1. Elementos para uma teoria da
paisagem
1 – Introdução
O objectivo deste trabalho é contribuir para uma elucidação daquilo que constitui a
paisagem. Ele não pode ser mais do que uma contribuição e nunca poderá constituir uma
fundamentação sistematizada daquilo que é a paisagem precisamente porque o conceito
de paisagem é ele próprio escorregadio e envolto num relativismo histórico, cultural,
social, subjectivo, etc. Nesse sentido, em primeiro lugar, e para de alguma forma tentar
limitar o conceito de paisagem em algo que nos permita uma reflexão mais sólida e
precisa sobre o assunto, nunca esquecendo que a teoria que aqui expusermos pode
precisamente funcionar apenas como uma fundamentação de um determinado tipo de
paisagem, ou como um caso particular de uma teoria mais geral.
Assim, a paisagem aqui estudada é, grosso modo, a paisagem bela, seja ela paisagem
natural ou paisagem urbana. Falamos então ora de paisagens de lagos, montanhas,
vegetação variada, desertos, florestas, montes, ora de paisagens de cidades, com prédios,
pontes e outras construções humanas. Não integramos no conceito de paisagem tudo o
que se pode encontrar no campo visual do ser humano. Não incluímos os objectos
singulares no conceito de paisagem, nem os espaços fechados, nem os espaços abertos
que não correspondem às potencialidades do sentimento estético daquilo que incluímos
no conceito de paisagem. Ou seja, quando dizemos que estudamos a paisagem bela,
referimo-nos a um tipo de paisagem que sentimos como bela, isto é, associada a um
sentimento estético. Não falamos da paisagem cognitiva, nem da paisagem cultural, nem
da paisagem social, pois aqui, se é que existe algum sentimento estético, ele está antes de
mais subordinado a outro tipo de sentimento que o precede, fundado em conhecimentos,
na ciência, na sociologia ou na cultura. O que queremos então é ir à pureza da paisagem
que aparece primeiramente como bela, desligada de toda a utilidade concreta que possa
conter como meio para algum fim.
Para este objectivo, recorreremos a Schopenhauer, mas principalmente a Kant. Será a
partir da obra destes dois autores que procuraremos definir uma linha de raciocínio para
fundamentar o conceito de paisagem, que na verdade nunca foi claramente e directamente
tratado por estes filósofos. As suas relexões paradigmáticas sobre o belo e a natureza
serão muito úteis para caminharmos para um conceito coerente de paisagem natural. Em
oposição, e recorrendo a outros autores dispersos, analisaremos o conceito de paisagem
urbana caracterizando (e comparando com a paisagem natural) o tipo de sentimento
estético associado a ela. Finalmente, tentaremos também, a partir daquelas duas
definições, enquadrar os casos intermédios (de mistura entre paisagem urbana e paisagem
natural) e perceber em que medida é que neles se encontram sentimentos estéticos
associados à combinação da paisagem natural com a paisagem urbana.
2 – A paisagem natural
2. O que é a paisagem natural? Porque associamos beleza ao conceito de paisagem natural?
Na verdade, se tentarmos investigar uma estética da paisagem a partir daquilo que
constitui o belo natural, e nomeadamente em Kant, encontramos imediatamente um
obstáculo: Kant concentra toda a sua teoria do belo em casos em que o objecto que se
defronta diante do ser humano é um objecto singular. Muitos exemplos nos dá este autor:
desde as flores belas, até aos colibris belos, passando por alguns crustáceos belos. Mas
quando pensamos na paisagem, percebemos que ela não pode ser englobada numa teoria
do objecto belo, como objecto singular e, se quisermos, como objecto isolado e que
contém uma unidade e delimitação imediatamente discerníveis. Algo nos diz que o
sentimento estético provocado pela contemplação da paisagem é diferente do sentimento
estético provocado pela contemplação de uma flor. No caso da paisagem, falamos de um
conjunto de objectos que parecem estar em harmonia, mas em que cada um dos quais
possui uma autonomia identificável em relação ao todo, se bem que contribua para uma
unidade do todo. No caso do belo individual, também podemos discernir partes do
objecto que se interligam para formar a unidade do objecto, mas estas partes não possuem
autonomia concreta, sendo sempre o objecto como um todo aquilo que predomina. A
paisagem é por isso um conjunto antes de ser uma unidade. Conjunto de objectos ou
conjunto de matéria. É um conjunto de matéria no caso, por exemplo de um deserto ou de
um rio. Não falamos aqui de um grão de areia ou de um uma gota de água. É uma
experiência em que o entendimento humano não se concentra sobre um objecto físico
determinado como coisa, mas sim nnum conjunto de objectos ou num objecto complexo
que se pode sempre dividir em partes constituidas exactamente pela mesma matéria1
Por outro lado, a paisagem aponta para lá da mera soma de objectos. Ela parece insinuar
na sua aparência a própria identidade da natureza, ela acena para algo que a supera. Ou
seja, como não se fecha num objecto singular, mas precisamente abre para um conjunto
que é já de si um conjunto aberto no espaço e para o céu, ela evoca o infinito e a própria
totalidade da natureza. Mas a paisagem não é a totalidade da natureza. Com a totalidade
da natureza apenas podemos ter uma experiência cognitiva/racional, seja através do
conhecimento que temos da natureza no planeta Terra, ou, de forma mais global, através
do conhecimento que temos da natureza como um todo, da totalidade de estrelas,
planetas, matéria, etc. Mas essa aprensão global dá-se apenas racionalmente e não numa
percepção instantânea visual.
Assim, a paisagem aparece como algo que nem é objecto estético singular, nem é a
totalidade da natureza. O que a faz ser paisagem? Em primeiro lugar podemos responder
a partir do lugar donde ela se contempla, donde ela se vê. Com efeito, a percepção da
paisagem implica uma visão panorâmica que o sujeito experimenta a partir de um ponto
do espaço privilegiado. Ou seja, o sujeito tem que ser capaz de contemplar a partir de
uma determinada posição que lhe permita um extenso e profundo campo visual. Capaz de
lhe desviar a atenção de pequenos objectos particulares, realçando a sensação de um
encontro com uma totalidade limitada (mas que tende para a ilimitação) em que se
reconhecem objectos singulares que compõem o conjunto, mas em que é impossível
estabelecer uma relação privilegiada com qualquer objecto particular. Se esta condição
(de profundidade do campo visual) não for satisfeita, o sujeito não se consegue desligar
1 Se pegarmos no conceito de substância de Aristóteles percebemos melhor o que aqui se quer dizer: para
Aristóteles, a água, o fogo, etc não são substâncias, mas sim homeomarias. Quando dizemos «uma água»
referimo-nos a uma garrafa de água, e a garrafa de água essa sim é substância.
3. do alheamento utilitário com que se relaciona com os objectos particulares e fica
remetido ou para uma estética do belo individual ou para uma integração dos elementos
naturais como meios para uma finalidade qualquer.
É então assim que nos deparamos com um conceito de extrema pertinência utilizado por
Rosario Assunto para definir a paisagem: o conceito de «finitude aberta». A paisagem é
uma finitude (uma limitação que acaba até onde o horizonte nos deixa ir) aberta para o
infinito do céu. O próprio céu é uma infinitude que se deixa limitar num dos seus lados
pela paisagem. A paisagem implica uma delimitação mas uma abertura para a totalidade
que a envolve, um aceno para o ilimitado. Note-se que a finitude aberta precisa da
profundidade e da panorâmica alargada do olhar, pois aquilo que vislumbramos que está
ao ar livre e que, prostrado diante de nós a apenas poucos metros de distância, nos
impede um olhar mais profundo e apenas nos deixa pressentir o céu por cima mas nunca
de forma a contar significativamente para o enquadramento global, então isso não é
paisagem. E não é paisagem porque nesse caso a finitude não está aberta apesar de estar
ao ar livre. Precisamente porque o carácter de abertura é da responsabilidade do sujeito
que olha, do sujeito que não fixa a vista no objecto singular diante de si, mas que solta a
vista para a totalidade que se apresenta aberta e como que atirada e estendida para o céu
como fronteira. Assim, uma flor em espaço aberto não é uma finitude aberta na medida
em que concentramos o olhar simplesmente na flor. Da mesma forma, um conjunto de
arbustos muito altos diante de nós em espaço aberto não é uma finitude aberta no caso em
que não o enquadramos no horizonte ou no enquadramento do céu. O conceito de
finitude aberta que defendemos não é meramente físico (algo como ar livre) mas sim uma
experiência mental em que a abertura não só está lá, como é parte fundamental daquilo
que vemos.
