A concepção de imagem em Deleuze e Bergs

1. coordenador
S A N D R O K O B O L F O R N A Z A R I
D e l e u z e
H o j e
organizadores
A D R I A N A B A R I N D E A Z E V E D O
BÁRBARA L U C C H E S I R A M A C C I O T T I
C Í N T I A V I E I R A D A S I L V A
C L E B E R D A N I E L L A M B E R T D A S I L V A
T
E D I T O R A
F A P - U N I F F . S P

2. ( ! n | i y i l ^ l i r " ' Í I H -i liy O r g a n i z a d o r e s
l^iclia caialográfica e l a b o r a d a pela B i b l i o t e c a d a E F L C H / U n i f e s p
D e l e u z e H o j e / c o o r d e n a d o r S a n d r o K o b o l F o r n a z a r i ; o r g a n i -
zadores, A d r i a n a B a r i n d e A z e v e d o ... [etaí.].- São P a u l o :
E d i t o r a F a p - U n i f e s p , 2014.
576 p.; 14 X 21 c m
I S B N 978-85-61673-71-0
I . D e l e u z e , Giles, 192.5-1995 - Crítica e inierpretaçáo. 2. F i -
losofia francesa. 3. Diferença - Filosofia. 4. S u b j e t i v i d a d e .
5. A r t e e filosofia. 6. C o r p o h u m a n o - Filosofia, r. F o r n a -
zari, S a n d r o K o b o l . 11. A z e v e d o , A d r i a n a B a r i n . 111. Título.
C D D 194
A p o i o F a p e s p
A s opiniões, hipóteses e conclusões o u recomendações expressas
neste m a t e r i a l são d e r e s p o n s a b i l i d a d e do{s) autor(es) e não n e -
c e s s a r i a m e n t e refletem a visão d a F a p e s p .
D i r e i t o s e m língua p o r t u g u e s a r e s e r v a d o s à
E D I T O R A F A P - U N I F E S P
Fundação d e A p o i o à U n i v e r s i d a d e Federal d e São P a u l o
R u a José d e Magalhães, 80 - V i l a C l e m e n t i n o
04026-090 - São P a u l o - S P - B r a s i l
(11) Z 3 6 8 4022
w w w . e d i t o r a f a p u n i f e s p . c o m . b r
wvfw. f a c e b o o k . c o m / E d ito raFa p Unifèsp
I m p r e s s o n o Brasil 2014
F o i feito o depósito legal
S U M Á R I O
Prefácio - Eládio C. P. Craia 1 1
( c o m a colaboração de A d r i a n a B . de A z e v e d o e S a n d r o K . Fornazari)
P A R T E i : E N C O N T R O S C O N C E I T U A I S P A R A U M A
F I L O S O F I A D A D I F E R E N Ç A
1. I n t e n s i v o e E x t e n s i v o n a Ética de E s p i n o s a : a Interpretação dos
M o d o s F i n i t o s p o r D e l e u z e 2 1
Marilena Chaui
2. E s p i n o s a em D e l e u z e 4 1
Maurício Rocha
3. E s p i n o s a : " O M a i s Filósofo dos Filósofos" 6 1
Gislene Almeida
4. D e l e u z e , Leitor Bergsoniano de Espinosa^. 7 5
Marine de Souza Pereira
5. O E x p r e s s i o n i s m o Filosófico de D e l e u z e :
E s p i n o s a e/ou L e i b n i z 9 7
Paulo Domenech Oneto
6. Pequena Lição sobre o E m p i r i s m o na História da Filosofia
de G i l l e s D e l e u z e (entre a teoria das relações de H u m e e a
7

3. imanência de E s p i n o s a , a propósito d a tese acerca d a
u n i d a d e ontológica da substância múltipla) 115
Hélio Rebello Cardoso Jr.
7. D e l e u z e e a S i n g u l a r i d a d e da Experiência Real:
E n t r e H u m e e K a n t 1 2 7
Sandro Kobol Fornazari
8. K a n t e m u m a Estética d o I n t e n s i v o 1 4 3
Cíntia Vieira da Silva
9. A Ideia de Génese: E n t r e D e l e u z e e K a n t 1 6 3
Constantino Lucena Barreto
TO. A Presença K a n t i a n a n a Interpretação D e l e u z i a n a
d o E t e r n o R e t o r n o 1 7 9
Péricles Pereira de Soma
11. Pensar Nómade: D e l e u z e e o Efeito N i e t z s c h e 2 0 3
Zamara Araujo dos Santos
12. Gilles D e l e u z e , L e i t o r à^A Evolução Criadora de
H e n t i Bergson 2 1 7
Silvana de Souza Ramos
13. O Presente V i v o e m B e t g s o n e D e l e u z e 2 3 1
Fernando Monegalha
14. C i n e m a e Ciência M o d e r n a s e g u n d o u m a L e i t u r a
D e l e u z i a n a de Bergson 2 4 9
Luiz Roberto Takayama
15. A Concepção de I m a g e m e m D e l e u z e e Bergson 2 6 1
Bruno Leites e Ione Bentz
16. M a t e r i a l i s m o da Ideia: P o r Q u e a Diferença Não
é o Diverso? 2 8 1
João Gabriel Alves Domingos
17. D e l e u z e e os Slogans àz Imanência 2 9 5
Cleber Daniel Lambert da Silva
8 D E L E U Z E H O J E
1 H. D o Papel da História da Filosofia n o P r o c e d i m e n t o
D e l e u z i a n o 3 1 5
Bernardo Tavares dos Santos
i ' A H T E 1 1 : E N C O N T R O S E X P R E S S I V O S E N T R E A A R T E ,
O C O R P O E A S U B J E T I V I D A D E
19. C) L i a m e M u s i c a l o u ao M o d o de u m D e v i r - m u s i c a l 3 4 1
Pedro de Albuquerque Araujo
10. A Dromopolítica Contemporânea c o m o P r o d u t o r a de
u m Falso N o m a d i s m o para as Subjetividades 3 5 9
Rafael Augusto Kwiatkoski Vieira
21. A Interpreraçáo D e l e u z i a n a de P r o u s t : A p r e n d i z a d o
c S u b j e t i v i d a d e 3 7 3
Leonardo Maia
11. O P a r a d o x o d a Expressão: A P r o c u r a d e u m a Noção
para a Alienação 3 9 1
Luis Eduardo Aragon
23. A Expressão d o E n c o n t r o e n t r e D e l e u z e e E s p i n o s a n o
C a m p o da Clínica 4 0 9
Adriana Barin de Azevedo
24. Deleuze e a T e o r i a das M u l t i p l i c i d a d e s : Para Além
dos D u a l i s m o s n o D e b a t e Historiográfico 4 2 3
Roger Aníbal Lambert da Silva e Rodrigo Amaro de Carvalho
zç. Eliminação: U m a Desterritorialização d a
M o r a l M o d e r n a 4 4 3
Gisele Gallicchio
16. D e l e u z e - B e c k e t t : U m E n c o n t r o - l e i t u r a 4 6 1
Annita Costa Malufe
ly. Por u m a Estética da Diferença: U m Diálogo e n t r e
D e l e u z e e A r t a u d 4 7 9
Chiu Vi Chih
S U M Á R I O

4. 28. D e l e u z e e A r t a u d : U m Passeio pelo Corpo sem Órgãos
Márcio Sales da Silva
29. A Importância de Pensar o Além d o Princípio de Prazer n a
Filosofia T r a n s c e n d e n t a l : Diálogos e n t r e D e l e u z e e F r e u d
Aline Sanches
30. D e l e u z e L e i t o r de M a s o c h : D a S i n t o m a t o l o g i a à Ética
Homero Santiago
31. D e l e u z e e H e g e l : Variações a R e s p e i t o de Necessidade
da A r t e 5 4 3
Luiz B. L. Orlandi
Sobre os A u t o r e s 5 6 9
D E L E U Z E H O J E
P R E F Á C I O
Sa b e m o s q u e náo necessariamente o título de u m l i v r o é sua síntese
absoluta, n e m o s i g n o secreto p l e n o e revelador d e seu conteúdo
essencial, m a s não se d e v e i n f e r i r deste fato q u e ele, p o r definição, não
m a n t e n h a a b s o l u t a m e n t e n e n h u m a relação nevrálgica c o m o corpus
escrito n a sua sequência o u q u e seja s i m p l e s m e n t e u m a t r i b u t o f o t m a l ,
u m a m e r a exigência da tradição e d i t o r i a l . T o d o título, c o m o p a r t e d o
i c x t o - l i v r o , a o m e s m o t e m p o expõe e o c u l t a a l g u m a coisa i m p o r t a n t e
das páginas q u e precede. T r a z à superfície, s e m ser r e s u m o , u m traço
q u e se apresenta c o m o c e n t r a l , presente de m o d o m a i s o u m e n o s per-
m a n e n t e e às vezes oblíquo, nos diferentes s e g m e n t o s c o n s t i t u t i v o s d o
t e x t o , ao m e s m o t e m p o q u e o c u l t a a m u l t i p l i c i d a d e de e l e m e n t o s q u e
compõe seu conteúdo. E a alça q u e aparece e q u e se m o s t r a , a q u e l a
q u e a j u d a a levar a miríade d e l e i t u r a s q u e o t e x t o promoverá, m a s
a i n d a o c u l t a c o m o conteúdo a ser extraído.
