SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 20
Elementos para uma teoria da 
paisagem 
1 – Introdução 
O objectivo deste trabalho é contribuir para uma elucidação daquilo que constitui a 
paisagem. Ele não pode ser mais do que uma contribuição e nunca poderá constituir uma 
fundamentação sistematizada daquilo que é a paisagem precisamente porque o conceito 
de paisagem é ele próprio escorregadio e envolto num relativismo histórico, cultural, 
social, subjectivo, etc. Nesse sentido, em primeiro lugar, e para de alguma forma tentar 
limitar o conceito de paisagem em algo que nos permita uma reflexão mais sólida e 
precisa sobre o assunto, nunca esquecendo que a teoria que aqui expusermos pode 
precisamente funcionar apenas como uma fundamentação de um determinado tipo de 
paisagem, ou como um caso particular de uma teoria mais geral. 
Assim, a paisagem aqui estudada é, grosso modo, a paisagem bela, seja ela paisagem 
natural ou paisagem urbana. Falamos então ora de paisagens de lagos, montanhas, 
vegetação variada, desertos, florestas, montes, ora de paisagens de cidades, com prédios, 
pontes e outras construções humanas. Não integramos no conceito de paisagem tudo o 
que se pode encontrar no campo visual do ser humano. Não incluímos os objectos 
singulares no conceito de paisagem, nem os espaços fechados, nem os espaços abertos 
que não correspondem às potencialidades do sentimento estético daquilo que incluímos 
no conceito de paisagem. Ou seja, quando dizemos que estudamos a paisagem bela, 
referimo-nos a um tipo de paisagem que sentimos como bela, isto é, associada a um 
sentimento estético. Não falamos da paisagem cognitiva, nem da paisagem cultural, nem 
da paisagem social, pois aqui, se é que existe algum sentimento estético, ele está antes de 
mais subordinado a outro tipo de sentimento que o precede, fundado em conhecimentos, 
na ciência, na sociologia ou na cultura. O que queremos então é ir à pureza da paisagem 
que aparece primeiramente como bela, desligada de toda a utilidade concreta que possa 
conter como meio para algum fim. 
Para este objectivo, recorreremos a Schopenhauer, mas principalmente a Kant. Será a 
partir da obra destes dois autores que procuraremos definir uma linha de raciocínio para 
fundamentar o conceito de paisagem, que na verdade nunca foi claramente e directamente 
tratado por estes filósofos. As suas relexões paradigmáticas sobre o belo e a natureza 
serão muito úteis para caminharmos para um conceito coerente de paisagem natural. Em 
oposição, e recorrendo a outros autores dispersos, analisaremos o conceito de paisagem 
urbana caracterizando (e comparando com a paisagem natural) o tipo de sentimento 
estético associado a ela. Finalmente, tentaremos também, a partir daquelas duas 
definições, enquadrar os casos intermédios (de mistura entre paisagem urbana e paisagem 
natural) e perceber em que medida é que neles se encontram sentimentos estéticos 
associados à combinação da paisagem natural com a paisagem urbana. 
2 – A paisagem natural
O que é a paisagem natural? Porque associamos beleza ao conceito de paisagem natural? 
Na verdade, se tentarmos investigar uma estética da paisagem a partir daquilo que 
constitui o belo natural, e nomeadamente em Kant, encontramos imediatamente um 
obstáculo: Kant concentra toda a sua teoria do belo em casos em que o objecto que se 
defronta diante do ser humano é um objecto singular. Muitos exemplos nos dá este autor: 
desde as flores belas, até aos colibris belos, passando por alguns crustáceos belos. Mas 
quando pensamos na paisagem, percebemos que ela não pode ser englobada numa teoria 
do objecto belo, como objecto singular e, se quisermos, como objecto isolado e que 
contém uma unidade e delimitação imediatamente discerníveis. Algo nos diz que o 
sentimento estético provocado pela contemplação da paisagem é diferente do sentimento 
estético provocado pela contemplação de uma flor. No caso da paisagem, falamos de um 
conjunto de objectos que parecem estar em harmonia, mas em que cada um dos quais 
possui uma autonomia identificável em relação ao todo, se bem que contribua para uma 
unidade do todo. No caso do belo individual, também podemos discernir partes do 
objecto que se interligam para formar a unidade do objecto, mas estas partes não possuem 
autonomia concreta, sendo sempre o objecto como um todo aquilo que predomina. A 
paisagem é por isso um conjunto antes de ser uma unidade. Conjunto de objectos ou 
conjunto de matéria. É um conjunto de matéria no caso, por exemplo de um deserto ou de 
um rio. Não falamos aqui de um grão de areia ou de um uma gota de água. É uma 
experiência em que o entendimento humano não se concentra sobre um objecto físico 
determinado como coisa, mas sim nnum conjunto de objectos ou num objecto complexo 
que se pode sempre dividir em partes constituidas exactamente pela mesma matéria1 
Por outro lado, a paisagem aponta para lá da mera soma de objectos. Ela parece insinuar 
na sua aparência a própria identidade da natureza, ela acena para algo que a supera. Ou 
seja, como não se fecha num objecto singular, mas precisamente abre para um conjunto 
que é já de si um conjunto aberto no espaço e para o céu, ela evoca o infinito e a própria 
totalidade da natureza. Mas a paisagem não é a totalidade da natureza. Com a totalidade 
da natureza apenas podemos ter uma experiência cognitiva/racional, seja através do 
conhecimento que temos da natureza no planeta Terra, ou, de forma mais global, através 
do conhecimento que temos da natureza como um todo, da totalidade de estrelas, 
planetas, matéria, etc. Mas essa aprensão global dá-se apenas racionalmente e não numa 
percepção instantânea visual. 
Assim, a paisagem aparece como algo que nem é objecto estético singular, nem é a 
totalidade da natureza. O que a faz ser paisagem? Em primeiro lugar podemos responder 
a partir do lugar donde ela se contempla, donde ela se vê. Com efeito, a percepção da 
paisagem implica uma visão panorâmica que o sujeito experimenta a partir de um ponto 
do espaço privilegiado. Ou seja, o sujeito tem que ser capaz de contemplar a partir de 
uma determinada posição que lhe permita um extenso e profundo campo visual. Capaz de 
lhe desviar a atenção de pequenos objectos particulares, realçando a sensação de um 
encontro com uma totalidade limitada (mas que tende para a ilimitação) em que se 
reconhecem objectos singulares que compõem o conjunto, mas em que é impossível 
estabelecer uma relação privilegiada com qualquer objecto particular. Se esta condição 
(de profundidade do campo visual) não for satisfeita, o sujeito não se consegue desligar 
1 Se pegarmos no conceito de substância de Aristóteles percebemos melhor o que aqui se quer dizer: para 
Aristóteles, a água, o fogo, etc não são substâncias, mas sim homeomarias. Quando dizemos «uma água» 
referimo-nos a uma garrafa de água, e a garrafa de água essa sim é substância.
do alheamento utilitário com que se relaciona com os objectos particulares e fica 
remetido ou para uma estética do belo individual ou para uma integração dos elementos 
naturais como meios para uma finalidade qualquer. 
É então assim que nos deparamos com um conceito de extrema pertinência utilizado por 
Rosario Assunto para definir a paisagem: o conceito de «finitude aberta». A paisagem é 
uma finitude (uma limitação que acaba até onde o horizonte nos deixa ir) aberta para o 
infinito do céu. O próprio céu é uma infinitude que se deixa limitar num dos seus lados 
pela paisagem. A paisagem implica uma delimitação mas uma abertura para a totalidade 
que a envolve, um aceno para o ilimitado. Note-se que a finitude aberta precisa da 
profundidade e da panorâmica alargada do olhar, pois aquilo que vislumbramos que está 
ao ar livre e que, prostrado diante de nós a apenas poucos metros de distância, nos 
impede um olhar mais profundo e apenas nos deixa pressentir o céu por cima mas nunca 
de forma a contar significativamente para o enquadramento global, então isso não é 
paisagem. E não é paisagem porque nesse caso a finitude não está aberta apesar de estar 
ao ar livre. Precisamente porque o carácter de abertura é da responsabilidade do sujeito 
que olha, do sujeito que não fixa a vista no objecto singular diante de si, mas que solta a 
vista para a totalidade que se apresenta aberta e como que atirada e estendida para o céu 
como fronteira. Assim, uma flor em espaço aberto não é uma finitude aberta na medida 
em que concentramos o olhar simplesmente na flor. Da mesma forma, um conjunto de 
arbustos muito altos diante de nós em espaço aberto não é uma finitude aberta no caso em 
que não o enquadramos no horizonte ou no enquadramento do céu. O conceito de 
finitude aberta que defendemos não é meramente físico (algo como ar livre) mas sim uma 
experiência mental em que a abertura não só está lá, como é parte fundamental daquilo 
que vemos. 
A abertura é abertura para o infinito, para o ilimitado. É abertura para a totalidade da 
própria natureza. Por isso, a paisagem natural, não sendo nem um objecto estético 
singular, nem a própria totalidade da natureza, pode ser encarada como porção de 
natureza, ou, melhor ainda, como uma pequena essência de natureza. Ou seja, ela não é 
simplesmente uma parte da natureza (como é o objecto estético singular), é precisamente 
uma parte da natureza com capacidade para representar toda a natureza, um pequeno 
protótipo da natureza. Na verdade, é uma parte da natureza que acena e aponta para a 
totalidade e infinitude da natureza. 
Mas como caracterizar o sentimento estético que podemos ter diante da contemplação de 
uma pequena essência de natureza? 
Para chegarmos a respostas fundamentadas teremos que percorrer um caminho. Vejamos 
o que podemos descobrir em Kant sobre o objecto natural belo. 
Ora, para kant, o sentimento estético que experimentamos quando contemplamos um 
objecto belo, é um sentimento livre. É uma experiência completamente contemplativa e 
desinteressada. Não interessa a utilidade que o objecto possa ter para nós (nesse caso o 
objecto seria «bom» mas não belo), não interessa a sensação física que experimentamos 
(nesse caso o objecto seria agradável, como é no caso do paladar, do olfacto, ou das cores 
vivas que apenas intensificam mas não definem a beleza que é puramente formal e não 
material), nem sequer interessa as relações que o objecto estabelece com outros objectos 
da natureza (independentemente da utilidade para nós) do ponto de vista dos conceitos e 
relações causais estabelecidas pelo entendimento. Daqui se vê que para a contemplação
do belo, também não está em causa a existência do objecto no sentido em que não há um 
interesse na existência do objecto. Há apenas uma sensação serena de pura contemplação 
não fundada em nehuma materialidade do objecto mas apenas no modo como a sua forma 
é acolhida pelas faculdades do conhecimento humano. Só interessa o acontecimento de 
olhar para o objecto tal e qual ele se nos apresenta abstraindo de tudo o que pode mover 
os sentidos (do ponto de vista da nossa determinação como seres da natureza) ou a razão 
(seja a moralidade ou a questão da utilidade do objecto). Mas o que é que acontece então 
que está no fundamento do prazer sentido? Se não é um prazer nem da razão nem dos 
sentidos, de onde vem? Vem precisamente da diferente mobilidade que é dada à 
faculdade da imaginação na contemplação do belo. No uso para o entendimento a 
imaginação está limitada para corresponder ao conceito daquele. No Belo, a imaginação, 
além de concordar com o conceito do entendimento fornece matéria nova, que obriga o 
entendimento a pegar nela também. Ou seja, quando o objecto não é encarado de forma 
estética ou não tem potencialidade para conferir um prazer estético ao sujeito é porque a 
faculdade da imaginação está subordinada à faculdade do entendimento. Ou seja, a 
imaginação dá-nos precisamentre numa intuição sensível o conceito que já possuímos do 
objecto no entendimento. Contrariamente, no sentimento estético do belo, a faculdade da 
imaginação entra em jogo com o entendimento e, na sua liberdade, concorda com o 
entendimento na sua conformidade a leis. Neste caso, não existe nenhuma subordinação 
mas sim um jogo de igual para igual, em que o objecto não aparece como algo contrário 
ao entendimento (ele é conceptualizável, delimitado na sua forma) mas também não 
aparece como simples determinação intuida visualmente de um conceito do 
entendimento. A faculdade da imaginação não está subjugada ao entendimento, no 
sentido de servir um conceito seu. Ela joga livremente, toma iniciativa, mas sem resvalar 
na pura fantasia, pois está ligada a uma forma concreta que o entendimento ali também 
entende. Assim, o fundamento do prazer estético não recai sobre nenhum conceito 
objectivo mas simplesmente funda-se neste jogo das faculdades. Por isso o prazer estético 
não resulta directamente de eventuais qualidades intrínsecas dos objectos estéticos (como 
sejam ou a perfeição geométrica ou o carácter atractivo às sensações), pois se assim fosse 
fundar-se-ia na concordância com um conceito do entendimento e não precisamente 
sobre o livre jogo em que o entendimento é obrigado a entrar com a imaginação. 
Não há nem sensação nem um conceito determinado que determinem o prazer do belo. A 
beleza não está por isso nas próprias figuras mas na conformidade a fins subjectiva sem 
conceito determinado. Desta forma, não podemos determinar a beleza do objecto a partir 
das suas características objectivas (a qualidade da forma, como a simetria, a perfeição, 
etc.), o que significa que não podemos decidir a priori quais é que são os objectos belos. 
Só experimentando e sentindo o jogo das faculdades no interior do sujeito é que se sente 
o prazer do belo. Há assim uma conformidade a fins subjectiva sem um fim determinado: 
«a beleza da natureza é apresentação da conformidade a fins formal (subjectiva) segundo 
as suas leis particulares (empíricas) para a nossa faculdade do conhecimento»2 o que é 
bastante diferente de se considerar uma conformidade a fins real e objectiva da própria 
natureza para o sujeito. Ou seja, a natureza não tem como finalidade sua agradar ao 
sujeito no prazer estético do belo. O que acontece, sem intencionalidade objectiva da 
natureza, é que o objecto natural é conforme a fins com a relação das faculdades do 
conhecimento entre si (imaginação e entendimento). Podemos então dizer que o juízo de 
2 CFJ, pg 79
gosto funda-se sobre um conceito, mas que não é um conceito determinado (ou então não 
seria livre e haveria conformidade a fins objectiva). O conceito a que nos referimos é o 
conceito do fundamento em geral da conformidade a fins subjectiva da natureza para a 
faculdade do juízo. Esse conceito geral e indeterminado não nos permite conhecer ou 
provar nada acerca do objecto, e ele é apenas accionado de forma acidental e espontânea 
a partir das formas produzidas pela natureza segundo leis particulares. 
Mas a verdade é que Kant nunca cai numa espécie de subjectivismo relativo. Na verdade, 
ao negar a possibilidade de definir quais os objectos belos a priori a partir de 
propriedades objectivas e determinadas dos mesmos, não quer isso dizer que o «belo» se 
situe no terreno do agradável, caso em que determinados objectos provocam sensações 
num sujeito e sensações diferentes noutro sujeito. Na verdade, Kant sustenta que no juízo 
de gosto sobre o belo há uma universalidade sem conceitos, que, claramente, se distingue 
de uma mera universalidade lógica, que é sempre necessária e objectiva. Ou seja, o 
sujeito, quando afirma que algo é belo, exige o acordo dos outros sujeitos, pressupõe que 
os outros sujeitos também tenham que considerar aquele objecto como belo. E a verdade 
é que esta pressuposição de universalidade funda igualmente o próprio prazer estético, na 
medida em que o facto de o sujeito compreender que aquele prazer estético não é uma 
mera contingência dos seus sentidos mas que possui uma força muito maior que pode ser 
comunicada e exigida aos outros sujeitos confere imediatamente um maior prazer, com 
uma força muito superior, à contemplação estética do belo. 
Esta análise do belo parece sempre ficar incompleta, pois resta sempre uma pergunta: 
afinal, porque é que certos objectos são belos e outros não? Porque é que na presença de 
certos objectos podemos experimentar um jogo das faculdades do conhecimento e na 
presença de outros objectos isso não acontece? Não terá que haver um fundamento 
objectivo nos objectos com que nos deparamos na contemplação estética? 
Kant não se cansa de afirmar que não existe uma conformidade a fins objectiva da 
natureza, como se ela tivesse construído certas formas para o nosso próprio 
comprazimento. Ou seja, não há um favor que a natureza nos mostre , mas sim um favor 
no modo pelo qual acolhemos a natureza, pondo a faculdade da imaginação em liberdade. 
Mas aqui importa recordar uma afirmação de Goethe: «Há algo de conforme a uma lei 
desconhecida no objecto que corresponde a algo de conforme a uma lei desconhecida no 
sujeito». E que lei desconecida é essa? Que lei do objecto natural, que tipo de objecto 
natural, o que é que existe no objecto natural que está de acordo com o jogo das 
faculdades no sujeito? Kant ainda nos diz que tem que haver uma proporção determinada, 
«na qual a relação interna para a vivificação (...) é a mais propícia para a faculdade do 
ânimo»3. Quer dizer, temos que considerar algum elemento objectivo no objecto que 
suscite a relação correcta das faculdades do conhecimento. Há duas afirmações de Kant 
que vão neste sentido: «Para o belo da natureza temos que procurar um fundamento fora 
de nós»4 e «o belo reclama a apresentação de uma certa qualidade do objecto»5. E que 
qualidade é esta? Não se trata concerteza da perfeição geométrica ou da simetria, pois aí 
o que acontece é um acordo da natureza com fins subjectivos estabelecidos em conceitos 
determinados (a forma perfeita redonda coincide com o conceito de perfeição do círculo 
que o sujeito já tem em si). No caso do belo natural, não há conceito que decida. No 
3 CFJ, pg.130 
4 CFJ, pg 140 
5 CFJ, pg 164
entanto, tem que haver alguma espécie de fundamento objectivo: Kant argumenta que 
esse fundamento repoiusa sobre a forma do objecto, numa espécie de concordância da 
multiplicidade com a unidade do objecto. É o mais longe a que conseguimos chegar neste 
momento: os objectos naturais que podemos considerar belos são aqueles em que há uma 
determinada relação da composição da multiplicidade do próprio objecto na sua própria 
unidade, composição essa que suscita o livre jogo da faculdade da imaginação com a 
faculdade o entendimento. 
Será que podemos exportar esta concepção do belo para a paisagem? Será que podemos 
considerar que o prazer estético da paisagem está ligado à tal unidade da multiplicidade 
da forma que suscita o livre jogo da nossa faculdade da imaginação? Muito dificilmente.. 
Isto porque a diversidade das paisagens belas é tal, que fazer repousar o fundamento da 
beleza sobre uma determinada forma ou um determinado tipo de forma parece deixar 
modalidades da paisagem de fora. É preciso encontrar um elemento objectivo ou então 
mais forte e que esteja para lá da mera forma, que esteja para onde nos atira a forma, para 
algo mais geral e que não se deixa objectivar simplesmente como qualidades de um 
objecto. Procuraremos então outras pistas na análise do sublime em Kant. 
Para Kant, o sentimento estético do sublime encontra-se perante objectos que podem ser 
informes (ao contrário do belo, em que possuem sempre uma forma determinada) sendo 
geralmente objectos colossais (enormes) ou então situações em que a natureza demonstra 
toda a sua força. Mas convém frisar que o que é sublime não é o objecto mas 
simplesmente a grandeza do estado de ânimo no interior do sujeito. Acrescente-se 
também que o sublime como que inaugura uma relação de ruptura com a natureza. 
Kant considera dois tipos de sublime: o matematicamente sublime e o dinamicamente 
sublime. O matematicamente sublime é um sentimento que experimentampos perante 
objectos colossais, objectos tão grandes que exigem o máximo esforço da nossa 
faculdade da imaginação na avaliação da grandeza desse objecto. E o que acontece é que 
esses objectos colossais aparecem como que acima de todo o padrão de medida dos 
sentidos, como que desafiando a faculdade da imaginação que não os consegue apreender 
numa intuição única, mas convidando a razão a intervir e a conferir validade e 
legitimidade a esses objectos. Ou seja, como que o sublime matemático é um sentimento 
gerado pelo facto de a grandeza daqueles objectos ser compreendida mediante ideas da 
razão, mas em que todo o esforço da faculdade da imaginação não consegue intuir e fazer 
corresponder em si essas ideias da razão. A faculdade da imaginação entra em conflito 
com a razão. 
O dinamicamente sublime é um sentimento que experimentamos face a acontecimentos 
naturais onde a natureza mostra uma força brutal. Mas este sentimento não tem nada a ver 
com o medo: aliás, só quando o sujeito se encontra em segurança na contemplação de 
espectáculos daquele tipo é que pode efectivamente experimentar o sentimento do 
dinamicamente sublime. Na verdade, aqui o sentimento do sublime é originado pelo facto 
de a força daquele acontecimento desafiar a própia faculdade da imaginação, que 
efectivamente apreende algo que ameaça as estruturas do sujeito (nomeadamente a 
sensibilidade), mas podendo o sujeito permanecer superior a essa ameaça, como que se 
afimando por cima da sua própria constituição natural sempre vulnertável à fúria da 
natureza. Na verdade, o sublime é um sentimento de que possuímos uma razão pura 
independente, que está acima da nossa determinação sensível. Ou seja, o sentimento do
sublime torna-nos intuível a superioridade das nossas faculdades de conhecimento sobre 
a faculdade máxima da sensibilidade. O respeito que sentimos pela força da natureza é 
também um respeito pela ideia de humanidade no sujeito, ou seja, o respeito pela nossa 
capacidade de estar perante tal brutalidade mantendo-nos acima dela. Há uma espécie de 
impotência física em simultâneo com a consciência de que o seu destino do sujeito está 
acima da natureza. 
Que relação podemos fazer com a paisagem? O que é que no sentimento do sublime 
acrescenta alguma coisa em relação ao sentimento do belo perante o objecto individual 
que possamos exportar para a consideração da paisagem? 
A resposta é-nos dada pelas palavras de Denis Huisman: «Em kant, o sublime é um 
estado subjectivo que obriga a pensar a natureza na sua totalidade, sem que possamos 
realizar tal apresentação». Ou seja, quando colocámos a paisagem entre o objecto estético 
singular e a totalidade da natureza, encontramos aqui o segundo termo dessa colocação. 
No sublime, aponta-se para a totalidade da natureza, sem contudo poder apresentar essa 
totalidade (algo que, como já vimos atrás, apenas pode ser feito racionalmente, 
cognitivamente). Assim, no sentimento do sublime, o ser humano é obrigado a pensar a 
totalidade da natureza, aquela totalidade da natureza que também determina a sua parte 
natural, mas à qual ele se opõe. O sublime em Kant mostra como o sentimento estético 
como que parte o homem nas suas duas partes: espiritual e natural, encarando cada uma 
delas como um todo, ou seja, o ser humano individual, perante o sublime, encontra-se a 
representar toda a espécie, seja enquanto ser natural , seja enquanto ser racional. 
Mas porque razão é ainda insuficiente este conceito para a teoria da paisagem? 
Precisamente porque a paisagem que tentamos fundamentar e explicar neste trabalho não 
se coaduna com um sentimento do tipo do sublime mas muito mais com um sentimento 
do tipo do belo. Na contemplação da paisagem não existe um conflito das faculdades, 