A abertura é abertura para o infinito, para o ilimitado. É abertura para a totalidade da
própria natureza. Por isso, a paisagem natural, não sendo nem um objecto estético
singular, nem a própria totalidade da natureza, pode ser encarada como porção de
natureza, ou, melhor ainda, como uma pequena essência de natureza. Ou seja, ela não é
simplesmente uma parte da natureza (como é o objecto estético singular), é precisamente
uma parte da natureza com capacidade para representar toda a natureza, um pequeno
protótipo da natureza. Na verdade, é uma parte da natureza que acena e aponta para a
totalidade e infinitude da natureza.
Mas como caracterizar o sentimento estético que podemos ter diante da contemplação de
uma pequena essência de natureza?
Para chegarmos a respostas fundamentadas teremos que percorrer um caminho. Vejamos
o que podemos descobrir em Kant sobre o objecto natural belo.
Ora, para kant, o sentimento estético que experimentamos quando contemplamos um
objecto belo, é um sentimento livre. É uma experiência completamente contemplativa e
desinteressada. Não interessa a utilidade que o objecto possa ter para nós (nesse caso o
objecto seria «bom» mas não belo), não interessa a sensação física que experimentamos
(nesse caso o objecto seria agradável, como é no caso do paladar, do olfacto, ou das cores
vivas que apenas intensificam mas não definem a beleza que é puramente formal e não
material), nem sequer interessa as relações que o objecto estabelece com outros objectos
da natureza (independentemente da utilidade para nós) do ponto de vista dos conceitos e
relações causais estabelecidas pelo entendimento. Daqui se vê que para a contemplação
4. do belo, também não está em causa a existência do objecto no sentido em que não há um
interesse na existência do objecto. Há apenas uma sensação serena de pura contemplação
não fundada em nehuma materialidade do objecto mas apenas no modo como a sua forma
é acolhida pelas faculdades do conhecimento humano. Só interessa o acontecimento de
olhar para o objecto tal e qual ele se nos apresenta abstraindo de tudo o que pode mover
os sentidos (do ponto de vista da nossa determinação como seres da natureza) ou a razão
(seja a moralidade ou a questão da utilidade do objecto). Mas o que é que acontece então
que está no fundamento do prazer sentido? Se não é um prazer nem da razão nem dos
sentidos, de onde vem? Vem precisamente da diferente mobilidade que é dada à
faculdade da imaginação na contemplação do belo. No uso para o entendimento a
imaginação está limitada para corresponder ao conceito daquele. No Belo, a imaginação,
além de concordar com o conceito do entendimento fornece matéria nova, que obriga o
entendimento a pegar nela também. Ou seja, quando o objecto não é encarado de forma
estética ou não tem potencialidade para conferir um prazer estético ao sujeito é porque a
faculdade da imaginação está subordinada à faculdade do entendimento. Ou seja, a
imaginação dá-nos precisamentre numa intuição sensível o conceito que já possuímos do
objecto no entendimento. Contrariamente, no sentimento estético do belo, a faculdade da
imaginação entra em jogo com o entendimento e, na sua liberdade, concorda com o
entendimento na sua conformidade a leis. Neste caso, não existe nenhuma subordinação
mas sim um jogo de igual para igual, em que o objecto não aparece como algo contrário
ao entendimento (ele é conceptualizável, delimitado na sua forma) mas também não
aparece como simples determinação intuida visualmente de um conceito do
entendimento. A faculdade da imaginação não está subjugada ao entendimento, no
sentido de servir um conceito seu. Ela joga livremente, toma iniciativa, mas sem resvalar
na pura fantasia, pois está ligada a uma forma concreta que o entendimento ali também
entende. Assim, o fundamento do prazer estético não recai sobre nenhum conceito
objectivo mas simplesmente funda-se neste jogo das faculdades. Por isso o prazer estético
não resulta directamente de eventuais qualidades intrínsecas dos objectos estéticos (como
sejam ou a perfeição geométrica ou o carácter atractivo às sensações), pois se assim fosse
fundar-se-ia na concordância com um conceito do entendimento e não precisamente
sobre o livre jogo em que o entendimento é obrigado a entrar com a imaginação.
Não há nem sensação nem um conceito determinado que determinem o prazer do belo. A
beleza não está por isso nas próprias figuras mas na conformidade a fins subjectiva sem
conceito determinado. Desta forma, não podemos determinar a beleza do objecto a partir
das suas características objectivas (a qualidade da forma, como a simetria, a perfeição,
etc.), o que significa que não podemos decidir a priori quais é que são os objectos belos.
Só experimentando e sentindo o jogo das faculdades no interior do sujeito é que se sente
o prazer do belo. Há assim uma conformidade a fins subjectiva sem um fim determinado:
«a beleza da natureza é apresentação da conformidade a fins formal (subjectiva) segundo
as suas leis particulares (empíricas) para a nossa faculdade do conhecimento»2 o que é
bastante diferente de se considerar uma conformidade a fins real e objectiva da própria
natureza para o sujeito. Ou seja, a natureza não tem como finalidade sua agradar ao
sujeito no prazer estético do belo. O que acontece, sem intencionalidade objectiva da
natureza, é que o objecto natural é conforme a fins com a relação das faculdades do
conhecimento entre si (imaginação e entendimento). Podemos então dizer que o juízo de
2 CFJ, pg 79
5. gosto funda-se sobre um conceito, mas que não é um conceito determinado (ou então não
seria livre e haveria conformidade a fins objectiva). O conceito a que nos referimos é o
conceito do fundamento em geral da conformidade a fins subjectiva da natureza para a
faculdade do juízo. Esse conceito geral e indeterminado não nos permite conhecer ou
provar nada acerca do objecto, e ele é apenas accionado de forma acidental e espontânea
a partir das formas produzidas pela natureza segundo leis particulares.
Mas a verdade é que Kant nunca cai numa espécie de subjectivismo relativo. Na verdade,
ao negar a possibilidade de definir quais os objectos belos a priori a partir de
propriedades objectivas e determinadas dos mesmos, não quer isso dizer que o «belo» se
situe no terreno do agradável, caso em que determinados objectos provocam sensações
num sujeito e sensações diferentes noutro sujeito. Na verdade, Kant sustenta que no juízo
de gosto sobre o belo há uma universalidade sem conceitos, que, claramente, se distingue
de uma mera universalidade lógica, que é sempre necessária e objectiva. Ou seja, o
sujeito, quando afirma que algo é belo, exige o acordo dos outros sujeitos, pressupõe que
os outros sujeitos também tenham que considerar aquele objecto como belo. E a verdade
é que esta pressuposição de universalidade funda igualmente o próprio prazer estético, na
medida em que o facto de o sujeito compreender que aquele prazer estético não é uma
mera contingência dos seus sentidos mas que possui uma força muito maior que pode ser
comunicada e exigida aos outros sujeitos confere imediatamente um maior prazer, com
uma força muito superior, à contemplação estética do belo.
Esta análise do belo parece sempre ficar incompleta, pois resta sempre uma pergunta:
afinal, porque é que certos objectos são belos e outros não? Porque é que na presença de
certos objectos podemos experimentar um jogo das faculdades do conhecimento e na
presença de outros objectos isso não acontece? Não terá que haver um fundamento
objectivo nos objectos com que nos deparamos na contemplação estética?
Kant não se cansa de afirmar que não existe uma conformidade a fins objectiva da
natureza, como se ela tivesse construído certas formas para o nosso próprio
comprazimento. Ou seja, não há um favor que a natureza nos mostre , mas sim um favor
no modo pelo qual acolhemos a natureza, pondo a faculdade da imaginação em liberdade.
Mas aqui importa recordar uma afirmação de Goethe: «Há algo de conforme a uma lei
desconhecida no objecto que corresponde a algo de conforme a uma lei desconhecida no
sujeito». E que lei desconecida é essa? Que lei do objecto natural, que tipo de objecto
natural, o que é que existe no objecto natural que está de acordo com o jogo das
faculdades no sujeito? Kant ainda nos diz que tem que haver uma proporção determinada,
«na qual a relação interna para a vivificação (...) é a mais propícia para a faculdade do
ânimo»3. Quer dizer, temos que considerar algum elemento objectivo no objecto que
suscite a relação correcta das faculdades do conhecimento. Há duas afirmações de Kant
que vão neste sentido: «Para o belo da natureza temos que procurar um fundamento fora
de nós»4 e «o belo reclama a apresentação de uma certa qualidade do objecto»5. E que
qualidade é esta? Não se trata concerteza da perfeição geométrica ou da simetria, pois aí
o que acontece é um acordo da natureza com fins subjectivos estabelecidos em conceitos
determinados (a forma perfeita redonda coincide com o conceito de perfeição do círculo
que o sujeito já tem em si). No caso do belo natural, não há conceito que decida. No
3 CFJ, pg.130
4 CFJ, pg 140
5 CFJ, pg 164
6. entanto, tem que haver alguma espécie de fundamento objectivo: Kant argumenta que
esse fundamento repoiusa sobre a forma do objecto, numa espécie de concordância da
multiplicidade com a unidade do objecto. É o mais longe a que conseguimos chegar neste
momento: os objectos naturais que podemos considerar belos são aqueles em que há uma
determinada relação da composição da multiplicidade do próprio objecto na sua própria
unidade, composição essa que suscita o livre jogo da faculdade da imaginação com a
faculdade o entendimento.