A s s i m , q u e q u e r d i z e r " D e l e u z e H o j e " ? C o n s i d e r a n d o q u e seja
m a n i f e s t o o q u e q u e r dizer " D e l e u z e " , suposição p u r a m e n t e hipotéti-
ca, ad hoc, e neste caso c o m fins e x c l u s i v a m e n t e retóricos, d a d o q u e ,
tlc fato, estamos l o n g e de saber o q u e q u e r dizer D e l e u z e , resta-nos es-
pecular sobre o " h o j e " , r e c o n h e c e n d o c o m o e v i d e n t e q u e sua alocação
n o título excede, a i n d a q u e não a s u p r i m a t o t a l m e n t e , a m e r a fiinçáo
lie ( o r m a s u b s t a n t i v a d a o u de advérbio de t e m p o .
I I

5. teria s i d o i g u a l m e n t e o c i n e m a , n o início, forçado a i m i t a r a percepção
n a t u r a l ? E c e r t o q u e o c i n e m a , n o período d e seu s u r g i m e n t o , estava
a i n d a m u i t o d i s t a n t e d a q u i l o q u e ele iria se t o r n a r :
1...] qual era a situação d o cinema? D e u m lado, a câmera era fixii. n
plano era, p o r t a n t o , espacial e f o r m a l m e n t e imóvel; de o u t r o , o aparelho dc
filmagem era c o n f u n d i d o c o m o aparelho de projeção, dotado de u m tcmpii
u n i f o r m e abstrato. A evolução d o cinema, a conquista de sua própria csst-iu Iti
o u novidade se fará pela m o n t a g e m , pela câmera móvel e pela emancipiii,a(i
da filmagem, que se separa da projeção. O plano deixará então de scv iim
categoria espacial para tornar-se temporal; e o corte será u m corte móvel r
náo mais imóvel. O cinema reencontrará exatamente a i m a g e m - m o v i n i c i i l n
d o p r i m e i r o capítulo de Matéria eMemória^.
M a s , além dessa percepção cinematográfica d a i m a g e m - m o v i m r n
t o , o u j u n t o dessa percepção, não h a v e r i a d e se c o n s i d e r a r t a m l u t n
u m p e n s a m e n t o p r o p r i a m e n t e cinematográfico? E , m a i s a i n d a , M . I M
teria esse p e n s a m e n t o cinematográfico a l g u m a relação c o m esse p n i
s a m e n t o n o v o q u e r e c l a m a B e r g s o n , esse p e n s a m e n t o da duração i iii'
p o r t a s h a v i a m s i d o abertas j u s t a m e n t e pela ciência m o d e r n a ? I . i l •
a s s i m n o s parece, a hipótese i n i c i a l l e v a n t a d a p o r D e l e u z e . O
talvez c o n t r i b u a p a r a q u e se possa começar a c o m p r e e n d e r o lii|',.n
s i n g u l a r q u e o c i n e m a o c u p a e m sua o b r a filosófica, c o m o taiiili('iM
para trazer a l g u m a l u z para pensar a relação c o m p l e x a e n t r e ciiicin '
filosofia tal c o m o ele a concebe.
R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S
B E R G S O N , H e n r i . A Evolução Criadora. R i o de Janeiro, D e l t a , 1964.
D E L E U Z E , Gilles. Cinema i — A Imagem-Movimento. São Paulo, Br.ij|lrM|^
1985.
E S P I N O S A , Baruch. "Correspondência". I n : Espinosa. São Paulo, Al)iil. Wf;
(Coleção O s Pensadores).
9. G. Deleuze, op. cit., pp. n - i 2 .
2 6 0 D E L E U Z E H O J E
1 5 . A C O N C E P Ç Ã O D E I M A G E M E M
D E L E U Z E E B E R G S O N
B r u n o L e i t e s e I o n e B e n t z
Ap r o p o s t a deste t e x t o é i n v e s t i g a r o c o n c e i t o d e i m a g e m n a a t u a -
lizaçáo q u e D e l e u z e faz de B e r g s o n . E m B e r g s o n , i m a g e m t e m
u m s e n t i d o a m p l o : é o c o n j u n t o d e t u d o q u e aparece, é o q u e se per-
' • l i f d c a c o r d o c o m a a b e r t u r a e o f e c h a m e n t o dos sentidos. D e l e u z e
• i p r o p r i a dessa ideia, m a s tece poderosas especificações acerca d a
l i n . i n c m d e c i n e m a . S e g u n d o B e r g s o n , o c o n c e i t o de i m a g e m está n o
<••• i n - t c r m o e n t r e o r e a l i s m o e o i d e a l i s m o , v e r t e n t e s opostas n a filo-
ii I. Este m e i o - t e r m o seria o m o d o c o m o o senso c o m u m e n t e n d e
I i|ui'stão, já q u e t a n t o r e a l i s m o q u a n t o i d e a l i s m o s o a r i a m a o senso
• i - m i n n c o m o teses e x t r e m a s e exageradas. O senso c o m u m a c h a r i a
ilrncnte estranhas as afirmações de q u e a matéria só existe para a
' .1 líncia q u e a percebe, e q u e , p o r t a n t o , não t e r i a u m a realidade
• l i kl, o u , então, q u e a matéria t e m u m a realidade e m si, m a s não é
n i l l o q u e se percebe, q u e o perceptível é tão s o m e n t e a representação
^ U i n < < esteta além. " P o r t a n t o , p a r a o senso c o m u m , o o b j e t o existe
i n c s m o , e, p o r o u t r o l a d o , o o b j e t o é a i m a g e m dele m e s m o t a l
^ H p u percebemos: é u m a i m a g e m , m a s u m a i m a g e m q u e existe e m
^ ^ n i l l v e z s o e e s t r a n h o falar e m i m a g e n s q u e e x i s t e m e m si, e m i m a -
itUN quais n e m sequer precisa aparecer alguém. E q u e , s e g u n d o
^ ^ B t i h i i ^ M i n , Matéria eMemória, p. 2.