existe precisamente um estado de harmonia. A paisagem tipo não é algo como uma 
tempestade ou como um grande abismo. Contrariamente, é a paz de espírito presenciada 
pela contemplação de vegetação, montes, vales e lagos, que nos suscita um sentimento de 
prazer em harmonia com o que contemplamos. 
Continuamos então à procura. Mudemos então de autor e recorramos a outro grande 
pensador que foi Schopenhauer, para a partir da sua estética compreendermos melhor o 
que poderá ser a paisagem. 
Schopenhauer é um autor romântico e como tal vai apregoar uma unidade originária 
anterior a toda a partição entre sujeito e objecto. Para este autor, a divisão entre sujeito e 
objecto só acontece no mundo dos fenómenos, no mundo da representação. Na verdade, 
por detrás do mundo da representação está algo que é comum tanto ao sujeito como ao 
objecto, no fundo, tudo é constiuído originalmente a partir do mesmo. Esse algo é a 
vontade. A vontade (que é aquilo que existe realmente, digamos como que a «coisa em 
si») manifesta-se em fenómenos no mundo da representação. Schopenhauer considera a 
estética como uma espécie de conhecimento intuitivo que permite precisamente a 
contemplação da coisa em si, ou que permite uma aproximação à contemplação da 
vontade. Ou seja, a estética é também uma forma de conhecimento especial, pois é a 
partir dela que podemos intuir a unidade originária anterior a sujeito e objecto. 
Quando olhamos um objecto que está no mundo da representação, para que nos 
aproximemos daquilo que ele realmente é (e não das razões por que ele é), temos de
experimentar uma situação de conhecimento que é antes de mais estética e que nos 
permite contemplar aquele objecto como belo, a partir da contemplação da ideia do 
objecto (independente do mundo da causalidade característico da representação) que é 
qualquer coisa que ainda está no mundo da representação mas que já está mais próximo 
da pura vontade. Na verdade, a ideia contemplada retira o objecto do mundo da 
causalidade (causalidade que possa ter para nós ou com outros objectos) e também do 
mundo do espaço e do tempo. Mas essa idea ainda não é a vontade porque ainda não 
estamos na fase em que se elimina o binómio sujeito/objecto, na verdade ainda há um 
sujeito que intui um objecto. 
Na contemplação do belo experimentamos dois tipos de prazer interligados. O primeiro é 
o prazer subjectivo, em que o sujeito se torna um puro sujeito do conhecimento liberto da 
sua própria vontade. Ou seja, quando contemplamos o belo, abstraímo-nos das relações 
de causalidade e dos efeitos que o objecto possa ter para a nossa vontade (algo como a 
abstracção da utilidade do objecto em Kant), exercendo o conhecimento de forma pura, 
intuitiva, e completamente independente da vontade. O segundo tipo de prazer é o prazer 
objectivo, que acontece precisamente quando, já libertos da nossa vontade, retiramos o 
objecto das teras de causalidade que ele tece com os outros objectos, contemplando 
apenas a pura ideia do objecto que corresponde a um determinado tipo de objectivação da 
vontade. Ou seja, para nos aproximarmos da contemplação da vontade (a objectivação 
dela em ideia naquele objecto) temos que nos libertar da nossa própria vontade, e, sem 
estarmos subjugados por ela, contemplarmos a sua idea que nos aparece no objecto diante 
de nós. Quando isto acontece, o sujeito como que se torna espelho do objecto. Estando 
todas as relações causais ausentes, o sujeito como que se funde no próprio objecto e 
torna-se ele próprio apenas o objecto que contempla (nada mais o define ou determina 
naquela posiçãpo de pura abstracção e contemplação). No entender de Schopenhauer, 
qualquer objecto pode ser belo, dependendo apenas da forma como o olhamos. Assim, 
para encontrarmos alguma especificidade da paisagem, concentremo-nos naquilo que é o 
sublime para este autor, de forma a tentarmos encontrar aí elementos que nos possam 
aproximar mais da paisagem. 
Ora, mas para Schopenhauer, o sublime é apenas uma intensificação (contudo decisiva) 
do sentimento estético já presente na contemplação do belo. O sublime de Schopenhauer 
aplica-se mais ou menos aos mesmos casos do que o sublime de Kant, ou seja, grandes 
planícies áridas ou tempestades, isto é, acontecimentos em que a natureza demonstra todo 
o seu perigo e força contra o sujeito humano. No sublime também podemos distinguir o 
prazer subjectivo do prazer objectivo6. No prazer subjectivo, o sujeito deve libertar-se da 
sua vontade (ou seja, das relações de causalidade que o objecto tem com ele, o perigo que 
representa, ertc.). Mas esta libertação é mais difícil do que no belo, pois ela exige um 
grande esforço na medida em que o sujeito está perante um perigo ameaçador e como tal 
tem mais dificuldade em abstrair-se do poder causal que aquele objecto pode ter para si. 
Mas aqui o prazer subjectivo é bastante superior ao do belo, na medida em que apesar do 
perigo, o sujeito consegue libertar-se disso e contemplar puramente o objecto. Por outro 
lado, o prazer objectivo também é claramente maior, na medida em que na contemplação 
do sublime o sujeito intui mais claramente a vontade na medida em que ela se manifesta 
6 Esta distinção, tanto no bleo como no sublime, não é dada explicitamente por Schopenhauer. Ela é o 
resultado de uma interpretação e reorganização que se pode fazer a partir dos vários sentimentos que o 
autor descreve na contemplação estética
com uma força muito superior. Uma força tão poderosa, que parece vir da vontade como 
totalidade do mundo. É que enquanto que no belo, o sujeito se sente numa unidade com a 
ideia do objecto, no caso do sublime ele sente-se unido ao próprio mundo inteiro como 
manifestação da vontade. A unidade entre sujeito e objecto é aqui muito mais forte 
porque possui uma força de universalidade: unificamo-nos com aquele espectáculo, 
identificamo-nos com todo o poder de manifestação da vontade do mundo, e o sujeito 
torna-se também essa vontade universal, funde-se nela.7 
Não há dúvida que a análise do belo e do sublime em Schopenhauer nos fornecem 
elementos fundamentais para a teoria da paisagem e que representam um salto em relação 
a Kant. Com efeito, Schopenhauer considera que na experiência estética existe uma fusão 
entre o sujeito e o objecto, fusão essa que no caso do sublime dá-se com toda a natureza, 
ou com toda a vontade que determina a natureza como representação. Como em Kant, 
existe aqui um elemento que nos interessa: a natureza é encarada na sua totalidade. Mas, 
contrariamente a Kant, há um determinado momento no sublime de Schopenhauer (e que 
Nietcshe depois aproveitará para fazer a apologia da estética e não caír no pessimismo de 
Schopenhauer) em que a relação com a totalidade da natureza não é de conflito mas 
precisamente de fusão e identificação, a consciência que o ser humano é feito do mesmo 
material de que é feita a totalidade da natureza. Há aqui aquela harmonia que 
procurávamos para fugir ao sublime Kantiano sustentado apenas no conflito. Daí que o 
sublime em Schopenhauer nos aproxime mais da paisagem que queremos estudar. No 
entanto, estas concepções ainda não nos satisfazem, na medida em que em Schopenhauer 
a paisagem tipo não encontra ainda o seu lugar. Em primeiro lugar, qualquer objecto 
individual pode ser belo e em segundo lugar, o sentimento de unificação com a totalidade 
da natureza é só conseguido em casos extremos como as tempestades, etc. Será que a 
paisagem é um caso mais fraco do sublime de Schopenhauer? Não nos parece. 
Entretanto, regressemos a Kant para ver se encontramos razões mais profundas para o 
sentimento do belo que não se limitem a um mero jogo de faculdades completamente 
ocasional e caído quase que do nada. 
Na primeira parte da crítica da faculdade do juízo, Kant percebe que há algo para lá do 
mero jogo das faculdades que se manifesta na contemplação do belo natural (algo que 
não acontece no belo artístico). Assim como que de repente, Kant diz que o belo é o 
símbolo do bom. Na verdade, ele só vai desenvolver esta tese na segunda parte da crítica. 
De qualquer forma, ainda na primeira crítica, kant diz-nos também que existe um 
interesse imediato e intelectual pela beleza da natureza, pelo qual não apenas o produto 
natural apraz segundo a sua forma, mas também apraz a sua existência, na medida em 
que essa existência parece aparecer como a garantia do tal moralmente bom. Kant diz 
mais: diz que as belezas da natureza são as mais profícuas para a ligação com ideas 
7 Não é este o local adequado para falar da ética de Schopenhauer, e por isso paramos por aqui a análise do 
sublime nesse autor. É que em seguida, a evoluição do sentimento do sublime vai ter uma perspectiva ética 
que não nos interessa: o sujeito, depois de ser um só com a vontade do mundo, percebe que afinal tudo é 
uma i.lusão e que aquilo não passa do mundo da representação, percebe em seguida que o que está por trás 
desse mundo da representação é uma vontade cega e sôfrega, que se satisfaz de forma absolutamente 
irracional e que origina todo o sofrimento do mundo, propondo finalmente a anulação da vontade numa 
perspectiva budista. Mas a forma como Schopenhauer utiliza a sua estética apenas como meio para 
defender uma ética (na medida em que é opela estética que o ser humano pode conhecer intuitivamente a 
origem do mundo como pura vontade cega e irracional) não cabe aqui neste trabalho
morais e desata a fazer relações entre as cores existentes na natureza e as ideias morais 
que se lhes associam. Tudo isto parece estranho e talvez um salto demasiado grande. 
Concentremo-nos então na seguinte afirmação de Kant: «o gosto torna possível a 
passagem do atractivo dos sentidos ao interesse moral habitual, sem um salto demasiado 
violento»8, isto porque o gosto como que ensina a encontrar um comprazimento livre em 
objectos dos sentidos. Parece então que Kant desistiu de procurar o tal elemento objectivo 
da natureza como natureza que fundamente o prazer estético. Na verdade, assumindo que 
o prazer estético é subjectivo, e como no prazer estético não nos interessa a utilidade do 
objecto e as suas relações causais mas apenas a pura contemplação, fácil é dar o salto 
para dizer que afinal olhar um objecto da natureza é quase como contemplar a nossa 
própria ideia moral, como se na verdade, todo o mundo estivesse dirigido e finalizado 
para o homem e para o seu interesse moral que começa desde o princípio da criação. 
Porque se o belo não tem origem em leis da natureza, em em nada de objectivo nas 
próprias coisas da natureza (tráta-se de um interesse livre) então temos que procurar a 
origem desse sentimento em nós próprios e nomeadamente naquilo que constitui o fim 
último da nossa existência: o destino moral. Afinal, a estética, tal como em Schopenhauer 
parece estar a perder a sua autonomia para se fazer depender da própria ética. Mas, a 
partir da segunda parte da crítica, enfrentemos Kant nesta questão, e veremos como este 
enfrentamento nos vai permitir chegar mais perto do conceito de paisagem. 
Será que existe uma finalidade na natureza ou trata-se tudo de mero acaso? Esta é a 
grande questão a que uma crítica da faculdade do juízo teleológica vai tentar responder. 
Na verdade, tudo o que vemos na natureza existe por acaso ou existe ordenada e 
organizadamente, num sistema em que tudo tem o seu lugar próprio e fundamental? Será 
que existe uma finalidade da própria natureza inscrita na natureza, ou uma finalidade 
exterior a ela, ou nenhuma delas? 
Em relação ao primeiro caso tratar-se-ia de uma conformidade a fins objectiva da própria 
natureza. Mas, como diz inicialmente Kant, «que as coisas da natureza sirvam umas às 
outras como meios para fins, e que a sua possibilidade se resuma a isso, é algo que não 
podemos postular».9 Efectivamente, é-nos impossível dizer que as ervas só existem para 
que os herbívoros as possam comer, que os herbívoros só existem para que os predadores 
não morram à fome, ou que a água só existe para permitir o crescimento das plantas e dos 
outros seres vivos. Neste sentido é-nos impossível determinar que existe uma 
conformidade a fins externa de cada produto da natureza, no sentido em que esse produto 
exista sempre como utilidade para outro. Isto porque é-nos sempre possível imaginar que 
aquele produto natural surgiu de um acaso das milhões de combinações possíveis da 
natureza. 
Mas Kant não se contenta com esta falta de certezas, Através da faculdade de juízo 
teleológica, abre as portas a uma consideração da natureza a partir de uma 
intencionalidade: «podemos apenas submeter a natureza a princípios de observação 
segundo a analogia como a causalidade segundo fins, sem por isso pretender explicá-la 
através daqueles»10. Não é, bem vistas as coisas, uma intencionalidade explícita (como se 
8 CFJ, pg 264 
9 CFJ, pg 267 
10 CFJ, pg 274
a natureza fosse uma força inteligente) mas uma intencionalidade subjectiva e que se 
ajuste ao modo de conceptualizar do entendimento humano. 
Será a causalidade um mecanismo cego, em que se compreende as leis que originam os 
produtos naturais, mas que não se compreende por que razão se originam naquela forma 
concreta, sem qualqer finalidade específica? Kant pensa que não. E o ponto de partida 
para assim pensar nasce da observação de determinados seres naturais organizados: ou 
seja, há diversos seres vivos complexos que revelam uma conformidade a fins interna, na 
medida em que são causa e efeito de si mesmos, e em que as suas partes se ligam para a 
unidade do todo. Basta pensarmos em qualquer ser vivo, cuja sua causa é um membro da 
mesma espécie e cujo efeito será também um membto da mesma espécie. Por outro lado, 
a organização interna destes seres mostra que nada é em vão e que todos os órgãos se 
dispõem para funções essenciais vitais. Por outro lado, existe uma resistência destes seres 
ao desaparecimento. Qualquer ser organizado tenta vingar e permanecer vivo, e pelo 
menos enquanto espécie vai conseguindo: é como uma força formadora que se propaga a 
si própria e que não é explicável apenas pelo mecanismo da natureza. A dificuldade de 
aceitarmos o facto de que estes seres extremamente organizados são fruto do acaso 
resulta também do facto de que vivemos pouco tempo e que as grandes transformações 
precisam de milhares de anos. Na verdade, o ser humano está apenas habituado a 
confrontar-se com a generatio homonyna (seres que se reproduzem a partir de seres da 
mesma espécie) e não com a geração heteronyma.(seres que se reproduzem a partir de 
outros seres diferentes). Mas mesmo considerando este facto, Kant sustenta que esta 
finalidade interna destes seres tem uma razão de ser e não aconteceu como que por acaso. 
E vai mais longe ao estender a conformidade a fins interna de cada ser ao todo da 
natureza. Ou seja, a natureza é como que um todo que possui uma finalidade própria e em 
que cada elemento contribui para essa finalidade. Neste tipo de concepções Kant é 
coerente com a crítica da razão pura. Ele diz-nos claramente que, se na verdade existe um 
mundo dos fenómenos e um mundo das coisas em si que para nós é inacessível, por que 
raio é que devemos resistir à ideia de que aparentemente existe apenas um mecanismo 
cego na natureza mas que no fundo, por trás disso, existe uma intencionalidade conforme 
a fins da natureza? Mas kant coloca então um supra-sensível que temos que pôr na base 
da natureza e que funciona como uma espécie de inteligência que a vai comandando. 
E qual é então o apregoado fim da natureza como um todo? Para Kant é precisamente o 
ser humano. Na verdade, existe uma forma de olhar o ser humano que não o coloca 
imediatamente como fim terminal da natureza: ele é tão só mais um elemento natural que 
até equilibra o ecossistema em determinadas fases. Mas, há outra forma de olhar para ele: 
na verdade, o ser humano é o único ser que é capz de colocar fins a si próprio. «O 
homem, enquanto único ser que possui entendimento (faculdade de voluntariamente 
colocar a si mesmo fins) é o fim terminal como ser fora da natureza»11. Na verdade, o ser 
humano é o único que pode colocar este tipo de questões à natureza, e, antes de mais, ele 
é o único que possui uma independência em relação à natureza, independência essa que 
tem o seu cerne na sua lei moral incondicionada e livre da natureza, e como tal, se a 
natureza tem que ter um fim terminal (porque aqui subjectivamente no modo de entender 
humano todos os factos devem ser meios ou fins) então esse fim será um fim moral: «pois 
se a criação toda ela possui um fim terminal, então não podemos pensá-la de outro modo 
11 CFJ, pg 360
senão que ela tem que entrar em acordo com um fim moral (o único que torna possível 
um conceito de um fim)»12. 
Temos assim que a finalidade última da natureza é o próprio homem enquanto 
subordinado a leis morais, e, como reconhecemos o homem como ser moral, temos razão 
para considerar o mundo como um todo coerente segundo fins e como sistema de causas 
finais. 
Tudo se passa assim: a razão de ser última das coisas tem que partir de um 
incondicionado, de uma lei que dê a lei a si mesma. Assim, tudo o que existe tem o seu 
fundamento último na única coisa que é incondicionada e que é precisamente a lei moral. 
Porque se tentarmos explicar as coisa de forma mecânica e segundo leis causais nunca 
encontramos nem um princípio nem um fim. Logo, quando olhamos a natureza bela e 
experimentamos a sensação de abstracção das relações causais nessa pura contemplação, 
então isso tem que estar ligado necessariamente ao fundamento moral e incondicionado 
de cada ser da natureza: «assim, foi antes de mais nada através desse interesse moral que 
irrompeu a atenção à beleza e aos fins da natureza (fortalecendo essa ideia), interesse que 
não atende às vantagens que possamos tirar da natureza».13 Com efeito «um fim terminal 
neles inscrito como dever e uma natureza sem um fim terminal na qual aquele fim se 
possa efectivar, encontra-se em contradição». A incondicionalidade da lei moral é de tal 
ordem que, mesmo que os seres humanos vivessem num mundo em que não se 
confrontassem com castigos ou recompensas, há sempre uma voz que lhes diz que algo 
está certo ou errado e que é independente do curso do mundo. Assim, mesmo que a 
natureza não tivesse seres organizados que nos sugerissem uma conformidade a fins da 
natureza para algo incondicionado, mesmo que isso assim fosse, essa incondicionalidade 
estaria lá. Logo, o facto de a natureza estar organizada confirma o fim moral/racional do 
ser humano, se bem que nãio seja necessária essa organização para o provar. 
Mas será que o sentimento estético não possui uma autonomia em relação à ética? E, para 
kant, seria a paisagem apenas uma combinação de objectos singulares qwue lmelhor 
estoimula o sentimento moral? Os argumentos para esse salto parecem no entanto 
demasiado forçados. Convém, em relação à natureza e ao que ela significa, recorrer a 
autores contemporâneos e bem entendedores do assunto, como é o caso de Hubert 
Reeves, nomeadamente a partir da sua obra «Malicorne: Reflexões de um observador da 
natureza». 
Nesta obra extremamente interessante, o autor, logo na introdução, pergunta: «Não será a 
magia da natureza ameaçada pela perfeição das explicações? Tudo isto são as soluções 
matemáticas das equações de Maxwell, perfeitamente previsívies e calculáveis. Terei eu 
que renunciar ao prazer estético, agora que porvara o fruto envenenado do 
conhecimento?»14. A bem dizer, à primeira vista, esta frase não entra em contradição com 
o pensamento de Kant, pois também kant considera que podemos experimentar o prazer 
estético desde que façamos a abstracção das relações causais e das leis empíricas que 
estão na origem daquela forma determinada daquele objecto. Mas a verdade é que Hubert 
reeves não quer fazer essa abstracção, não quer suspender o esse juízo, até porque ele 
próprio sabe que nunca mais poderá olhar a natureza ignorando toda a sua determinação 
12 CFJ, pg 385 
13 CFJ, pg 392 
14 RON, pg 19-21
causal em termos de relações matemáticas, físicas e biológicas. O que a obra deste autor 
nos vai revelando é que mesmo considerando toda essa determinação e explicação causal 
da natureza, a forma concreta como ela se nos apresenta hoje é fruto do acaso, na medida 
em que se poderia ter apresentado de muitas outras formas diferentes. Apoiado nas 
teorias modernas da física quântica e na teoria do caos (teoria que postula que um 
mínimo desvio nas condições iniciais vai corresponder a uma diferença enorme no ponto 
de chegada) o autor sustenta que as leis só parcialmente determinam o curso dos 
acontecimentos, pois em cada passo da formação da natureza há uma vasta paleta de 
possíveis, sendo que só um será realidade e é impossível determinar qual: «Do mesmo 
modo, poder-se-ia prever a geração dos átomos e das moléculas pela actividade nuclear e 
química, mas não a forma precisa dos desenhos de geada sobre a minha janela, nesta 
manhã de inverno»15. Ou, outro exemplo que é dado pelo autor, também se pode prever 
que as borboletas acasalam na primavera, mas é impossível determianr a priori a 
trajectória concreta dos seus recreios amorosos sobre os campos de colza. 
Na verdade o autor apenas reforça algumas das posições científicas contemporâneas: a 
natureza que temos depende de muitas leis interligadas, mas há efectivamente um factor 
de indeterminação, se quisermos um factor de liberdade, em que podemos dizer que 
aquilo que nos aparece à frente não tinha que ter aparecido. Aliás, em relação a este 
aspecto, estas teorias também entram em confronto com Hegel, que considera que a 
natureza não pode ser nem bela nem feia, na medida em que nela não há nenhuma dose 
de liberdade do espírito, e que, como tal, ela não poderia nunca ser de outra maneira («é o 
que é e pronto!»). Mas o que nos diz Hubert Reeves é que o facto de termos a natureza 
que temos hoje é fruto tanto de leis como do puro acaso, assim como o será a natureza do 
futuro. Isto significa que não há uma espécie de inteligência ou intencionalidade 
subreptícia da natureza que a vá orientando a produzir determinados produtos. Não existe 
nenhuma finalidade na natureza e o facto de estarmos aqui é também fruto desse acaso e 
dessas leis que conviveram durante milhões de anos16 
A verdade é que o próprio Kant apercebeu-se da dificuldade do problema e, na sua obra, 
afirma que «A natureza, como simples mecanismo, poderia ter formado as coisas de mil 
outras maneiras» e ainda que «Não podemos de modo nenhum demonstrar a 
impossibilidade de produção dos produtos naturais organizados através do simples 
mecanismo da natureza, porque não somos capazes de descortinar a infinita 
multiplicidade das leis particulares da natureza 309»17. A questão que se põe aqui é que é 
perfeitamente possível que hoje exista a complexidade das formas naturais que 
efectivamente existe, assim como também poderiam existir outras formas completamente 
diferentes. 
Estas reflexões de Hubert Reeves dão-nos um conceito fundamental para a nossa teoria 
da paisagem: é o conceito de imprevisibilidade ou de indeterminação, ou se, quisermos, 
de unicidade. Ou seja, cada flor, cada lago, cada montanha, cada ser humano, tudo o que 
15 RON, pg 128 
16 Esta é uma questão longe de estar resolvida. Há outros cientistas, como é o caso de Fred Hoyle, que 
consideram que a evolução tão rápida da natureza na terra não se pode explicar apenas pela teroia da 
evolução, a partir de mutações genéticas que são erros de reprodução e que dependem do puro acaso. Só 
que a conclusão deste autor é que então teria que existir Deus, para orientar e acelerar o processo de 
evolução. Mas...perguntamos, sendo o universo tão grande, não seria possível que, por acaso, num dos seus 
milhões de recantos as coisas avançassem de forma diferente, tal e qual como temos na Terra? 
17 CFJ, pg 309