Será que podemos exportar esta concepção do belo para a paisagem? Será que podemos
considerar que o prazer estético da paisagem está ligado à tal unidade da multiplicidade
da forma que suscita o livre jogo da nossa faculdade da imaginação? Muito dificilmente..
Isto porque a diversidade das paisagens belas é tal, que fazer repousar o fundamento da
beleza sobre uma determinada forma ou um determinado tipo de forma parece deixar
modalidades da paisagem de fora. É preciso encontrar um elemento objectivo ou então
mais forte e que esteja para lá da mera forma, que esteja para onde nos atira a forma, para
algo mais geral e que não se deixa objectivar simplesmente como qualidades de um
objecto. Procuraremos então outras pistas na análise do sublime em Kant.
Para Kant, o sentimento estético do sublime encontra-se perante objectos que podem ser
informes (ao contrário do belo, em que possuem sempre uma forma determinada) sendo
geralmente objectos colossais (enormes) ou então situações em que a natureza demonstra
toda a sua força. Mas convém frisar que o que é sublime não é o objecto mas
simplesmente a grandeza do estado de ânimo no interior do sujeito. Acrescente-se
também que o sublime como que inaugura uma relação de ruptura com a natureza.
Kant considera dois tipos de sublime: o matematicamente sublime e o dinamicamente
sublime. O matematicamente sublime é um sentimento que experimentampos perante
objectos colossais, objectos tão grandes que exigem o máximo esforço da nossa
faculdade da imaginação na avaliação da grandeza desse objecto. E o que acontece é que
esses objectos colossais aparecem como que acima de todo o padrão de medida dos
sentidos, como que desafiando a faculdade da imaginação que não os consegue apreender
numa intuição única, mas convidando a razão a intervir e a conferir validade e
legitimidade a esses objectos. Ou seja, como que o sublime matemático é um sentimento
gerado pelo facto de a grandeza daqueles objectos ser compreendida mediante ideas da
razão, mas em que todo o esforço da faculdade da imaginação não consegue intuir e fazer
corresponder em si essas ideias da razão. A faculdade da imaginação entra em conflito
com a razão.
O dinamicamente sublime é um sentimento que experimentamos face a acontecimentos
naturais onde a natureza mostra uma força brutal. Mas este sentimento não tem nada a ver
com o medo: aliás, só quando o sujeito se encontra em segurança na contemplação de
espectáculos daquele tipo é que pode efectivamente experimentar o sentimento do
dinamicamente sublime. Na verdade, aqui o sentimento do sublime é originado pelo facto
de a força daquele acontecimento desafiar a própia faculdade da imaginação, que
efectivamente apreende algo que ameaça as estruturas do sujeito (nomeadamente a
sensibilidade), mas podendo o sujeito permanecer superior a essa ameaça, como que se
afimando por cima da sua própria constituição natural sempre vulnertável à fúria da
natureza. Na verdade, o sublime é um sentimento de que possuímos uma razão pura
independente, que está acima da nossa determinação sensível. Ou seja, o sentimento do
7. sublime torna-nos intuível a superioridade das nossas faculdades de conhecimento sobre
a faculdade máxima da sensibilidade. O respeito que sentimos pela força da natureza é
também um respeito pela ideia de humanidade no sujeito, ou seja, o respeito pela nossa
capacidade de estar perante tal brutalidade mantendo-nos acima dela. Há uma espécie de
impotência física em simultâneo com a consciência de que o seu destino do sujeito está
acima da natureza.
Que relação podemos fazer com a paisagem? O que é que no sentimento do sublime
acrescenta alguma coisa em relação ao sentimento do belo perante o objecto individual
que possamos exportar para a consideração da paisagem?
A resposta é-nos dada pelas palavras de Denis Huisman: «Em kant, o sublime é um
estado subjectivo que obriga a pensar a natureza na sua totalidade, sem que possamos
realizar tal apresentação». Ou seja, quando colocámos a paisagem entre o objecto estético
singular e a totalidade da natureza, encontramos aqui o segundo termo dessa colocação.
No sublime, aponta-se para a totalidade da natureza, sem contudo poder apresentar essa
totalidade (algo que, como já vimos atrás, apenas pode ser feito racionalmente,
cognitivamente). Assim, no sentimento do sublime, o ser humano é obrigado a pensar a
totalidade da natureza, aquela totalidade da natureza que também determina a sua parte
natural, mas à qual ele se opõe. O sublime em Kant mostra como o sentimento estético
como que parte o homem nas suas duas partes: espiritual e natural, encarando cada uma
delas como um todo, ou seja, o ser humano individual, perante o sublime, encontra-se a
representar toda a espécie, seja enquanto ser natural , seja enquanto ser racional.
Mas porque razão é ainda insuficiente este conceito para a teoria da paisagem?
Precisamente porque a paisagem que tentamos fundamentar e explicar neste trabalho não
se coaduna com um sentimento do tipo do sublime mas muito mais com um sentimento
do tipo do belo. Na contemplação da paisagem não existe um conflito das faculdades,
existe precisamente um estado de harmonia. A paisagem tipo não é algo como uma
tempestade ou como um grande abismo. Contrariamente, é a paz de espírito presenciada
pela contemplação de vegetação, montes, vales e lagos, que nos suscita um sentimento de
prazer em harmonia com o que contemplamos.
Continuamos então à procura. Mudemos então de autor e recorramos a outro grande
pensador que foi Schopenhauer, para a partir da sua estética compreendermos melhor o
que poderá ser a paisagem.
Schopenhauer é um autor romântico e como tal vai apregoar uma unidade originária
anterior a toda a partição entre sujeito e objecto. Para este autor, a divisão entre sujeito e
objecto só acontece no mundo dos fenómenos, no mundo da representação. Na verdade,
por detrás do mundo da representação está algo que é comum tanto ao sujeito como ao
objecto, no fundo, tudo é constiuído originalmente a partir do mesmo. Esse algo é a
vontade. A vontade (que é aquilo que existe realmente, digamos como que a «coisa em
si») manifesta-se em fenómenos no mundo da representação. Schopenhauer considera a
estética como uma espécie de conhecimento intuitivo que permite precisamente a
contemplação da coisa em si, ou que permite uma aproximação à contemplação da
vontade. Ou seja, a estética é também uma forma de conhecimento especial, pois é a
partir dela que podemos intuir a unidade originária anterior a sujeito e objecto.
Quando olhamos um objecto que está no mundo da representação, para que nos
aproximemos daquilo que ele realmente é (e não das razões por que ele é), temos de
8. experimentar uma situação de conhecimento que é antes de mais estética e que nos
permite contemplar aquele objecto como belo, a partir da contemplação da ideia do
objecto (independente do mundo da causalidade característico da representação) que é
qualquer coisa que ainda está no mundo da representação mas que já está mais próximo
da pura vontade. Na verdade, a ideia contemplada retira o objecto do mundo da
causalidade (causalidade que possa ter para nós ou com outros objectos) e também do
mundo do espaço e do tempo. Mas essa idea ainda não é a vontade porque ainda não
estamos na fase em que se elimina o binómio sujeito/objecto, na verdade ainda há um
sujeito que intui um objecto.
Na contemplação do belo experimentamos dois tipos de prazer interligados. O primeiro é
o prazer subjectivo, em que o sujeito se torna um puro sujeito do conhecimento liberto da
sua própria vontade. Ou seja, quando contemplamos o belo, abstraímo-nos das relações
de causalidade e dos efeitos que o objecto possa ter para a nossa vontade (algo como a
abstracção da utilidade do objecto em Kant), exercendo o conhecimento de forma pura,
intuitiva, e completamente independente da vontade. O segundo tipo de prazer é o prazer
objectivo, que acontece precisamente quando, já libertos da nossa vontade, retiramos o
objecto das teras de causalidade que ele tece com os outros objectos, contemplando
apenas a pura ideia do objecto que corresponde a um determinado tipo de objectivação da
vontade. Ou seja, para nos aproximarmos da contemplação da vontade (a objectivação
dela em ideia naquele objecto) temos que nos libertar da nossa própria vontade, e, sem
estarmos subjugados por ela, contemplarmos a sua idea que nos aparece no objecto diante
de nós. Quando isto acontece, o sujeito como que se torna espelho do objecto. Estando
todas as relações causais ausentes, o sujeito como que se funde no próprio objecto e
torna-se ele próprio apenas o objecto que contempla (nada mais o define ou determina
naquela posiçãpo de pura abstracção e contemplação). No entender de Schopenhauer,
qualquer objecto pode ser belo, dependendo apenas da forma como o olhamos. Assim,
para encontrarmos alguma especificidade da paisagem, concentremo-nos naquilo que é o
sublime para este autor, de forma a tentarmos encontrar aí elementos que nos possam
aproximar mais da paisagem.