261

6. D e l e u z e , trata-se de u m a reversão e m filosofia, q u e a p r o x i m a matéria e
l u z , o u seja, q u e afasta a matéria da escuridão q u e p o r v e n t u t a v e n h a a
receber a l u z de u m a d e t e r m i n a d a consciência o u vida^. O f a t o de a l u z
estar n a matéria i m p l i c a q u e p o s s a m o s considerar a i m a g e m q u e existe
e m si, u m a l u m i n o s i d a d e q u e não precisa d e v e t o r e s e x t e r n o s p a r a
revelar-se. Trata-se, ao q u e t u d o i n d i c a , de u m a premissa f u n d a m e n t a l
da i m a g e m - m o v i m e n t o : " A i d e n t i d a d e d a i m a g e m e d o m o v i m e n t o
funda-se n a i d e n t i d a d e d a matétia e da l u z " ' .
A matéria é p a r a B e r g s o n u m c o n j u n t o d e i m a g e n s q u e existe
e m u m r e g i m e q u e ele c h a m a d e variação u n i v e r s a l : todas as i m a -
gens v a r i a m e n t r e si s e g u n d o todas as suas características'*. A s i m a g e n s
r e l a c i o n a m - s e previsível e i n i n t e r r u p t a m e n t e s e g u n d o t o d o s os seus
aspectos, d e a c o r d o c o m as leis d a n a t u r e z a , o q u e i m p l i c a dizer q u e
não há percepção consciente n o âmbito d a matéria, exceto nas zonas
de indeterminação, nas i m a g e n s especiais, n o s seres v i v o s . E nesse
âmbito q u e acontece a produção d a n o v i d a d e , é a s s i m q u e o ser v i v o
consegue transcender o t r a n s c o r r e r da matéria. D e c e r t o , há variações
de g r a u s e g u n d o os níveis de c o m p l e x i d a d e dos seres v i v o s , m a s essa
é i n v a r i a v e l m e n t e sua p r e r r o g a t i v a c o m o I m a g e n s especiais, desde o
nível m a i s primário, q u e p o u c o se d i s t i n g u e da matéria s e m v i d a , até o
m a i s c o m p l e x o , q u e p o u c o t e m e m c o m u m c o m a matéria s e m v i d a .
O s c e n t r o s d e indeterminação f u n c i o n a m p a r a q u e a l u z da m a -
téria não se p r o p a g u e i n d e f i n i d a m e n t e . O q u e f a z e m é r e t r a i r dessas
i m a g e n s apenas o q u e interessa, d e a c o r d o c o m sua atenção à v i d a e
c o m a necessidade d e agit n o presente. P o r isso, nos seres v i v o s não
2. "Há aí u m a r u p t u r a c o t n t o d a a tradição filosófica, q u e s i t u a v a a l u z a n t e s d o
l a d o d o espírito, e fazia d a consciência u m f e i x e l u m i n o s o q u e t i r a v a a s c o i s a s
d e s u a o b s c u r i d a d e n a t i v a " ( G . D e l e u z e , A I m a g e m - M o v i m e n t o , p . 8i).
3. I d e m , i b i d e m , loc. cit.
4. " I n d i f e r e n t e s u m a s às o u t r a s e m razão d o m e c a n i s m o q u e a s v i n c u l a , e l a s a p r e -
s e n t a m r e c i p r o c a m e n t e , u m a s às o u t r a s , t o d a s a s s u a s f a c e s a o m e s m o t e m p o ,
o q u e e q u i v a l e a d i z e r q u e e l a s a g e m e r e a g e m e n t r e s i p o r t o d a s a s s u a s p a n e s
e l e m e n t a r e s , e q u e , c o n s e q u e n t e m e n t e , n e n h u m a d e l a s é p e r c e b i d a n e m p e r -
c e b e c o n s c i e n t e m e n t e " ( H . B e i ^ o n , Matéria e Memória, p . 34).
2 6 2 D E L E U Z E H O J E
há variação u n i v e r s a l s e g u n d o todas as parres d a i m a g e m , c o m o n a
matéria simples. Essa é j u s t a m e n t e a possibilidade de ação consciente.
A açáo c o n s c i e n t e i m p l i c a q u e n a percepção náo h a j a u m " m a i s " d o
q u e n a matéria, m a s u m " m e n o s " , c o m p r e e n d e n d o a percepção c o m o
u m a "tela" q u e d e i x a passar a ação real, m a s q u e retém a açáo v i r t u -
al d a i m a g e m percebida^ D e l e u z e alerta q u e , e m q u a l q u e r caso, e m
a m b o s os sistemas da variação, referentes o u náo às zonas de i n d e t e r -
minação, não d e i x a m o s d e falar da "imagem-matéria-movimento". É
q u e as zonas d e indeterminação "apenas" o f e r e c e m u m i n t e r v a l o n o
fluxo contínuo da variação u n i v e r s a l , o q u e faz c o m q u e p a r t a m o s das
i m a g e n s e m q u a l q u e r caso, e c o m q u e e n t e n d a m o s o cérebro c o m o
u m a i m a g e m e n t r e o u t r a s , especial, m a s incapaz de ser u m c r i a d o r de
i m a g e n s . A p r i m e i r a vista, p o d e parecer q u e essa perspectiva e n t r a e m
c o n f l i t o c o m a tese de q u e a m e n t e a t u a l i z a lembranças e m i m a g e n s -
-lembrança. Não d e v e m o s esquecer, porém, q u e o cérebro ( o c o r p o
e m gerai) a t u a c o m o u m intermediário e n t r e as i m a g e n s d o presente e
as lembranças da memória, as quais se a t u a l i z a m n a m e n t e . P o r t a n t o ,
m e s m o deste p o n t o d e vista, o cérebro náo é u m c e n t r o de criação d e
i m a g e n s , m a s u m a i m a g e m e n t r e o u t r a s n a variação u n i v e r s a l .
N e s t e p o n t o , é possível c o m p r e e n d e r a p r o f u n d a relação das t e o -
rias d e B e r g s o n c o m o c i n e m a , q u e s u r g i r i a a l g u n s meses d e p o i s d o
lançamento de Matéria e Memória. N a referência explícita ao c i n e m a ,
B e r g s o n p r i v i l e g i o u o nível da tecnologia, d o m o d o c o m o o m o v i m e n -
t o é p r o d u z i d o através d a exposição dos f o t o g r a m a s e m v e l o c i d a d e
não perceptível a o o l h o h u m a n o . M a s a relação q u e faz D e l e u z e é d e
o u t r a o r d e m : a concepção d e u m a matéria fluente q u e aparece c o m o
i m a g e m é a própria i m a g e m - m o v i m e n t o , é o próprio m u n d o p e n s a d o
c o m o c i n e m a . O u seja, o c i n e m a t e r i a e x p l i c i t a d o este c o n c e i t o d e
m u n d o q u e B e r g s o n pensara a n t e r i o r m e n t e à sua invenção.
M a s é preciso a t e n t a r para o fato d e q u e o c i n e m a n e m s e m p r e
m o s t r o u a i m a g e m - m o v i m e n t o , o u antes, c o m o prefere D e l e u z e , p a r a
5. I d e m , i b i d e m , p p . 32-33.
A C O N C E P Ç Ã O D E I M A G E M E M D E L E U Z E E B E R G S O N

7. o fato de q u e o c i n e m a só v e i o a se desenvolver anos antes da invenção
d o a p a r a t o técnico q u e l h e s e r v i u de base. A s s i m , n o s p r i m e i r o s anos,
antes da liberação da câmera e d a consolidação da m o n t a g e m , o c i n e -
m a m o s t r a v a i m a g e n s e m m o v i m e n t o , m a s não a i m a g e m - m o v i m e n t o .