é produto natural tem um grau de espontaneidade fundamental. Entre milhões de 
hipóteses originárias foi aquela forma concreta que surgiu, foi aquela paisagem concreta 
que surgiu. E não foi nem determinado nem previsto. É uma dávida no sentido em que 
vale por si. Não tem uma finalidade pré-esquematizada (independentemente de poder ser 
meio para outros produtos, mas nem isso estava previsto). 
Mas não teria kant já intuído algo parecido com esta ideia? A resposta é sim. Se 
atentarmos à distinção que Kant faz entre natureza e arte vamos chegar a um conceito de 
natureza muito próximo do que aqui expusémos. Com efeito, Kant considera a beleza da 
natureza como beleza livre e a beleza da arte como beleza aderente. A arte pressupõe um 
conceito prévio do objecto que vai ser desenhado, pintado ou esculpido, e a perfeição do 
objecto final segundo esse conceito. Kant diz mesmo que um produto da arte, para ser 
belo, tem que parecer natureza. Mas não tem que parecer natureza num sentido básico de 
imitação das figuras da natureza. Tem que parecer natureza precisamente pela sua 
espontaneidade, ou seja: «sem mostrar vestígio de que a regra tenha pairado diante do 
artista e tenha algemadoas faculdades do ânimo». Obviamente que a arte não é 
espontânea e que o génio que a produz tem que ter uma determinada técnica. Mas a 
questão é que no resultado final não pode transparecer qualquer resíduo de 
intencionalidade na sua produção, para que a sua beleza se realce como a da natureza. 
Na beleza da natureza a conformidade a fins é sem conceito determinado. E Kant dá-nos 
vários exemplos em que é essencial, para a beleza do acontecimento, que ele seja livre e 
espontâneo bortando da própria natureza e não uma farsa em que se tenta imitar a 
natureza. É por isso que as flores artificiais não são tão belas como as flores naturais, 
precisamente porque as primeiras não são espontâneas e correspondem a um produto que 
foi pré-concebido para embelezar e por isso foi feito com uma finalidade e essa finalidade 
é por sua vez é meio para o fim de agradar a vista dos seres humanos (entra assim na 
cadeia da causalidade e dos conceitos). Outro exemplo que Kant dá é o do canto dos 
pássaros, que não podemos submeter a nenhuma regra musical ao contrário do canto 
humano, que é estudado e pré-concebido com determinadas regras. 
Chegámos então ao fim deste percurso sobre a paisagem natural: para determinarmos o 
conceito desta basta termos em conta a questão da 
espontaneidade/imprevisibilidade/unicidade da natureza e dela excluirmos os objectos 
singulares que não nos podem dar uma visão total da espontaneidade nem a percepção de 
que nós mesmos somos essa espontaneidade. 
Na contemplação da paisagem, porque sentimos o que sentimos? Sentimos um prazer 
derivado do facto de nos encontrarmos (num frente a frente) com a indeterminibilidade 
que está na origem do universo. Na verdade o ser humano vive imerso nos meios e nos 
fins, nas coisas que servem para isto e nas coisas que dão jeito para aquilo, nas batatas 
que servem para comer e na madeira que dá para fazer uma cadeira. E tudo isto segundo 
regras determinadas. O ser humano, do camponês ao citadino, vive dentro do reino das 
finalidades e dos meios. A contemplação da paisagem permite o encontro face-a-face 
com a ausência de finalidade: «esta paisagem é bela porque não foi pensada por ninguém, 
surgiu como que por acaso, não obedece a um plano inicial, é pura espontaneidade. Não 
serve para nada, está ali, é grande, é tão grande, quase como o mundo. Está aberta para o 
céu, para o infinito que nos rodeia, e que infinito tão belo precisamente porque é único, 
porque podia ser outro mas é este e ninguém quis que fosse assim, aconteceu!». Mais
ainda: «Afinal este acaso também sou eu, tasmbém é a espécie humana, somos frutos de 
um acaso que nos constitui originariamente. Tanto stress, tantas coisas que servem para 
isto ou para aquilo, tantos planos que fazermos, e afinal na nossa origem encontra-se uma 
pura indeterminabilidade, um acaso que nos constitui, como parte desta natureza 
espontânea que somos. Afinal, também acontecemos! E podíamos perfeitamente não ter 
acontecido!» 
Assim, o sujeito humano, na contemplação da paisagem, funde-se com a própria 
espontaneidade que constitui a natureza e que o constitui a si também, como que se 
identiffica com uma das suas partes, que é precisamente toda aquela parte que tem que 
ver com o jogo sem finalidade. Note-se que perante o objecto estético singular, esta 
sensação não é possível da mesma maneira. Isto porque, apesar de haver aí um encontro 
com essa espontaneidade, esse encontro nunca se aproxima de um encontro com a 
totalidade da natureza e, por isso mesmo, também não é capaz de estabelecer a analogia 
connosco próprios como seres que fazem parte da natureza. Por isso, a vista, a 
profundidade e a panorâmica são essenciais para a contemplação de uma paisagem. Elas 
permitem a fusão com o todo natural e a consciência que fazemos parte desse todo. 
Hubert reeves afirma que «a beleza é uma experiência íntima entre o eu e o universo». Já 
Schiller afirmava que «só o belo é que gozamos como indivíduo e como espécie». Para 
Kant «o fundamento do prazer está na capacidade universal de comunicação do estado de 
ânimo na representação dada». Isto significa que o belo atira-nos para uma essência 
humana (comum a todos os seres humanos) que é precisamente a sua indeterminação 
natural (o facto de sermos como espécie um produto do acaso natural) mas a verdade é 
que esse sentimento só atinge uma dimensão realmente universal através da paisagem em 
que o todo da natureza se insinua. 
A fusão com a natureza, o sentimento de que nos fundimos com o natural e o acaso da 
natureza, já o tinha intuído Merlau-ponty. Este autor considera que a primeira experiência 
fenomenológica do ser humano não é a de uma consciência que voa sobre o mundo e que 
se assume como sujeito direccionado para diversos objectos. A primeira experiência é a 
experiência do corpo: antes de mais nada somos carne do mundo, não voamos sobre o 
mundo, contrariamente, estamos mergulhados no mundo e somos da mesma carne da 
carne do mundo. O sujeito é mundo. E é a partir daqui que podemos também melhor 
compreender a experiência estética: na paisagem o ser humano que a contempla encontra-se 
com a totalidade da parte natural que o constitui, não no sentido em que está 
determinado pela natureza, mas no sentido em que ele próprio é natureza, ele é mundo, 
ele, tal como aquelas planícies e montanhas, é fruto de um acaso sem finalidade. É 
também a partir desta questão da finalidade que podemos perceber uma passagem de 
Kant em que este se refere ao facto de muitas pessoas desejarem fugir para ilhas desertas 
para fugir aos males do mundo18. Ao contrário do que parece insinuar Kant 
posteriormente, o apelo destes locais não se dá porque a beleza daquela natureza 
simboliza a bondade absoluta e a própria lei moral longe das maldades humanas. Aquelas 
paisagens são belas porque estão completamente fora do mundo da finalidade e da 
determinibilidade. Ali, as coisas não estão estritamente organizadas como deveres, 
direitos, meios, fins,etc. Pois a natureza apresenta-se na sua mais pura inocência. As 
pessoas que recorrem a estes locais fogem precisamente às preocupações (de ter que fazer 
isto para conseguir aquilo, etc.) e também às más intenções (serem enganadas, conviver 
18 CFJ, pg 176
com a calúnia, etc,) porque a contemplação da natureza é precisamente a ausência de 
preocupação, a pura inocência, a ausência de finalidade. 
Atentemos agora, muito brevemente, naquilo que diz Alain Roger sobre a paisagem19. 
Este autor sustenta que a paisagem natural só aparece como bela para os citadinos, na 
medida em que constitui algo como uma cópia das obras de arte sobre a paisagem, obras 
de arte essas que os citadinos estão habituados a contemplar. Por outro lado, para os 
camponeses a natureza nunca é bela precisamente porque eles têm prioritariamente uma 
relação de utilidade com os objectos naturais. Pensamos haver aqui alguma coisa de 
verdade, mas pouca. Com efeito, e segundo a teoria que aqui expusémos, para um 
citadino que se dirige ao campo, e que contempla as águas e a terra à sua volta (ainda sem 
um ponto de vista panorâmico, digamos que apenas passeando por caminhos no campo 
que lhe não permitem nenhuma visão global), aqueles objectos singulares aparecem-lhe 
com o seu quê de indeterminibilidade, com o seu grau de espontaneidade que 
efectivamente têm. Este sentimento, obviamente que é quantitativa e qualitativamente 
ampliado a partir do momento em que ele se encontra num local a partir do qual pode 
vislumbrar algo como uma paisagem. E o que acontece com o camponês? Este, se passeia 
calmamente pelo campo sem possuir a tal visão globalizante obviamente olhará os 
objectos naturais singulares de uma forma diferente, na medida em que ele, para 
sobreviver, tem prioritariamente uma relação de utilidade com esses objectos. Assim, 
para ele, o aparecimento de um feto é sinal de que haverá por perto água e a possibilidade 
de aquelas terras serem férteis. Mas logo que ele se possa encontrar num ponto mais alto, 
a partir do qual possa vislumbrar um grande manto natural, então pensamos que a sua 
sensação será fundamentalmente estética. Aí, alheado da relação de utilidade com os 
objectos naturais singulares, propicia-se a visão de uma globalidade que lhe transmite a 
sua essência de espontaneidade, de encontro com o acaso que constitui a natureza e a si 
próprio20. 
Terminemos o estudo da paisagem natural com alguns exemplos concretos. Por que razão 
uma paisagem que combina muitos elementops diferentes e até contrastantes propicia um 
sentimento estético mais intenso? A este respeito Hubert Reeves diz: A extraordinária 
diversidade das formas, dos arranjos e dos comportamentos do universo contemporâneo, 
não existiam há 15000 milhões de anos»; « Neste contexto cósmico, a actividade das 
forças naturais pode tornar-se criadora (...) a inventividade da natureza é a chave para a 
espantosa diversidade de seres e formas no universo (...) inúmeras espécies de flores 
selvagens e borboletas tropicais no meio de um grande universo»21. O que aqui acontece 
é que o vislumbre panorâmico da ausência de finalidade, encontra uma grande 
diversidade. Ou seja, a ausência de finalidade não significa monotonia. O jogo livre da 
19 O que aqui se dirá é apenas uma abordagem muito superficial sobre o pensamento do autor em relação à 
paisagem, nomeadamente a partir de uma apresentação de um colega na aula, portanto, sem a 
fundamentação globalizante da totalidade da obra do autor sobre o tema («Court essai sur la paisage») 
20 Analogamente, o camponês que vai pela primeira vez à cidade e que, imerso no meio das ruas, vai 
contemplando as obras humanas singulares (objectos humanos singulares, como um prédio, um semáforo, 
etc.) e como não tem nenhuma relação de utilidade com esses objectos pode possuir um sentimento estético 
de encontro com a finalidade inerente ao ser humano: sente prazer ao se identificar com a espécie que tem 
um grande potencial de transformação e autonomização em relação à natureza. Se este camponês subir a 
um miradouro da cidade este sentimento é intensificado quantitativa e qualitativamente. Para o citadino, só 
a partir do miradouro é que esse sentimento estético é possível 
21 RON, pg. 135
natureza (sem preocupações) propicia-nos paisagens que mostram a positividade desse 
jogo como algo que pode disparar em diferentes direcções sem nenhum objectivo nem 
plano prévio. Isso obviamente amplia a força do encontro com o puro acaso que somos 
com a própria natureza. 
Olhemos agora para o deserto. Quando o contemplamos ele também é paisagem. Neste 
caso, é a antítese da paisagem da diversidade que explicámos, mas apenas aparentemente. 
Com efeito, o ser humano que olha o deserto entra em unidade com a ausência de 
finalidade ali patente e, considerando-se ele próprio como acaso, experimenta uma 
sensação de que aquela natureza que inventou por acaso planícies tão áridas e contrárias à 
vida é precisamente a mesma natureza que inventou a espécie humanae o sujeito que a 
contempla. Somos fruto do acaso tal como o deserto, sompos fruto de um jogo tal como o 
deserto, e este jogo é tão imprevisível e sem finalidade que pode dar origem a seres tão 
diferentes do ponto de vista do grau de complexidade (o ser humano e o deserto). 
Por outro lado, há também a paisagem da vida, parecida com a da diversidade. Quando 
olhamos muitas formas vivas enquadradas numa paisagem, o sentimento estético funda-se 
na possibilidade do próprio vivo a partir do não vivo, possibilidade essa que se não 
quer deixar pensar. Ou seja, analogamente à paisagem da diversidade, como é que o 
acaso fez da terra e da água algo que se organiza e estrutura e vive? Primeiramente o 
nosso pensamento não é atirado para a necessidade de uma finalidade que explique 
aquilo. Contrariuamente, em primeiro lugar, experimentamos uma estupefacção perante o 
que o acaso, sem objectivos, conseguiu fazer. Tudo o resto já é do nível da especulação. 
Por último, por que razão determinadas formas organizadas nos suscitam um maior 
prazer estético? É precisamente a consciência imediata de que essas formas são 
organizadas por mero acaso que nos desperta o sentimento estético.22 Gostamos 
precisamente do ordenado na natureza pela conciência de que continua a ser um ordenado 
sem finalidade, e que brotou por acaso do próprio caótico. 
2 – A paisagem urbana (e alguns casos intermédios). 
A paisagem urbana. O que é? Obviamente há muitos tipos de paisagem urbana, e aqui, 
para não nos estendermos demasiado, vamos considerar a paisagem urbana como uma 
espécie de protótipo de paisagem da obra humana em contraposição à natureza. Ora, tal 
como no caso da paisagem natural, analogamente, a paisagem urbana distingue-se do 
objecto estético singular e distingue-se também da totalidade da obra humana. Quando 
contemplamos uma criação da obra humana singular23, seja um prédio, ou mesmo uma 
rua, e se vivemos imersos nesse espaço, então é óbvio que a relação que estabelecemos 
com esses objectos é uma relação de utilidade, de meios para fins, etc (um prédio serve 
para viver, um semáforo para regular o trânsito, as pedras na calçada para evitar a lama, 
etc.). Por outro lado, a totalidade da obra humana apenas pode ser considerada pelo 
conhecimento e não numa intuição sensível. Desta forma, podemos encarar a paisagem 
22 «Por mais conforme a fins que agora pareçam estar organizadas a figura, a arquitectura er a inclinação 
das terras para o recolhiomento das chuvas (...) todavia, uma investigação mais rigorosa dessas mesmas 
coisas demonstra que elas aparecem simplesmente como o efeito ora de erupções vulcãnicas, ora de 
dilúvios, ora também de invasões do oceano», CFJ, pg 356 
23 Quando nos referimos a criações da obra humana singulares deixamos propositadamente de lado as obras 
de arte. Aliás, a temática da arte está afastada dos objectivos do presente trabalho
como uma espécie de essência da obra humana, uma porção de obra humna que aponta 
para a totalidade da obra humana. Isto porque, tal como na paisagem natural, para 
contemplarmos uma paisagem urbana, precisamos de ter um ponto de vista determinado, 
temos que nos situar num local elevado donde possamos vislumbrar toda uma cidade em 
profundidade e panorâmica. E o que vemos? Já não olhamos para cada objecto singular 
com a sua função particular. Precisamente o que nos assalta é um sentimento da força da 
determinibilidade humana, da capacidade do ser humano, para, transformando o acaso 
bruto da natureza, fazer vingar a sua parte humana que se encontra fora da natureza e que 
é a capacidade para colocar fins, planear, estruturar e combater o acaso que o possa 
apanhar desprevenido. Mas nesta contemplação há igualmente uma espécie de fusão em 
que o indivíduo se identifica com toda a espécie, num encontro com a capacidade 
determinadora e finalista da espécie humana. 
A este respeito importa recordar a opinião de alguns autores marxistas e do próprio Marx: 
«belo acontece quando temos a vivência sensível concreta da natureza que o ser humano 
encontrou e transformou à sua medida humana (...) da paisagem cultural criada pelo ser 
humano»24; «O objectivamente belo (...) surge sobre a base da apropriação da natureza 
numa e por uma formação social dada, no processo de autocriação do ser humano no seu 
próprio trabalho»25. Obviamente que aqui estes autores «puxam a brasa à sua sardinha» 
no sentido em que restringem o belo aos objectos e conjuntos de objectos que resultam da 
capacidade transformadora do homem numa luta constante contra a natureza. Mas se 
considerarmos estes pensamentos como um contributo para pensar outro tipo de belo que 
não o natural, então estamos no bom caminho. Na verdade, na paisagem urbana, ao 
contrário da paisagem natural em que nos deparamos com o encontro e uma identificação 
com a totalidade da natureza sem finalidade (o ser humano como fazendo parte da 
natureza) o ser humano está à parte da natureza, e o encontro é precisamente com aquilo 
que o distingue da natureza, ou seja, com a capacidade para colocar fins a si próprio e 
utilizar os meios para chegar a esses fins, através da sua força criadora organizada que 
transforma de forma racional a natureza. Mas a qualidade da contemplação é estética e 
não obedece a nenuma finalidade ou utilidade. Ou seja, o objecto estético é a própria 
finalidade mas esta não é contemplada de forma finalista. 
Mas aqui coloca-se uma questão: até que ponto é que o encontro com a determiação 
racional humana necessita da contemplação de um finitude aberta (na medida em que a 
paisagem urbana, tal como a natural se encontra aberta para o céu)? É que a finitude 
aberta em relação à paisagem natural é essencial para que se aponte para o infinito da 
totalidade da natureza (para que esta se insinue como totalidade). Mas no caso da 
paisagem urbana, a abertura da finitude é precisamente para o céu que é um elemento 
natural e não para a totalidade da obra humana (que é finita). Ora, aqui a finitude aberta 
parece aparecer apenas como um conceito auxiliar mas necessário, na medida em que não 
parece existir outra forma de ter uma visão global de uma cidade que não seja a partir de 
um ponto do qual se possa ver o céu. Talvez possamos imaginar uma daquelas cidades 
construídas dentro de naves espaciais (só nos filmes) ou uma cidade na Terra com um 
tecto altíssimo e que nos permita vislumbrar toda a sua grandeza e a força da 
determinibilidade humana sem que os elementos naturais se mostrem (esta nem nos 
filmes). Mas por outro lado, a verdade é que a presença do céu nos permite realçar a força 
24 Erhard John, in BCE 
25 Marx citado por Erhard John, in BCE
da finalidade humana contra o acaso que a rodeia, por um efeito de contraste. 
Analogamente, podemos imaginar que um verdadeiro oásis natural e imenso (e aberto 
para o céu) mas ladeado por cidades também imensas nos permite gozar muito mais o 
prazer estético da contemplação da ausência de finalidade precisamente por estar em 
contraste com a finalidade que o rodeia das construções humanas. Diferentemente, um 
jardim numa cidade, apesar de possuir alguma importância estética, nunca alcança o 
efeito da paisagem natural. Isto porque, por um lado, não existe aqui um ponto de vista 
panorâmico e em profundidade e aberto claramente para o céu que aponte para a 
totalidade da natureza. E por outro lado, um jardim é sempre natureza arranjada, tratada 
para determinados fins estéticos, e por isso perde toda a força da espontaneidade, do 
acaso, e da imprevisibilidade. 
As combinações entre paisagem humanizada e paisagem natural intensificam o prazer 
estético apenas e tão só se tanto a parte humanizada como a parte natural reenviarem 
ambas para totalidades correspondentes. Isto implica que tem que existir panorâmica 
(uma grande vista) e contraste, para que possa haver um encontro com cada uma das 
essências humanas (ou seja, a parte humanizada tem que se exprimir com força em 
contraste com uma parte natural que também se deve exprimir com força). Assim, o 
prazer estético proporcionado pela visão de terras lavradas ou com trigo plantado não é 
tão intenso quanto a contemplação da paisagem puramente natural ou do que a 
contemplação de uma cidade. Na verdade, os campos de trigo, se forem vistos na 
perspectiva da paisagem natural no sentido em que se tratam de produtos naturais, 
perdem toda a força da imprevisibvilidade e espontaneidade, já que existe uma finalidade 
concreta humana em plantar aqueles produtos. Por outro lado, se for visto a partir da 
perspectiva da paisagem humanizada, em que o ser humano mostra a sua força 
transformadora da natureza, esta paisagem não possui realmente muita intensidade, 
porque o grau de transformação da natureza é baixo e por isso não consegue reenviar para 
a totalidade da capacidade humana de transformação do acaso do natural num mundo 
ordenado de fins e meios. Exactamente o mesmo raciocínio se pode aplicar a todas 
aquelas paisagens campestres em que temos muita vegetação e também casas de campo 
com quintais arranjados e natureza transformada em baixo grau. 
Finalmente, terminamos este trabalho com um exemplo positivo em que tanto o encontro 
do ser humano com a totalidade da natureza, como o seu encontro com a sua cultura e 
capacidade transformadora da mesma natureza se encontram ambos presentes e se 
intensificam por esse contraste em que aparecem: é precisamente a vista de uma cidade 
como Lisboa, a partir de um miradouro da Graça, em que se contempla a força da cidade, 
rodeada pelo céu em cima e pelo rio enorme e larguíssimo em frente, sem esquecer a 
ponte que o atravessa. Aqui, tanto a grandeza dos elementos naturais reenviam para 
aquela ausência de finalidade global que também nos constitui, como a grandeza da 
cidade nos reenvia para a finalidade característica da totalidade da obra humana. Mas o 
rio ganha com a presença da cidade e a cidade ganha com a presença do rio. O rio ganha 
a sua força de espontaneidade porque está em contraste com toda a determinibilidade 
humana, e a cidade (com a ponte que galga o rio) ganha a sua força de determinação 
porque contrasta com o elemento natural que pretende contornar e dominar. 
E se vislumbrarmos um rio totalmente poluído? Aí a paisagem perde toda a sua força, 
porque a pureza do elemento do acaso (o rio) é anulada pela força da determinação da 
cidade. È por isso que a poluição, além de ser um problema de saúde pública, é uma
experiência estética negativa, em que a espontaneidade do elemento natural aparece como 
que amordaçada e transfigurada, deixando de ser elemento natural para ser elemento 
morto, pois nem sequer se pode encarar como uma finalidade ou um meio para um fim 
humano, mas apenas como uma consequência negativa da organização em meios e fins 
da sociedade humana. Portanto, o rio poluído já não é paisagem natural (já não é 
espontâneo, é fruto de uma actividade humana) mas também não é elemento humanizado 
(na medida em que a sua poluição não é nem meio nem fim para a actividade humana). É 
tão só elemento morto. Só que uma montanha rochosa também é elemento morto mas é 
bela precisamente porque possui a tal espontaneidade. Por isso o rio poluído não é bem 
elemento morto. É elemento mortificado! 
4 – Bibliografia 
«Crítica da Faculdade do juízo», Kant , Estudos Gerais, Série universitária-clássicos de 
filosofia (CFJ) 
«O mundo como vontade e representação», Schopenhauer, Arthur, Rés Editora 
«Malicorne – reflexões de um observador da natureza» Reeves, Hubert, Gradiva (RON) 
Elogio do Sensível» Matos Dias, Isabel, Litoral edições 
«A estética» Huisman, Denis Edições 70 
«O belo como categoria estética», Pina, Álvaro, Horizonte Universitário (BCE) 
Miguel Reis 23361