Ora, mas para Schopenhauer, o sublime é apenas uma intensificação (contudo decisiva)
do sentimento estético já presente na contemplação do belo. O sublime de Schopenhauer
aplica-se mais ou menos aos mesmos casos do que o sublime de Kant, ou seja, grandes
planícies áridas ou tempestades, isto é, acontecimentos em que a natureza demonstra todo
o seu perigo e força contra o sujeito humano. No sublime também podemos distinguir o
prazer subjectivo do prazer objectivo6. No prazer subjectivo, o sujeito deve libertar-se da
sua vontade (ou seja, das relações de causalidade que o objecto tem com ele, o perigo que
representa, ertc.). Mas esta libertação é mais difícil do que no belo, pois ela exige um
grande esforço na medida em que o sujeito está perante um perigo ameaçador e como tal
tem mais dificuldade em abstrair-se do poder causal que aquele objecto pode ter para si.
Mas aqui o prazer subjectivo é bastante superior ao do belo, na medida em que apesar do
perigo, o sujeito consegue libertar-se disso e contemplar puramente o objecto. Por outro
lado, o prazer objectivo também é claramente maior, na medida em que na contemplação
do sublime o sujeito intui mais claramente a vontade na medida em que ela se manifesta
6 Esta distinção, tanto no bleo como no sublime, não é dada explicitamente por Schopenhauer. Ela é o
resultado de uma interpretação e reorganização que se pode fazer a partir dos vários sentimentos que o
autor descreve na contemplação estética
9. com uma força muito superior. Uma força tão poderosa, que parece vir da vontade como
totalidade do mundo. É que enquanto que no belo, o sujeito se sente numa unidade com a
ideia do objecto, no caso do sublime ele sente-se unido ao próprio mundo inteiro como
manifestação da vontade. A unidade entre sujeito e objecto é aqui muito mais forte
porque possui uma força de universalidade: unificamo-nos com aquele espectáculo,
identificamo-nos com todo o poder de manifestação da vontade do mundo, e o sujeito
torna-se também essa vontade universal, funde-se nela.7
Não há dúvida que a análise do belo e do sublime em Schopenhauer nos fornecem
elementos fundamentais para a teoria da paisagem e que representam um salto em relação
a Kant. Com efeito, Schopenhauer considera que na experiência estética existe uma fusão
entre o sujeito e o objecto, fusão essa que no caso do sublime dá-se com toda a natureza,
ou com toda a vontade que determina a natureza como representação. Como em Kant,
existe aqui um elemento que nos interessa: a natureza é encarada na sua totalidade. Mas,
contrariamente a Kant, há um determinado momento no sublime de Schopenhauer (e que
Nietcshe depois aproveitará para fazer a apologia da estética e não caír no pessimismo de
Schopenhauer) em que a relação com a totalidade da natureza não é de conflito mas
precisamente de fusão e identificação, a consciência que o ser humano é feito do mesmo
material de que é feita a totalidade da natureza. Há aqui aquela harmonia que
procurávamos para fugir ao sublime Kantiano sustentado apenas no conflito. Daí que o
sublime em Schopenhauer nos aproxime mais da paisagem que queremos estudar. No
entanto, estas concepções ainda não nos satisfazem, na medida em que em Schopenhauer
a paisagem tipo não encontra ainda o seu lugar. Em primeiro lugar, qualquer objecto
individual pode ser belo e em segundo lugar, o sentimento de unificação com a totalidade
da natureza é só conseguido em casos extremos como as tempestades, etc. Será que a
paisagem é um caso mais fraco do sublime de Schopenhauer? Não nos parece.
Entretanto, regressemos a Kant para ver se encontramos razões mais profundas para o
sentimento do belo que não se limitem a um mero jogo de faculdades completamente
ocasional e caído quase que do nada.
Na primeira parte da crítica da faculdade do juízo, Kant percebe que há algo para lá do
mero jogo das faculdades que se manifesta na contemplação do belo natural (algo que
não acontece no belo artístico). Assim como que de repente, Kant diz que o belo é o
símbolo do bom. Na verdade, ele só vai desenvolver esta tese na segunda parte da crítica.
De qualquer forma, ainda na primeira crítica, kant diz-nos também que existe um
interesse imediato e intelectual pela beleza da natureza, pelo qual não apenas o produto
natural apraz segundo a sua forma, mas também apraz a sua existência, na medida em
que essa existência parece aparecer como a garantia do tal moralmente bom. Kant diz
mais: diz que as belezas da natureza são as mais profícuas para a ligação com ideas
7 Não é este o local adequado para falar da ética de Schopenhauer, e por isso paramos por aqui a análise do
sublime nesse autor. É que em seguida, a evoluição do sentimento do sublime vai ter uma perspectiva ética
que não nos interessa: o sujeito, depois de ser um só com a vontade do mundo, percebe que afinal tudo é
uma i.lusão e que aquilo não passa do mundo da representação, percebe em seguida que o que está por trás
desse mundo da representação é uma vontade cega e sôfrega, que se satisfaz de forma absolutamente
irracional e que origina todo o sofrimento do mundo, propondo finalmente a anulação da vontade numa
perspectiva budista. Mas a forma como Schopenhauer utiliza a sua estética apenas como meio para
defender uma ética (na medida em que é opela estética que o ser humano pode conhecer intuitivamente a
origem do mundo como pura vontade cega e irracional) não cabe aqui neste trabalho
10. morais e desata a fazer relações entre as cores existentes na natureza e as ideias morais
que se lhes associam. Tudo isto parece estranho e talvez um salto demasiado grande.
Concentremo-nos então na seguinte afirmação de Kant: «o gosto torna possível a
passagem do atractivo dos sentidos ao interesse moral habitual, sem um salto demasiado
violento»8, isto porque o gosto como que ensina a encontrar um comprazimento livre em
objectos dos sentidos. Parece então que Kant desistiu de procurar o tal elemento objectivo
da natureza como natureza que fundamente o prazer estético. Na verdade, assumindo que
o prazer estético é subjectivo, e como no prazer estético não nos interessa a utilidade do
objecto e as suas relações causais mas apenas a pura contemplação, fácil é dar o salto
para dizer que afinal olhar um objecto da natureza é quase como contemplar a nossa
própria ideia moral, como se na verdade, todo o mundo estivesse dirigido e finalizado
para o homem e para o seu interesse moral que começa desde o princípio da criação.
Porque se o belo não tem origem em leis da natureza, em em nada de objectivo nas
próprias coisas da natureza (tráta-se de um interesse livre) então temos que procurar a
origem desse sentimento em nós próprios e nomeadamente naquilo que constitui o fim
último da nossa existência: o destino moral. Afinal, a estética, tal como em Schopenhauer
parece estar a perder a sua autonomia para se fazer depender da própria ética. Mas, a
partir da segunda parte da crítica, enfrentemos Kant nesta questão, e veremos como este
enfrentamento nos vai permitir chegar mais perto do conceito de paisagem.
Será que existe uma finalidade na natureza ou trata-se tudo de mero acaso? Esta é a
grande questão a que uma crítica da faculdade do juízo teleológica vai tentar responder.
Na verdade, tudo o que vemos na natureza existe por acaso ou existe ordenada e
organizadamente, num sistema em que tudo tem o seu lugar próprio e fundamental? Será
que existe uma finalidade da própria natureza inscrita na natureza, ou uma finalidade
exterior a ela, ou nenhuma delas?
Em relação ao primeiro caso tratar-se-ia de uma conformidade a fins objectiva da própria
natureza. Mas, como diz inicialmente Kant, «que as coisas da natureza sirvam umas às
outras como meios para fins, e que a sua possibilidade se resuma a isso, é algo que não
podemos postular».9 Efectivamente, é-nos impossível dizer que as ervas só existem para
que os herbívoros as possam comer, que os herbívoros só existem para que os predadores
não morram à fome, ou que a água só existe para permitir o crescimento das plantas e dos
outros seres vivos. Neste sentido é-nos impossível determinar que existe uma
conformidade a fins externa de cada produto da natureza, no sentido em que esse produto
exista sempre como utilidade para outro. Isto porque é-nos sempre possível imaginar que
aquele produto natural surgiu de um acaso das milhões de combinações possíveis da
natureza.