É q u e , nos primórdios, o m o v i m e n t o era reconstruído através d o i n s -
tantâneo, p o t q u e s u b o r d i n a d o à fixidez d a câmera, o u seja, era o i n s -
t a n t e + o m o v i m e n t o artificial, a i m a g e m fixa + o m o v i m e n t o . D e p o i s ,
os m o v i m e n t o s de câmera c a m o n t a g e m l i b e r a r a m o m o v i m e n t o , q u e
o c i n e m a passou a m o s t r a r c o m o e x i s t i n d o e m si, não s u b o r d i n a d o
ao instantâneo. E f o i apenas nesse m o m e n t o q u e o c i n e m a passou a
existir, n a concepção de D e l e u z e , p o r q u e passou a m o s t r a r a i m a g e m -
- m o v i m e n t o e não m a i s as i m a g e n s e m m o v i m e n t o .
O c i n e m a a p r o v e i t a as duas f o r m a s d e percepção, quais s e j a m , a
o b j e t i v a , q u e se refere aos e l e m e n t o s c o m u n s da matéria, e a subjetiva,
q u e se refere às zonas de indeterminação. T a l é o s e n t i d o q u e p o d e m o s
d e p r e e n d e r da explicação de Deleuze'^. Além disso, p o d e m o s c o n c l u i r
q u e a introdução da s u b j e t i v i d a d e n o m o d o d e percepção d o c i n e m a
é u m a espécie d e avanço n a i m a g e m - m o v i m e n t o , u m a especificação
q u e , e m b o r a se m a n t e n d o n o nível dessas i m a g e n s , p r o d u z u m a d i f e -
rença: a imagem-percepçâo.
A imagem-percepçáo é apenas u m dos lados d o h i a t o q u e c o n s t i t u i
a z o n a de indeterminação, é a " p o r t a de e n t r a d a " , poderíamos dizer, n a
6. " S e o c i n e m a não c e m d e m o d o a l g u m c o m o m o d e l o a percepção n a t u r a l s u b -
j e t i v a , é p o r q u e a m o b i l i d a d e d e s e u s c e n t r o s , a v a r i a b i l i d a d e d e s e u s e n q u a d r a -
m e n t o s o l e v a m s e m p r e a r e s t a u r a r v a s t a s z o n a s a c e n t r a d a s e d e s e n q u a d r a d a s :
ele t e n d e , então, a e n c o n t r a r o p r i m e i r o r e g i m e d a i m a g e m - m o v i m e n t o , a v a -
riação u n i v e r s a l , a percepção t o t a l , o b j e t i v a e d i f u s a . N a v e r d a d e e l e p e r c o r r e o
c a m i n h o n o s d o i s s e n t i d o s . D o p o n t o d e v i s t a q u e n o s i n t e r e s s a p o r e n q u a n t o ,
v a m o s d a percepção t o t a l o b j e t i v a , q u e s e c o n f u n d e c o m a c o i s a , a u m a p e r -
cepção s u b j e t i v a , q u e d e l a s e d i s t i n g u e p o r s i m p l e s eliminação o u substituição.
É esca percepção s u b j e t i v a q u e d e n o m i n a m o s percepção p r o p r i a m e n t e d i t a .
E é e s t e o p r i m e i r o a v a t a r d a i m a g e m - m o v i m e n t o : q u a n d o a r e p o r t a m o s a
l u n c e n t r o d e indeterminação, c i a s e t o r n a imagem-percepção" ( G . D e l e u z e , A
I m a g e m - M o v i m e n t o , p . 86).
2 6 4 D E L E U Z E H O J E
q u a l a i m a g e m v a i e n c o n t r a r a barreira q u e a I m p e d e de variar s e g u n d o
todas as suas características. D o o u t r o l a d o d o h i a t o , q u e r e s t i t u i a o
e x t e r i o r o m o v i m e n t o recebido, está a imagem-açáo, s e g u n d o avatar
da i m a g e m - m o v i m e n t o . O s seres v i v o s , p o r t a n t o , c o m o zonas de i n d e -
terminação, r e c e b e m p r i m e i r o as i m a g e n s - m o v i m e n t o , n a percepção,
e depois r e s t l t u e m - l h a s à variação u n i v e r s a l , n a ação.
M a s e n t r e as d u a s e x t r e m i d a d e s d a i m a g e m - m o v i m e n t o está a
imagem-afecção, p e l a q u a l o s u j e i t o absorve os e l e m e n t o s m a t e r i a i s
s e m restituí-los a o m o v i m e n t o . N a definição d e D e l e u z e , a afecção
surge " n o s u j e i t o , e n t r e u m a percepção p e r t u r b a d o r a sob certos aspec-
tos e u m a ação hesitante"^. A ideia de u m a ação h e s i t a n t e , q u e não se
realiza, parece f u n d a m e n t a l para não c o n f u n d i r m o s a imagem-afecção
c o m as i m a g e n s óticas e sonoras puras, d o m o d o c o m o o n e o r r e a l i s m o
i t a l i a n o as c o n c e b e u : " s u p u n h a m q u e u m p e r s o n a g e m se e n c o n t r a
n u m a situação, seja c o t i d i a n a o u extraordinária, q u e t r a n s b o r d a q u a l -
q u e r ação possível o u o d e i x a s e m reaçáo. E f o r t e demais, o u d o l o r o -
so d e m a i s , belo d e m a i s . A ligação sensório-motora f o i r o m p i d a " ^ A o
contrário, a afecção náo r o m p e o e s q u e m a sensório-motor, e t a m -
p o u c o é u m a falha n o s i s t e m a de percepção e ação. A afecção é u m a
q u a l i d a d e d o ser v i v o d e absorver o m o v i m e n t o , s e m transformá-lo
e m o b j e t o de percepção o u e m ato d e s u j e i t o . D e l e u z e l e m b r a q u e a
face dos seres v i v o s responsável pela percepção é imóvel, ao passo q u e
a m o b i l i d a d e , capacidade de reaçáo, está relegada a o u t r o s órgãos^. O
a u t o r está a u t o r i z a d o pela afirmação d e B e r g s o n , s e g u n d o a q u a l não
há diferença d e n a t u r e z a e n t r e a matéria e a percepção d a maréria:
c o m o a matéria é o i n s t a n t e , não se m o v e , apenas está n o m o v i m e n t o ,
pode-se dizer também d a percepção q u e é imóvel'". R e t o m a n d o , n a
7. I d e m , i b i d e m , p . 87. ,
X. I d e m , Conversações, p . 68.
B e r g s o n c h a m a d e "órgãos d e nutrição" o s responsáveis p e l a percepção e d e
"órgãos d e ação" o s responsáveis p e l a própria ação ( H . B e r g s o n , Matéria e
Memória, p p . 66-68).
m . " [ . . . ] e n t r e e s s a percepção d a matéria e a própria matéria há a p e n a s u m a d i f e -
A C O N C E P Ç Ã O D E I M A G E M E M D E L E U Z E E B E R G S O N

8. afecção os órgãos de percepção não r e f l e t e m o m o v i m e n t o para a p o s -
t e r i o r reação dos órgãos c o m p e t e n t e s . Pelo contrário, a b s o r v e m e m si
esse m o v i m e n t o , m a s , s e m competência necessária para a restituição
d o m o v i m e n t o , a reação soa c o m o u m "esforço m o t o r n u m a p l a c a
r e c e p t o r a i m o b i l i z a d a " . A reação a o m o v i m e n t o n a afecção define-se,
então, p o r u m a tendência d e resposta q u e não chega j a m a i s a a c o n -
tecer. L o n g e d e ser u m a falha n o sistema, é u m a q u a l i d a d e dos seres
v i v o s q u e , assim, a o absorver a i m a g e m (matéria), se c o n e c t a m a ela,
m a r c a n d o u m a v e r d a d e i r a coincidência e n t r e s u j e i t o e o b j e t o " .