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Elementos para uma_teoria_da_paisagem[1]

O processo perceptivo caracteristicas principais
O processo perceptivo caracteristicas principaisO processo perceptivo caracteristicas principais
O processo perceptivo caracteristicas principaisMarcelo Anjos
 
O belo aos olhos da alma plotiniana dm 2.
O belo aos olhos da alma plotiniana dm 2.O belo aos olhos da alma plotiniana dm 2.
O belo aos olhos da alma plotiniana dm 2.Diana Mendes
 
Revolução kantiana
Revolução kantianaRevolução kantiana
Revolução kantianaJorge Barbosa
 
Hermenêutica Crítica da Razão Pura
Hermenêutica Crítica da Razão PuraHermenêutica Crítica da Razão Pura
Hermenêutica Crítica da Razão Puraduarteslide
 
LeandroFerreiraBarbosa Ser-no-mundo
LeandroFerreiraBarbosa Ser-no-mundoLeandroFerreiraBarbosa Ser-no-mundo
LeandroFerreiraBarbosa Ser-no-mundoLeandro Barbosa
 
Fenomenologia para filosofia
Fenomenologia para filosofiaFenomenologia para filosofia
Fenomenologia para filosofiaufmt
 
A epoca das_imagens_de_mundo
A epoca das_imagens_de_mundoA epoca das_imagens_de_mundo
A epoca das_imagens_de_mundoAlex Rocha
 
CONCEPÇÃO DE ESPAÇO EM KANT, DE ACORDO COM A SUA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDEN...
CONCEPÇÃO DE ESPAÇO EM KANT, DE ACORDO COM A SUA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDEN...CONCEPÇÃO DE ESPAÇO EM KANT, DE ACORDO COM A SUA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDEN...
CONCEPÇÃO DE ESPAÇO EM KANT, DE ACORDO COM A SUA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDEN...Jandresson Soares de Araújo
 
Estetica de Kant - AO USAR COMO FONTE POR FAVOR CITAR NAS REFERÊNCIAS
Estetica de Kant - AO USAR COMO FONTE POR FAVOR CITAR NAS REFERÊNCIASEstetica de Kant - AO USAR COMO FONTE POR FAVOR CITAR NAS REFERÊNCIAS
Estetica de Kant - AO USAR COMO FONTE POR FAVOR CITAR NAS REFERÊNCIASJandresson Soares de Araújo
 
Teoria da estrutura molar do tempo
Teoria da estrutura molar do tempoTeoria da estrutura molar do tempo
Teoria da estrutura molar do tempoOjr Bentes
 
Jiddu Krishnamurti - A Luz Que Não se Apaga.pdf
Jiddu Krishnamurti - A Luz Que Não se Apaga.pdfJiddu Krishnamurti - A Luz Que Não se Apaga.pdf
Jiddu Krishnamurti - A Luz Que Não se Apaga.pdfHubertoRohden2
 
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço..pdf
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço..pdfBACHELARD, Gaston. A poética do espaço..pdf
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço..pdfmaria367173
 
Between Authority and Interpretation
Between Authority and InterpretationBetween Authority and Interpretation
Between Authority and InterpretationAdvogadassqn
 
214035550 louis-lavelle-viver-na-verdade
214035550 louis-lavelle-viver-na-verdade214035550 louis-lavelle-viver-na-verdade
214035550 louis-lavelle-viver-na-verdadeMariGiopato
 
Da necessidade de um pensamento complexo
Da necessidade de um pensamento complexoDa necessidade de um pensamento complexo
Da necessidade de um pensamento complexoMarcos CAVALCANTI
 
Huberto Rohden Filosofia da Arte
Huberto Rohden   Filosofia da Arte Huberto Rohden   Filosofia da Arte
Huberto Rohden Filosofia da Arte HubertoRohden1
 

Semelhante a Elementos para uma_teoria_da_paisagem[1] (20)

O processo perceptivo caracteristicas principais
O processo perceptivo caracteristicas principaisO processo perceptivo caracteristicas principais
O processo perceptivo caracteristicas principais
 
O belo aos olhos da alma plotiniana dm 2.
O belo aos olhos da alma plotiniana dm 2.O belo aos olhos da alma plotiniana dm 2.
O belo aos olhos da alma plotiniana dm 2.
 