Mas Kant não se contenta com esta falta de certezas, Através da faculdade de juízo
teleológica, abre as portas a uma consideração da natureza a partir de uma
intencionalidade: «podemos apenas submeter a natureza a princípios de observação
segundo a analogia como a causalidade segundo fins, sem por isso pretender explicá-la
através daqueles»10. Não é, bem vistas as coisas, uma intencionalidade explícita (como se
8 CFJ, pg 264
9 CFJ, pg 267
10 CFJ, pg 274
11. a natureza fosse uma força inteligente) mas uma intencionalidade subjectiva e que se
ajuste ao modo de conceptualizar do entendimento humano.
Será a causalidade um mecanismo cego, em que se compreende as leis que originam os
produtos naturais, mas que não se compreende por que razão se originam naquela forma
concreta, sem qualqer finalidade específica? Kant pensa que não. E o ponto de partida
para assim pensar nasce da observação de determinados seres naturais organizados: ou
seja, há diversos seres vivos complexos que revelam uma conformidade a fins interna, na
medida em que são causa e efeito de si mesmos, e em que as suas partes se ligam para a
unidade do todo. Basta pensarmos em qualquer ser vivo, cuja sua causa é um membro da
mesma espécie e cujo efeito será também um membto da mesma espécie. Por outro lado,
a organização interna destes seres mostra que nada é em vão e que todos os órgãos se
dispõem para funções essenciais vitais. Por outro lado, existe uma resistência destes seres
ao desaparecimento. Qualquer ser organizado tenta vingar e permanecer vivo, e pelo
menos enquanto espécie vai conseguindo: é como uma força formadora que se propaga a
si própria e que não é explicável apenas pelo mecanismo da natureza. A dificuldade de
aceitarmos o facto de que estes seres extremamente organizados são fruto do acaso
resulta também do facto de que vivemos pouco tempo e que as grandes transformações
precisam de milhares de anos. Na verdade, o ser humano está apenas habituado a
confrontar-se com a generatio homonyna (seres que se reproduzem a partir de seres da
mesma espécie) e não com a geração heteronyma.(seres que se reproduzem a partir de
outros seres diferentes). Mas mesmo considerando este facto, Kant sustenta que esta
finalidade interna destes seres tem uma razão de ser e não aconteceu como que por acaso.
E vai mais longe ao estender a conformidade a fins interna de cada ser ao todo da
natureza. Ou seja, a natureza é como que um todo que possui uma finalidade própria e em
que cada elemento contribui para essa finalidade. Neste tipo de concepções Kant é
coerente com a crítica da razão pura. Ele diz-nos claramente que, se na verdade existe um
mundo dos fenómenos e um mundo das coisas em si que para nós é inacessível, por que
raio é que devemos resistir à ideia de que aparentemente existe apenas um mecanismo
cego na natureza mas que no fundo, por trás disso, existe uma intencionalidade conforme
a fins da natureza? Mas kant coloca então um supra-sensível que temos que pôr na base
da natureza e que funciona como uma espécie de inteligência que a vai comandando.
E qual é então o apregoado fim da natureza como um todo? Para Kant é precisamente o
ser humano. Na verdade, existe uma forma de olhar o ser humano que não o coloca
imediatamente como fim terminal da natureza: ele é tão só mais um elemento natural que
até equilibra o ecossistema em determinadas fases. Mas, há outra forma de olhar para ele:
na verdade, o ser humano é o único ser que é capz de colocar fins a si próprio. «O
homem, enquanto único ser que possui entendimento (faculdade de voluntariamente
colocar a si mesmo fins) é o fim terminal como ser fora da natureza»11. Na verdade, o ser
humano é o único que pode colocar este tipo de questões à natureza, e, antes de mais, ele
é o único que possui uma independência em relação à natureza, independência essa que
tem o seu cerne na sua lei moral incondicionada e livre da natureza, e como tal, se a
natureza tem que ter um fim terminal (porque aqui subjectivamente no modo de entender
humano todos os factos devem ser meios ou fins) então esse fim será um fim moral: «pois
se a criação toda ela possui um fim terminal, então não podemos pensá-la de outro modo
11 CFJ, pg 360
12. senão que ela tem que entrar em acordo com um fim moral (o único que torna possível
um conceito de um fim)»12.
Temos assim que a finalidade última da natureza é o próprio homem enquanto
subordinado a leis morais, e, como reconhecemos o homem como ser moral, temos razão
para considerar o mundo como um todo coerente segundo fins e como sistema de causas
finais.
Tudo se passa assim: a razão de ser última das coisas tem que partir de um
incondicionado, de uma lei que dê a lei a si mesma. Assim, tudo o que existe tem o seu
fundamento último na única coisa que é incondicionada e que é precisamente a lei moral.
Porque se tentarmos explicar as coisa de forma mecânica e segundo leis causais nunca
encontramos nem um princípio nem um fim. Logo, quando olhamos a natureza bela e
experimentamos a sensação de abstracção das relações causais nessa pura contemplação,
então isso tem que estar ligado necessariamente ao fundamento moral e incondicionado
de cada ser da natureza: «assim, foi antes de mais nada através desse interesse moral que
irrompeu a atenção à beleza e aos fins da natureza (fortalecendo essa ideia), interesse que
não atende às vantagens que possamos tirar da natureza».13 Com efeito «um fim terminal
neles inscrito como dever e uma natureza sem um fim terminal na qual aquele fim se
possa efectivar, encontra-se em contradição». A incondicionalidade da lei moral é de tal
ordem que, mesmo que os seres humanos vivessem num mundo em que não se
confrontassem com castigos ou recompensas, há sempre uma voz que lhes diz que algo
está certo ou errado e que é independente do curso do mundo. Assim, mesmo que a
natureza não tivesse seres organizados que nos sugerissem uma conformidade a fins da
natureza para algo incondicionado, mesmo que isso assim fosse, essa incondicionalidade
estaria lá. Logo, o facto de a natureza estar organizada confirma o fim moral/racional do
ser humano, se bem que nãio seja necessária essa organização para o provar.
Mas será que o sentimento estético não possui uma autonomia em relação à ética? E, para
kant, seria a paisagem apenas uma combinação de objectos singulares qwue lmelhor
estoimula o sentimento moral? Os argumentos para esse salto parecem no entanto
demasiado forçados. Convém, em relação à natureza e ao que ela significa, recorrer a
autores contemporâneos e bem entendedores do assunto, como é o caso de Hubert
Reeves, nomeadamente a partir da sua obra «Malicorne: Reflexões de um observador da
natureza».
Nesta obra extremamente interessante, o autor, logo na introdução, pergunta: «Não será a
magia da natureza ameaçada pela perfeição das explicações? Tudo isto são as soluções
matemáticas das equações de Maxwell, perfeitamente previsívies e calculáveis. Terei eu
que renunciar ao prazer estético, agora que porvara o fruto envenenado do
conhecimento?»14. A bem dizer, à primeira vista, esta frase não entra em contradição com
o pensamento de Kant, pois também kant considera que podemos experimentar o prazer
estético desde que façamos a abstracção das relações causais e das leis empíricas que
estão na origem daquela forma determinada daquele objecto. Mas a verdade é que Hubert
reeves não quer fazer essa abstracção, não quer suspender o esse juízo, até porque ele
próprio sabe que nunca mais poderá olhar a natureza ignorando toda a sua determinação
12 CFJ, pg 385
13 CFJ, pg 392
14 RON, pg 19-21
13. causal em termos de relações matemáticas, físicas e biológicas. O que a obra deste autor
nos vai revelando é que mesmo considerando toda essa determinação e explicação causal
da natureza, a forma concreta como ela se nos apresenta hoje é fruto do acaso, na medida
em que se poderia ter apresentado de muitas outras formas diferentes. Apoiado nas
teorias modernas da física quântica e na teoria do caos (teoria que postula que um
mínimo desvio nas condições iniciais vai corresponder a uma diferença enorme no ponto
de chegada) o autor sustenta que as leis só parcialmente determinam o curso dos
acontecimentos, pois em cada passo da formação da natureza há uma vasta paleta de
possíveis, sendo que só um será realidade e é impossível determinar qual: «Do mesmo
modo, poder-se-ia prever a geração dos átomos e das moléculas pela actividade nuclear e
química, mas não a forma precisa dos desenhos de geada sobre a minha janela, nesta
manhã de inverno»15. Ou, outro exemplo que é dado pelo autor, também se pode prever
que as borboletas acasalam na primavera, mas é impossível determianr a priori a
trajectória concreta dos seus recreios amorosos sobre os campos de colza.