Já p o d e m o s c o m p r e e n d e r p o r q u e a i m a g e m - m o v i m e n t o c o n f i -
g u r a u m e s q u e m a sensório-motor, baseado n o s p o s t u l a d o s clássicos
de açáo e reação. O s três t i p o s de i m a g e n s - m o v i m e n t o , seus avatares,
c o m o refere D e l e u z e , são e l e m e n t o s c u j o f u n c i o n a m e n t o expõe m o -
m e n t o s d o m o v i m e n t o de variação u n i v e r s a l . O c i n e m a t e m o mérito
de m o s t r a r a a u t o n o m i a deste m o v i m e n t o , n o s e n t i d o de q u e são as
coisas q u e estão n o m o v i m e n t o , e não o m o v i m e n t o q u e está nas c o i -
sas. Daí a especificidade dessa arte que, t o d a v i a , neste m o m e n t o a i n d a
não c o n s e g u e t r a n s c e n d e r o clássico e s q u e m a n a r r a t i v o baseado n o
p o s t u l a d o de ação e reaçáo. V i m o s q u e , para D e l e u z e , o c i n e m a n e m
sequer existia nos primórdios e m q u e p r o d u z i u i m a g e n s e m m o v i m e n -
t o e não i m a g e n s - m o v i m e n t o . M a s , a i n d a a q u i , e m b o r a reconheça sua
existência, D e l e u z e náo c o n s i d e r a q u e o c i n e m a t e n h a d e s e n v o l v i d o o
seu m a i o r p o t e n c i a l , a característica q u e revelaria a sua essência. Isso
só v i r i a a acontecer q u a n d o o c i n e m a transcendesse o próprio m o v i -
m e n t o para chegar ao t e m p o .
N a s teses sobre o m o v i m e n t o , e m B e r g s o n , há três níveis, q u e r e -
v e l a m q u e o m o v i m e n t o é u m intermediário q u e conecta, de u m l a d o ,
o t e m p o , e, de o u t r o , o espaço. O t e m p o é o T o d o a b e r t o , a duração,
e n q u a n t o o espaço é a matéria, o instantâneo. O m o v i m e n t o é u m
rença d e g r a u , e náo d e n a t u r e z a , a percepção p u r a e s t a n d o p a r a a matéria n a
relação d a p a r t e c o m o t o d o " { i d e m , i b i d e m , p p . 75-76).
I I . G . D e l e u z e , A I m a g e m - M o v i m e n t o , p . 88.
2 6 6 D E L E U Z E H O J E
c o r t e móvel da duração q u e i n s u f l a v i d a e n o v i d a d e n a matéria, e, p o r
o u t r o l a d o , r e t o r n a as posições da matéria à duração. É p e r t i n e n t e q u e
o b s e r v e m o s u m p o u c o m a i s d e t i d a m e n t e a tese sobre o m o v i m e n t o e m
B e r g s o n , a fim de c o m p r e e n d e r c o m o ela é f u n d a m e n t a l e c o m p l e m e n -
tar a o c o n c e i t o d e i m a g e m n o e s t u d o d e D e l e u z e acerca d o c i n e m a .
B e r g s o n e x p l i c a q u e f a z e m o s c o n s t a n t e m e n t e u m m o v i m e n t o
e m direção à duração real, i n s u f l a n d o , desse m o d o , "duração v i v a a o
t e m p o ressecado"'^. E u m a ação d e r e t o r n o d o c a m i n h o p e l o q u a l o
t e m p o t o r n o u - s e t e m p o espacializado, e m u m processo q u e o c o r r e e m
três etapas: a. da duração i n t e r i o r para u m m o v i m e n t o i n d i v i s o : a i n d a
p u r a m o b i l i d a d e , o m o v i m e n t o serve d e m o d e l o p a r a c o n t a g e m d o
t e m p o ; b. d o m o v i m e n t o i n d i v i s o para a trajetória n o espaço: des-
c o n s i d e r a n d o o q u e há d e " m o b i l i d a d e p u r a " e d e "traço d e uniáo",
obtém-se a trajetória deste m o v i m e n t o , já t o t a l m e n t e d a o r d e m d o
espaço; c. d a trajetória n o espaço para a m e d i d a d o t e m p o : há divisão
" e m partes Iguais", q u e sáo usadas de c o m p a r a t i v o s p a r a a m e d i d a d e
q u a i s q u e r o u t r o s m o v i m e n t o s . A m e d i d a d o t e m p o é o número de s i -
m u l t a n e i d a d e s de o u t r o s m o v i m e n t o s para c o m este m o d e l o ' ' .
O filósofo u t i l i z a os e x e m p l o s de u m a estrela c a d e n t e e d o "passar
o d e d o sobre u m a f o l h a d e p a p e l " para m o s t r a r o q u e é p u r a m o b i -
l i d a d e (indivisível) e o q u e é o m o v i m e n t o espacializado (divisível)'''.
P o d e m o s m a n t e r o s e x e m p l o s para ver as etapas m e n c i o n a d a s a c i m a .
A U n h a de fogo da estrela c a d e n t e e a l i n h a q u e fica n o papel ao traçar
o d e d o sáo já d a o r d e m d o espaço, c o n f o r m e o i t e m b a c i m a . O m o v i -
m e n t o q u e os descreveu, o q u a l f o i contemporâneo à produção desses
reflexos, seria d a o r d e m d a m o b i l i d a d e e d a duração. M a s o m o v i -
m e n t o não é a própria l i n h a de fogo n e m a m a r c a q u e ficou n o p a p e l .
A divisão desses reflexos n o espaço n o s revela a c o n t a g e m d o t e m p o
( i t e m c), o que, para B e r g s o n , náo é b o m n e m r u i m , sendo talvez até
12. H . B e r g s o n , Duração e S i m u l t a n e i d a d e , p . 71.
13. " P o r t a n t o , é b e m v e r d a d e q u e o t e m p o s e m e d e p o r intermédio d o m o v i m e n -
t o " ( i d e m , i b i d e m , p . 59},
14. I d e m , i b i d e m , p . 58.
A C O N C E P Ç Ã O D E I M A G E M E M D E L E U Z E E B E R G S O N 2 6 7

9. necessário m a s s o b n e n h u m aspecto p o d e ser c o n f u n d i d o c o m o t e m -
p o e m si. A visão t r a d i c i o n a l a d o t o u p o r t e m p o as partes d a trajetória
o b t i d a s apenas para a mensuração d o t e m p o . B e r g s o n não q u e s t i o n a
q u e o m o v i m e n t o seja i n s t r u m e n t o d e m e d i d a d o t e m p o real - o u q u e
seja u m d o s i n s t r u m e n t o s , e n f i m , não l h e r e t i r a l e g i t i m i d a d e a p e n a s
se debate c o n t r a o fato d e ser t o m a d o p e l o próprio t e m p o .