Revolução kantiana
Revolução kantianaRevolução kantiana
Revolução kantiana
 
Hermenêutica Crítica da Razão Pura
Hermenêutica Crítica da Razão PuraHermenêutica Crítica da Razão Pura
Hermenêutica Crítica da Razão Pura
 
LeandroFerreiraBarbosa Ser-no-mundo
LeandroFerreiraBarbosa Ser-no-mundoLeandroFerreiraBarbosa Ser-no-mundo
LeandroFerreiraBarbosa Ser-no-mundo
 
A atitude estética
A atitude estéticaA atitude estética
A atitude estética
 
Fenomenologia para filosofia
Fenomenologia para filosofiaFenomenologia para filosofia
Fenomenologia para filosofia
 
A epoca das_imagens_de_mundo
A epoca das_imagens_de_mundoA epoca das_imagens_de_mundo
A epoca das_imagens_de_mundo
 
CONCEPÇÃO DE ESPAÇO EM KANT, DE ACORDO COM A SUA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDEN...
CONCEPÇÃO DE ESPAÇO EM KANT, DE ACORDO COM A SUA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDEN...CONCEPÇÃO DE ESPAÇO EM KANT, DE ACORDO COM A SUA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDEN...
CONCEPÇÃO DE ESPAÇO EM KANT, DE ACORDO COM A SUA TEORIA ELEMENTAR TRANSCENDEN...
 
Estetica de Kant - AO USAR COMO FONTE POR FAVOR CITAR NAS REFERÊNCIAS
Estetica de Kant - AO USAR COMO FONTE POR FAVOR CITAR NAS REFERÊNCIASEstetica de Kant - AO USAR COMO FONTE POR FAVOR CITAR NAS REFERÊNCIAS
Estetica de Kant - AO USAR COMO FONTE POR FAVOR CITAR NAS REFERÊNCIAS
 
Teoria da estrutura molar do tempo
Teoria da estrutura molar do tempoTeoria da estrutura molar do tempo
Teoria da estrutura molar do tempo
 
Matéria e memória
Matéria e memóriaMatéria e memória
Matéria e memória
 
Entendendo a arte
Entendendo a arteEntendendo a arte
Entendendo a arte
 
Jiddu Krishnamurti - A Luz Que Não se Apaga.pdf
Jiddu Krishnamurti - A Luz Que Não se Apaga.pdfJiddu Krishnamurti - A Luz Que Não se Apaga.pdf
Jiddu Krishnamurti - A Luz Que Não se Apaga.pdf
 
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço..pdf
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço..pdfBACHELARD, Gaston. A poética do espaço..pdf
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço..pdf
 
O Homem, Deus e o Universo Cap XI
O Homem, Deus e o Universo   Cap XIO Homem, Deus e o Universo   Cap XI
O Homem, Deus e o Universo Cap XI
 
Between Authority and Interpretation
Between Authority and InterpretationBetween Authority and Interpretation
Between Authority and Interpretation
 
214035550 louis-lavelle-viver-na-verdade
214035550 louis-lavelle-viver-na-verdade214035550 louis-lavelle-viver-na-verdade
214035550 louis-lavelle-viver-na-verdade
 
Da necessidade de um pensamento complexo
Da necessidade de um pensamento complexoDa necessidade de um pensamento complexo
Da necessidade de um pensamento complexo
 
Huberto Rohden Filosofia da Arte
Huberto Rohden   Filosofia da Arte Huberto Rohden   Filosofia da Arte
Huberto Rohden Filosofia da Arte
 

Último

Biotecnologias e manejos de cultivares .
Biotecnologias e manejos de cultivares .Biotecnologias e manejos de cultivares .
Biotecnologias e manejos de cultivares .Geagra UFG
 
FATORES NATURAIS TERAPEUTICOS #NTF Lazzerini
FATORES NATURAIS TERAPEUTICOS #NTF LazzeriniFATORES NATURAIS TERAPEUTICOS #NTF Lazzerini
FATORES NATURAIS TERAPEUTICOS #NTF Lazzerinifabiolazzerini1
 
70mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm7367.pptx
70mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm7367.pptx70mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm7367.pptx
70mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm7367.pptxLEANDROSPANHOL1
 
608802261-Europa-Asia-Oceania-dominios-morfoclimaticos.pptx
608802261-Europa-Asia-Oceania-dominios-morfoclimaticos.pptx608802261-Europa-Asia-Oceania-dominios-morfoclimaticos.pptx
608802261-Europa-Asia-Oceania-dominios-morfoclimaticos.pptxLucianoPrado15
 
Apresentacao-Novo-Marco-do-Saneamento.pdf
Apresentacao-Novo-Marco-do-Saneamento.pdfApresentacao-Novo-Marco-do-Saneamento.pdf
Apresentacao-Novo-Marco-do-Saneamento.pdfEricaPrata1
 
COMO PLANEJAR AS CIDADES PARA ENFRENTAR EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS.pdf
COMO PLANEJAR AS CIDADES PARA ENFRENTAR EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS.pdfCOMO PLANEJAR AS CIDADES PARA ENFRENTAR EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS.pdf
COMO PLANEJAR AS CIDADES PARA ENFRENTAR EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS.pdfFaga1939
 
PUBERDADE E TIPOS DE REPRODUÇÃO EM CÃES.
PUBERDADE E TIPOS DE REPRODUÇÃO EM CÃES.PUBERDADE E TIPOS DE REPRODUÇÃO EM CÃES.
PUBERDADE E TIPOS DE REPRODUÇÃO EM CÃES.bellaavilacroche
 

Último (7)

Biotecnologias e manejos de cultivares .
Biotecnologias e manejos de cultivares .Biotecnologias e manejos de cultivares .
Biotecnologias e manejos de cultivares .
 
FATORES NATURAIS TERAPEUTICOS #NTF Lazzerini
FATORES NATURAIS TERAPEUTICOS #NTF LazzeriniFATORES NATURAIS TERAPEUTICOS #NTF Lazzerini
FATORES NATURAIS TERAPEUTICOS #NTF Lazzerini
 
70mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm7367.pptx
70mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm7367.pptx70mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm7367.pptx
70mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm7367.pptx
 
608802261-Europa-Asia-Oceania-dominios-morfoclimaticos.pptx
608802261-Europa-Asia-Oceania-dominios-morfoclimaticos.pptx608802261-Europa-Asia-Oceania-dominios-morfoclimaticos.pptx
608802261-Europa-Asia-Oceania-dominios-morfoclimaticos.pptx
 
Apresentacao-Novo-Marco-do-Saneamento.pdf
Apresentacao-Novo-Marco-do-Saneamento.pdfApresentacao-Novo-Marco-do-Saneamento.pdf
Apresentacao-Novo-Marco-do-Saneamento.pdf
 
COMO PLANEJAR AS CIDADES PARA ENFRENTAR EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS.pdf
COMO PLANEJAR AS CIDADES PARA ENFRENTAR EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS.pdfCOMO PLANEJAR AS CIDADES PARA ENFRENTAR EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS.pdf
COMO PLANEJAR AS CIDADES PARA ENFRENTAR EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS.pdf
 
PUBERDADE E TIPOS DE REPRODUÇÃO EM CÃES.
PUBERDADE E TIPOS DE REPRODUÇÃO EM CÃES.PUBERDADE E TIPOS DE REPRODUÇÃO EM CÃES.
PUBERDADE E TIPOS DE REPRODUÇÃO EM CÃES.
 

Elementos para uma_teoria_da_paisagem[1]