Na verdade o autor apenas reforça algumas das posições científicas contemporâneas: a
natureza que temos depende de muitas leis interligadas, mas há efectivamente um factor
de indeterminação, se quisermos um factor de liberdade, em que podemos dizer que
aquilo que nos aparece à frente não tinha que ter aparecido. Aliás, em relação a este
aspecto, estas teorias também entram em confronto com Hegel, que considera que a
natureza não pode ser nem bela nem feia, na medida em que nela não há nenhuma dose
de liberdade do espírito, e que, como tal, ela não poderia nunca ser de outra maneira («é o
que é e pronto!»). Mas o que nos diz Hubert Reeves é que o facto de termos a natureza
que temos hoje é fruto tanto de leis como do puro acaso, assim como o será a natureza do
futuro. Isto significa que não há uma espécie de inteligência ou intencionalidade
subreptícia da natureza que a vá orientando a produzir determinados produtos. Não existe
nenhuma finalidade na natureza e o facto de estarmos aqui é também fruto desse acaso e
dessas leis que conviveram durante milhões de anos16
A verdade é que o próprio Kant apercebeu-se da dificuldade do problema e, na sua obra,
afirma que «A natureza, como simples mecanismo, poderia ter formado as coisas de mil
outras maneiras» e ainda que «Não podemos de modo nenhum demonstrar a
impossibilidade de produção dos produtos naturais organizados através do simples
mecanismo da natureza, porque não somos capazes de descortinar a infinita
multiplicidade das leis particulares da natureza 309»17. A questão que se põe aqui é que é
perfeitamente possível que hoje exista a complexidade das formas naturais que
efectivamente existe, assim como também poderiam existir outras formas completamente
diferentes.
Estas reflexões de Hubert Reeves dão-nos um conceito fundamental para a nossa teoria
da paisagem: é o conceito de imprevisibilidade ou de indeterminação, ou se, quisermos,
de unicidade. Ou seja, cada flor, cada lago, cada montanha, cada ser humano, tudo o que
15 RON, pg 128
16 Esta é uma questão longe de estar resolvida. Há outros cientistas, como é o caso de Fred Hoyle, que
consideram que a evolução tão rápida da natureza na terra não se pode explicar apenas pela teroia da
evolução, a partir de mutações genéticas que são erros de reprodução e que dependem do puro acaso. Só
que a conclusão deste autor é que então teria que existir Deus, para orientar e acelerar o processo de
evolução. Mas...perguntamos, sendo o universo tão grande, não seria possível que, por acaso, num dos seus
milhões de recantos as coisas avançassem de forma diferente, tal e qual como temos na Terra?
17 CFJ, pg 309
14. é produto natural tem um grau de espontaneidade fundamental. Entre milhões de
hipóteses originárias foi aquela forma concreta que surgiu, foi aquela paisagem concreta
que surgiu. E não foi nem determinado nem previsto. É uma dávida no sentido em que
vale por si. Não tem uma finalidade pré-esquematizada (independentemente de poder ser
meio para outros produtos, mas nem isso estava previsto).
Mas não teria kant já intuído algo parecido com esta ideia? A resposta é sim. Se
atentarmos à distinção que Kant faz entre natureza e arte vamos chegar a um conceito de
natureza muito próximo do que aqui expusémos. Com efeito, Kant considera a beleza da
natureza como beleza livre e a beleza da arte como beleza aderente. A arte pressupõe um
conceito prévio do objecto que vai ser desenhado, pintado ou esculpido, e a perfeição do
objecto final segundo esse conceito. Kant diz mesmo que um produto da arte, para ser
belo, tem que parecer natureza. Mas não tem que parecer natureza num sentido básico de
imitação das figuras da natureza. Tem que parecer natureza precisamente pela sua
espontaneidade, ou seja: «sem mostrar vestígio de que a regra tenha pairado diante do
artista e tenha algemadoas faculdades do ânimo». Obviamente que a arte não é
espontânea e que o génio que a produz tem que ter uma determinada técnica. Mas a
questão é que no resultado final não pode transparecer qualquer resíduo de
intencionalidade na sua produção, para que a sua beleza se realce como a da natureza.
Na beleza da natureza a conformidade a fins é sem conceito determinado. E Kant dá-nos
vários exemplos em que é essencial, para a beleza do acontecimento, que ele seja livre e
espontâneo bortando da própria natureza e não uma farsa em que se tenta imitar a
natureza. É por isso que as flores artificiais não são tão belas como as flores naturais,
precisamente porque as primeiras não são espontâneas e correspondem a um produto que
foi pré-concebido para embelezar e por isso foi feito com uma finalidade e essa finalidade
é por sua vez é meio para o fim de agradar a vista dos seres humanos (entra assim na
cadeia da causalidade e dos conceitos). Outro exemplo que Kant dá é o do canto dos
pássaros, que não podemos submeter a nenhuma regra musical ao contrário do canto
humano, que é estudado e pré-concebido com determinadas regras.
Chegámos então ao fim deste percurso sobre a paisagem natural: para determinarmos o
conceito desta basta termos em conta a questão da
espontaneidade/imprevisibilidade/unicidade da natureza e dela excluirmos os objectos
singulares que não nos podem dar uma visão total da espontaneidade nem a percepção de
que nós mesmos somos essa espontaneidade.
Na contemplação da paisagem, porque sentimos o que sentimos? Sentimos um prazer
derivado do facto de nos encontrarmos (num frente a frente) com a indeterminibilidade
que está na origem do universo. Na verdade o ser humano vive imerso nos meios e nos
fins, nas coisas que servem para isto e nas coisas que dão jeito para aquilo, nas batatas
que servem para comer e na madeira que dá para fazer uma cadeira. E tudo isto segundo
regras determinadas. O ser humano, do camponês ao citadino, vive dentro do reino das
finalidades e dos meios. A contemplação da paisagem permite o encontro face-a-face
com a ausência de finalidade: «esta paisagem é bela porque não foi pensada por ninguém,
surgiu como que por acaso, não obedece a um plano inicial, é pura espontaneidade. Não
serve para nada, está ali, é grande, é tão grande, quase como o mundo. Está aberta para o
céu, para o infinito que nos rodeia, e que infinito tão belo precisamente porque é único,
porque podia ser outro mas é este e ninguém quis que fosse assim, aconteceu!». Mais
15. ainda: «Afinal este acaso também sou eu, tasmbém é a espécie humana, somos frutos de
um acaso que nos constitui originariamente. Tanto stress, tantas coisas que servem para
isto ou para aquilo, tantos planos que fazermos, e afinal na nossa origem encontra-se uma
pura indeterminabilidade, um acaso que nos constitui, como parte desta natureza
espontânea que somos. Afinal, também acontecemos! E podíamos perfeitamente não ter
acontecido!»
Assim, o sujeito humano, na contemplação da paisagem, funde-se com a própria
espontaneidade que constitui a natureza e que o constitui a si também, como que se
identiffica com uma das suas partes, que é precisamente toda aquela parte que tem que
ver com o jogo sem finalidade. Note-se que perante o objecto estético singular, esta
sensação não é possível da mesma maneira. Isto porque, apesar de haver aí um encontro
com essa espontaneidade, esse encontro nunca se aproxima de um encontro com a
totalidade da natureza e, por isso mesmo, também não é capaz de estabelecer a analogia
connosco próprios como seres que fazem parte da natureza. Por isso, a vista, a
profundidade e a panorâmica são essenciais para a contemplação de uma paisagem. Elas
permitem a fusão com o todo natural e a consciência que fazemos parte desse todo.
Hubert reeves afirma que «a beleza é uma experiência íntima entre o eu e o universo». Já
Schiller afirmava que «só o belo é que gozamos como indivíduo e como espécie». Para
Kant «o fundamento do prazer está na capacidade universal de comunicação do estado de
ânimo na representação dada». Isto significa que o belo atira-nos para uma essência
humana (comum a todos os seres humanos) que é precisamente a sua indeterminação
natural (o facto de sermos como espécie um produto do acaso natural) mas a verdade é
que esse sentimento só atinge uma dimensão realmente universal através da paisagem em
que o todo da natureza se insinua.