A s a n a m o r f o s e s cronotópicas s e r i a m u m e x e m p l o d e espacializa-
ção d o t e m j p o , d e a c o r d o c o m a t e o r i a d e B e r g s o n . S e g u n d o M a c h a d o ,
as a n a m o r f o s e s cronotópicas são deformações imagéticas ocasionadas
pela inscrição d o t e m p o n a i m a g e m ' ^ V i a d e regra, elas são o b t i d a s n a
f o t o g r a f i a c o m a exposição d o s o b j e t o s f o t o g r a f a d o s p o r u m t e m p o
p r o l o n g a d o , o q u e i m p l i c a m a n c h a s n a i m a g e m o b t i d a , distorções,
a n a m o r f o s e s — neste caso, cronotópicas, p o r " r e g i s t r a r e m " a passagem
d o t e m p o . Porém o e x e m p l o m a i s r a d i c a l , s e g u n d o M a c h a d o , está
n o vídeo The Fourth Dimension (1988), d e Z b i g n i e w R y b c z i n s k i . O
d i r e t o r m o n t o u q u a d r o s cronotópicos c o m l i n h a s d e àiítT&nx.t& frames
d o m a t e r i a l gravado'^, e, c o m o r e s u l t a d o , o b t e v e u m efeito d e figuras
elásticas q u e d e s e n v o l v e m seus m o v i m e n t o s aos p o u c o s , c o m o , p o r
e x e m p l o , n o caso d a p o r t a q u e começa a se a b r i r n a parte s u p e r i o r e
segue se a b r i n d o r u m o à p a r t e i n f e r i o r q u e a i n d a p e r m a n e c i a fechada.
M a s q u a i s q u e r a n a m o r f o s e s , a i n d a q u e radicais, a i n d a q u e poderosas
d o p o n t o d e v i s t a estético e n a r r a t i v o , são p o r princípio espacializa-
ções d o t e m p o q u e não d i f e r e m p o r n a t u r e z a d o s e x e m p l o s simplórios
15. A . M a c h a d o , " A n a m o r f o s e s Cronotópicas o u a Q u a r t a Dimensão d a I m a g e m " ,
e m A . P a r e n t e ( o r g . ) , Imagem-Máquina: A E r a das Tecnolo^as do Virtual, p . 1 0 0 .
16. " C o m a a j u d a d e u m c o m p u t a d o r , s e u r e a l i z a d o r , o polonês Z b i g n i e w
R y b c z i n s k i , obtém a n a m o r f o s e s cronotópicas d e i m a g e n s a n t e r i o r m e n t e g r a -
v a d a s , d e u m a f o r m a q u e p o d e r i a s e r a s s i m r e s u m i d a ; a p r i m e i r a l i n h a d o q u a -
d r o o u f r a m e cronotóplco é u m a cópia d a p r i m e i r a l i n h a d o q u a d r o u t i l i z a d o
c o m o f o n t e ; a s e g u n d a l i n h a d o m e s m o q u a d r o cronotópico é u m a cópia d a s e -
g u n d a l i n h a d o q u a d r o e a s s i m s u c e s s i v a m e n t e . N o t e - s e , p o r t a n t o , q u e a s d i -
f e r e n t e s l i n h a s d e c a d a q u a d r o cronotópico sâo r e t i r a d a s d e q u a d r o s s u c e s s i v o s
d a fita u t i l i z a d a c o m o f o n t e " {idem, i b i d e m , p . 1:5),
2 6 8 D E L E t J Z E H O J E
u t i l i z a d o s p o r B e r g s o n : a estrela cadente q u e m a r c a o céu e o arrastar
d o d e d o q u e m a r c a a f o l h a .
R e t o m a n d o a t e o r i a d o c i n e m a e m D e l e u z e : a i m a g e m - t e m p o é
u m a i m a g e m q u e m o s t r a d i r e t a m e n t e a duração. A i m a g e m - m o v i m e n -
t o está a i n d a n o âmbito d o a t u a l , a i n d a q u e seja u m avanço n o s e n t i d o
de m o s t r a r q u e o i n s t a n t e não precede a o m o v i m e n t o . É p o r isso q u e
D e l e u z e explica q u e as i m a g e n s - m o v i m e n t o f a z e m u m a representação
apenas i n d i r e t a d o t e m p o - o t e m p o está p r e s s u p o s t o , p o r ser u m a
condição d a i m a g e m - m o v i m e n t o c o m o c o r t e móvel d a duração. M a s
o t e m p o , c o m o o b j e t o d i r e t o d o c i n e m a , o c o r r e apenas c o m a i n s u f i -
ciência d a i m a g e m - m o v i m e n t o e d o e s q u e m a sensório-motor q u e e l a
enseja. A s s i m , q u a n d o o sensório-motor não c o n s e g u e r e s p o n d e r às
urgências d a v i d a d o pós-guerra (e, antes disso, d e O z u , o cineasta q u e
fez as p r i m e i r a s i m a g e n s óticas e s o n o r a s puras, s e g u n d o D e l e u z e ) , é
preciso q u e o c i n e m a e n c o n t r e n o v o s c a m i n h o s , o q u e levará a o t e m -
p o real c o m o o e l e m e n t o m a i s f u n d a m e n t a l d o c i n e m a , o único c u j a
existência é a n t e r i o r às convenções.
O e s q u e m a sensório-motor esteve baseado e m u m e n t e n d i m e n t o
de m u n d o q u e e n c o n t r o u s e u a p o g e u n o s E s t a d o s U n i d o s . O m u n d o
o r g a n i z a d o , q u e r e p o u s a n a crença e m ações sistematizadas já inscritas
n o c o n t e x t o d e u m g r a n d e p r o j e t o geral, e q u e p r e t e n d e a diminuição
das i m p r e v i s i b i l i d a d e s , f o i o seio c u l t u r a l e m q u e floresceu a o máximo
o e s q u e m a sensório-motor. D e m o d o q u e , q u a n d o se q u e b r a o esque-
m a sensório-motor, a u m só t e m p o se q u e b r a o p r o j e t o q u e l h e serve
de base, s e m i m p o r t a r q u a l processo a n t e c e d e u a o o u t r o {se é q u e é
possível pensar e m a n t e r i o r i d a d e nesses casos e m q u e a imbricação
é u m b i l i c a l ) . Daí a afirmação d e D e l e u z e : " E a crise, a u m a só vez, d a
imagem-ação e d o s o n h o a m e r i c a n o " ' ^ . M a s o b v i a m e n t e não se t r a t a
de dizer q u e este p r o j e t o desapareceu d o c i n e m a , p e l o contrário, ele
p e r m a n e c e v i v o , o q u e é c o m p r o v a d o e m g r a n d e p a r t e d o s filmes c o m
as m a l o t e s b i l h e t e r i a s . O q u e D e l e u z e n o s d i z é u m p o u c o d i f e r e n t e :
17. G . D e l e u z e , A I m a g e m - M o v i m e n t o , p p . 257-258.
A C O N C E P Ç Ã O D E ÍMAGEM E M D E L E U Z E E B E R G S O N 2 6 9

10. este p r o j e t o , e m b o r a rentável e c o m e r c i a l m e n t e b e m - s u c e d i d o , já náo
c o m p o r t a a a l m a d o cinema'^.
O e s q u e m a sensório-motor começou a se enfraquecer n o c i n e m a
estadunidense sob c i n c o aspectos: i . as situações dispersivas, e m q u e o s
e l e m e n t o s " g l o b a l i z a n t e s " e "sintéticos" c e d e m l u g a r a o u t r o s , c o m ca-
racterísticas m e n o s definidas, m a i s gasosas e flexibilizadas; 2 . as ligações
frágeis, pelas quais os e n c a d e a m e n t o s sensório-mototes ficaram m e n o s
rígidos; 3. a perambulaçáo, q u e o s p e r s o n a g e n s e m p r e e n d i a m s e m
d e s t i n o s , s e m direçáo e orientação, g e r a l m e n t e r e s p o n d e n d o a u m a
p r o f u n d a necessidade d e fuga; 4 . o uso dos clichés, q u e se t o r n a r a m
conscientes, o u seja, f o r a m r e c o n h e c i d o s e ressignificados nos filmes
sob o u t r o s usos, não ingénuos c o m o os d e o u t r o r a ; e 5. o complô,
d e n u n c i a d o c o m o p o d e r o c u l t o n o i n t e r i o r d o g r a n d e p r o g r a m a , d o
g r a n d e s o n h o americano'^.
