nasceu em Belém do Pará, em 1985. Graduada em publicidade, atualmente trabalha como editora de vídeos. Nerd confessa, adora quadrinhos, games e RPG. Escreve desde a adolescência e é apaixonada por literatura fantástica. Tem contos publicados em diversas antologias e é coautora do romance Contos de Meigan – A Fúria dos Cártagos. Twitter: @robertaspindler Blog: www.ruidocriativo.wordpress.com
  • 32. 32Terra da Magia Teatro do invisível Gian Danton - Você pensa neles? De vez em quando você pensa neles? Olhei para o homem à minha frente. Não parecia um louco. Estava bem vestido, embora de maneira informal. Usava uma calça jeans e camiseta branca. Nada de “Eu acredito em Ufos” ou “O fim está próximo, irmão!”. Apenas uma camisa branca. Eu não havia tido oportunidade de ver seus sapatos, mas acreditava que ele usasse um simplório tênis. Ainda assim aquele homem havia se sentado na minha frente na lanchonete e começado a falar coisas sem sentido. - Pensar? Pensar em quem? - Neles, nos duendes, fadas, sacis, mapinguaris, na mãe d´água... - Por favor, eu já estou...
  • 33. 33Terra da Magia Fiz sinal de levantar. Meu lanche estava no meio e eu estava disposto a sacrificar o resto para me livrar daquele maluco, mas ele me agarrou pelo ombro e me fez sentar. - Não, eu não digo pensar da mesma forma que se pensa em uma lenda, ou em discos voadores. Eu digo pensar neles de fato, como seres que existem... O homem era totalmente pirado. Olhei à volta em busca de um segurança, mas não achei nenhum. - Sei o que está pensando. - Sabe? - Sim, você acha que sou louco. Não espero que acredite em mim, mas quero que ouça uma coisa, quero que ouça minha história e estará livre para ir embora. Concordei e rezei para que a história fosse curta.
  • 34. 34Terra da Magia Ele bebeu um pouco do refrigerante e me olhou diretamente nos olhos. - Nós éramos todos crianças. Mas eu era o mais velho de nós. Bia tinha só o que? Uns oito anos? Provavelmente. Havia também o Bruno, com uns 9-10 anos. Todos primos. Estávamos de férias na casa de nosso avô. Hoje existe luz até nos lugares mais remotos, mas naquela época toda a luz que tínhamos no sítio de noite vinha de lamparinas ou, no máximo, uma lanterna. A luz elétrica matou o encanto. Dava medo. O senhor já entrou na mata à noite, senhor... senhor? - Jonas. - O senhor já entrou na mata de noite, senhor Jonas? - Já fui no parque... - À noite? - Não, de dia.
  • 35. 35Terra da Magia - Então o senhor não sabe o que é o medo. As crianças têm medo de dormir à noite no escuro do quarto e talvez esse medo ancestral seja uma lembrança do tempo em que morávamos na floresta e víamos o que nenhum humano deveria ver. E nós duvidamos da pequena Bia quando ela nos contou o que viu... Um segurança da lanchonete se aproximou. Pensei em chamá-lo, mas o que diria? Que estava diante de um louco? A não ser que ele estivesse rasgando dinheiro, duvido que acreditassem em mim. Além disso, devo admitir, a história já começa a me intrigar. - Bia, você disse? O que ela viu? - Ela nos disse que acordou de noite e teve vontade de ir ao banheiro. Ninguém acreditou porque o banheiro ficava do lado de fora da casa, era necessário andar por uma ponte em pleno breu, mas hoje acho que foi exatamente o que ela fez. Ao invés de ir para o trapiche como todos nós fazíamos e fazer na água, ela foi na
  • 36. 36Terra da Magia direção oposta. Crianças são assim, acho. Fazem o que lhes foi dito, mesmo que vá contra todos os seus medos. Pelo menos algumas crianças são assim. Pelo menos Bia. Enquanto andava pela ponte, ela sentiu alguma coisa, como olhos que a seguiam. E ouviu vozes. - Vozes? - Traga seus primos, diziam as vozes. Traga seus primos! Ela correu para dentro e se meteu na rede, cobrindo o rosto com o lençol. Só nos contou no dia seguinte. Como disse, ninguém acreditou. Mas a curiosidade é mais forte que tudo. Na noite seguinte, eu não encontrava posição para dormir. Traga seus primos, dizia a voz. O que era aquela voz? O que queria? Seria uma armadilha? Só havia uma forma de descobrir as respostas. Nosso avô estava dormindo, de modo que tive que tomar muito cuidado para surrupiar a lamparina. Mas pelo jeito eu não fora o único a ter essa ideia. Mal comecei a andar e meus três
  • 37. 37Terra da Magia primos estava atrás de mim. “Eles vão falar com a gente?”, perguntou Bia. “Não sei”, respondi. Eu não sabia de nada, mas podia sentir como que uma pontada no cérebro. Acho que chamam isso de intuição. Comecei a ouvir pequenos barulhos à nossa volta, como se uma multidão de pequenos animais estivessem na mata, espreitando-nos com seus olhos febris que apenas adivinhávamos. Finalmente chegamos ao fim do trapiche que levava ao banheiro. O cheiro era forte e não havia porque continuar em frente, mas mesmo assim eu desci e segui pela terra. Olhei para trás, para dizer aos primos que não me seguissem, mas eles estava lá, logo atrás de mim. “Vamos?”, indagou Bruno. Era uma provocação. Se um fedelho de nove anos se sentia corajoso a ponto de querer continuar em frente, por que eu não faria o mesmo? Hoje em dia eu penso: como poderíamos ter certeza de que nada nos iria acontecer? A mata era perigosa à noite, com ou sem seres fantásticos. Onças, cobras, aranhas... a
  • 38. 38Terra da Magia quantidade de perigos era infindável, mas mesmo assim fomos em frente. A floresta foi se fechando à nossa volta e sons estranhos pareciam emergir dela. Um pássaro martelava seu piado de tempos em tempos. O vento dedilhava as folhas das árvores. A madeira das árvores estalava. Mas os sons mais perturbadores eram aqueles que não podíamos ouvir, mas apenas imaginar. Nem sei como, mas quando demos por nós mesmos, estávamos no meio de uma clareira. E havia gente à nossa volta. Podíamos percebê-los por entre as folhas e a penumbra. Lá no alto, uma lua cheia despejava seus raios, que penetravam, poucos, por entre as folhas. Apesar da penumbra, podíamos observar uma incrível variedade de seres: havia alguns muito pequenos, mas não eram crianças, pareciam anões. Havia gigantes. Vi um cavalo que parecia normal até eu entrever um chifre sobre sua testa. De repente algo passou voando por entre nós. Pensei que fosse uma libélula enorme, mas Bia gritou: “É uma fada!”.
  • 39. 39Terra da Magia Restabelecido do susto, percebi uma figura estranha, que parecia ter crescido tanto para o alto quanto para os lados. No meio do que deveria ser seu estômago, uma miríade de pequenos dentes afiados cintilavam à luz do luar. Um dos seres se adiantou. Era difícil ver seu rosto, encoberto por uma luminosidade avermelhada. Pareciam cabelos da cor de fogo, mas logo percebi que era muito mais do que isso: de fato, todo ele estava em chamas, cada fio voluteando como a chama de uma vela. Ele andou até nós, suas pegadas deixando rastros ao contrário na terra, e se dirigiu primeiro à Bia: “Vejo que trouxe seus primos”. Ele falava e suas palavras pareciam o murmúrio das folhas na floresta. “Precisamos de vocês”, disse, mas olhava para mim. “Um de nós só pode ser salvo por humanos”. “Um de nós?” “Norato”. Ele não falou nada além disso, mas nós soubemos. Era como um filme que passava diante de nós. Vislumbramos o nascimento de duas crianças índias. Mas eram crianças encantadas.
  • 40. 40Terra da Magia Mal nasceram e uma transformação se operou sobre elas. Suas peles, antes rosadas e suaves, tornaram-se grossas e escuras, repletas de escamas. A cabeça se alongou, assim como o corpo. Como num filme, vimos os dois bebês se transformarem em cobras e se arrastarem para o rio. Eles cresceram e ganharam nome: o macho era Norato, a fêmea, Caninana. Norato, apesar de sua aparência assustadora, era tinha um coração de ouro: salvava pessoas em naufrágios, impedia que seres malignos se aproximassem da casa dos ribeirinhos... Era um protetor. Caninana era o seu oposto. A maldade corria em suas veias. Não havia barco ou canoa que passasse por ela que não experimentasse o chicote atordoante de seu rabo. Os pobres náufragos eram deixados à própria sorte, ou afogados. Caninana nadava pelos rios destruindo trapiches, comendo criações, alastrando o horror por onde passava.