A fusão com a natureza, o sentimento de que nos fundimos com o natural e o acaso da
natureza, já o tinha intuído Merlau-ponty. Este autor considera que a primeira experiência
fenomenológica do ser humano não é a de uma consciência que voa sobre o mundo e que
se assume como sujeito direccionado para diversos objectos. A primeira experiência é a
experiência do corpo: antes de mais nada somos carne do mundo, não voamos sobre o
mundo, contrariamente, estamos mergulhados no mundo e somos da mesma carne da
carne do mundo. O sujeito é mundo. E é a partir daqui que podemos também melhor
compreender a experiência estética: na paisagem o ser humano que a contempla encontra-se
com a totalidade da parte natural que o constitui, não no sentido em que está
determinado pela natureza, mas no sentido em que ele próprio é natureza, ele é mundo,
ele, tal como aquelas planícies e montanhas, é fruto de um acaso sem finalidade. É
também a partir desta questão da finalidade que podemos perceber uma passagem de
Kant em que este se refere ao facto de muitas pessoas desejarem fugir para ilhas desertas
para fugir aos males do mundo18. Ao contrário do que parece insinuar Kant
posteriormente, o apelo destes locais não se dá porque a beleza daquela natureza
simboliza a bondade absoluta e a própria lei moral longe das maldades humanas. Aquelas
paisagens são belas porque estão completamente fora do mundo da finalidade e da
determinibilidade. Ali, as coisas não estão estritamente organizadas como deveres,
direitos, meios, fins,etc. Pois a natureza apresenta-se na sua mais pura inocência. As
pessoas que recorrem a estes locais fogem precisamente às preocupações (de ter que fazer
isto para conseguir aquilo, etc.) e também às más intenções (serem enganadas, conviver
18 CFJ, pg 176
16. com a calúnia, etc,) porque a contemplação da natureza é precisamente a ausência de
preocupação, a pura inocência, a ausência de finalidade.
Atentemos agora, muito brevemente, naquilo que diz Alain Roger sobre a paisagem19.
Este autor sustenta que a paisagem natural só aparece como bela para os citadinos, na
medida em que constitui algo como uma cópia das obras de arte sobre a paisagem, obras
de arte essas que os citadinos estão habituados a contemplar. Por outro lado, para os
camponeses a natureza nunca é bela precisamente porque eles têm prioritariamente uma
relação de utilidade com os objectos naturais. Pensamos haver aqui alguma coisa de
verdade, mas pouca. Com efeito, e segundo a teoria que aqui expusémos, para um
citadino que se dirige ao campo, e que contempla as águas e a terra à sua volta (ainda sem
um ponto de vista panorâmico, digamos que apenas passeando por caminhos no campo
que lhe não permitem nenhuma visão global), aqueles objectos singulares aparecem-lhe
com o seu quê de indeterminibilidade, com o seu grau de espontaneidade que
efectivamente têm. Este sentimento, obviamente que é quantitativa e qualitativamente
ampliado a partir do momento em que ele se encontra num local a partir do qual pode
vislumbrar algo como uma paisagem. E o que acontece com o camponês? Este, se passeia
calmamente pelo campo sem possuir a tal visão globalizante obviamente olhará os
objectos naturais singulares de uma forma diferente, na medida em que ele, para
sobreviver, tem prioritariamente uma relação de utilidade com esses objectos. Assim,
para ele, o aparecimento de um feto é sinal de que haverá por perto água e a possibilidade
de aquelas terras serem férteis. Mas logo que ele se possa encontrar num ponto mais alto,
a partir do qual possa vislumbrar um grande manto natural, então pensamos que a sua
sensação será fundamentalmente estética. Aí, alheado da relação de utilidade com os
objectos naturais singulares, propicia-se a visão de uma globalidade que lhe transmite a
sua essência de espontaneidade, de encontro com o acaso que constitui a natureza e a si
próprio20.
Terminemos o estudo da paisagem natural com alguns exemplos concretos. Por que razão
uma paisagem que combina muitos elementops diferentes e até contrastantes propicia um
sentimento estético mais intenso? A este respeito Hubert Reeves diz: A extraordinária
diversidade das formas, dos arranjos e dos comportamentos do universo contemporâneo,
não existiam há 15000 milhões de anos»; « Neste contexto cósmico, a actividade das
forças naturais pode tornar-se criadora (...) a inventividade da natureza é a chave para a
espantosa diversidade de seres e formas no universo (...) inúmeras espécies de flores
selvagens e borboletas tropicais no meio de um grande universo»21. O que aqui acontece
é que o vislumbre panorâmico da ausência de finalidade, encontra uma grande
diversidade. Ou seja, a ausência de finalidade não significa monotonia. O jogo livre da
19 O que aqui se dirá é apenas uma abordagem muito superficial sobre o pensamento do autor em relação à
paisagem, nomeadamente a partir de uma apresentação de um colega na aula, portanto, sem a
fundamentação globalizante da totalidade da obra do autor sobre o tema («Court essai sur la paisage»)
20 Analogamente, o camponês que vai pela primeira vez à cidade e que, imerso no meio das ruas, vai
contemplando as obras humanas singulares (objectos humanos singulares, como um prédio, um semáforo,
etc.) e como não tem nenhuma relação de utilidade com esses objectos pode possuir um sentimento estético
de encontro com a finalidade inerente ao ser humano: sente prazer ao se identificar com a espécie que tem
um grande potencial de transformação e autonomização em relação à natureza. Se este camponês subir a
um miradouro da cidade este sentimento é intensificado quantitativa e qualitativamente. Para o citadino, só
a partir do miradouro é que esse sentimento estético é possível
21 RON, pg. 135
17. natureza (sem preocupações) propicia-nos paisagens que mostram a positividade desse
jogo como algo que pode disparar em diferentes direcções sem nenhum objectivo nem
plano prévio. Isso obviamente amplia a força do encontro com o puro acaso que somos
com a própria natureza.
Olhemos agora para o deserto. Quando o contemplamos ele também é paisagem. Neste
caso, é a antítese da paisagem da diversidade que explicámos, mas apenas aparentemente.
Com efeito, o ser humano que olha o deserto entra em unidade com a ausência de
finalidade ali patente e, considerando-se ele próprio como acaso, experimenta uma
sensação de que aquela natureza que inventou por acaso planícies tão áridas e contrárias à
vida é precisamente a mesma natureza que inventou a espécie humanae o sujeito que a
contempla. Somos fruto do acaso tal como o deserto, sompos fruto de um jogo tal como o
deserto, e este jogo é tão imprevisível e sem finalidade que pode dar origem a seres tão
diferentes do ponto de vista do grau de complexidade (o ser humano e o deserto).
Por outro lado, há também a paisagem da vida, parecida com a da diversidade. Quando
olhamos muitas formas vivas enquadradas numa paisagem, o sentimento estético funda-se
na possibilidade do próprio vivo a partir do não vivo, possibilidade essa que se não
quer deixar pensar. Ou seja, analogamente à paisagem da diversidade, como é que o
acaso fez da terra e da água algo que se organiza e estrutura e vive? Primeiramente o
nosso pensamento não é atirado para a necessidade de uma finalidade que explique
aquilo. Contrariuamente, em primeiro lugar, experimentamos uma estupefacção perante o
que o acaso, sem objectivos, conseguiu fazer. Tudo o resto já é do nível da especulação.
Por último, por que razão determinadas formas organizadas nos suscitam um maior
prazer estético? É precisamente a consciência imediata de que essas formas são
organizadas por mero acaso que nos desperta o sentimento estético.22 Gostamos
precisamente do ordenado na natureza pela conciência de que continua a ser um ordenado
sem finalidade, e que brotou por acaso do próprio caótico.
2 – A paisagem urbana (e alguns casos intermédios).
A paisagem urbana. O que é? Obviamente há muitos tipos de paisagem urbana, e aqui,
para não nos estendermos demasiado, vamos considerar a paisagem urbana como uma
espécie de protótipo de paisagem da obra humana em contraposição à natureza. Ora, tal
como no caso da paisagem natural, analogamente, a paisagem urbana distingue-se do
objecto estético singular e distingue-se também da totalidade da obra humana. Quando
contemplamos uma criação da obra humana singular23, seja um prédio, ou mesmo uma
rua, e se vivemos imersos nesse espaço, então é óbvio que a relação que estabelecemos
com esses objectos é uma relação de utilidade, de meios para fins, etc (um prédio serve
para viver, um semáforo para regular o trânsito, as pedras na calçada para evitar a lama,
etc.). Por outro lado, a totalidade da obra humana apenas pode ser considerada pelo
conhecimento e não numa intuição sensível. Desta forma, podemos encarar a paisagem
22 «Por mais conforme a fins que agora pareçam estar organizadas a figura, a arquitectura er a inclinação
das terras para o recolhiomento das chuvas (...) todavia, uma investigação mais rigorosa dessas mesmas
coisas demonstra que elas aparecem simplesmente como o efeito ora de erupções vulcãnicas, ora de
dilúvios, ora também de invasões do oceano», CFJ, pg 356
23 Quando nos referimos a criações da obra humana singulares deixamos propositadamente de lado as obras
de arte. Aliás, a temática da arte está afastada dos objectivos do presente trabalho
18. como uma espécie de essência da obra humana, uma porção de obra humna que aponta
para a totalidade da obra humana. Isto porque, tal como na paisagem natural, para
contemplarmos uma paisagem urbana, precisamos de ter um ponto de vista determinado,
temos que nos situar num local elevado donde possamos vislumbrar toda uma cidade em
profundidade e panorâmica. E o que vemos? Já não olhamos para cada objecto singular
com a sua função particular. Precisamente o que nos assalta é um sentimento da força da
determinibilidade humana, da capacidade do ser humano, para, transformando o acaso
bruto da natureza, fazer vingar a sua parte humana que se encontra fora da natureza e que
é a capacidade para colocar fins, planear, estruturar e combater o acaso que o possa
apanhar desprevenido. Mas nesta contemplação há igualmente uma espécie de fusão em
que o indivíduo se identifica com toda a espécie, num encontro com a capacidade
determinadora e finalista da espécie humana.