  • 1. Elementos para uma teoria da paisagem 1 – Introdução O objectivo deste trabalho é contribuir para uma elucidação daquilo que constitui a paisagem. Ele não pode ser mais do que uma contribuição e nunca poderá constituir uma fundamentação sistematizada daquilo que é a paisagem precisamente porque o conceito de paisagem é ele próprio escorregadio e envolto num relativismo histórico, cultural, social, subjectivo, etc. Nesse sentido, em primeiro lugar, e para de alguma forma tentar limitar o conceito de paisagem em algo que nos permita uma reflexão mais sólida e precisa sobre o assunto, nunca esquecendo que a teoria que aqui expusermos pode precisamente funcionar apenas como uma fundamentação de um determinado tipo de paisagem, ou como um caso particular de uma teoria mais geral. Assim, a paisagem aqui estudada é, grosso modo, a paisagem bela, seja ela paisagem natural ou paisagem urbana. Falamos então ora de paisagens de lagos, montanhas, vegetação variada, desertos, florestas, montes, ora de paisagens de cidades, com prédios, pontes e outras construções humanas. Não integramos no conceito de paisagem tudo o que se pode encontrar no campo visual do ser humano. Não incluímos os objectos singulares no conceito de paisagem, nem os espaços fechados, nem os espaços abertos que não correspondem às potencialidades do sentimento estético daquilo que incluímos no conceito de paisagem. Ou seja, quando dizemos que estudamos a paisagem bela, referimo-nos a um tipo de paisagem que sentimos como bela, isto é, associada a um sentimento estético. Não falamos da paisagem cognitiva, nem da paisagem cultural, nem da paisagem social, pois aqui, se é que existe algum sentimento estético, ele está antes de mais subordinado a outro tipo de sentimento que o precede, fundado em conhecimentos, na ciência, na sociologia ou na cultura. O que queremos então é ir à pureza da paisagem que aparece primeiramente como bela, desligada de toda a utilidade concreta que possa conter como meio para algum fim. Para este objectivo, recorreremos a Schopenhauer, mas principalmente a Kant. Será a partir da obra destes dois autores que procuraremos definir uma linha de raciocínio para fundamentar o conceito de paisagem, que na verdade nunca foi claramente e directamente tratado por estes filósofos. As suas relexões paradigmáticas sobre o belo e a natureza serão muito úteis para caminharmos para um conceito coerente de paisagem natural. Em oposição, e recorrendo a outros autores dispersos, analisaremos o conceito de paisagem urbana caracterizando (e comparando com a paisagem natural) o tipo de sentimento estético associado a ela. Finalmente, tentaremos também, a partir daquelas duas definições, enquadrar os casos intermédios (de mistura entre paisagem urbana e paisagem natural) e perceber em que medida é que neles se encontram sentimentos estéticos associados à combinação da paisagem natural com a paisagem urbana. 2 – A paisagem natural
  • 2. O que é a paisagem natural? Porque associamos beleza ao conceito de paisagem natural? Na verdade, se tentarmos investigar uma estética da paisagem a partir daquilo que constitui o belo natural, e nomeadamente em Kant, encontramos imediatamente um obstáculo: Kant concentra toda a sua teoria do belo em casos em que o objecto que se defronta diante do ser humano é um objecto singular. Muitos exemplos nos dá este autor: desde as flores belas, até aos colibris belos, passando por alguns crustáceos belos. Mas quando pensamos na paisagem, percebemos que ela não pode ser englobada numa teoria do objecto belo, como objecto singular e, se quisermos, como objecto isolado e que contém uma unidade e delimitação imediatamente discerníveis. Algo nos diz que o sentimento estético provocado pela contemplação da paisagem é diferente do sentimento estético provocado pela contemplação de uma flor. No caso da paisagem, falamos de um conjunto de objectos que parecem estar em harmonia, mas em que cada um dos quais possui uma autonomia identificável em relação ao todo, se bem que contribua para uma unidade do todo. No caso do belo individual, também podemos discernir partes do objecto que se interligam para formar a unidade do objecto, mas estas partes não possuem autonomia concreta, sendo sempre o objecto como um todo aquilo que predomina. A paisagem é por isso um conjunto antes de ser uma unidade. Conjunto de objectos ou conjunto de matéria. É um conjunto de matéria no caso, por exemplo de um deserto ou de um rio. Não falamos aqui de um grão de areia ou de um uma gota de água. É uma experiência em que o entendimento humano não se concentra sobre um objecto físico determinado como coisa, mas sim nnum conjunto de objectos ou num objecto complexo que se pode sempre dividir em partes constituidas exactamente pela mesma matéria1 Por outro lado, a paisagem aponta para lá da mera soma de objectos. Ela parece insinuar na sua aparência a própria identidade da natureza, ela acena para algo que a supera. Ou seja, como não se fecha num objecto singular, mas precisamente abre para um conjunto que é já de si um conjunto aberto no espaço e para o céu, ela evoca o infinito e a própria totalidade da natureza. Mas a paisagem não é a totalidade da natureza. Com a totalidade da natureza apenas podemos ter uma experiência cognitiva/racional, seja através do conhecimento que temos da natureza no planeta Terra, ou, de forma mais global, através do conhecimento que temos da natureza como um todo, da totalidade de estrelas, planetas, matéria, etc. Mas essa aprensão global dá-se apenas racionalmente e não numa percepção instantânea visual. Assim, a paisagem aparece como algo que nem é objecto estético singular, nem é a totalidade da natureza. O que a faz ser paisagem? Em primeiro lugar podemos responder a partir do lugar donde ela se contempla, donde ela se vê. Com efeito, a percepção da paisagem implica uma visão panorâmica que o sujeito experimenta a partir de um ponto do espaço privilegiado. Ou seja, o sujeito tem que ser capaz de contemplar a partir de uma determinada posição que lhe permita um extenso e profundo campo visual. Capaz de lhe desviar a atenção de pequenos objectos particulares, realçando a sensação de um encontro com uma totalidade limitada (mas que tende para a ilimitação) em que se reconhecem objectos singulares que compõem o conjunto, mas em que é impossível estabelecer uma relação privilegiada com qualquer objecto particular. Se esta condição (de profundidade do campo visual) não for satisfeita, o sujeito não se consegue desligar 1 Se pegarmos no conceito de substância de Aristóteles percebemos melhor o que aqui se quer dizer: para Aristóteles, a água, o fogo, etc não são substâncias, mas sim homeomarias. Quando dizemos «uma água» referimo-nos a uma garrafa de água, e a garrafa de água essa sim é substância.
  • 3. do alheamento utilitário com que se relaciona com os objectos particulares e fica remetido ou para uma estética do belo individual ou para uma integração dos elementos naturais como meios para uma finalidade qualquer. É então assim que nos deparamos com um conceito de extrema pertinência utilizado por Rosario Assunto para definir a paisagem: o conceito de «finitude aberta». A paisagem é uma finitude (uma limitação que acaba até onde o horizonte nos deixa ir) aberta para o infinito do céu. O próprio céu é uma infinitude que se deixa limitar num dos seus lados pela paisagem. A paisagem implica uma delimitação mas uma abertura para a totalidade que a envolve, um aceno para o ilimitado. Note-se que a finitude aberta precisa da profundidade e da panorâmica alargada do olhar, pois aquilo que vislumbramos que está ao ar livre e que, prostrado diante de nós a apenas poucos metros de distância, nos impede um olhar mais profundo e apenas nos deixa pressentir o céu por cima mas nunca de forma a contar significativamente para o enquadramento global, então isso não é paisagem. E não é paisagem porque nesse caso a finitude não está aberta apesar de estar ao ar livre. Precisamente porque o carácter de abertura é da responsabilidade do sujeito que olha, do sujeito que não fixa a vista no objecto singular diante de si, mas que solta a vista para a totalidade que se apresenta aberta e como que atirada e estendida para o céu como fronteira. Assim, uma flor em espaço aberto não é uma finitude aberta na medida em que concentramos o olhar simplesmente na flor. Da mesma forma, um conjunto de arbustos muito altos diante de nós em espaço aberto não é uma finitude aberta no caso em que não o enquadramos no horizonte ou no enquadramento do céu. O conceito de finitude aberta que defendemos não é meramente físico (algo como ar livre) mas sim uma experiência mental em que a abertura não só está lá, como é parte fundamental daquilo que vemos. A abertura é abertura para o infinito, para o ilimitado. É abertura para a totalidade da própria natureza. Por isso, a paisagem natural, não sendo nem um objecto estético singular, nem a própria totalidade da natureza, pode ser encarada como porção de natureza, ou, melhor ainda, como uma pequena essência de natureza. Ou seja, ela não é simplesmente uma parte da natureza (como é o objecto estético singular), é precisamente uma parte da natureza com capacidade para representar toda a natureza, um pequeno protótipo da natureza. Na verdade, é uma parte da natureza que acena e aponta para a totalidade e infinitude da natureza. Mas como caracterizar o sentimento estético que podemos ter diante da contemplação de uma pequena essência de natureza? Para chegarmos a respostas fundamentadas teremos que percorrer um caminho. Vejamos o que podemos descobrir em Kant sobre o objecto natural belo. Ora, para kant, o sentimento estético que experimentamos quando contemplamos um objecto belo, é um sentimento livre. É uma experiência completamente contemplativa e desinteressada. Não interessa a utilidade que o objecto possa ter para nós (nesse caso o objecto seria «bom» mas não belo), não interessa a sensação física que experimentamos (nesse caso o objecto seria agradável, como é no caso do paladar, do olfacto, ou das cores vivas que apenas intensificam mas não definem a beleza que é puramente formal e não material), nem sequer interessa as relações que o objecto estabelece com outros objectos da natureza (independentemente da utilidade para nós) do ponto de vista dos conceitos e relações causais estabelecidas pelo entendimento. Daqui se vê que para a contemplação
  • 4. do belo, também não está em causa a existência do objecto no sentido em que não há um interesse na existência do objecto. Há apenas uma sensação serena de pura contemplação não fundada em nehuma materialidade do objecto mas apenas no modo como a sua forma é acolhida pelas faculdades do conhecimento humano. Só interessa o acontecimento de olhar para o objecto tal e qual ele se nos apresenta abstraindo de tudo o que pode mover os sentidos (do ponto de vista da nossa determinação como seres da natureza) ou a razão (seja a moralidade ou a questão da utilidade do objecto). Mas o que é que acontece então que está no fundamento do prazer sentido? Se não é um prazer nem da razão nem dos sentidos, de onde vem? Vem precisamente da diferente mobilidade que é dada à faculdade da imaginação na contemplação do belo. No uso para o entendimento a imaginação está limitada para corresponder ao conceito daquele. No Belo, a imaginação, além de concordar com o conceito do entendimento fornece matéria nova, que obriga o entendimento a pegar nela também. Ou seja, quando o objecto não é encarado de forma estética ou não tem potencialidade para conferir um prazer estético ao sujeito é porque a faculdade da imaginação está subordinada à faculdade do entendimento. Ou seja, a imaginação dá-nos precisamentre numa intuição sensível o conceito que já possuímos do objecto no entendimento. Contrariamente, no sentimento estético do belo, a faculdade da imaginação entra em jogo com o entendimento e, na sua liberdade, concorda com o entendimento na sua conformidade a leis. Neste caso, não existe nenhuma subordinação mas sim um jogo de igual para igual, em que o objecto não aparece como algo contrário ao entendimento (ele é conceptualizável, delimitado na sua forma) mas também não aparece como simples determinação intuida visualmente de um conceito do entendimento. A faculdade da imaginação não está subjugada ao entendimento, no sentido de servir um conceito seu. Ela joga livremente, toma iniciativa, mas sem resvalar na pura fantasia, pois está ligada a uma forma concreta que o entendimento ali também entende. Assim, o fundamento do prazer estético não recai sobre nenhum conceito objectivo mas simplesmente funda-se neste jogo das faculdades. Por isso o prazer estético não resulta directamente de eventuais qualidades intrínsecas dos objectos estéticos (como sejam ou a perfeição geométrica ou o carácter atractivo às sensações), pois se assim fosse fundar-se-ia na concordância com um conceito do entendimento e não precisamente sobre o livre jogo em que o entendimento é obrigado a entrar com a imaginação. Não há nem sensação nem um conceito determinado que determinem o prazer do belo. A beleza não está por isso nas próprias figuras mas na conformidade a fins subjectiva sem conceito determinado. Desta forma, não podemos determinar a beleza do objecto a partir das suas características objectivas (a qualidade da forma, como a simetria, a perfeição, etc.), o que significa que não podemos decidir a priori quais é que são os objectos belos. Só experimentando e sentindo o jogo das faculdades no interior do sujeito é que se sente o prazer do belo. Há assim uma conformidade a fins subjectiva sem um fim determinado: «a beleza da natureza é apresentação da conformidade a fins formal (subjectiva) segundo as suas leis particulares (empíricas) para a nossa faculdade do conhecimento»2 o que é bastante diferente de se considerar uma conformidade a fins real e objectiva da própria natureza para o sujeito. Ou seja, a natureza não tem como finalidade sua agradar ao sujeito no prazer estético do belo. O que acontece, sem intencionalidade objectiva da natureza, é que o objecto natural é conforme a fins com a relação das faculdades do conhecimento entre si (imaginação e entendimento). Podemos então dizer que o juízo de 2 CFJ, pg 79
  • 5. gosto funda-se sobre um conceito, mas que não é um conceito determinado (ou então não seria livre e haveria conformidade a fins objectiva). O conceito a que nos referimos é o conceito do fundamento em geral da conformidade a fins subjectiva da natureza para a faculdade do juízo. Esse conceito geral e indeterminado não nos permite conhecer ou provar nada acerca do objecto, e ele é apenas accionado de forma acidental e espontânea a partir das formas produzidas pela natureza segundo leis particulares. Mas a verdade é que Kant nunca cai numa espécie de subjectivismo relativo. Na verdade, ao negar a possibilidade de definir quais os objectos belos a priori a partir de propriedades objectivas e determinadas dos mesmos, não quer isso dizer que o «belo» se situe no terreno do agradável, caso em que determinados objectos provocam sensações num sujeito e sensações diferentes noutro sujeito. Na verdade, Kant sustenta que no juízo de gosto sobre o belo há uma universalidade sem conceitos, que, claramente, se distingue de uma mera universalidade lógica, que é sempre necessária e objectiva. Ou seja, o sujeito, quando afirma que algo é belo, exige o acordo dos outros sujeitos, pressupõe que os outros sujeitos também tenham que considerar aquele objecto como belo. E a verdade é que esta pressuposição de universalidade funda igualmente o próprio prazer estético, na medida em que o facto de o sujeito compreender que aquele prazer estético não é uma mera contingência dos seus sentidos mas que possui uma força muito maior que pode ser comunicada e exigida aos outros sujeitos confere imediatamente um maior prazer, com uma força muito superior, à contemplação estética do belo. Esta análise do belo parece sempre ficar incompleta, pois resta sempre uma pergunta: afinal, porque é que certos objectos são belos e outros não? Porque é que na presença de certos objectos podemos experimentar um jogo das faculdades do conhecimento e na presença de outros objectos isso não acontece? Não terá que haver um fundamento objectivo nos objectos com que nos deparamos na contemplação estética? Kant não se cansa de afirmar que não existe uma conformidade a fins objectiva da natureza, como se ela tivesse construído certas formas para o nosso próprio comprazimento. Ou seja, não há um favor que a natureza nos mostre , mas sim um favor no modo pelo qual acolhemos a natureza, pondo a faculdade da imaginação em liberdade. Mas aqui importa recordar uma afirmação de Goethe: «Há algo de conforme a uma lei desconhecida no objecto que corresponde a algo de conforme a uma lei desconhecida no sujeito». E que lei desconecida é essa? Que lei do objecto natural, que tipo de objecto natural, o que é que existe no objecto natural que está de acordo com o jogo das faculdades no sujeito? Kant ainda nos diz que tem que haver uma proporção determinada, «na qual a relação interna para a vivificação (...) é a mais propícia para a faculdade do ânimo»3. Quer dizer, temos que considerar algum elemento objectivo no objecto que suscite a relação correcta das faculdades do conhecimento. Há duas afirmações de Kant que vão neste sentido: «Para o belo da natureza temos que procurar um fundamento fora de nós»4 e «o belo reclama a apresentação de uma certa qualidade do objecto»5. E que qualidade é esta? Não se trata concerteza da perfeição geométrica ou da simetria, pois aí o que acontece é um acordo da natureza com fins subjectivos estabelecidos em conceitos determinados (a forma perfeita redonda coincide com o conceito de perfeição do círculo que o sujeito já tem em si). No caso do belo natural, não há conceito que decida. No 3 CFJ, pg.130 4 CFJ, pg 140 5 CFJ, pg 164
  • 6. entanto, tem que haver alguma espécie de fundamento objectivo: Kant argumenta que esse fundamento repoiusa sobre a forma do objecto, numa espécie de concordância da multiplicidade com a unidade do objecto. É o mais longe a que conseguimos chegar neste momento: os objectos naturais que podemos considerar belos são aqueles em que há uma determinada relação da composição da multiplicidade do próprio objecto na sua própria unidade, composição essa que suscita o livre jogo da faculdade da imaginação com a faculdade o entendimento. Será que podemos exportar esta concepção do belo para a paisagem? Será que podemos considerar que o prazer estético da paisagem está ligado à tal unidade da multiplicidade da forma que suscita o livre jogo da nossa faculdade da imaginação? Muito dificilmente.. Isto porque a diversidade das paisagens belas é tal, que fazer repousar o fundamento da beleza sobre uma determinada forma ou um determinado tipo de forma parece deixar modalidades da paisagem de fora. É preciso encontrar um elemento objectivo ou então mais forte e que esteja para lá da mera forma, que esteja para onde nos atira a forma, para algo mais geral e que não se deixa objectivar simplesmente como qualidades de um objecto. Procuraremos então outras pistas na análise do sublime em Kant. Para Kant, o sentimento estético do sublime encontra-se perante objectos que podem ser informes (ao contrário do belo, em que possuem sempre uma forma determinada) sendo geralmente objectos colossais (enormes) ou então situações em que a natureza demonstra toda a sua força. Mas convém frisar que o que é sublime não é o objecto mas simplesmente a grandeza do estado de ânimo no interior do sujeito. Acrescente-se também que o sublime como que inaugura uma relação de ruptura com a natureza. Kant considera dois tipos de sublime: o matematicamente sublime e o dinamicamente sublime. O matematicamente sublime é um sentimento que experimentampos perante objectos colossais, objectos tão grandes que exigem o máximo esforço da nossa faculdade da imaginação na avaliação da grandeza desse objecto. E o que acontece é que esses objectos colossais aparecem como que acima de todo o padrão de medida dos sentidos, como que desafiando a faculdade da imaginação que não os consegue apreender numa intuição única, mas convidando a razão a intervir e a conferir validade e legitimidade a esses objectos. Ou seja, como que o sublime matemático é um sentimento gerado pelo facto de a grandeza daqueles objectos ser compreendida mediante ideas da razão, mas em que todo o esforço da faculdade da imaginação não consegue intuir e fazer corresponder em si essas ideias da razão. A faculdade da imaginação entra em conflito com a razão. O dinamicamente sublime é um sentimento que experimentamos face a acontecimentos naturais onde a natureza mostra uma força brutal. Mas este sentimento não tem nada a ver com o medo: aliás, só quando o sujeito se encontra em segurança na contemplação de espectáculos daquele tipo é que pode efectivamente experimentar o sentimento do dinamicamente sublime. Na verdade, aqui o sentimento do sublime é originado pelo facto de a força daquele acontecimento desafiar a própia faculdade da imaginação, que efectivamente apreende algo que ameaça as estruturas do sujeito (nomeadamente a sensibilidade), mas podendo o sujeito permanecer superior a essa ameaça, como que se afimando por cima da sua própria constituição natural sempre vulnertável à fúria da natureza. Na verdade, o sublime é um sentimento de que possuímos uma razão pura independente, que está acima da nossa determinação sensível. Ou seja, o sentimento do
  • 7. sublime torna-nos intuível a superioridade das nossas faculdades de conhecimento sobre a faculdade máxima da sensibilidade. O respeito que sentimos pela força da natureza é também um respeito pela ideia de humanidade no sujeito, ou seja, o respeito pela nossa capacidade de estar perante tal brutalidade mantendo-nos acima dela. Há uma espécie de impotência física em simultâneo com a consciência de que o seu destino do sujeito está acima da natureza. Que relação podemos fazer com a paisagem? O que é que no sentimento do sublime acrescenta alguma coisa em relação ao sentimento do belo perante o objecto individual que possamos exportar para a consideração da paisagem? A resposta é-nos dada pelas palavras de Denis Huisman: «Em kant, o sublime é um estado subjectivo que obriga a pensar a natureza na sua totalidade, sem que possamos realizar tal apresentação». Ou seja, quando colocámos a paisagem entre o objecto estético singular e a totalidade da natureza, encontramos aqui o segundo termo dessa colocação. No sublime, aponta-se para a totalidade da natureza, sem contudo poder apresentar essa totalidade (algo que, como já vimos atrás, apenas pode ser feito racionalmente, cognitivamente). Assim, no sentimento do sublime, o ser humano é obrigado a pensar a totalidade da natureza, aquela totalidade da natureza que também determina a sua parte natural, mas à qual ele se opõe. O sublime em Kant mostra como o sentimento estético como que parte o homem nas suas duas partes: espiritual e natural, encarando cada uma delas como um todo, ou seja, o ser humano individual, perante o sublime, encontra-se a representar toda a espécie, seja enquanto ser natural , seja enquanto ser racional. Mas porque razão é ainda insuficiente este conceito para a teoria da paisagem? Precisamente porque a paisagem que tentamos fundamentar e explicar neste trabalho não se coaduna com um sentimento do tipo do sublime mas muito mais com um sentimento do tipo do belo. Na contemplação da paisagem não existe um conflito das faculdades, existe precisamente um estado de harmonia. A paisagem tipo não é algo como uma tempestade ou como um grande abismo. Contrariamente, é a paz de espírito presenciada pela contemplação de vegetação, montes, vales e lagos, que nos suscita um sentimento de prazer em harmonia com o que contemplamos. Continuamos então à procura. Mudemos então de autor e recorramos a outro grande pensador que foi Schopenhauer, para a partir da sua estética compreendermos melhor o que poderá ser a paisagem. Schopenhauer é um autor romântico e como tal vai apregoar uma unidade originária anterior a toda a partição entre sujeito e objecto. Para este autor, a divisão entre sujeito e objecto só acontece no mundo dos fenómenos, no mundo da representação. Na verdade, por detrás do mundo da representação está algo que é comum tanto ao sujeito como ao objecto, no fundo, tudo é constiuído originalmente a partir do mesmo. Esse algo é a vontade. A vontade (que é aquilo que existe realmente, digamos como que a «coisa em si») manifesta-se em fenómenos no mundo da representação. Schopenhauer considera a estética como uma espécie de conhecimento intuitivo que permite precisamente a contemplação da coisa em si, ou que permite uma aproximação à contemplação da vontade. Ou seja, a estética é também uma forma de conhecimento especial, pois é a partir dela que podemos intuir a unidade originária anterior a sujeito e objecto. Quando olhamos um objecto que está no mundo da representação, para que nos aproximemos daquilo que ele realmente é (e não das razões por que ele é), temos de