  • 41. 41Terra da Magia Mas Nonato era triste. Suas feições monstruosas não combinavam com sua personalidade e ele ansiava por ter novamente a pele macia com a qual nascera. Norato queria voltar a ser gente, mas só havia uma maneira disso acontecer... A visão se desfez como uma névoa soprada pelo vento. À nossa frente apareceu o homem pequeno de pés tortos e cabelos em fogo. Na penumbra eu adivinhei um ser enorme, que respirava pesadamente e soltava lufadas de fogo a cada expiração. - Só existe uma maneira de fazer isso... e deve ser feita por humanos... por vocês. – disse o rapaz de cabelos em fogo. Um de vocês deverá cortar a cabeça de Norato com um machado de fio virgem. O outro deverá verter por ele uma lágrima. Eu e meus primos nos entreolhamos... estaríamos à altura dessa tarefa? Quem de nós
  • 42. 42Terra da Magia empunharia o machado e quem verteria uma lágrima por uma cobra monstruosa? Mas não tínhamos opção, tínhamos? Desde o início parece estar escrito que íamos nos envolver naquela jornada louca pela floresta em plena noite. O senhor já viu uma gravura do mestre Goya? Na época eu não a conhecia, mas desde então, toda vez que vejo a imagem, lembro daquela noite. O título? “O sono da razão produz monstros”. E era exatamente o que acontecia naquela noite perdida. Fomos de barco, enquanto os seres pareciam nos acompanhar, alguns por terra, pela margem. Outros pela água. Um boto passou por nós, rápido, e saltou sobre a canoa, como que a nos dizer que estava ali. De resto, a viagem era silenciosa. O barco singrava calmamente as águas sem a necessidade de remos, como que puxado por uma
  • 43. 43Terra da Magia força invisível. Não sabíamos para onde íamos ou quanto tempo levaria. De repente, a floresta pareceu parar. Todos os ruídos cessaram, exceto o murmurejar tímido do rio. Olhei para baixo e levei um susto. Uma forma monstruosa se esgueirava lá embaixo, arrastando a pele grossa contra o casco do barquinho. Era Caninana, uma cobra tão grande que se tornava difícil dizer qual seu comprimento. Seu tronco era do tamanho de um tronco de árvore. Pensei que ela iria nos atacar, mas apenas passou por nós. Adivinhei seu objetivo: ela queria encontrar Norato antes de nós... e matá-lo. Era um silêncio perturbador, o silêncio do medo que apavorava todos os animais da floresta e os colocava em sobreaviso. Até mesmo os seres fantásticos que nos seguiam pareciam saber que um desastre se aproximava. Súbito ouvimos um estrondo e o rio se agitou. A canoa foi sacudida por uma mão invisível, mas continuou seu percurso. Lá na frente
  • 44. 44Terra da Magia o estrondo se transformara numa algazarra de sons infernais. A luta começara. Ao dobrarmos uma enseada, nos deparamos com um espetáculo assombroso: as duas cobras gigantes se agitavam, se abocanhavam, suas caldas derrubando árvores, os corpos contorcidos provocando grandes ondas. A muito custo conseguimos chegar à margem. Ficamos lá, parados, hipnotizados pelo espetáculo dantesco que se desenrolava. Apesar da balbúrdia, era possível distinguir as duas cobras: Norato era de cor clara, com uma grande lista da cabeça ao rabo. Caninana era negra como a noite. De repente Caninana cravou seus dentes agudos no pescoço do irmão, que soltou um guincho desesperado e depois estremeceu. Por fim, a cabeça caiu na margem do rio, à nossa frente. Era enorme, maior do que a de qualquer animal que jamais vi. Apesar disso, tinha um olhar triste. Ele nos olhou e soltou um som seco, um pedido de socorro. - Precisamos ajudá-lo. Ele vai morrer se o encanto não for desfeito. – gritou Bia.
  • 45. 45Terra da Magia Eu sabia disso, mas não conseguia me mexer. Estava paralisado, o machado na mão. - Vocês não entendem? Ele vai morrer! – chorou Bia. Isso me despertou: Bia estava chorando, as lágrimas escorrendo por seu rosto. De todos nós, só ela sentira de fato a alma boa de Norato. Isso me deu coragem para levantar o machado. O aço desceu sobre a testa do monstro e, surpreendentemente, encontrou pouca resistência. A massa encefálica se abriu para para receber as lágrimas de minha prima. Eu achava que tinha visto os fatos mais estranhos de minha vida até então, mas a transformação que se operou superou todo o resto: a crosta escamosa foi se metamorfoseando em uma pele humana bronzeada. O corpo foi diminuindo de tamanho e ganhando membros. Logo a transformação se completou e um índio apareceu caído na lama da beira-rio enquanto a cobra fêmea se afastava pelas águas turbulentas.
  • 46. 46Terra da Magia De repente, parecemos despertar de um sono. Estávamos todos nós no meio da floresta. Não havia dragões, cobras-grandes, curupiras, nenhum ser fantástico à nossa volta. Só a floresta, densa em seus mistérios. Mas não era um sonho. Como poderiam quatro pessoas sonhar o mesmo sonho? E como explicar que estávamos em plena mata, e não em nossas redes? Não, aquilo aconteceu mesmo. Por mais fantástico que fosse, aquilo era real. O homem mordeu o último pedaço do sanduiche e fez menção de se levantar. Mas mudou de ideia: - Mas há uma coisa que penso, às vezes: será que aquilo tudo era realmente necessário? Será que eles precisavam realmente de nós para transformar Norato? Além disso, porque a presença de Bruno, que no final não teve importância nenhuma na transformação? De uns tempos para cá tenho pensado em uma outra
  • 47. 47Terra da Magia explicação: talvez aquilo tudo fosse uma espécie de teatro. - Teatro? - Sim. Um teatro. Talvez os seres fantásticos tenham simulado toda a história. - Por que eles fariam isso? - Para que acreditássemos neles. Para que acreditássemos. Gian Danton é roteirista de quadrinhos desde 1989. Entre os seus trabalhos mais importantes na área estão Família Titã (Opera Graphica), Manticore (Monalisa), Mad e MSP+50 (Paninin). Tem participado de diversas antologias de literatura de fantasia. É autor do livro Galeão (9Bravos). Seu blog: ivancarlo.blogspot.com
  • 48. 48Terra da Magia O guardador de versos Lucas Lourenço Os olhos do pequeno Crispanti saltaram das órbitas assim que a relva se abriu e ele adentrou o salão. Nunca tinham visto algo tão belo. A vereda escura e estreita, ladeada pela mata densa de galhos pontiagudos, pela qual os captores lhe guiaram, de repente abriu-se em um círculo imenso e iluminado. As árvores retorcidas e apertadas umas às outras ficaram para trás. Outras novas, muito mais altas, surgiram. As copas esmeraldas encontravam-se lá em cima, numa abóbada natural, permeada de cipós extensos. Macacos arteiros dependuravam-se por toda parte. Filtrada pelas folhas verdes, a luz do sol chegava amena ao solo, recoberto por
  • 49. 49Terra da Magia incontáveis folhas secas, que juntas formavam um vasto pátio. Por ele, antas gordas caminhavam sem medo ao lado das jaguatiricas, cotias vasculhavam as tocas das mais venenosas cobras e índios decorados com pigmentos azuis fosforescentes faziam cafuné na barriga das onças pardas. Tucanos-tocos e as ararajubas batiam as asas e cruzavam despreocupados o átrio, de uma árvore a outra. Os cuxiús-pretos, suspensos pelas caudas, mastigavam suas sementes preferidas. Duas preguiças namoravam na paz e paciência de suas lerdezas. E a batida das asas de todos os insetos, o craque-craque do jabiti-piranga caminhando sobre as folhas, o cacarejar do galo- da-serra, a jiboia roçando o couro entre os galhos mais altos, o gavião-real limpando as penas e livrando-se dos carrapatos, os uacaris dilacerando a casca das frutas – e todo barulho, cada sussuro, tapa, movimento brusco, canto, conversa, coçada, grito, raspagem, assovio, cada passo, tropeço,
  • 50. 50Terra da Magia rajada de vento, ribombar, remelexo, risada ou lamento compunha a melodia inebriante daquele salão no meio da floresta, que invadia as menores frestas e sossegava a fúria mais escondida dos seres. O som da vida penetrou os ouvidos de Crispanti e, feito mágica, tirou a angústia que lhe esmagava o coração. Tudo, entretanto, fez silêncio, quando, do outro lado, o passo de um gigante ecoou. Na galeria, as criaturas encolheram-se atrás dos galhos e dentro das fendas. Os captores apertaram ainda mais os braços curtos de Crispanti, que despertou do torpor de paz e sentiu mais uma vez os pulsos doerem. O grandalhão aproximou-se. De cada lado, trazia consigo duas onças-pintadas maiores que qualquer outra da espécie. À distância apropriada, parou e sentou-se no ar de pernas cruzadas, à vontade como se estivesse sobre uma almofada. Em seguida, fitou o pequeno detido
  • 51. 51Terra da Magia com desprezo, arquejou o imenso corpo para frente e perguntou, com nojo. - Quem és tu? Crispanti sentiu as pernas tremerem a ponto de os captores terem de sustentá-lo em pé. Tentou falar alguma coisa, mas o som das palavras não lhe saía da boca. Por mais que se esforçasse, era como se a presença à sua frente lhe impusesse um respeito opressor e tomasse conta de suas próprias vontades. O ser imenso usava pintura semelhante à dos índios que caminhavam pelo salão. Mesmo de dia, os desenhos brilhavam em azul e davam a ilusão de deixarem rastros luminescentes no ar. Diferença é que ele era o único a ostentar um imenso cocar no alto da cabeça, cujas penas coloridas feito o arco-íris desciam pelos ombros, até a altura do abdômen. E fosforesciam ainda mais que a tintura.
  • 52. 52Terra da Magia - Responde ao filho de Tupã! – ordenou um dos captores, dando um chacoalhão no braço de Crispanti. O gigante, no entanto, decidiu por outra ideia. Sem mudar de posição, sequer sem descruzar as pernas, levitou até a frente do pequenino, a menos de um palmo de distância. Antes que Crispanti pudesse bater os cascos e recuar, Tibatatã, o caçula de Tupã, estendeu o braço direito e tocou, com a ponta do indicador, a testa do fauno. O pequeno arregalou os olhos e permitiu que seu mundo se abrisse à divindade. *** Um sujeito muito branco, dos cabelos louros penteados para trás, deitava-se na relva e abria braços e pernas, como uma estrela. A leste, o sol nascia. E o homem, de frente às cores turvas que se transformavam no céu, dava um sorriso.
  • 53. 53Terra da Magia Nas árvores espaçadas do pasto em que se encontrava, o jovem ouvia o canto dos primeiros pássaros despertos. Da janela aberta do casebre onde morava, o café da velha tia-avó impregnava o ar. As flores pequeninas escondidas sob a grama alta abriam-se para receber a luz e aproveitar o dia. Na ribanceira da colina, a ovelha mais faminta despertou o restante do grupo com um berro. O homem não moveu um músculo, sequer quando a noite já se recolhera por completo e o sol pôs-se a caminhar, chegando ao ponto mais elevado do céu. Era meio-dia, mas o sujeito não tinha relógio e só almoçava quando o estômago reclamava de fome. Dormia. Acordava. Brincava com uma formiga. Dormia outra vez. Então, de repente, sacou do bolso um folheto de propaganda e um lápis mal apontado – e escreveu no verso do papel. Pensar é estar doente dos olhos.