T o d o s esses fatores m o s t t a r a m u m e n f r a q u e c i m e n t o d a i m a g e m -
- m o v i m e n t o n o s Estados U n i d o s , m a s f o i apenas n a Itália, n o n e o r -
r e a l i s m o i t a l i a n o , q u e a g r a n d e r u p t u r a a c o n t e c e u . N o c i n e m a es-
t a d u n i d e n s e , a contestação ficou a i n d a presa à ctítica, à paródia, à
denúncia, o u seja, teve u m caráter antes n e g a t i v o d o q u e p o s i t i v o ^ " ,
m o s t r a n d o - s e p o r t a n t o i n s u f i c i e n t e para criar u m a n o v a estética cujas
bases transcendessem o e s q u e m a sensório-motor, e náo apenas o d e -
n u n c i a s s e m . P o r o u t r o l a d o , n a Itália d o pós-guerra as condições es-
t a v a m dadas, p o r q u e o c i n e m a náo estava massacrado p e l o n a z i s m o ,
c o m o n a A l e m a n h a , e náo h a v i a u m p r o j e t o g l o b a l , c o m o n a França,
18. " A a l m a d o c i n e m a e x i g e c a d a v e z m a i s p e n s a m e n t o , m e s m o s e o p e n s a m e n t o
começa p o r d e s f a z e r o s s i s t e m a s d e açóes, d a s percepções e afecções d o s q u a i s
o c i n e m a s e a l i m e n t a r a até então" { i d e m , i b i d e m , p . 253),
19. I d e m , i b i d e m , p p . 252-258.
20. " N a v e r d a d e , o q u e c o n s t i t u i u a v a n t a g e m d o c i n e m a a m e r i c a n o , t e r n a s c i d o
s e m tradição prévia q u e o s u f o c a s s e , v o l c a - s e a g o r a c o n t r a e l e . P o i s e s t e m e s m o
c i n e m a d a imagem-ação g e r o u u m a tradição d a q u a l só p o d e s e livrar, n a m a i o r
p a r t e d o s c a s o s , n e g a t i v a m e n t e . O s g r a n d e s géneros d e s s e c i n e m a , o f i l m e p s i -
c o s s o c i a l , o f i l m e n o i r , o western, a comédia a m e r i c a n a , d e s m o r o n a m , e n o
e n t a n t o mantém s e u q u a d r o v a z i o " { i d e m , i b i d e m , p . 258}.
2 7 0 D E L E U Z E H O J E
e m q u e o " s o n h o francês", a ideia de país u n i f i c a d o , l e v o u a c i n e m a t o -
grafia a o u t r a direçáo. N a Itália devastada pela guerra, s e m Ilusões, s e m
" s o n h o i t a l i a n o " , restava pôr e m i m a g e n s a v i d a pós-opressão: "bastava
u m n o v o t i p o d e 'narração' capaz d e c o m p r e e n d e r o elíptico e o não
o r g a n i z a d o , c o m o se o c i n e m a tivesse de recomeçar de zero"^'.
D e l e u z e ressalta q u e náo se t r a t a d e explicar a g e n i a l i d a d e pelas
condições e m q u e estava i n s e r i d a " , o q u e significa q u e as m e s m a s
condições m a t e r i a i s p o d e r i a m ter l e v a d o a o u t r a s c i n e m a t o g r a f i a s .
N o s t e r m o s d e B e r g s o n , poderíamos d i z e r q u e a realidade m a t e r i a l
constituía a necessidade de agir n o presente p a r a os cineastas i t a l i a n o s
d o pós-guerra. O c i n e m a q u e daí a d v e i o , o m o d o c o m o o s cineasras
p r o c e d e r a m p e r a n t e o m u n d o q u e se lhes afigurava, c o m a criação d o
n e o r r e a l i s m o i t a l i a n o , náo é o u t r a coisa m e n o s d o q u e a criação, a
n o v i d a d e , q u e t r a n s c e n d e as condições m a t e r i a i s q u e o s i n c i t a r a m d e
a l g u m a m a n e i r a .
Q u a n d o r u i o e s q u e m a sensório-motor, são u m a n o v a i m a g e m e
n o v o s signos q u e s u r g e m e m seu lugar. Trata-se da i m a g e m ótica e so-
n o r a p u r a , c o r r e s p o n d e n t e aos opsignos e sonsignos. A n t e s as i m a g e n s
e s t a v a m atreladas à açáo e reação, o u seja, h a v i a u m a o r d e m a n t e r i o r à
q u a l elas d e v e r i a m se r e p o r t a r , o q u e náo acontece c o m as i m a g e n s óti-
cas e sonoras puras. N e s t e caso, é a potência da i m a g e m q u e vale p o r
si, s e m referência a e s q u e m a s m o t r i z e s o u n a r r a t i v o s prévios q u e ela
v i r i a a m a t e r i a l i z a r . N a verdade, a matéria sinalética da n o v a i m a g e m
é o próprio t e m p o : " o t e m p o f o r n e c e a própria matéria sinalética"^'.
P o r t a n t o , as i m a g e n s óticas e sonoras puras são u m a apresentação d i -
reta d o t e m p o . Não é p o r acaso, aliás, q u e nas situações de abetração
( a n o r m a l i d a d e ) d o m o v i m e n t o ^ ' ' o t e m p o surge d i r e t a m e n t e , pois o
21. I d e m , i b i d e m , p . 259.
22. " C o m i s s o não e x p l i c a m o s o génio d o s p r i m e i r o s f i l m e s d e R o s s e l l i n i " { i d e m ,
i b i d e m , loc. c i t ) .
23. I d e m , A Imagem-Tempo, p . 57.
24. " O q u e c h a m a m o s d e n o r m a l i d a d e é a existência d e c e n t r o s : c e n t r o s d e r e v o l u -
ção d o próprio m o v i m e n t o , d e equilíbrio d e forças, d e g r a v i d a d e d o s móveis, e
A C O N C E P Ç Ã O D E I M A G E M E M D E L E U Z E E B E R G S O N 2 7 I

11. m o v i m e n t o , nesses casos, m o s t r a sua náo p r i m a r i e d a d e , r e v e l a n d o a
imperfeição e incoerência q u e a t o d o c u s t o t e n t a v a e s c o n d e r sob o s
c e n t r o s de equilíbrio. E n f i m , a a n o r m a l i d a d e d o m o v i m e n t o m o s t r a a
a n t e r i o r i d a d e da duração da q u a l o m o v i m e n t o não c o n s t i t u i m a i s d o
q u e u m c o r r e móvel.