A este respeito importa recordar a opinião de alguns autores marxistas e do próprio Marx:
«belo acontece quando temos a vivência sensível concreta da natureza que o ser humano
encontrou e transformou à sua medida humana (...) da paisagem cultural criada pelo ser
humano»24; «O objectivamente belo (...) surge sobre a base da apropriação da natureza
numa e por uma formação social dada, no processo de autocriação do ser humano no seu
próprio trabalho»25. Obviamente que aqui estes autores «puxam a brasa à sua sardinha»
no sentido em que restringem o belo aos objectos e conjuntos de objectos que resultam da
capacidade transformadora do homem numa luta constante contra a natureza. Mas se
considerarmos estes pensamentos como um contributo para pensar outro tipo de belo que
não o natural, então estamos no bom caminho. Na verdade, na paisagem urbana, ao
contrário da paisagem natural em que nos deparamos com o encontro e uma identificação
com a totalidade da natureza sem finalidade (o ser humano como fazendo parte da
natureza) o ser humano está à parte da natureza, e o encontro é precisamente com aquilo
que o distingue da natureza, ou seja, com a capacidade para colocar fins a si próprio e
utilizar os meios para chegar a esses fins, através da sua força criadora organizada que
transforma de forma racional a natureza. Mas a qualidade da contemplação é estética e
não obedece a nenuma finalidade ou utilidade. Ou seja, o objecto estético é a própria
finalidade mas esta não é contemplada de forma finalista.
Mas aqui coloca-se uma questão: até que ponto é que o encontro com a determiação
racional humana necessita da contemplação de um finitude aberta (na medida em que a
paisagem urbana, tal como a natural se encontra aberta para o céu)? É que a finitude
aberta em relação à paisagem natural é essencial para que se aponte para o infinito da
totalidade da natureza (para que esta se insinue como totalidade). Mas no caso da
paisagem urbana, a abertura da finitude é precisamente para o céu que é um elemento
natural e não para a totalidade da obra humana (que é finita). Ora, aqui a finitude aberta
parece aparecer apenas como um conceito auxiliar mas necessário, na medida em que não
parece existir outra forma de ter uma visão global de uma cidade que não seja a partir de
um ponto do qual se possa ver o céu. Talvez possamos imaginar uma daquelas cidades
construídas dentro de naves espaciais (só nos filmes) ou uma cidade na Terra com um
tecto altíssimo e que nos permita vislumbrar toda a sua grandeza e a força da
determinibilidade humana sem que os elementos naturais se mostrem (esta nem nos
filmes). Mas por outro lado, a verdade é que a presença do céu nos permite realçar a força
24 Erhard John, in BCE
25 Marx citado por Erhard John, in BCE
19. da finalidade humana contra o acaso que a rodeia, por um efeito de contraste.
Analogamente, podemos imaginar que um verdadeiro oásis natural e imenso (e aberto
para o céu) mas ladeado por cidades também imensas nos permite gozar muito mais o
prazer estético da contemplação da ausência de finalidade precisamente por estar em
contraste com a finalidade que o rodeia das construções humanas. Diferentemente, um
jardim numa cidade, apesar de possuir alguma importância estética, nunca alcança o
efeito da paisagem natural. Isto porque, por um lado, não existe aqui um ponto de vista
panorâmico e em profundidade e aberto claramente para o céu que aponte para a
totalidade da natureza. E por outro lado, um jardim é sempre natureza arranjada, tratada
para determinados fins estéticos, e por isso perde toda a força da espontaneidade, do
acaso, e da imprevisibilidade.
As combinações entre paisagem humanizada e paisagem natural intensificam o prazer
estético apenas e tão só se tanto a parte humanizada como a parte natural reenviarem
ambas para totalidades correspondentes. Isto implica que tem que existir panorâmica
(uma grande vista) e contraste, para que possa haver um encontro com cada uma das
essências humanas (ou seja, a parte humanizada tem que se exprimir com força em
contraste com uma parte natural que também se deve exprimir com força). Assim, o
prazer estético proporcionado pela visão de terras lavradas ou com trigo plantado não é
tão intenso quanto a contemplação da paisagem puramente natural ou do que a
contemplação de uma cidade. Na verdade, os campos de trigo, se forem vistos na
perspectiva da paisagem natural no sentido em que se tratam de produtos naturais,
perdem toda a força da imprevisibvilidade e espontaneidade, já que existe uma finalidade
concreta humana em plantar aqueles produtos. Por outro lado, se for visto a partir da
perspectiva da paisagem humanizada, em que o ser humano mostra a sua força
transformadora da natureza, esta paisagem não possui realmente muita intensidade,
porque o grau de transformação da natureza é baixo e por isso não consegue reenviar para
a totalidade da capacidade humana de transformação do acaso do natural num mundo
ordenado de fins e meios. Exactamente o mesmo raciocínio se pode aplicar a todas
aquelas paisagens campestres em que temos muita vegetação e também casas de campo
com quintais arranjados e natureza transformada em baixo grau.
Finalmente, terminamos este trabalho com um exemplo positivo em que tanto o encontro
do ser humano com a totalidade da natureza, como o seu encontro com a sua cultura e
capacidade transformadora da mesma natureza se encontram ambos presentes e se
intensificam por esse contraste em que aparecem: é precisamente a vista de uma cidade
como Lisboa, a partir de um miradouro da Graça, em que se contempla a força da cidade,
rodeada pelo céu em cima e pelo rio enorme e larguíssimo em frente, sem esquecer a
ponte que o atravessa. Aqui, tanto a grandeza dos elementos naturais reenviam para
aquela ausência de finalidade global que também nos constitui, como a grandeza da
cidade nos reenvia para a finalidade característica da totalidade da obra humana. Mas o
rio ganha com a presença da cidade e a cidade ganha com a presença do rio. O rio ganha
a sua força de espontaneidade porque está em contraste com toda a determinibilidade
humana, e a cidade (com a ponte que galga o rio) ganha a sua força de determinação
porque contrasta com o elemento natural que pretende contornar e dominar.
E se vislumbrarmos um rio totalmente poluído? Aí a paisagem perde toda a sua força,
porque a pureza do elemento do acaso (o rio) é anulada pela força da determinação da
cidade. È por isso que a poluição, além de ser um problema de saúde pública, é uma
20. experiência estética negativa, em que a espontaneidade do elemento natural aparece como
que amordaçada e transfigurada, deixando de ser elemento natural para ser elemento
morto, pois nem sequer se pode encarar como uma finalidade ou um meio para um fim
humano, mas apenas como uma consequência negativa da organização em meios e fins
da sociedade humana. Portanto, o rio poluído já não é paisagem natural (já não é
espontâneo, é fruto de uma actividade humana) mas também não é elemento humanizado
(na medida em que a sua poluição não é nem meio nem fim para a actividade humana). É
tão só elemento morto. Só que uma montanha rochosa também é elemento morto mas é
bela precisamente porque possui a tal espontaneidade. Por isso o rio poluído não é bem
elemento morto. É elemento mortificado!
4 – Bibliografia
«Crítica da Faculdade do juízo», Kant , Estudos Gerais, Série universitária-clássicos de
filosofia (CFJ)
«O mundo como vontade e representação», Schopenhauer, Arthur, Rés Editora
«Malicorne – reflexões de um observador da natureza» Reeves, Hubert, Gradiva (RON)
Elogio do Sensível» Matos Dias, Isabel, Litoral edições
«A estética» Huisman, Denis Edições 70
«O belo como categoria estética», Pina, Álvaro, Horizonte Universitário (BCE)
Miguel Reis 23361