  • 54. 54Terra da Magia De trás dos montes, escondido em posição privilegiada, Crispanti recolhia a luneta e, depressa, anotava em um caderno o verso recém- composto pelo outro, o 152º de sua lista. O fauno tinha por hábito colecionar coisas belas. E os poemas do jovem eram sua nova paixão. *** A camada mais profunda da noite abateu-se sobre as colinas do Ribatejo. O barulho dos grilos e de outros insetos da madrugada pingava aqui e ali. A brisa movia devagar as cortinas do quarto; deixara a janela aberta para se refrescar. Gotas finas começaram a chover, formando o clima ideal para se dormir. Ele, no entanto, não tinha sono e, imóvel, fitava sombras na parede sem reboco. No cômodo ao lado, a tia velha roncava. - Da mais alta janela da minha casa, com um lenço branco digo adeus aos meus versos
  • 55. 55Terra da Magia que partem para a humanidade – disse ele, repentinamente. Do lado de fora, molhado, escondido atrás do beiral da janela, Crispanti dobrava-se para dar um jeito de escrever o recém-criado tesouro sem danificar o caderno. Logo se atrapalhou e permitiu que a lua projetasse na parede o vulto arredondado de seu corpo. Desconfiou do erro. Encolheu-se de volta. Coração batendo forte. Era hora de ir embora, mas a curiosidade o fazia ficar. - Quem és? Um sujeito muito branco, debruçado na janela, observava-o com um sorriso boboca nos lábios. *** Deitado, com as patas cruzadas e a cabeça recostada em um pedaço de lenha
  • 56. 56Terra da Magia abandonado, Crispanti folheava o caderno. A tarde pachorrenta não o incomodava. - O que nós vemos das cousas são as cousas. Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? – leu o fauno em voz alta. Voltou a virar as páginas, até parar em outros versos. - Acho tão natural que não se pense, que me ponho a rir às vezes, sozinho, não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa que tem que ver com haver gente que pensa... Bocejou e deitou o caderno de lado. Aprendera a obedecer de imediato às vontades do próprio corpo. Há três dias não retornava para casa e não via isto como um problema. O conforto retangular e as tarefas múltiplas do Templo não o agradavam há um bom tempo. De certa forma, a Natureza agora era sua religião. O fauno, porém, não pensava nela desta forma. A Natureza era o que se via,
  • 57. 57Terra da Magia cheirava, ouvia, tocava, provava. Era o que era, e nada mais. Apanhou novamente o caderno e folheou as páginas mais uma vez. - Oxalá a minha vida seja sempre isto: o dia cheio de sol, ou suave de chuva, ou tempestuoso como se acabasse o Mundo. Alguém lhe cutucou o ombro. - Que lês? Crispanti sorriu ao ver o semblante do amigo. - Teu livro está pronto, creio eu. Algo, entretanto, estava errado. Um amarelo baço encobria os olhos do poeta, que ficou nervoso com o olhar desconfiado do fauno e começou a tossir sobre um lenço, aflito. - Que tens? – quis saber Crispanti, levantando de imediato, em prontidão para atender o amigo.
  • 58. 58Terra da Magia - Falta um último poema – respondeu o outro, estendendo o pedaço de pano para o amigo. Uma nódoa vermelha borrava a superfície branca. *** Pesado cobertor repousava sobre o corpo magro do poeta. De olhos fechados, deitado de barriga para cima, apenas a luz oscilante de um toco de vela lhe fazia companhia. A tia velha batia o terço no altarzinho da cozinha. Crispanti mantinha o velho costume e escondia-se atrás do beiral da janela. Não gostava de aparecer para outros humanos. Assustavam-no. Muito tempo se passou sem que nada se alterasse entre os três. Até que um murmúrio chegou aos ouvidos do fauno. Ele se levantou, olhou para os cantos e viu que o enfermo ainda estava só. O poeta
  • 59. 59Terra da Magia esforçava-se para chamá-lo quando pressentiu a movimentação do outro e fez um sinal trêmulo para que Crispanti se aproximasse. Ele pulou a janela e, batendo de leve os cascos, prostrou-se à beirada da cama. - Bom amigo, preciso de um favor teu antes que eu me vá – disse o poeta, os olhos azuis acesos de emoção. - Não digas isso, cedo vais te recuperar. O doente sacudiu a cabeça, em negativa e voltou a falar. - Quero que queimes o teu caderninho e liberte os meus versos. Não os quero presos a papéis e às memórias de ninguém. *** Tibatatã afastou o dedo da testa do fauno, que cambaleou e só não caiu pois foi sustentado pelos captores.
  • 60. 60Terra da Magia Estava exausto. Antes de morrer, o poeta obrigou-o a destruir o caderno de versos nas chamas do toco de vela. As páginas crepitaram até que restasse apenas um chumaço negro nas mãos do fauno. Aliviado, o enfermo sorriu em agradecimento e logo em seguida deu o último suspiro. Crispanti sentiu o desespero tomar- lhe conta do coração. Perdera o único amigo, inspirador, que durante os meses de convívio ensinara-lhe a enxergar as coisas sem vesti-las com o véu da metafísica. O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Crispanti, no entanto, sabia que, no fundo, não era bem assim e se lembrou dos versos de outro sábio, um bardo que conheceu séculos atrás, quando morava em um Templo próximo a Stradford.
  • 61. 61Terra da Magia There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy. Quando viu Crispanti pela primeira vez, o poeta do Ribatejo não se impressionou. Um anão com pernas e chifres de bode, o que pode ser isso?, poderia ter-se perguntado. Na ocasião, entretanto, o homem sorriu e pensou: eis um anão com pernas e chifres de bode. Como vai? Já o fauno, quando deixou o Templo para um passeio descompromissado e por acaso se deparou com o poeta em plena criação espontânea, considerou os versos tão limpos e diretos e livres de preconceito que logo concluiu o óbvio: apesar da aparência, o poeta não era um ser humano comum. Na verdade, sequer era humano. - Isto que tenho em mãos eram versos de uma divindade – disse Crispanti, tirando o
  • 62. 62Terra da Magia caderninho destruído da algibeira e entregando-o a Tibatatã. O filho de Tupã folheou as páginas negras e retorcidas. Não era possível ler palavra alguma, uma letra sequer. O pequeno fauno, no entanto, sabia que em todo mundo aquela entidade gigantesca era uma das poucas capazes de recuperar as páginas. Crispanti cruzara o Atlântico e atravessara as terras selvagens do Brasil, pois sabia que tinha posse de um tesouro inestimável. Quando um deus fala, os seres inferiores escutam, mesmo que não queiram. - Não posso devolver a vida para este caderno – respondeu Tibatatã, entregando o objeto de volta ao fauno. - Como não? Tu também és um deus! - Não posso dar vida ao que nunca foi vivo – disse o gigante, sacudindo os ombros.
  • 63. 63Terra da Magia Os olhos de Crispanti turvaram de decepção. Antes que o fauno recuasse de temor, Tibatatã avançou e tocou mais uma vez a testa do pequeno, que cerrou os olhos. - Mas, posso reviver o que já foi vivo – concluiu. Entre córregos de pensamentos apressados e desconexos, a mente de Crispanti iluminou-se. E, sobre uma folha branca feita de luz, em letras negras e bem-feitas, os versos perdidos do poeta gravaram-se mais uma vez. Instantaneamente. Lucas Lourenço é jornalista, escritor e desenhista. Já publicou contos e HQs em revistas e antologias nacionais. É autor da série infantojuvenil O Laboratório da Margô, à venda na Amazon e disponível no blog www.laboratoriomargo.blogspot.com. Também publica no blog www.epeste.blogspot.com, além de ser o responsável pelas tirinhas Pequeno Sertão, veiculadas em www.pequenosertao.blogspot.com e
  • 64. 64Terra da Magia em www.facebook.com/pequenosertao. Quadros, desenhos e ilustrações emwww.lucaslourenco.blogspot.com. No twitter e instagram: @lucaslofer. Email:lucaslofer@yahoo.com.br.
  • 65. 65Terra da Magia O Uirapuru Negro A.Z.Cordenonsi Armênio se arrastou para fora do avião com dificuldade. Sua cabeça estava zonza e ele mal conseguia respirar. Ele sentia uma dor latejante na coxa direita, mas não podia se preocupar com isso agora. O cheiro inconfundível do combustível gotejando do motor fumegante o enchia de pavor. Ele precisava se afastar do monomotor semidestruído antes que tudo fosse pelos ares. Trincando os dentes, Armênio se levantou sobre os cotovelos e engatinhou para o mais longe possível, deixando um rastro vermelho de sangue e suor para trás. Então, o pequeno monomotor explodiu e uma lufada de calor e
  • 66. 66Terra da Magia destroços o cobriu como um vagalhão. Armênio foi atirado contra uma árvore e sua cabeça bateu violentamente contra o tronco. Ele apagou na mesma hora. Dia 1 A luz do sol tinha dificuldades para passar por entre as folhas das copas das árvores. Pássaros chilreavam enquanto um gotejar fino escorria pelos galhos, fruto de uma chuva rápida que irrompera junto com o crepúsculo matutino. Armênio acordou sentindo a boca seca, apesar do corpo molhado. Ele levou alguns minutos para entender onde estava e se lembrar do acidente. Piscando, imagens desconexas passavam pela sua mente, como se flutuassem da berlinda da sua percepção diretamente para a sua retina, desaparecendo tão rápido quanto surgiam. O
  • 67. 67Terra da Magia piloto, a pista de terra, a pane de motor, uma explosão. Armênio abriu completamente as pálpebras, arfando. Ele olhou para a floresta amazônica que se estendia até onde seus olhos enxergavam. Com um misto de pânico e incredulidade, ele puxou um dos medalhões que trazia pendurado no pescoço e beijou a pequena ferradura de ouro para trazer sorte. Enquanto sua respiração lutava para voltar ao normal, ele sentiu uma dor lancinante na sua coxa direita. Ele puxou um pequeno punhal que trazia preso à cintura e abriu a calça, revelando o estrago que o acidente lhe causara. Havia um corte profundo ali, que lhe rasgara boa parte dos músculos. Sangue coagulado espalhava-se pela pele e uma boa dose de sujeira estava entranhada junto ao ferimento.