  • 8. experimentar uma situação de conhecimento que é antes de mais estética e que nos permite contemplar aquele objecto como belo, a partir da contemplação da ideia do objecto (independente do mundo da causalidade característico da representação) que é qualquer coisa que ainda está no mundo da representação mas que já está mais próximo da pura vontade. Na verdade, a ideia contemplada retira o objecto do mundo da causalidade (causalidade que possa ter para nós ou com outros objectos) e também do mundo do espaço e do tempo. Mas essa idea ainda não é a vontade porque ainda não estamos na fase em que se elimina o binómio sujeito/objecto, na verdade ainda há um sujeito que intui um objecto. Na contemplação do belo experimentamos dois tipos de prazer interligados. O primeiro é o prazer subjectivo, em que o sujeito se torna um puro sujeito do conhecimento liberto da sua própria vontade. Ou seja, quando contemplamos o belo, abstraímo-nos das relações de causalidade e dos efeitos que o objecto possa ter para a nossa vontade (algo como a abstracção da utilidade do objecto em Kant), exercendo o conhecimento de forma pura, intuitiva, e completamente independente da vontade. O segundo tipo de prazer é o prazer objectivo, que acontece precisamente quando, já libertos da nossa vontade, retiramos o objecto das teras de causalidade que ele tece com os outros objectos, contemplando apenas a pura ideia do objecto que corresponde a um determinado tipo de objectivação da vontade. Ou seja, para nos aproximarmos da contemplação da vontade (a objectivação dela em ideia naquele objecto) temos que nos libertar da nossa própria vontade, e, sem estarmos subjugados por ela, contemplarmos a sua idea que nos aparece no objecto diante de nós. Quando isto acontece, o sujeito como que se torna espelho do objecto. Estando todas as relações causais ausentes, o sujeito como que se funde no próprio objecto e torna-se ele próprio apenas o objecto que contempla (nada mais o define ou determina naquela posiçãpo de pura abstracção e contemplação). No entender de Schopenhauer, qualquer objecto pode ser belo, dependendo apenas da forma como o olhamos. Assim, para encontrarmos alguma especificidade da paisagem, concentremo-nos naquilo que é o sublime para este autor, de forma a tentarmos encontrar aí elementos que nos possam aproximar mais da paisagem. Ora, mas para Schopenhauer, o sublime é apenas uma intensificação (contudo decisiva) do sentimento estético já presente na contemplação do belo. O sublime de Schopenhauer aplica-se mais ou menos aos mesmos casos do que o sublime de Kant, ou seja, grandes planícies áridas ou tempestades, isto é, acontecimentos em que a natureza demonstra todo o seu perigo e força contra o sujeito humano. No sublime também podemos distinguir o prazer subjectivo do prazer objectivo6. No prazer subjectivo, o sujeito deve libertar-se da sua vontade (ou seja, das relações de causalidade que o objecto tem com ele, o perigo que representa, ertc.). Mas esta libertação é mais difícil do que no belo, pois ela exige um grande esforço na medida em que o sujeito está perante um perigo ameaçador e como tal tem mais dificuldade em abstrair-se do poder causal que aquele objecto pode ter para si. Mas aqui o prazer subjectivo é bastante superior ao do belo, na medida em que apesar do perigo, o sujeito consegue libertar-se disso e contemplar puramente o objecto. Por outro lado, o prazer objectivo também é claramente maior, na medida em que na contemplação do sublime o sujeito intui mais claramente a vontade na medida em que ela se manifesta 6 Esta distinção, tanto no bleo como no sublime, não é dada explicitamente por Schopenhauer. Ela é o resultado de uma interpretação e reorganização que se pode fazer a partir dos vários sentimentos que o autor descreve na contemplação estética
  • 9. com uma força muito superior. Uma força tão poderosa, que parece vir da vontade como totalidade do mundo. É que enquanto que no belo, o sujeito se sente numa unidade com a ideia do objecto, no caso do sublime ele sente-se unido ao próprio mundo inteiro como manifestação da vontade. A unidade entre sujeito e objecto é aqui muito mais forte porque possui uma força de universalidade: unificamo-nos com aquele espectáculo, identificamo-nos com todo o poder de manifestação da vontade do mundo, e o sujeito torna-se também essa vontade universal, funde-se nela.7 Não há dúvida que a análise do belo e do sublime em Schopenhauer nos fornecem elementos fundamentais para a teoria da paisagem e que representam um salto em relação a Kant. Com efeito, Schopenhauer considera que na experiência estética existe uma fusão entre o sujeito e o objecto, fusão essa que no caso do sublime dá-se com toda a natureza, ou com toda a vontade que determina a natureza como representação. Como em Kant, existe aqui um elemento que nos interessa: a natureza é encarada na sua totalidade. Mas, contrariamente a Kant, há um determinado momento no sublime de Schopenhauer (e que Nietcshe depois aproveitará para fazer a apologia da estética e não caír no pessimismo de Schopenhauer) em que a relação com a totalidade da natureza não é de conflito mas precisamente de fusão e identificação, a consciência que o ser humano é feito do mesmo material de que é feita a totalidade da natureza. Há aqui aquela harmonia que procurávamos para fugir ao sublime Kantiano sustentado apenas no conflito. Daí que o sublime em Schopenhauer nos aproxime mais da paisagem que queremos estudar. No entanto, estas concepções ainda não nos satisfazem, na medida em que em Schopenhauer a paisagem tipo não encontra ainda o seu lugar. Em primeiro lugar, qualquer objecto individual pode ser belo e em segundo lugar, o sentimento de unificação com a totalidade da natureza é só conseguido em casos extremos como as tempestades, etc. Será que a paisagem é um caso mais fraco do sublime de Schopenhauer? Não nos parece. Entretanto, regressemos a Kant para ver se encontramos razões mais profundas para o sentimento do belo que não se limitem a um mero jogo de faculdades completamente ocasional e caído quase que do nada. Na primeira parte da crítica da faculdade do juízo, Kant percebe que há algo para lá do mero jogo das faculdades que se manifesta na contemplação do belo natural (algo que não acontece no belo artístico). Assim como que de repente, Kant diz que o belo é o símbolo do bom. Na verdade, ele só vai desenvolver esta tese na segunda parte da crítica. De qualquer forma, ainda na primeira crítica, kant diz-nos também que existe um interesse imediato e intelectual pela beleza da natureza, pelo qual não apenas o produto natural apraz segundo a sua forma, mas também apraz a sua existência, na medida em que essa existência parece aparecer como a garantia do tal moralmente bom. Kant diz mais: diz que as belezas da natureza são as mais profícuas para a ligação com ideas 7 Não é este o local adequado para falar da ética de Schopenhauer, e por isso paramos por aqui a análise do sublime nesse autor. É que em seguida, a evoluição do sentimento do sublime vai ter uma perspectiva ética que não nos interessa: o sujeito, depois de ser um só com a vontade do mundo, percebe que afinal tudo é uma i.lusão e que aquilo não passa do mundo da representação, percebe em seguida que o que está por trás desse mundo da representação é uma vontade cega e sôfrega, que se satisfaz de forma absolutamente irracional e que origina todo o sofrimento do mundo, propondo finalmente a anulação da vontade numa perspectiva budista. Mas a forma como Schopenhauer utiliza a sua estética apenas como meio para defender uma ética (na medida em que é opela estética que o ser humano pode conhecer intuitivamente a origem do mundo como pura vontade cega e irracional) não cabe aqui neste trabalho
  • 10. morais e desata a fazer relações entre as cores existentes na natureza e as ideias morais que se lhes associam. Tudo isto parece estranho e talvez um salto demasiado grande. Concentremo-nos então na seguinte afirmação de Kant: «o gosto torna possível a passagem do atractivo dos sentidos ao interesse moral habitual, sem um salto demasiado violento»8, isto porque o gosto como que ensina a encontrar um comprazimento livre em objectos dos sentidos. Parece então que Kant desistiu de procurar o tal elemento objectivo da natureza como natureza que fundamente o prazer estético. Na verdade, assumindo que o prazer estético é subjectivo, e como no prazer estético não nos interessa a utilidade do objecto e as suas relações causais mas apenas a pura contemplação, fácil é dar o salto para dizer que afinal olhar um objecto da natureza é quase como contemplar a nossa própria ideia moral, como se na verdade, todo o mundo estivesse dirigido e finalizado para o homem e para o seu interesse moral que começa desde o princípio da criação. Porque se o belo não tem origem em leis da natureza, em em nada de objectivo nas próprias coisas da natureza (tráta-se de um interesse livre) então temos que procurar a origem desse sentimento em nós próprios e nomeadamente naquilo que constitui o fim último da nossa existência: o destino moral. Afinal, a estética, tal como em Schopenhauer parece estar a perder a sua autonomia para se fazer depender da própria ética. Mas, a partir da segunda parte da crítica, enfrentemos Kant nesta questão, e veremos como este enfrentamento nos vai permitir chegar mais perto do conceito de paisagem. Será que existe uma finalidade na natureza ou trata-se tudo de mero acaso? Esta é a grande questão a que uma crítica da faculdade do juízo teleológica vai tentar responder. Na verdade, tudo o que vemos na natureza existe por acaso ou existe ordenada e organizadamente, num sistema em que tudo tem o seu lugar próprio e fundamental? Será que existe uma finalidade da própria natureza inscrita na natureza, ou uma finalidade exterior a ela, ou nenhuma delas? Em relação ao primeiro caso tratar-se-ia de uma conformidade a fins objectiva da própria natureza. Mas, como diz inicialmente Kant, «que as coisas da natureza sirvam umas às outras como meios para fins, e que a sua possibilidade se resuma a isso, é algo que não podemos postular».9 Efectivamente, é-nos impossível dizer que as ervas só existem para que os herbívoros as possam comer, que os herbívoros só existem para que os predadores não morram à fome, ou que a água só existe para permitir o crescimento das plantas e dos outros seres vivos. Neste sentido é-nos impossível determinar que existe uma conformidade a fins externa de cada produto da natureza, no sentido em que esse produto exista sempre como utilidade para outro. Isto porque é-nos sempre possível imaginar que aquele produto natural surgiu de um acaso das milhões de combinações possíveis da natureza. Mas Kant não se contenta com esta falta de certezas, Através da faculdade de juízo teleológica, abre as portas a uma consideração da natureza a partir de uma intencionalidade: «podemos apenas submeter a natureza a princípios de observação segundo a analogia como a causalidade segundo fins, sem por isso pretender explicá-la através daqueles»10. Não é, bem vistas as coisas, uma intencionalidade explícita (como se 8 CFJ, pg 264 9 CFJ, pg 267 10 CFJ, pg 274
  • 11. a natureza fosse uma força inteligente) mas uma intencionalidade subjectiva e que se ajuste ao modo de conceptualizar do entendimento humano. Será a causalidade um mecanismo cego, em que se compreende as leis que originam os produtos naturais, mas que não se compreende por que razão se originam naquela forma concreta, sem qualqer finalidade específica? Kant pensa que não. E o ponto de partida para assim pensar nasce da observação de determinados seres naturais organizados: ou seja, há diversos seres vivos complexos que revelam uma conformidade a fins interna, na medida em que são causa e efeito de si mesmos, e em que as suas partes se ligam para a unidade do todo. Basta pensarmos em qualquer ser vivo, cuja sua causa é um membro da mesma espécie e cujo efeito será também um membto da mesma espécie. Por outro lado, a organização interna destes seres mostra que nada é em vão e que todos os órgãos se dispõem para funções essenciais vitais. Por outro lado, existe uma resistência destes seres ao desaparecimento. Qualquer ser organizado tenta vingar e permanecer vivo, e pelo menos enquanto espécie vai conseguindo: é como uma força formadora que se propaga a si própria e que não é explicável apenas pelo mecanismo da natureza. A dificuldade de aceitarmos o facto de que estes seres extremamente organizados são fruto do acaso resulta também do facto de que vivemos pouco tempo e que as grandes transformações precisam de milhares de anos. Na verdade, o ser humano está apenas habituado a confrontar-se com a generatio homonyna (seres que se reproduzem a partir de seres da mesma espécie) e não com a geração heteronyma.(seres que se reproduzem a partir de outros seres diferentes). Mas mesmo considerando este facto, Kant sustenta que esta finalidade interna destes seres tem uma razão de ser e não aconteceu como que por acaso. E vai mais longe ao estender a conformidade a fins interna de cada ser ao todo da natureza. Ou seja, a natureza é como que um todo que possui uma finalidade própria e em que cada elemento contribui para essa finalidade. Neste tipo de concepções Kant é coerente com a crítica da razão pura. Ele diz-nos claramente que, se na verdade existe um mundo dos fenómenos e um mundo das coisas em si que para nós é inacessível, por que raio é que devemos resistir à ideia de que aparentemente existe apenas um mecanismo cego na natureza mas que no fundo, por trás disso, existe uma intencionalidade conforme a fins da natureza? Mas kant coloca então um supra-sensível que temos que pôr na base da natureza e que funciona como uma espécie de inteligência que a vai comandando. E qual é então o apregoado fim da natureza como um todo? Para Kant é precisamente o ser humano. Na verdade, existe uma forma de olhar o ser humano que não o coloca imediatamente como fim terminal da natureza: ele é tão só mais um elemento natural que até equilibra o ecossistema em determinadas fases. Mas, há outra forma de olhar para ele: na verdade, o ser humano é o único ser que é capz de colocar fins a si próprio. «O homem, enquanto único ser que possui entendimento (faculdade de voluntariamente colocar a si mesmo fins) é o fim terminal como ser fora da natureza»11. Na verdade, o ser humano é o único que pode colocar este tipo de questões à natureza, e, antes de mais, ele é o único que possui uma independência em relação à natureza, independência essa que tem o seu cerne na sua lei moral incondicionada e livre da natureza, e como tal, se a natureza tem que ter um fim terminal (porque aqui subjectivamente no modo de entender humano todos os factos devem ser meios ou fins) então esse fim será um fim moral: «pois se a criação toda ela possui um fim terminal, então não podemos pensá-la de outro modo 11 CFJ, pg 360
  • 12. senão que ela tem que entrar em acordo com um fim moral (o único que torna possível um conceito de um fim)»12. Temos assim que a finalidade última da natureza é o próprio homem enquanto subordinado a leis morais, e, como reconhecemos o homem como ser moral, temos razão para considerar o mundo como um todo coerente segundo fins e como sistema de causas finais. Tudo se passa assim: a razão de ser última das coisas tem que partir de um incondicionado, de uma lei que dê a lei a si mesma. Assim, tudo o que existe tem o seu fundamento último na única coisa que é incondicionada e que é precisamente a lei moral. Porque se tentarmos explicar as coisa de forma mecânica e segundo leis causais nunca encontramos nem um princípio nem um fim. Logo, quando olhamos a natureza bela e experimentamos a sensação de abstracção das relações causais nessa pura contemplação, então isso tem que estar ligado necessariamente ao fundamento moral e incondicionado de cada ser da natureza: «assim, foi antes de mais nada através desse interesse moral que irrompeu a atenção à beleza e aos fins da natureza (fortalecendo essa ideia), interesse que não atende às vantagens que possamos tirar da natureza».13 Com efeito «um fim terminal neles inscrito como dever e uma natureza sem um fim terminal na qual aquele fim se possa efectivar, encontra-se em contradição». A incondicionalidade da lei moral é de tal ordem que, mesmo que os seres humanos vivessem num mundo em que não se confrontassem com castigos ou recompensas, há sempre uma voz que lhes diz que algo está certo ou errado e que é independente do curso do mundo. Assim, mesmo que a natureza não tivesse seres organizados que nos sugerissem uma conformidade a fins da natureza para algo incondicionado, mesmo que isso assim fosse, essa incondicionalidade estaria lá. Logo, o facto de a natureza estar organizada confirma o fim moral/racional do ser humano, se bem que nãio seja necessária essa organização para o provar. Mas será que o sentimento estético não possui uma autonomia em relação à ética? E, para kant, seria a paisagem apenas uma combinação de objectos singulares qwue lmelhor estoimula o sentimento moral? Os argumentos para esse salto parecem no entanto demasiado forçados. Convém, em relação à natureza e ao que ela significa, recorrer a autores contemporâneos e bem entendedores do assunto, como é o caso de Hubert Reeves, nomeadamente a partir da sua obra «Malicorne: Reflexões de um observador da natureza». Nesta obra extremamente interessante, o autor, logo na introdução, pergunta: «Não será a magia da natureza ameaçada pela perfeição das explicações? Tudo isto são as soluções matemáticas das equações de Maxwell, perfeitamente previsívies e calculáveis. Terei eu que renunciar ao prazer estético, agora que porvara o fruto envenenado do conhecimento?»14. A bem dizer, à primeira vista, esta frase não entra em contradição com o pensamento de Kant, pois também kant considera que podemos experimentar o prazer estético desde que façamos a abstracção das relações causais e das leis empíricas que estão na origem daquela forma determinada daquele objecto. Mas a verdade é que Hubert reeves não quer fazer essa abstracção, não quer suspender o esse juízo, até porque ele próprio sabe que nunca mais poderá olhar a natureza ignorando toda a sua determinação 12 CFJ, pg 385 13 CFJ, pg 392 14 RON, pg 19-21
  • 13. causal em termos de relações matemáticas, físicas e biológicas. O que a obra deste autor nos vai revelando é que mesmo considerando toda essa determinação e explicação causal da natureza, a forma concreta como ela se nos apresenta hoje é fruto do acaso, na medida em que se poderia ter apresentado de muitas outras formas diferentes. Apoiado nas teorias modernas da física quântica e na teoria do caos (teoria que postula que um mínimo desvio nas condições iniciais vai corresponder a uma diferença enorme no ponto de chegada) o autor sustenta que as leis só parcialmente determinam o curso dos acontecimentos, pois em cada passo da formação da natureza há uma vasta paleta de possíveis, sendo que só um será realidade e é impossível determinar qual: «Do mesmo modo, poder-se-ia prever a geração dos átomos e das moléculas pela actividade nuclear e química, mas não a forma precisa dos desenhos de geada sobre a minha janela, nesta manhã de inverno»15. Ou, outro exemplo que é dado pelo autor, também se pode prever que as borboletas acasalam na primavera, mas é impossível determianr a priori a trajectória concreta dos seus recreios amorosos sobre os campos de colza. Na verdade o autor apenas reforça algumas das posições científicas contemporâneas: a natureza que temos depende de muitas leis interligadas, mas há efectivamente um factor de indeterminação, se quisermos um factor de liberdade, em que podemos dizer que aquilo que nos aparece à frente não tinha que ter aparecido. Aliás, em relação a este aspecto, estas teorias também entram em confronto com Hegel, que considera que a natureza não pode ser nem bela nem feia, na medida em que nela não há nenhuma dose de liberdade do espírito, e que, como tal, ela não poderia nunca ser de outra maneira («é o que é e pronto!»). Mas o que nos diz Hubert Reeves é que o facto de termos a natureza que temos hoje é fruto tanto de leis como do puro acaso, assim como o será a natureza do futuro. Isto significa que não há uma espécie de inteligência ou intencionalidade subreptícia da natureza que a vá orientando a produzir determinados produtos. Não existe nenhuma finalidade na natureza e o facto de estarmos aqui é também fruto desse acaso e dessas leis que conviveram durante milhões de anos16 A verdade é que o próprio Kant apercebeu-se da dificuldade do problema e, na sua obra, afirma que «A natureza, como simples mecanismo, poderia ter formado as coisas de mil outras maneiras» e ainda que «Não podemos de modo nenhum demonstrar a impossibilidade de produção dos produtos naturais organizados através do simples mecanismo da natureza, porque não somos capazes de descortinar a infinita multiplicidade das leis particulares da natureza 309»17. A questão que se põe aqui é que é perfeitamente possível que hoje exista a complexidade das formas naturais que efectivamente existe, assim como também poderiam existir outras formas completamente diferentes. Estas reflexões de Hubert Reeves dão-nos um conceito fundamental para a nossa teoria da paisagem: é o conceito de imprevisibilidade ou de indeterminação, ou se, quisermos, de unicidade. Ou seja, cada flor, cada lago, cada montanha, cada ser humano, tudo o que 15 RON, pg 128 16 Esta é uma questão longe de estar resolvida. Há outros cientistas, como é o caso de Fred Hoyle, que consideram que a evolução tão rápida da natureza na terra não se pode explicar apenas pela teroia da evolução, a partir de mutações genéticas que são erros de reprodução e que dependem do puro acaso. Só que a conclusão deste autor é que então teria que existir Deus, para orientar e acelerar o processo de evolução. Mas...perguntamos, sendo o universo tão grande, não seria possível que, por acaso, num dos seus milhões de recantos as coisas avançassem de forma diferente, tal e qual como temos na Terra? 17 CFJ, pg 309