  • 68. 68Terra da Magia Apertando os lábios, ele conseguiu se levantar. Armênio arrancou os restos da camisa de linho branco e usou a água que ficara represada nas folhagens para limpar as bandagens improvisadas. Ele sabia o que estava fazendo, afinal, sua avó era curandeira do seu grupo e ele a ajudara por anos no tratamento de doenças e machucados. Os romani não gostam de médicos, dizia-lhe ela. Sua avó resmungava que o rapaz tinha o dom para a cura, mas o garoto fez ouvidos moucos a sua ladainha. Ele queria ver o mundo e não ficar preso num carroção cheio de incenso. No fim, Armênio fez valer sua vontade e ele foi trabalhar com o seu pai. O romani limpou o machucado o melhor que pode e enrolou os restos da sua camisa para fazer um torniquete. Suando, ele se
  • 69. 69Terra da Magia atirou ao chão, exausto. Mas ainda restava uma coisa a fazer. Tateando com os dedos grossos, ele puxou outro amuleto do pescoço, que mostrava uma reluzente lua engastada. Era um amuleto de cura, sua avó lhe dissera, antes de preveni-lo: somente quem possuía o dom poderia utilizá-lo. Ele mordeu os lábios. Estava na hora de ver se a velhota tinha razão. Inspirando profundamente, Armênio apertou o amuleto contra a perna e entoou um antigo canto em romani. Ele sentiu as pontas dos dedos formigarem e um calor incomum cobriu a ferida. Ao abrir os olhos por um momento, uma imagem fugaz passou por entre seus olhos. Era uma moça, de traços finos e delicados. Seria sua avó, quando jovem? Não saberia dizer. Logo depois, ele desmaiou.
  • 70. 70Terra da Magia Dia 2 Quando ele acordou, o sol nascia no horizonte. Armênio sentiu dores horríveis pelo corpo inteiro, estava fraco e com sede. Sua primeira reação foi passar a mão na coxa. A bandagem estava levemente avermelhada, mas a dor excruciante havia sumido. Ele chegou a abrir um sorriso invulgar quando notou o que havia à sua frente. O romani se assustou e se agarrou ao tronco de uma figueira que crescia, imponente, às suas costas. Uma folha de bananeira estava estendida no chão, com uma cumbuca improvisada da casca de cuietê cheia de água fresca. Ao seu lado, uma pilha de frutas deixava escorrer o suor gelado da madrugada.
  • 71. 71Terra da Magia Armênio virou o pescoço para todas as direções, mas não havia ninguém. Ele esperou sua respiração voltar ao normal antes de se aproximar. Seria algum tipo de armadilha? Estaria a comida envenenada? Ele franziu o cenho. Ninguém precisava envenena-lo. Provavelmente, estaria morto em poucos dias. Suspirando fundo, ele se aproximou da folha de bananeira. Ele deu um beijo em uma estrela de cinco pontas que estava tatuada no seu pulso e agarrou a cumbuca. Logo, ele já tinha esquecido seus receios e comia e bebia com sofreguidão. As frutas não podiam estar mais doces ou frescas, e o sumo viscoso escorria por entre seus lábios enquanto Armênio devorava o presente que a floresta lhe trouxera.
  • 72. 72Terra da Magia Quando ele terminou, um calor relaxante invadiu sua mente. Ele piscou os olhos e as pontas dos seus dedos se tornaram úmidas. Ele tentou focar a vista, mas não conseguiu. Sua respiração se tornara leve como uma pluma e seus músculos afrouxaram. Então, ele percebeu algo. A floresta havia silenciado. Desde que acordara, o zumbido da mata estivera sempre lá, ao fundo, uma miríade de sons que misturavam o gorjeio de pássaros com o saltitar de macacos que passeavam entre os galhos. Um vento leve fazia as folhas rangerem baixinho, enquanto o gotejar úmido escorria pelos troncos e caules. Agora, tudo havia desaparecido, como que por encanto. Armênio se levantou, assustado, a imagem de um felino à espreita passando ao largo
  • 73. 73Terra da Magia da sua mente. Então, ele ouviu. Um pio agudo e triste, tão melancólico e longo, que o romani sentiu seu coração se apequenar. Sem querer, ele se viu arfando e uma tristeza profunda arranhou sua alma. Poucos instantes depois, um pássaro como ele nunca vira pousou num galho de um ingá. Ele ficou longos minutos fitando o pássaro, encantado com sua beleza singular, sua plumagem negra e sua garganta avermelhada. O pássaro cantou por cerca de quinze minutos, mas o romani mal viu o tempo passar. De repente, ele parou e alçou voo, deslizando por alguns metros até parar em árvore mais distante. Sem saber o que estava fazendo, Armênio seguiu o pássaro. Aquilo continuou por horas a fio. O romani se aproximava e o pássaro fugia mais para
  • 74. 74Terra da Magia dentro da mata, parando ao longe, sempre esperando por ele. Armênio não saberia explicar o que estava fazendo, nem por que. Mas, de alguma forma, algo lhe dizia que ele precisava seguir o pássaro. Quando a tarde findou, o pássaro se empoleirou no alto de uma tucumã e cessou seu canto. O romani entendeu a deixa e, depois de improvisar uma cama com as folhas de uma palmeira que ele encontrou no local, adormeceu. Dia 3 Quando Armênio se levantou, não chegou a se assustar ao perceber que uma nova folha de bananeira havia sido depositada aos seus pés. Faminto, ele comeu e bebeu com gosto, sentindo uma leveza incomparável atravessar seus
  • 75. 75Terra da Magia músculos. Ele nunca se sentira tão bem. Ele poderia dançar e cantar um dia inteiro. Sorrindo, o romani se levantou bem na hora que o pássaro cantou. Eles voltaram a se embrenhar na floresta, Armênio seguindo a ave que assobiava o seu canto mágico. Ao entardecer, eles se aproximaram de um vale profundo, onde as árvores cresciam tão densas que mal era possível ver alguns metros à frente. O romani, parou, sentindo um desconforto crescer dentro de si. O pássaro cantou mais forte e Armênio fez menção de seguir em frente, mas seus amuletos começaram a esquentar e ele se sentiu desconfortável. Se o romani fechasse os olhos, ele quase podia ouvir a voz da sua avó gritando na sua
  • 76. 76Terra da Magia mente, mas sua fala era confusa e seus sentidos pareciam embotados. O romani hesitou. O que estava fazendo, afinal de contas? Seguindo um pássaro canoro para dentro da mata? O que havia dado nele? A ave sentiu sua indecisão e voltou, girando e piando sobre a sua cabeça, as asas negras brilhando no lusco-fusco. Armênio se sentiu atordoado, como se sua alma estivesse sendo rasgada ao meio, dilacerada entre a vontade de fugir ou de correr para dentro da mata. Seu cérebro queimava e o canto do pássaro se tornava mais forte e mais atordoante, como se ele tivesse sendo atacado por um
  • 77. 77Terra da Magia enxame de abelhas que o picavam por dentro, impedindo-o de pensar. Ele se viu cambaleando de um lado para o outro até que seu pé pisou em falso; desequilibrado, ele caiu por entre dois troncos de árvores retorcidos. Armênio tentou se segurar, mas foi em vão. Rolando, ele despencou para dentro do vale, arrastando folhas e pedras enquanto se debatia. Pouco tempo depois ele bateu contra algo mais duro e parou. O romani levou a mão à boca e sentiu o sangue quente escorrer de um corte profundo que rasgara sua língua e seus lábios. Seu corpo inteiro doía e sua respiração estava fraca. No entanto, sua mente clareara. Pela primeira vez, ele parecia poder pensar coerentemente. Devagar, Armênio se recostou no que havia batido e se levantou. Por longos momentos,
  • 78. 78Terra da Magia sua vista se espalhou pelo vale, o horror lhe subindo pelas entranhas como uma aranha tecendo a sua teia. Ele estava no que lhe parecia ser um cemitério a céu aberto. Ossos se espalhavam aos milhares, alguns tão velhos e quebradiços que ele sabia que se desfaçariam em pó se ele os tocasse; outros eram assustadoramente novos e vestígios de carne apodrecida reuniam nuvens de insetos em montes enegrecidos. Mas isso não era o mais assustador. Os ossos, e Armênio conhecia um pouco de anatomia, devido aos ensinamentos da avó; aqueles ossos não eram normais! Havia esqueletos de homens e mulheres tão compridos quanto um gigante e outros tão baixos que poderiam ser confundidos com crianças se não fossem os membros atarracados.
  • 79. 79Terra da Magia Ossos disformes se espalhavam pelo chão, com calombos estranhos e apêndices que não eram naturais. Carcaças de cavalos jaziam mais a frente, mas de suas costas subiam estruturas ovalares que Armênio não conseguia distinguir. Ao seu lado, jazia uma pilha de ossos de seres que lembravam homens, mas suas arcadas dentárias eram protuberantes e seus crânios eram compridos, com focinhos arreganhados e caninos compridos. Ao fundo, o romani distinguiu uma grande ossada, muito maior que um elefante. Ela lembrava uma figura de um velho dinossauro. Mas, então, o que seriam aqueles ossos que brotavam das suas costas e se espalhavam como pétalas? Enquanto Armênio gastava o resto das suas forças para não sucumbir ao terror que lhe
  • 80. 80Terra da Magia infligia à mente, o estranho pássaro rodopiou a sua frente e pousou suavemente em uma arcada ressequida. Quando a noite surgiu, iluminada por uma lua avermelhada, um brilho estranho invadiu o vale e o pássaro deu lugar a uma bela e jovem mulher. Ela se aproximou com os passos eretos e a testa erguida. Armênio sabia que precisava fugir, mas ele não tinha forças para tanto. Respirando forte, ele viu a jovem se aproximar, notando a cor ocre da sua pele reluzente e os adereços delicados que lhe cobriam os pulsos e o pescoço. A jovem estava nua e seus olhos cravaram no rosto tenso do romani. Ele queria gritar, mas sua boca estava cheia de sangue. Então, uma voz clara e límpida surgiu na sua mente, cantada no tom do pássaro negro.
  • 81. 81Terra da Magia “Sua centelha é fraca, mas sua origem é velha como o mundo.” O romani tentou balbuciar algo, que saiu em um gorgolejo. Ela continuou. “Eles também queriam se apossar da Luz da Velha Floresta” – disse, apontando para as ossadas – “E, agora, sua centelha nos torna mais fortes”. Armênio subitamente entendeu. Ele puxou os medalhões do pescoço, suplicando em palavras inúteis. Ele não era um curandeiro. Nunca fora. Aquilo pertencera à sua avó. A jovem agarrou os medalhões com brusquidão, atirando-os longe. “Superstições tolas não tem lugar aqui. A centelha está no seu sangue” – declarou, se aproximando dele.
  • 82. 82Terra da Magia O romani tentou levantar as mãos, mas o terror paralisou seus músculos. A jovem se abaixou e sua boca se escancarou em fileiras de caninos como um jacaré. Houve um grito agudo na floresta e, depois, o silêncio. A.Z.Cordenonsi é um autor gaúcho de fantasia e aventura. Escreve sobre o que lhe passa na cabeça e não o deixa dormir à noite, quando as ideias se derramam no teclado como um trem descarrilado. Apaixonado por tecnologia antiga, divide seu tempo entre ser pai, marido, professor e escritor. É romancista e contista, espalhando fantasia e terror por antologias diversas.
  • 83. 83Terra da Magia A Presa do Metamorfo Rodolfo Santos Naroa era uma boa amiga, simpática e sorridente. Isto era algo no mínimo estranho para uma meio-Iara, em suma hostis e inseguras quanto a aproximação das demais raças. Dotada de uma inteligência acima da média humana e de uma aparência atraente e sedutora, eu a tinha como uma companheira para todas as horas, mantendo-a no disfarce de pernas falsas, camuflando o caminhar destreinado com um rebolado provocante, apesar de não-intencional. Em minha mente, sua imagem era risonha e alegre, com os braços abertos para um abraço úmido e gélido, marcas das quais nunca poderia se livrar. Sacudia os fios lisos e dourados
  • 84. 84Terra da Magia num balançar de dançarinas, cantarolava cada palavra melhor do que orquestras profissionais seriam capazes de fazer. Um destaque, certamente, em todas as atividades que contavam com sua ilustre presença, assim como um traço chamativo para todos os homens, o que facilitava em muito nossa aquisição de informações. Vê-la coberta por sangue e tripas, como via naquele momento, era algo que até mesmo a frieza de meus sentimentos não seria capaz de suportar. —Ela foi assassinada a sangue frio — disse-me um dos assistentes da equipe de investigadores sobrenaturais, um estagiário com traços de vidência e percepção além do alcance. —Quem quer que seja o assassino, não é um homem comum.
  • 85. 85Terra da Magia E não era. Eu sabia o nome do responsável por aquela morte. Conhecia-o melhor do que ninguém, talvez melhor do que a mim mesma. Um inimigo do passado, algo próximo de um rival, o único que jamais consegui aprisionar dentre todas as minhas buscas. O Metamorfo. —O que vai fazer? O novato continuou a falar, mas eu o ignorei sem perceber. Cacei o sobretudo num dos cabides, acertei-o no corpo como um peso extra, exótico para um tecido como aquele. Estava preparada para matar e, acima de tudo, para morrer. —Avise que estou partindo —falei, sem me virar para o parceiro de profissão. —Vou atrás
  • 86. 86Terra da Magia do Metamorfo. Volto com sua cabeça, ou sem a minha. Aquela floresta parecia soprar o terror em meus ouvidos, unindo a melodia fúnebre da brisa com o ranger doentio dos galhos retorcidos. Tinha nas mãos uma pistola prateada com munição de caçador, os melhores projéteis encontrados em nosso mundo, trabalhados no bronze celeste e na pólvora com extrato de inferno. Nunca me perguntei como eram feitos aqueles cartuchos, pois não era esta a minha função. Meu trabalho, resumidamente, era apertar o gatilho, permitindo o encontro de aberrações com o Deus que acreditavam, ou levando-as ao descanso merecido após atrocidades cometidas em lugares pacatos.
  • 87. 87Terra da Magia Afundei as botas num pântano que me pareceu uma armadilha, pois a terra sólida era enganosa sobre a imundice aquosa que me acolheu. Empurrei os tornozelos cada vez mais pesados para frente, movendo a água negra e transformando o silêncio em ondas miúdas. Nos arredores, sapos grotescos saltavam sobre raízes raquíticas, enquanto olhos animalescos acompanhavam meus movimentos, esfomeados pelo odor do frescor de minha carne. Serpentes se arrastavam nos galhos mais altos, duas delas estavam próximas, sibilando acima das águas. Uma soprou fogo, caracterizando-a como o Boitatá que era. Marcou-me com os olhos chamejantes, mas não me atacou. Talvez por sentir em minha alma a fragrância de ancestrais destruídos por minhas caçadas anteriores. Talvez
  • 88. 88Terra da Magia por interesses próprios e distintos. Que diferença faria? Nas frestas das árvores, algo truculento me observava, como um lobo em espreita de sua presa. Ombros largos e humanoides, cobertos por pelos de fera, salivando entre os uivos famintos e torturantes. Assim como a serpente de chamas, o Lobisomem não parecia ansiar por um ataque enlouquecido, uma atitude exótica para sua raça. Tirei das vestes uma segunda pistola, o que aliviou parte do peso daquele traje obscuro. Algo estava errado naquele lugar. Escutei uma melodia. Um cântico soturno e agradável, de voz feminina e bela. A voz de Naroa. —Que merda é essa? —falei em voz alta o que deveria ser um pensamento.
  • 89. 89Terra da Magia Abri caminho entre a densidão das folhas, livrando-me de alguns arbustos com odor de lamaçal. Saltei para escapar do terreno pantanoso que tentava me saborear, apenas para me deparar com uma cena que mente alguma estaria preparada para aceitar. Era um lago, e lá encontrei Iaras. Havia muitas delas, debruçadas sobre troncos derrubados ou rochas cobertas de musgos, exibindo corpos esculturais, peles macias e rostos monstruosos, com lábios feridos pelas presas fora do comum. Elas cantavam baixo, acompanhando a voz de minha amiga, ou ao menos a voz que me trazia suas lembranças. Não poderia ser Naroa. Ela estava morta, eu sabia. Vi seu corpo carregado até nosso local de trabalho, assisti os exames. A voz era de Naroa, mas Naroa não mais existia.
  • 90. 90Terra da Magia Esgueirei-me entre os ramos pesados para estudar o fenômeno exótico que se sucedia à minha frente. Além das águas escuras daquele lago de sereias, Curupiras dançavam com a deformidade de seus pés, instigando passos desastrados e assustadores. Além da primeira serpente de chamas encontrada anteriormente, outras cinco ou seis circundavam o espetáculo, sibilando junto da música, em coro com o uivar de um batalhão de Lobisomens. Feiticeiras com corpos de fera e cabeças de crocodilo cantarolavam suas atrocidades numa língua sem sentido, encantando a natureza de maneira maligna, ocasionando a perversão da água, das folhas e do próprio ar. Três delas desenhavam estrelas com os dedos envoltos em membranas, parindo a simbologia antepassada naquele
  • 91. 91Terra da Magia santuário catastrófico, onde se reuniam tantas abominações. No centro daquela multidão de seres, um homem se levantava do solo aquoso. Sua barba escarlate estava impregnada pelo lodo, e o mesmo acontecia a seus cabelos e seu corpo despido, coberto por uma vestimenta gosmenta e asquerosa. Esticou os braços para os lados, lembrava muito um velho mundano, de físico treinado e olhos foscos. O que o diferenciava da simplicidade de um humano eram os dentes pontiagudos, surgindo num sorriso lodoso enquanto o ser grunhia sua parte do ritual. —Um Barba Ruiva! —deixei escapar, surpresa por encontrar uma criatura que até o presente momento não tinha provas de existência. Lendas e boatos contavam sobre o
  • 92. 92Terra da Magia velho coberto de lodo, mas eu nunca derrubara um daqueles. Talvez aquela fosse uma das melhores chances. Algo ao meu lado farfalhou, cobri-me com as vestes. O escudo da noite me auxiliou na camuflagem, e assim não fui avistada quando um grupamento de Sacis saltitou sobre as águas, tomados por uma brisa mágica e malcheirosa. Eles poderiam me encontrar com facilidade, mas algo à frente chamou mais atenção, mesmo a minha, que tentava manter os olhos concentrados nos acontecimentos. Eram passos, mas cada um destes fazia com que o solo tremulasse, dispersando a sensação de um ensaio de tambores. Aquilo surgiu por entre as árvores, derrubou muitas delas para permitir que seu corpanzil passasse na sinuosa trilha existente
  • 93. 93Terra da Magia naquela floresta. Com mais de cinco metros de terror, o Mapinguari me recordava dias difíceis, nos quais eu e Naroa enfrentamos dois daqueles monstros similares a macacos truculentos com pelugem de agulhas. Perdia-me nos devaneios ante a morte de minha parceira, mas a existência de uma voz clonada me fazia frágil, facilmente abalada pela falta de sua presença. Foi então que aconteceu. Ela se ergueu das águas, cantando como uma princesa coberta de imundice, deslizando os braços numa coreografia delicada e alegre. Tudo de Naroa estava lá, desde sua voz até seu corpo sereiano, seus cabelos longos e seus olhos serenos. Vi seu corpo estripado, mas agora ela estava ali, viva e alegre, destruindo minha mente com uma presença que me causava saudades. Esperei em
  • 94. 94Terra da Magia meu lugar, ainda que minha vontade fosse correr e saltar sobre ela, abraçá-la com um choro de alegria. Mantive-me impassível, e nada fiz. Ela aplaudiu, e a música cessou, restando o silêncio. Fora a sua própria voz aquela a ecoar no breu noturno. —Vejam, companheiros! —disse ela, exibindo os seios nus, o estômago magricela e os cabelos sem cacho algum. —Assistam à minha renovação, entendam o retorno! Aqui, tudo se renova, cresce fortalecido, como a natureza manda. Aceitem o chicote que hoje vos castiga, pois amanhã terão a benção de nossa mãe e criadora, tornando-se os primogênitos de nossa magia! Alguns dos monstros murmuraram sozinhos, outros grunhiram sons toscos. Ouvi um
  • 95. 95Terra da Magia relinchar, Mulas-Sem-Cabeça estavam se aproximando. Uma delas bateu os cascos contra a água, saltou no lago tomado pelas criaturas, o fogo não se extinguiu. O Barba Ruiva acariciou seu couro resistente, sorriu com a deformidade de sua existência e brandiu um facão de caçada, até então escondido nas vestes barrosas. —Entreguem-se à realidade, filhos de uma única mãe —continuou Naroa, parecia liderar aquele exército de horrores. —Entendam que a dor será o menor dos males, tragada por um mundo de prazeres e recompensas. O primeiro a se entregar foi um Lobisomem, atirando-se no facão sem que fosse necessário esforço algum do Barba Ruiva. A prata enfeitiçada cintilou, assim como o lago encantado, ambos clamaram por uma nova vítima. Um
  • 96. 96Terra da Magia Curupira se ofereceu, pulverizado com facilidade. Brilho, um novo pedido, aqueles que assistiam hesitavam. Uma das Mulas-Sem-Cabeça foi sacrificada, relinchou e chamejou até que nada restasse de seu corpo. Seguiram alguns Boitatás, outros Lobisomens, mesmo o Mapinguari aceitou a morte como um presente. Ouvi cada um dos gritos, até que nada restou para se ouvir. Nem mesmo o canto de Naroa. Quando o Barba Ruiva atravessou a lâmina na própria garganta, o lago todo brilhou. Naroa caminhou até a arma, mas ao simples contato do metal com sua pele, não mais havia meia-Iara. O porte masculino entregava o segredo do sexo, mas da aparência nada se via, sombreado por uma aura amaldiçoada. O ser retirou a arma
  • 97. 97Terra da Magia do corpo do Barba Ruiva, que desapareceu como todos os outros. Com uma língua eriçada, similar àquelas existentes nas bocas de camaleões, o Metamorfo lambeu a sujeira da lâmina, deliciando-se com o sabor do sangue de cada criatura que morrera naquela mentira. —Como pôde? Falei sem perceber, mas não fez diferença. O Metamorfo sabia de minha presença. Ele sempre sabia de tudo. —Matar todos eles? —sorria. —É simples, quando se é o criador. —Não diga asneiras, monstro. —É como homens me chamam, caçadora. Monstro. Monstros são menos ousados, no entanto. Chamam-me de criador. De mãe.