  • 14. é produto natural tem um grau de espontaneidade fundamental. Entre milhões de hipóteses originárias foi aquela forma concreta que surgiu, foi aquela paisagem concreta que surgiu. E não foi nem determinado nem previsto. É uma dávida no sentido em que vale por si. Não tem uma finalidade pré-esquematizada (independentemente de poder ser meio para outros produtos, mas nem isso estava previsto). Mas não teria kant já intuído algo parecido com esta ideia? A resposta é sim. Se atentarmos à distinção que Kant faz entre natureza e arte vamos chegar a um conceito de natureza muito próximo do que aqui expusémos. Com efeito, Kant considera a beleza da natureza como beleza livre e a beleza da arte como beleza aderente. A arte pressupõe um conceito prévio do objecto que vai ser desenhado, pintado ou esculpido, e a perfeição do objecto final segundo esse conceito. Kant diz mesmo que um produto da arte, para ser belo, tem que parecer natureza. Mas não tem que parecer natureza num sentido básico de imitação das figuras da natureza. Tem que parecer natureza precisamente pela sua espontaneidade, ou seja: «sem mostrar vestígio de que a regra tenha pairado diante do artista e tenha algemadoas faculdades do ânimo». Obviamente que a arte não é espontânea e que o génio que a produz tem que ter uma determinada técnica. Mas a questão é que no resultado final não pode transparecer qualquer resíduo de intencionalidade na sua produção, para que a sua beleza se realce como a da natureza. Na beleza da natureza a conformidade a fins é sem conceito determinado. E Kant dá-nos vários exemplos em que é essencial, para a beleza do acontecimento, que ele seja livre e espontâneo bortando da própria natureza e não uma farsa em que se tenta imitar a natureza. É por isso que as flores artificiais não são tão belas como as flores naturais, precisamente porque as primeiras não são espontâneas e correspondem a um produto que foi pré-concebido para embelezar e por isso foi feito com uma finalidade e essa finalidade é por sua vez é meio para o fim de agradar a vista dos seres humanos (entra assim na cadeia da causalidade e dos conceitos). Outro exemplo que Kant dá é o do canto dos pássaros, que não podemos submeter a nenhuma regra musical ao contrário do canto humano, que é estudado e pré-concebido com determinadas regras. Chegámos então ao fim deste percurso sobre a paisagem natural: para determinarmos o conceito desta basta termos em conta a questão da espontaneidade/imprevisibilidade/unicidade da natureza e dela excluirmos os objectos singulares que não nos podem dar uma visão total da espontaneidade nem a percepção de que nós mesmos somos essa espontaneidade. Na contemplação da paisagem, porque sentimos o que sentimos? Sentimos um prazer derivado do facto de nos encontrarmos (num frente a frente) com a indeterminibilidade que está na origem do universo. Na verdade o ser humano vive imerso nos meios e nos fins, nas coisas que servem para isto e nas coisas que dão jeito para aquilo, nas batatas que servem para comer e na madeira que dá para fazer uma cadeira. E tudo isto segundo regras determinadas. O ser humano, do camponês ao citadino, vive dentro do reino das finalidades e dos meios. A contemplação da paisagem permite o encontro face-a-face com a ausência de finalidade: «esta paisagem é bela porque não foi pensada por ninguém, surgiu como que por acaso, não obedece a um plano inicial, é pura espontaneidade. Não serve para nada, está ali, é grande, é tão grande, quase como o mundo. Está aberta para o céu, para o infinito que nos rodeia, e que infinito tão belo precisamente porque é único, porque podia ser outro mas é este e ninguém quis que fosse assim, aconteceu!». Mais
  • 15. ainda: «Afinal este acaso também sou eu, tasmbém é a espécie humana, somos frutos de um acaso que nos constitui originariamente. Tanto stress, tantas coisas que servem para isto ou para aquilo, tantos planos que fazermos, e afinal na nossa origem encontra-se uma pura indeterminabilidade, um acaso que nos constitui, como parte desta natureza espontânea que somos. Afinal, também acontecemos! E podíamos perfeitamente não ter acontecido!» Assim, o sujeito humano, na contemplação da paisagem, funde-se com a própria espontaneidade que constitui a natureza e que o constitui a si também, como que se identiffica com uma das suas partes, que é precisamente toda aquela parte que tem que ver com o jogo sem finalidade. Note-se que perante o objecto estético singular, esta sensação não é possível da mesma maneira. Isto porque, apesar de haver aí um encontro com essa espontaneidade, esse encontro nunca se aproxima de um encontro com a totalidade da natureza e, por isso mesmo, também não é capaz de estabelecer a analogia connosco próprios como seres que fazem parte da natureza. Por isso, a vista, a profundidade e a panorâmica são essenciais para a contemplação de uma paisagem. Elas permitem a fusão com o todo natural e a consciência que fazemos parte desse todo. Hubert reeves afirma que «a beleza é uma experiência íntima entre o eu e o universo». Já Schiller afirmava que «só o belo é que gozamos como indivíduo e como espécie». Para Kant «o fundamento do prazer está na capacidade universal de comunicação do estado de ânimo na representação dada». Isto significa que o belo atira-nos para uma essência humana (comum a todos os seres humanos) que é precisamente a sua indeterminação natural (o facto de sermos como espécie um produto do acaso natural) mas a verdade é que esse sentimento só atinge uma dimensão realmente universal através da paisagem em que o todo da natureza se insinua. A fusão com a natureza, o sentimento de que nos fundimos com o natural e o acaso da natureza, já o tinha intuído Merlau-ponty. Este autor considera que a primeira experiência fenomenológica do ser humano não é a de uma consciência que voa sobre o mundo e que se assume como sujeito direccionado para diversos objectos. A primeira experiência é a experiência do corpo: antes de mais nada somos carne do mundo, não voamos sobre o mundo, contrariamente, estamos mergulhados no mundo e somos da mesma carne da carne do mundo. O sujeito é mundo. E é a partir daqui que podemos também melhor compreender a experiência estética: na paisagem o ser humano que a contempla encontra-se com a totalidade da parte natural que o constitui, não no sentido em que está determinado pela natureza, mas no sentido em que ele próprio é natureza, ele é mundo, ele, tal como aquelas planícies e montanhas, é fruto de um acaso sem finalidade. É também a partir desta questão da finalidade que podemos perceber uma passagem de Kant em que este se refere ao facto de muitas pessoas desejarem fugir para ilhas desertas para fugir aos males do mundo18. Ao contrário do que parece insinuar Kant posteriormente, o apelo destes locais não se dá porque a beleza daquela natureza simboliza a bondade absoluta e a própria lei moral longe das maldades humanas. Aquelas paisagens são belas porque estão completamente fora do mundo da finalidade e da determinibilidade. Ali, as coisas não estão estritamente organizadas como deveres, direitos, meios, fins,etc. Pois a natureza apresenta-se na sua mais pura inocência. As pessoas que recorrem a estes locais fogem precisamente às preocupações (de ter que fazer isto para conseguir aquilo, etc.) e também às más intenções (serem enganadas, conviver 18 CFJ, pg 176
  • 16. com a calúnia, etc,) porque a contemplação da natureza é precisamente a ausência de preocupação, a pura inocência, a ausência de finalidade. Atentemos agora, muito brevemente, naquilo que diz Alain Roger sobre a paisagem19. Este autor sustenta que a paisagem natural só aparece como bela para os citadinos, na medida em que constitui algo como uma cópia das obras de arte sobre a paisagem, obras de arte essas que os citadinos estão habituados a contemplar. Por outro lado, para os camponeses a natureza nunca é bela precisamente porque eles têm prioritariamente uma relação de utilidade com os objectos naturais. Pensamos haver aqui alguma coisa de verdade, mas pouca. Com efeito, e segundo a teoria que aqui expusémos, para um citadino que se dirige ao campo, e que contempla as águas e a terra à sua volta (ainda sem um ponto de vista panorâmico, digamos que apenas passeando por caminhos no campo que lhe não permitem nenhuma visão global), aqueles objectos singulares aparecem-lhe com o seu quê de indeterminibilidade, com o seu grau de espontaneidade que efectivamente têm. Este sentimento, obviamente que é quantitativa e qualitativamente ampliado a partir do momento em que ele se encontra num local a partir do qual pode vislumbrar algo como uma paisagem. E o que acontece com o camponês? Este, se passeia calmamente pelo campo sem possuir a tal visão globalizante obviamente olhará os objectos naturais singulares de uma forma diferente, na medida em que ele, para sobreviver, tem prioritariamente uma relação de utilidade com esses objectos. Assim, para ele, o aparecimento de um feto é sinal de que haverá por perto água e a possibilidade de aquelas terras serem férteis. Mas logo que ele se possa encontrar num ponto mais alto, a partir do qual possa vislumbrar um grande manto natural, então pensamos que a sua sensação será fundamentalmente estética. Aí, alheado da relação de utilidade com os objectos naturais singulares, propicia-se a visão de uma globalidade que lhe transmite a sua essência de espontaneidade, de encontro com o acaso que constitui a natureza e a si próprio20. Terminemos o estudo da paisagem natural com alguns exemplos concretos. Por que razão uma paisagem que combina muitos elementops diferentes e até contrastantes propicia um sentimento estético mais intenso? A este respeito Hubert Reeves diz: A extraordinária diversidade das formas, dos arranjos e dos comportamentos do universo contemporâneo, não existiam há 15000 milhões de anos»; « Neste contexto cósmico, a actividade das forças naturais pode tornar-se criadora (...) a inventividade da natureza é a chave para a espantosa diversidade de seres e formas no universo (...) inúmeras espécies de flores selvagens e borboletas tropicais no meio de um grande universo»21. O que aqui acontece é que o vislumbre panorâmico da ausência de finalidade, encontra uma grande diversidade. Ou seja, a ausência de finalidade não significa monotonia. O jogo livre da 19 O que aqui se dirá é apenas uma abordagem muito superficial sobre o pensamento do autor em relação à paisagem, nomeadamente a partir de uma apresentação de um colega na aula, portanto, sem a fundamentação globalizante da totalidade da obra do autor sobre o tema («Court essai sur la paisage») 20 Analogamente, o camponês que vai pela primeira vez à cidade e que, imerso no meio das ruas, vai contemplando as obras humanas singulares (objectos humanos singulares, como um prédio, um semáforo, etc.) e como não tem nenhuma relação de utilidade com esses objectos pode possuir um sentimento estético de encontro com a finalidade inerente ao ser humano: sente prazer ao se identificar com a espécie que tem um grande potencial de transformação e autonomização em relação à natureza. Se este camponês subir a um miradouro da cidade este sentimento é intensificado quantitativa e qualitativamente. Para o citadino, só a partir do miradouro é que esse sentimento estético é possível 21 RON, pg. 135
  • 17. natureza (sem preocupações) propicia-nos paisagens que mostram a positividade desse jogo como algo que pode disparar em diferentes direcções sem nenhum objectivo nem plano prévio. Isso obviamente amplia a força do encontro com o puro acaso que somos com a própria natureza. Olhemos agora para o deserto. Quando o contemplamos ele também é paisagem. Neste caso, é a antítese da paisagem da diversidade que explicámos, mas apenas aparentemente. Com efeito, o ser humano que olha o deserto entra em unidade com a ausência de finalidade ali patente e, considerando-se ele próprio como acaso, experimenta uma sensação de que aquela natureza que inventou por acaso planícies tão áridas e contrárias à vida é precisamente a mesma natureza que inventou a espécie humanae o sujeito que a contempla. Somos fruto do acaso tal como o deserto, sompos fruto de um jogo tal como o deserto, e este jogo é tão imprevisível e sem finalidade que pode dar origem a seres tão diferentes do ponto de vista do grau de complexidade (o ser humano e o deserto). Por outro lado, há também a paisagem da vida, parecida com a da diversidade. Quando olhamos muitas formas vivas enquadradas numa paisagem, o sentimento estético funda-se na possibilidade do próprio vivo a partir do não vivo, possibilidade essa que se não quer deixar pensar. Ou seja, analogamente à paisagem da diversidade, como é que o acaso fez da terra e da água algo que se organiza e estrutura e vive? Primeiramente o nosso pensamento não é atirado para a necessidade de uma finalidade que explique aquilo. Contrariuamente, em primeiro lugar, experimentamos uma estupefacção perante o que o acaso, sem objectivos, conseguiu fazer. Tudo o resto já é do nível da especulação. Por último, por que razão determinadas formas organizadas nos suscitam um maior prazer estético? É precisamente a consciência imediata de que essas formas são organizadas por mero acaso que nos desperta o sentimento estético.22 Gostamos precisamente do ordenado na natureza pela conciência de que continua a ser um ordenado sem finalidade, e que brotou por acaso do próprio caótico. 2 – A paisagem urbana (e alguns casos intermédios). A paisagem urbana. O que é? Obviamente há muitos tipos de paisagem urbana, e aqui, para não nos estendermos demasiado, vamos considerar a paisagem urbana como uma espécie de protótipo de paisagem da obra humana em contraposição à natureza. Ora, tal como no caso da paisagem natural, analogamente, a paisagem urbana distingue-se do objecto estético singular e distingue-se também da totalidade da obra humana. Quando contemplamos uma criação da obra humana singular23, seja um prédio, ou mesmo uma rua, e se vivemos imersos nesse espaço, então é óbvio que a relação que estabelecemos com esses objectos é uma relação de utilidade, de meios para fins, etc (um prédio serve para viver, um semáforo para regular o trânsito, as pedras na calçada para evitar a lama, etc.). Por outro lado, a totalidade da obra humana apenas pode ser considerada pelo conhecimento e não numa intuição sensível. Desta forma, podemos encarar a paisagem 22 «Por mais conforme a fins que agora pareçam estar organizadas a figura, a arquitectura er a inclinação das terras para o recolhiomento das chuvas (...) todavia, uma investigação mais rigorosa dessas mesmas coisas demonstra que elas aparecem simplesmente como o efeito ora de erupções vulcãnicas, ora de dilúvios, ora também de invasões do oceano», CFJ, pg 356 23 Quando nos referimos a criações da obra humana singulares deixamos propositadamente de lado as obras de arte. Aliás, a temática da arte está afastada dos objectivos do presente trabalho
  • 18. como uma espécie de essência da obra humana, uma porção de obra humna que aponta para a totalidade da obra humana. Isto porque, tal como na paisagem natural, para contemplarmos uma paisagem urbana, precisamos de ter um ponto de vista determinado, temos que nos situar num local elevado donde possamos vislumbrar toda uma cidade em profundidade e panorâmica. E o que vemos? Já não olhamos para cada objecto singular com a sua função particular. Precisamente o que nos assalta é um sentimento da força da determinibilidade humana, da capacidade do ser humano, para, transformando o acaso bruto da natureza, fazer vingar a sua parte humana que se encontra fora da natureza e que é a capacidade para colocar fins, planear, estruturar e combater o acaso que o possa apanhar desprevenido. Mas nesta contemplação há igualmente uma espécie de fusão em que o indivíduo se identifica com toda a espécie, num encontro com a capacidade determinadora e finalista da espécie humana. A este respeito importa recordar a opinião de alguns autores marxistas e do próprio Marx: «belo acontece quando temos a vivência sensível concreta da natureza que o ser humano encontrou e transformou à sua medida humana (...) da paisagem cultural criada pelo ser humano»24; «O objectivamente belo (...) surge sobre a base da apropriação da natureza numa e por uma formação social dada, no processo de autocriação do ser humano no seu próprio trabalho»25. Obviamente que aqui estes autores «puxam a brasa à sua sardinha» no sentido em que restringem o belo aos objectos e conjuntos de objectos que resultam da capacidade transformadora do homem numa luta constante contra a natureza. Mas se considerarmos estes pensamentos como um contributo para pensar outro tipo de belo que não o natural, então estamos no bom caminho. Na verdade, na paisagem urbana, ao contrário da paisagem natural em que nos deparamos com o encontro e uma identificação com a totalidade da natureza sem finalidade (o ser humano como fazendo parte da natureza) o ser humano está à parte da natureza, e o encontro é precisamente com aquilo que o distingue da natureza, ou seja, com a capacidade para colocar fins a si próprio e utilizar os meios para chegar a esses fins, através da sua força criadora organizada que transforma de forma racional a natureza. Mas a qualidade da contemplação é estética e não obedece a nenuma finalidade ou utilidade. Ou seja, o objecto estético é a própria finalidade mas esta não é contemplada de forma finalista. Mas aqui coloca-se uma questão: até que ponto é que o encontro com a determiação racional humana necessita da contemplação de um finitude aberta (na medida em que a paisagem urbana, tal como a natural se encontra aberta para o céu)? É que a finitude aberta em relação à paisagem natural é essencial para que se aponte para o infinito da totalidade da natureza (para que esta se insinue como totalidade). Mas no caso da paisagem urbana, a abertura da finitude é precisamente para o céu que é um elemento natural e não para a totalidade da obra humana (que é finita). Ora, aqui a finitude aberta parece aparecer apenas como um conceito auxiliar mas necessário, na medida em que não parece existir outra forma de ter uma visão global de uma cidade que não seja a partir de um ponto do qual se possa ver o céu. Talvez possamos imaginar uma daquelas cidades construídas dentro de naves espaciais (só nos filmes) ou uma cidade na Terra com um tecto altíssimo e que nos permita vislumbrar toda a sua grandeza e a força da determinibilidade humana sem que os elementos naturais se mostrem (esta nem nos filmes). Mas por outro lado, a verdade é que a presença do céu nos permite realçar a força 24 Erhard John, in BCE 25 Marx citado por Erhard John, in BCE
  • 19. da finalidade humana contra o acaso que a rodeia, por um efeito de contraste. Analogamente, podemos imaginar que um verdadeiro oásis natural e imenso (e aberto para o céu) mas ladeado por cidades também imensas nos permite gozar muito mais o prazer estético da contemplação da ausência de finalidade precisamente por estar em contraste com a finalidade que o rodeia das construções humanas. Diferentemente, um jardim numa cidade, apesar de possuir alguma importância estética, nunca alcança o efeito da paisagem natural. Isto porque, por um lado, não existe aqui um ponto de vista panorâmico e em profundidade e aberto claramente para o céu que aponte para a totalidade da natureza. E por outro lado, um jardim é sempre natureza arranjada, tratada para determinados fins estéticos, e por isso perde toda a força da espontaneidade, do acaso, e da imprevisibilidade. As combinações entre paisagem humanizada e paisagem natural intensificam o prazer estético apenas e tão só se tanto a parte humanizada como a parte natural reenviarem ambas para totalidades correspondentes. Isto implica que tem que existir panorâmica (uma grande vista) e contraste, para que possa haver um encontro com cada uma das essências humanas (ou seja, a parte humanizada tem que se exprimir com força em contraste com uma parte natural que também se deve exprimir com força). Assim, o prazer estético proporcionado pela visão de terras lavradas ou com trigo plantado não é tão intenso quanto a contemplação da paisagem puramente natural ou do que a contemplação de uma cidade. Na verdade, os campos de trigo, se forem vistos na perspectiva da paisagem natural no sentido em que se tratam de produtos naturais, perdem toda a força da imprevisibvilidade e espontaneidade, já que existe uma finalidade concreta humana em plantar aqueles produtos. Por outro lado, se for visto a partir da perspectiva da paisagem humanizada, em que o ser humano mostra a sua força transformadora da natureza, esta paisagem não possui realmente muita intensidade, porque o grau de transformação da natureza é baixo e por isso não consegue reenviar para a totalidade da capacidade humana de transformação do acaso do natural num mundo ordenado de fins e meios. Exactamente o mesmo raciocínio se pode aplicar a todas aquelas paisagens campestres em que temos muita vegetação e também casas de campo com quintais arranjados e natureza transformada em baixo grau. Finalmente, terminamos este trabalho com um exemplo positivo em que tanto o encontro do ser humano com a totalidade da natureza, como o seu encontro com a sua cultura e capacidade transformadora da mesma natureza se encontram ambos presentes e se intensificam por esse contraste em que aparecem: é precisamente a vista de uma cidade como Lisboa, a partir de um miradouro da Graça, em que se contempla a força da cidade, rodeada pelo céu em cima e pelo rio enorme e larguíssimo em frente, sem esquecer a ponte que o atravessa. Aqui, tanto a grandeza dos elementos naturais reenviam para aquela ausência de finalidade global que também nos constitui, como a grandeza da cidade nos reenvia para a finalidade característica da totalidade da obra humana. Mas o rio ganha com a presença da cidade e a cidade ganha com a presença do rio. O rio ganha a sua força de espontaneidade porque está em contraste com toda a determinibilidade humana, e a cidade (com a ponte que galga o rio) ganha a sua força de determinação porque contrasta com o elemento natural que pretende contornar e dominar. E se vislumbrarmos um rio totalmente poluído? Aí a paisagem perde toda a sua força, porque a pureza do elemento do acaso (o rio) é anulada pela força da determinação da cidade. È por isso que a poluição, além de ser um problema de saúde pública, é uma
  • 20. experiência estética negativa, em que a espontaneidade do elemento natural aparece como que amordaçada e transfigurada, deixando de ser elemento natural para ser elemento morto, pois nem sequer se pode encarar como uma finalidade ou um meio para um fim humano, mas apenas como uma consequência negativa da organização em meios e fins da sociedade humana. Portanto, o rio poluído já não é paisagem natural (já não é espontâneo, é fruto de uma actividade humana) mas também não é elemento humanizado (na medida em que a sua poluição não é nem meio nem fim para a actividade humana). É tão só elemento morto. Só que uma montanha rochosa também é elemento morto mas é bela precisamente porque possui a tal espontaneidade. Por isso o rio poluído não é bem elemento morto. É elemento mortificado! 4 – Bibliografia «Crítica da Faculdade do juízo», Kant , Estudos Gerais, Série universitária-clássicos de filosofia (CFJ) «O mundo como vontade e representação», Schopenhauer, Arthur, Rés Editora «Malicorne – reflexões de um observador da natureza» Reeves, Hubert, Gradiva (RON) Elogio do Sensível» Matos Dias, Isabel, Litoral edições «A estética» Huisman, Denis Edições 70 «O belo como categoria estética», Pina, Álvaro, Horizonte Universitário (BCE) Miguel Reis 23361