  • 98. 98Terra da Magia A mãe de todos os monstros daquela crença, temida e respeitada pelos índios. Histórias que zombei, baboseiras que me tiraram risos. Estava ali, à minha frente. O Metamorfo era uma atuação. Aquela era Ci. —O que você quer, criatura? —abusei de minha valentia. Por dentro, sentia cada músculo tremer, hesitando no conflito com aquela entidade poderosa. Senti as mãos formigarem, abandonei as pistolas. Ci tomava conta de minha mente, de meu corpo. —Quero todos eles, meus filhos —me respondeu. —Quero todos para mim. Serei única
  • 99. 99Terra da Magia outra vez, pois é preciso. Beberei do sangue de cada um deles. —De cada um... Engoli em seco. Tentei fugir, era incapaz. Estava paralisada pelo terror. —É uma de minhas crias, Anhangá — falou ela, e tal nome retardou minha mente, destruindo as memórias de uma vida de teatros. —Será como elas, um alimento. Não. Eu mudei. Não era mais mulher, não era mais caçadora. O sobretudo desabou junto das armas, inutilizado. Ganhei o corpo de um cervo platinado, com olhos faiscantes e pele marcada por cruzes. Bati as patas contra o solo disforme, vaguei como um fantasma.
  • 100. 100Terra da Magia —Jamais serei uma caça. Não sei se disse ou pensei, mas aquela era minha vontade, então fugi. Ci não me caçou, tinha seus motivos. Sequer olhei para trás naquele avanço. Atirei-me para a liberdade, engolindo a verdade da falsa vida que levei durante anos, até que o medo me abandonasse. Mas o medo nunca abandonava o Metamorfo. Muito menos Ci. —Fuja se desejar, Anhangá —falava sozinho, mas sua voz estava em minha mente. — Tornará as coisas divertidas. No final, todos serão meus. Meus filhos. Minhas presas. Rodolfo Santos sonha acordado, mas jamais acorda sonhando. Nasceu em Taubaté, interior de São Paulo, ainda que mais lhe pareça uma cidadela de sol, cujo ar
  • 101. 101Terra da Magia cheira a bonecas de pano e espigas de milho falantes. Escrever pode ter sido uma escolha, uma opção, uma vontade ou um acaso, mas a busca por uma história perfeita lhe faz, ao mesmo tempo em que devora livros, rabiscar infinitas ideias em guardanapos ou, quando possível, ao vento.
  • 102. 102Terra da Magia Em uma Terra Distante Bruna Louzada O animal estava agitado. Leonardo se esforçava para tirá-lo do caminhão de carga sem machucá-lo, mas parecia ser uma tarefa impossível de se realizar. Desistiu, por fim, e parou com as mãos na cabeça, tentando pensar em algum modo mais eficiente. Mas seu raciocínio foi quebrado pelo barulho de um motor. A caminhonete parou a poucos metros de distância e o rapaz franzino se apressou a abrir a porta do passageiro. – Que diabos! O que o potro ainda está fazendo aqui? Ele já devia estar pronto! – Um senhor de feições respeitáveis impulsionou o corpo para fora do carro. Carregava um longo
  • 103. 103Terra da Magia cajado na mão direita, mais por acreditar na magnificência que lhe era proporcionada pelo objeto do que por alguma utilidade prática. Ele se aproximou, estufou o peito e deferiu inúmeros golpes de cajado na lataria do caminhão. – Anda! Saí daí! Você não está no estado de ser chamado de presente de aniversário. – O único efeito que aquelas palavras tiveram foram o de retrair ainda mais o animal, fazendo com que o homem bufasse. – Dez mil dólares jogados no lixo. Dá pra acreditar nisso? Os empregados da fazenda se entreolharam, porém, ninguém disse uma palavra. Um silêncio quase sepulcral se instalou no lugar, cortado ocasionalmente por relinchos de dor do potro.
  • 104. 104Terra da Magia – Deixem o Felicidade, ou Bombom, ou Narigudo, ou qualquer que seja o nome que minha filha vá dar a ele, aí. Uma hora ou outra ele terá que sair. – Todos concordaram com a ordem do chefe e, em menos de cinco minutos, Bree foi deixado sozinho. Bree. Não Felicidade, ou Bombom, ou Narigudo, ou qualquer outro nome que lhe fosse dado. Aquela seria a única forma pelo qual ele atenderia: pelo nome dado pela sua mãe, o que poderia trazer inúmeros problemas em seu relacionamento com os humanos – não que ele se importasse. Fora comprado pelo Sr. Nogueira (o distinto homem do cajado, senhor daquele imenso pedaço de terra entre Mato Grosso e Amazonas, rodeado pela Floresta Amazônica) quando ainda estava na barriga de sua mãe, na
  • 105. 105Terra da Magia Grécia. O grego dono da égua havia prometido uma cria da melhor raça possível, descendente de uma linhagem pura de cavalos que, reza a lenda, pertenceram aos grandes senhores da Grécia antiga. De fato, a mãe era um ótimo indicativo do que se esperar do filhote. Criada apenas para reprodução, possuía pelagem negra brilhante, postura perfeita e dentes alinhados. Bree nasceu com quase todas as características da mãe, com uma diferença inesperada: os pelos, tão brancos que chegavam a brilhar em um tom prateado, quando iluminados. O Sr. Nogueira acreditou estar sendo trapaceado quando atendeu a ligação do grego, recebendo a notícia, bem como um aviso de que lhe haviam feito uma proposta melhor pela cria. A indignação e fúria do brasileiro foram indescritíveis. Se pudesse, teria atravessado o
  • 106. 106Terra da Magia telefone e esganado aquele vendedor, mas preferiu cobrir a oferta que o homem dizia ter recebido. Não que houvesse alternativa, afinal, havia prometido para sua filha que aquele seria o presente que receberia em seu aniversário. Ao ver o estado do animal ao chegar, teve ainda mais certeza de que fora trapaceado, afinal, Bree sofrera com os maus tratos e a longa viagem até o país desconhecido, e não estava em sua melhor forma. Com o passar das horas, o sol pôs-se a baixar, deixando o espaço do céu livre para a lua e as estrelas. Bree não tinha nenhuma noção do tempo. Tudo o que sabia era que estava com dores e com sede, entretanto, não tinha nenhuma vontade de se levantar. Sabia que se saísse daquele lugar apertado não encontraria sua mãe
  • 107. 107Terra da Magia ou suas irmãs ou os potros que dividiram o pasto com ele por tão pouco tempo. Pela traseira aberta do caminhão, podia ver um largo pasto, mas este não parecia ser tão verde quanto o que conhecia. Além disso, o clima daquela região não o instigava a se levantar, nem mesmo quando a noite caiu sobre ele. Aos poucos, Bree deixou-se tomar pela dormência em seus músculos e pela fadiga. Era a primeira vez em dias (talvez meses!) que não estava preso em um caixa que balançava insistentemente. Finalmente poderia descansar e, quem sabe, melhorar sua disposição para conhecer o lugar. Piscou os olhos algumas vezes, até que eles tornaram-se pesados o suficiente para não voltarem a abrir. – Mas que...! – Bree acordou com o barulho. A princípio, pensou que algum dos
  • 108. 108Terra da Magia homens havia voltado, mas a cena que presenciou não era o que esperava e o deixou transtornado. Um humano (ou, ao menos, era isso que ele pensava), estava agachado sobre sua crina. Chame isso de instinto, pois não há maneira melhor de explicar a sensação de Bree naquele momento. Não sabia por que, porém sentia que precisava se afastar daquele garoto. Havia visto crianças na Grécia. Nenhuma parecida com aquela. Não só pelo fato de ele ter apenas uma perna e pelo estranho objeto que carregava na boca, mas principalmente pelo olhar travesso, ligeiramente malvado e impregnado de frustração. – Por que, cavalo?! – Bree se recostou ainda mais à parede fria do caminhão, enquanto o garoto pulava de um lado para o outro, hora ou outra retirando o objeto da boca. – Eu já fiz isso
  • 109. 109Terra da Magia milhares de vezes! Uma mecha por cima da outra, passa por baixo e zaz! Mas a sua... Essa trança não fica parada de jeito nenhum! O potro não entendia o que o garoto queria dizer. Esticava o pescoço para ver sua crina, mas ela permanecia completamente intacta e lisa, sem sinais do que quer que fosse uma “trança”. – ME DIZ O POR QUÊ! – Eu não sei! – O que teria soado como um relincho para qualquer ser humano, foi entendido perfeitamente pelo Saci. – Eu... Não sei sobre o que você está falando... Só quero a minha mãe. – Uma lágrima brotou dos seus olhos. – Mãe... Pfff... Pra que você quer a sua mãe? Eu não tenho nenhuma e estou muito bem!
  • 110. 110Terra da Magia – Ele é praticamente uma criança e está assustado. Qualquer um nessa situação iria querer sua mãe. Bree e o Saci se viraram para a entrada do caminhão, onde uma nova figura estava parada, os observando. – Hey! Você não tem negócio com esse carinha. Ele é meu. – O saci deu um pulo para frente, de peito estufado, mas Bree não reparou. Seus olhos estavam vidrados no novo garoto à sua frente. Seus cabelos eram vermelhos como o fogo e Bree podia jurar que vira as madeixas vermelhas se movimentarem por alguns segundos como uma labareda, porém nunca pode confirmar esse fato. O potro não reparou (por sorte, ou pensaria que todas as crianças do novo país eram incrivelmente estranhas) nos pés invertidos do Curupira, nem na
  • 111. 111Terra da Magia forma como ele olhava desafiadoramente para o Saci. Estava concentrado demais na sensação de conforto e segurança que a cabeleira ruiva lhe transmitia. – Ao contrário! Ou devo lembrá-lo que sou o protetor dos animais? Essa não é sua noite, Saci. Vá aprontar com algum humano e deixe os cavalos em paz. O menino de um pé só passou o olhar do moleque para o potro. Queria continuar com sua diversão, embora estivesse incomodado com o que havia acontecido antes. – Por quê? Ele não precisou completar a pergunta para que o Curupira entendesse.
  • 112. 112Terra da Magia – Ele não é um cavalo comum, por isso a crina dele volta ao normal assim que você termina a trança. O Saci se deu por satisfeito pela resposta. Não sabia o que o potro era, mas, ao menos, descobrira que o problema não era ele. Olhou mais uma vez para o animal antes de dar uma longa risada e sair pulando para a mata, assobiando e gritando “Saci Pererê, minha perna dói como o quê!”. – Venha. – Não foi preciso mais palavras para que Bree se levantasse e seguisse o Curupira. A transição do piso duro do caminhão para o pasto macio foi prazerosa e reconfortante e Bree deu um pequeno pulo em comemoração. A lua iluminou seus pelos, um brilho prateado clareou seu corpo por completo e, como mágica, as dores
  • 113. 113Terra da Magia em seu corpo cessaram. – Você não nasceu para ser prisioneiro dos humanos. Volte para seu lugar. Ache aqueles da sua espécie. Por alguns segundos, o potro observou a lua, depois o pasto e a floresta para só então se voltar ao menino. – O que você quis dizer? Com eu não ser um cavalo comum? O Curupira sorriu. – Você devia saber! Bree teria franzido o cenho para a resposta, se fosse capaz. Ainda assim, fez a melhor cara de dúvida que um cavalo poderia fazer, soltou um relincho baixo e voltou a olhar para a
  • 114. 114Terra da Magia lua. Menino e potro permaneceram lado a lado em silêncio, até que o ultimo voltou a falar. – Uma noite. Eu me lembro da minha mãe dizendo que eu não era filho de quem o humano pensava. Que o dono de meu pai não era humano, mas sim um deus. – O Curupira assentiu. – Bree, você é um pégasus. Precisa abrir suas asas e voar. – Como você sabe tanto da minha história? – Meu trabalho é conhecer todas as criaturas que eu preciso proteger. – Certo... – Bree murmurou. A história fazia sentido. Trotar pelo campo nunca foi o suficiente para ele. Sentia que
  • 115. 115Terra da Magia podia fazer mais e a cada passo que dava algo em seu âmago lhe dizia que era capaz de fazer coisas extraordinárias. Ainda assim, não sabia o que. Sua mãe não havia contado sua história por completo. Em parte porque queria que o potro estivesse mais preparado para ouvir a história, em parte porque não sabia que ele seria tirado de perto de si tão cedo. Se soubesse que em pouco tempo seu filho se encontraria sozinho em uma terra desconhecida, sendo importunado por um Saci, o teria preparado melhor. Agora, tudo o que restava na mente do potro eram dúvidas. – Como eu faço isso? – Bree voltou a encarar o Curupira e este passou o olhar das costas do animal para sua cara. – De fato, você ainda é muito novo. Mas suas asas não demorarão a nascer. – Ele se aproximou do potro, acariciando
  • 116. 116Terra da Magia a leve protuberância que crescia em suas costas (outro “defeito” de nascença que o grego não mencionou ao Sr. Nogueira). – Vamos. Vou cuidar de você até que você esteja pronto. Bree assentiu timidamente para o novo companheiro. Seu olhar dirigiu-se brevemente ao caminhão e ele prometeu para si mesmo que nunca mais seria preso em uma caixa como aquela. No mesmo instante, uma brisa suave cortou os corpos dos dois seres. O cabelo do Curupira dançou ao sabor do vento, enquanto ele esperava pacientemente pelo potro. Bree teve a sensação de ter seus pelos acariciados de forma quase paternal pela brisa, cujo sopro soou como um sussurro encorajador e calmante. O potro relinchou, apoiando-se nas patas traseiras,
  • 117. 117Terra da Magia novamente sendo atingido pelo sentimento de ser capaz de realizar coisas extraordinárias. Assim, ele seguiu o Curupira, certo de que estaria seguro e que, um dia, seria capaz de voar de volta para sua terra natal para finalmente reencontrar sua mãe e viver com seus semelhantes. É difícil entender como uma estudante de engenharia mecatrônica pode ter tanta afinidade com algo além de sua calculadora gráfica, principalmente se esse “algo” for a escrita. A paulista Bruna Louzada entrou no mundo literário aos trancos e barrancos, só aprendendo a mergulhar verdadeiramente nos livros ao por as mãos na série Harry Potter. Motivo pelo qual, no verão de 2006, caiu nas graças de um fórum repleto de jovens fãs que criavam as próprias histórias. Foi assim que suas primeiras palavras literárias surgiram e fluíram para um papel em branco, contando histórias de personagens que pareciam ter vida própria. E como a libriana não seria capaz de superar sozinha suas incertezas literárias, é
  • 118. 118Terra da Magia preciso reservar um espaço em sua biografia para agradecer ao namorado pelo apoio e incentivo.
  • 119. 119Terra da Magia A Solidão é Verde Jefferson Nunes Era um amanhecer vermelho quando chegamos aqui, assim contavam os mais velhos nas canções de aprendizado que entoavam desde tempos imemoriais. Chegamos de um lugar distante, onde o Sol deixou de brilhar e nosso mundo, verde e vasto virou cinzas. Atravessamos tempestades cósmicas, apocalipses estelares em uma imensa nave. Não lembro, éramos apenas ovos, embriões dos sonhos de uma raça sem lar em busca de refugio em algum mundo jovem. Guiados
  • 120. 120Terra da Magia por alguns anciões e uma nave viva, que nos servia de ninho e nos protegeu e nutriu no espaço. Caímos no terceiro planeta, de um sol recém nascido para os padrões cósmicos. A nossa nave, localizou uma vastidão verde, que lembrava muito nosso mundo mas a queda não foi suave. A atmosfera queimou nossa nave viva, que atingiu o solo já morta e nos protegeu e aos anciões, na sua ultima missão. Restaram poucos de nós. Da nave sobrou apenas o suficiente para sobreviver naquele mundo estranho e hostil. Crescemos entre as arvores, a cada dia nos tornávamos mais fortes e gigantes. Ao nosso redor, lagartos dominavam o planeta, nos olhavam como invasores que éramos e, com
  • 121. 121Terra da Magia medo, nos refugiamos nas arvores gigantescas onde criamos nossa civilização. Um emaranhado, aparentemente caótico, de arvores colossais interligadas por galhos e cipós que se estendiam por milhas e onde colocamos em pratica os ensinamentos que sobraram da nave mãe morta. Arquitetura, leis, filosofia, foi o auge da nossa civilização exilada. Desenvolvemos arte usando o verde como inspiração, esculturas voadoras que explodiam no ar e se recompunham para lembrar e honrar nosso mundo morto. Leis que nunca precisaram ser usadas pois éramos poucos e estávamos longe de sentimentos mesquinhos e fúteis.
  • 122. 122Terra da Magia Treinamos nossos corpos e presas, com táticas perdidas, para guerras que não foram travadas, em campos de batalha que não existem mais. Arrastávamos nossos corpos reptilianos com orgulho por entre ruas suspensas enquanto fora dali a barbárie e a lei do mais forte dominava. Nos alimentávamos dos frutos das arvores e às vezes , um ou outro réptil que se aproximava dos nossos domínios de forma distraída. Pendurávamos-nos nas arvores com nossas grandes caudas e os puxávamos pela cabeça com nossas presas fortes e afiadas. Nosso veneno os paralisava e o banquete estava servido. Observavam-nos com desdém e medo mas éramos jovens demais para enfrentá-los, tínhamos o dom da paciência.
  • 123. 123Terra da Magia Uma noite, quando a lua se escondeu em algum lugar distante do céu, eles vieram, Sorrateiros por entre as arvores, eram muitos, milhares e nos surpreenderam em uma emboscada sanguinária em busca de vingança. Lutamos por dias, sangue manchava o verde, conhecíamos as arvores, os emboscávamos em volta delas, pilhas de corpos se amontoavam em volta das arvores e o mal cheiro empesteava o ar, nem os comedores de carniça se atreviam a chegar perto.. Mas eles eram numerosos demais e para cada morto, dois outros surgiam, Eles vinham pelo ar e por terra, perdemos alguns irmãos mas os rechaçamos. E eles voltaram para onde vieram sem nem mesmo levar seus mortos. Já éramos poucos e cada vez mais nosso numero diminuía.
  • 124. 124Terra da Magia Queimamos os corpos dos nossos irmãos, como era o costume do nosso mundo, e piras colossais iluminavam a escuridão lúgubre da floresta. Cantamos canções de morte, nossas vozes e choro se espalharam pelo verde, e foram ouvidas em todos os cantos. Depois disso a paz reinou. Os anos correram rápidos, e nossa civilização entrava em decadência como deve ser. Abandonamos tudo por lutas internas por poder, que já dilaceravam nossa antiga sociedade em nosso falecido Mundo. Tornamos-nos selvagens, descemos das arvores e nos misturamos aos outros seres. Caçávamos, às vezes por fome e as
  • 125. 125Terra da Magia vezes por prazer, arrastávamos nossos corpos gigantes pela relva. Todos nos temiam. Ate que veio o estranho dia. De repente, uma imensa bola de fogo atravessou o céu em uma manhã nublada e quieta. Nem os voadores puderam fugir, quando o impacto do imenso objeto, beijou o solo virgem da floresta. Rapidamente o fogo se alastrou, e em minutos destrui tudo aquilo que a natureza levou milênios para tecer. A morte não fez escolhas, seres vivos morriam pelo calor das chamas, outros queimavam como brasa e se jogavam, inutilmente, nos rios ferventes e sulfurosos.
  • 126. 126Terra da Magia Meus irmãos viraram cinzas, mas eu escapei, Sorte? Destino? Não, apenas estava dormindo em uma caverna profunda, refastelado por uma refeição. Meus olhos so observavam tudo la do fundo da caverna, inebriado pela digestão, vi meus irmãos morrerem em chamas. As explosões eram ensurdecedoras la fora, guinchos de seres mortos formavam uma sinfonia macabra, que me acompanhou por anos a fio. “Estou só”, foi o ultimo pensamento que passou pela minha mente, antes que uma imensa pedra obstruísse a estreita entrada da caverna. Entrei em um profundo e longo sono naquela escuridão.
  • 127. 127Terra da Magia Não sei quanto tempo se passou ate que eu acordasse. Os antigos, agora todos mortos, falavam do longo sono, mas achávamos ser apenas uma lenda. Quanto errado estávamos. Acordei e me arrastei pelo chão úmido e frio da caverna. Os barulhos la fora haviam cessado. Empurrei a imensa pedra, usando a força da minha cabeça, o esforço foi cansativo mas logo a luz do sol apareceu. Meus olhos meio cegos pela claridade puderam ver que a floresta havia renascido, mas agora outros seres habitavam seu chão e seus céus. Tinham cores e cheiros diferentes, pulavam pelas arvores, coloriam os céus. Eu
  • 128. 128Terra da Magia estava faminto e logo procurei alimento em meio aqueles peludos animais. Com o passar dos dias, eu avançava floresta a dentro, e me convencia de que os antigos e gigantescos animais que tanto combati, não existiam mais e eu era o mais poderoso ser a se arrastar pelo verde. Os outros animais me temiam, se escondiam quando escutavam o farfalhar das folhas durante a minha passagem. Eu tinha me tornado maior e mais forte, minha cauda ficava a kilometros da minha cabeça. Meus simples rastros eram suficientes para os manter a distancia. Eu por algum motivo estranho, gostei da solidão.
  • 129. 129Terra da Magia Ate que um dia, avistei um animal diferente de todos que já tinha visto. Andava em duas pernas, ligeiro. Caçava com estranhas armas, e vivia em bandos. Eu vislumbrei suas aldeias e acompanhei seus dias. Coemcei a caça-los, mais por esporte do que fome. Engoli seus filhotes e fêmeas, quebrei seus guerreiros mais valorosos. Suas armas não me atingiam, eu era grande demais para sentir suas setas. Depois de anos de matança, eles se renderam e vieram ate mim para me adorar como um Deus. Serviam-me fêmeas em sacrifício e me deram um nome, algo que de onde eu vim, não importava.
  • 130. 130Terra da Magia “Boiuna”, esse simples nome fazia os homens tremerem, foram dias de gloria. Continuei meu reinado na floresta ate que os estranhos seres chegaram. Eles vinham de longe em naves que atravessaram o mar, eram brancos e diferentes dos outros, falavam outra língua e traziam armas estranhas e estranhos costumes. Eu os observava escondia entre as arvores, apenas meus olhos brilhantes eram vistos a noite. Mas eles não acreditavam em mim. Uma noite, enfurecido pelo meu orgulho, ataquei a aldeia. Usei toda a minha força
  • 131. 131Terra da Magia para matar a todos inclusive os brancos, me banquateei com seu sangue e fugi para a floresta. Mas isso foi meu erro, as tribos se uniram e junto ao homem branco, vieram me caçar. Lutamos durante dias ou meses não lembro. Um certo dia, grupo de brancos e selvagens tentou me cercar. Mas ali, em meio a gigantescas árvores, eu reinava. Fui me livrando da cada um deles. Apesar do meu tamanho aprendi a ser sorrateira e mais perigosa. Até que restou apenas um, branco e ainda jovem, sua espada tremia por entre suas mãos suadas e resolvi aparecer para ele, as vezes o medo deles me alimentava.
  • 132. 132Terra da Magia Ele me olhava espantado, trêmulo e falava em sua língua estranha, mas que por algum motivo, eu conseguia decifrar. Ele me chamou de dragao, falou que seus antepassados adoravam seres parecidos comigo, mas que voavam livres nos céus. E eu me perguntei se teríamos sido os únicos a cair naquele mundo distante, se teríamos irmãos em outras terras. Ele baixou a cabeça e me fez uma reverência antes de ser devorado, lhe dei uma morte rápida e senti algo que não conhecia, compaixão. Um dia a vitoria era deles no outro minha, assim seguia o equilíbrio.
  • 133. 133Terra da Magia Até que dois homens, um selvagem e um branco se uniram. O branco trazia algo na mão que depois soube ser uma cruz como chamavam e o outro trazia suas crenças antigas e com elas chefiava sete tribos. Juntos cantaram uma estranha canção, tentei atacá-los, mas foi inútil. Algo ali impedia meus movimentos, eles se deram as mãos e uma luz muito forte me cegou. Procurei fugir para dentro da terra e fiz o jogo deles. A canção entoada pelo selvagem me deixou tonto e fui uma presa fácil para o feitiço jogado contra mim.
  • 134. 134Terra da Magia A união de magia selvagem e cantos de fé do branco não surtiram o efeito desejado. Eu não tinha sido destruído e verdade, mas resolvi me refugiar no fundo da Terra. E lá fui esquecido em mais um sono profundo. Senti as coisas mudarem sobre minhas costas, ouvi sons, senti o peso das construções, ouvi quando os selvagens foram expulsos e dizimados pelos brancos, escutei guerras e percebi quando impérios ruíram. Vi uma nova civilização nascer, senti as pilastras de enormes construções sobre minha cabeça. E esperei.
  • 135. 135Terra da Magia E nesse exato momento, consegui mover minha cauda há muito adormecida. Resolvi despertar e ver o Mundo que abandonei, ouvi o estrondo e os gritos, movi minhas costas e a terra tremeu, levantei a cabeça e a enorme construção, onde uma mulher pisava em uma cobra, desabou. Vi o medo em rostos estranhos, seus imponentes prédios ruíram quando despertei. Eu me arrastava pelo Mundo novamente. Jefferson Nunes é escritor, com diversos textos publicados pela editora escala, blogueiro de um universoparaleloqualquer.blogspot.com, e vai lançar seu ebook de contos, Vírus Fantasma, ainda esse ano.
  • 136. 136Terra da Magia Ensombração Alexandre Lobão Um dos homens na mesa ao lado se levantou, com uma expressão indecifrável no rosto. Parecendo embaraçado, acenou brevemente como despedida e foi em direção à porta, sem falar nem olhar para trás. Quando o homem que restara se levantou, levantei a mão em sua direção. - Com licença... - Sim? - Perdoe-me, mas não pude evitar escutar a história que você contou, senhor...? - Lauro. Lauro Alves. Apertei a mão que me era oferecida. Titubeei antes de falar meu nome – afinal, nomes têm poder – mas resolvi assumir o risco.
  • 137. 137Terra da Magia - Martelli. Victor Martelli. É que... bem, é que tive a intuição de que você procurava algo mais com sua história. Alguma ajuda, talvez? Ele suspirou e deixou os ombros caírem, desanimado. - É que Bia, minha prima, sumiu faz alguns dias. A polícia deveria estar procurando, mas segundo eles não há nenhuma pista do raptor, se é que ela foi raptada... E que desde que fui à casa dela, sinto que há algo... bem, algo estranho... Percebendo sua hesitação, fiz um sinal para encorajá-lo. - Acho que posso ajudá-lo. Sente-se aqui, por favor. Não esperei ele se arrumar na cadeira para continuar. - Sr. Lauro, explique exatamente porque você acha que há algo de estranho no desaparecimento de sua prima.
  • 138. 138Terra da Magia O olhar dele mostrou a angústia, a força que fazia para colocar aquilo para fora. As palavras saíram todas de uma vez, em um borbotão que não permitia interrupções. - Bem, eu poderia dizer-lhe que foram as circunstâncias do desaparecimento em si... mas a verdade é que, ao entrar na casa dela com o delegado, senti, e acho que vi, algo estranho. Neste momento me veio a lembrança da aventura que tivemos quando crianças, e eu soube que havia ali algo além do que podíamos ver. - Certo. Mas diga-me, o que você quis dizer com “as circunstâncias do desaparecimento”? Lauro contou-me, então, como Bia sempre fora a mais emotiva de toda a família, como se deixava levar pelos instintos desde pequena e como, mesmo depois de adulta, volta e meia vinha com histórias de seus contatos com os seres fantásticos que eles tinham visto quando crianças. Há poucos anos, Lauro se aventurara a ir