A s i m a g e n s d o c i n e m a estão ligadas a f o r m a s m e n t a i s q u e a b r a n -
g e m t o d o o sistema d e p e n s a m e n t o d a época, o u , d e u m m o d o m a i s
geral, estão inseridas n a c u l t u r a q u e lhes serve d e base. E possível,
então, ler os filmes t a l c o m o eles c o n f l i t a m o u c o r r o b o r a m m o d e l o s de
p e n s a m e n t o s q u e transpassam a ciência, a filosofia e a arte. T a n t o é q u e
D e l e u z e a p o n t a o c i n e m a c o m o a arte q u e faz avançar o p e n s a m e n t o
m o d e r n o , r e c o n h e c e n d o q u e B e r g s o n deixara este c a m i n h o a b e r t o e m
sua o b r a . O c i n e m a , n u m a e q u i v o c a d a observação i n i c i a l , r e p o r t a o
m o v i m e n t o a instantes q u a i s q u e r n a matéria. S e g u n d o D e l e u z e , esta
é j u s t a m e n t e a concepção m o d e r n a de m o v i m e n t o ^ ' q u e se contrapõe
à concepção clássica s e g u n d o a q u a l o m o v i m e n t o se recompõe c o m
base e m poses eternas, e l e m e n t o s inteligíveis, F o r m a s , Ideias^^. E m
a m b o s os casos, há u m e r r o p t i m o r d i a l de não considerar o m o v i m e n -
t o real, m a s d e recompô-lo a p a r t i r d e i n s t a n t e s n o espaço. O u seja,
o m o v i m e n t o seria n a matéria, m a s já v i m o s c o m o B e r g s o n c o n d e n a
esta concepção, p o r q u e o m o v i m e n t o existe e m si, é a n t e r i o r à maté-
ria e esta, a d e m a i s , é apenas u m a expressão, u m a t u a l , construído a
p a t t i r da ação deste m o v i m e n t o . P o r t a n t o , apenas e m p r i m e i r a análise
o c i n e m a p o d e r i a a c o m p a n h a r a concepção m o d e r n a de m o v i m e n t o ,
e s o m e n t e p o d e r i a fazê-lo se a t r e l a d o à i m a g e m - m o v i m e n t o . Q u a n d o
d e observação p a r a u m e s p e c t a d o r c a p a z d e c o n h e c e r e p e r c e b e r o móvel, e d e
d e t e r m i n a r o m o v i m e n t o " { i d e m . i b i d e m , p . 50).
25. "Formularíamos e s t a diferença d i z e n d o q u e a ciência antiga j u l g a conhecer su-
ficientemente bem o seu objeto depois d e lhe ter isolado os momentos privilegiados,
ao passo q u e a ciência moderna o considera em q u a l q u e r momento" ( H . B e r g s o n ,
A Evolução C r i a d o r a , p . 320).
26. "Supõe-se q u e elas I f o r m a s o u i d e i a s ] [...] c a r a c t e r i z a m u m período c u j a q u i n t e s -
sência e x p r i m i r i a m , s e n d o t o d o o r e s t o d e s t e período p r e e n c h i d o p e l a p a s s a g e m ,
e m s i d e s p r o v i d a d e i n t e r e s s e , d e u m a f o r m a a o u t r a f o r m a " {idem, i b i d e m , loc. cit.).
2 7 2 D E L E U Z E H O J E
desenvolve sua m a i o r potência, a de m o s t r a r o t e m p o d i r e t a m e n t e , já
é d e o u t r o fenómeno q u e e s t a m o s f a l a n d o : o m o v i m e n t o não m a i s
r e c o m p o s t o p o r i n s t a n t e s n o espaço, m a s o m o v i m e n t o c o m o m o v i -
m e n t o d a duração, o m o v i m e n t o c o m o diferença. Daí a importância
d o c i n e m a para o avanço d o p e n s a m e n t o m o d e r n o , o c i n e m a p e n s a d o
c o m o o "órgão da n o v a realidade a ser aperfeiçoado"'^.
P o d e m o s e n c o n t r a r e m D e l e u z e o u t r a s referências a c o m o o c i -
n e m a se i n s e r i u nas questões relativas à i m a g e m d o p e n s a m e n t o d e
sua época. Q u a n d o c o m e n t a o n e o r r e a l i s m o i t a l i a n o , p o r e x e m p l o ,
c e n s u r a t a n t o B a z i n q u a n t o o u t r o s teóricos q u e o p r e c e d e r a m , d o s
quais não cita os n o m e s , p o r a n a l i s a r e m a escola n o nível da realidade.
B a z i n centrava-se e m critérios f o r m a i s q u e g a r a n t i r i a m q u e o c i n e m a
chegasse o m a i s p e r t o possível d o real, e n q u a n t o o s o u t r o s a u t o r e s
c e n t r a v a m - s e n o conteúdo realista dos filmes. M a s a g r a n d e inovação
d o n e o r r e a l i s m o i t a l i a n o t e r i a sido e m nível " m e n t a l " , " e m t e r m o s d e
p e n s a m e n t o " ' ^ o u seja, l i b e r a n d o o t e m p o da subordinação d o m o v i -
m e n t o através das i m a g e n s óticas e sonoras p u r a s , o n e o r r e a l i s m o teria
c r i a d o u m a n o v a i m a g e m d o p e n s a m e n t o , o q u e v a i além da discussão
q u a n t o aos critétios f o r m a i s o u m a t e r i a i s u t i l i z a d o s n o s filmes.
P o r t a n t o , a imbricação d o c i n e m a c o m a sua época o c o r r e n u m a
relação c o m p l e x a , q u e náo se r e s u m e a o filme c o m o u m " p o n t o d e
m i r a d a " sobre a realidade. Não apenas e m t e r m o s d e conteúdo, m a s
também e m t e r m o s de critérios f o r m a i s , essa m i r a d a seria i n s u f i c i e n t e
para abarcar a dimensão referente à i m a g e m d o p e n s a m e n t o da época.
Se p o d e m o s dizer q u e o c i n e m a representa, é e m u m s e n t i d o bastan-
te específico: o s filmes estáo atravessados pela época, p a r t i c i p a m das
disputas n o c o n t e x t o da I m a g e m d o p e n s a m e n t o . A l g o d i f e r e n t e seria
e n t e n d e r a representação c o m o função da i m a g e m , c o m o se a i m a g e m
existisse p a r a dar a v e r u m a realidade q u e l h e é a n t e r i o r . Pelo contrário,
apesar d e p o s s u i r u m a f o r t e característica i n d i c i a i , p o r n a t u r e z a a i m a -
27. G . D e l e u z e , A I m a g e m - M o v i m e n t o , p . 17.
28. I d e m , A Imagem-Tempo, p p . 9-10.
A C O N C E P Ç Ã O D E I M A G E M E M D E L E U Z E E B E R G S O N

12. g e m náo representa m a i s d o q u e quaisquer o b j e t o s q u e também dão a
ver os atravessamentos c u l t u r a i s nos quais estão inseridos. Poderíamos
dizer, p o r t a n t o , q u e o f a t o r i n d i c i a i da i m a g e m a faz d i f e r i r apenas e m
g r a u , e não e m n a t u r e z a , dos d e m a i s e l e m e n t o s e m q u e se p r e t e n d e
ver a realidade c o n t e x t u a l .
É p o r isso q u e D e l e u z e prefere falar e m " l e i t u r a da i m a g e m " , p o i s
"os e l e m e n t o s d a i m a g e m , náo só visuais, m a s s o n o r o s , e n t r a m e m
relações i n t e r n a s q u e f a z e m c o m q u e a i m a g e m i n t e i r a deva ser ' l i d a
náo m e n o s q u e vista, legível t a n t o q u a n t o visível"^'. A l e i t u r a das i m a -
gens foca n o s e l e m e n t o s da própria i m a g e m s e m r e d u z i - l a a e x t e r i o r i -
dades - o e s q u e m a sensório-motor, p o r e x e m p l o , q u e s u b o r d i n a v a
a i m a g e m a o padrão d e ação e reaçáo q u e a i m p e d i a d e l i b e r a r seus
signos m a i s p o t e n t e s , quais s e j a m , além dos o p s i g n o s e dos sonsignos,
os c r o n o s i g n o s , l e k t o s i g n o s e n o o s i g n o s ' " .
Há u m a ressalva necessária d e q u e não se r r a t a d e u m " i m p e d i -
m e n t o " de d i r e i t o , m a s apenas de fato. O u seja, a i m a g e m de c i n e m a
de d i r e i t o s e m p r e f o i i n d e p e n d e n t e d o e s q u e m a sensório-motor e m a i s
a m p l a d o q u e sua função representativa. A questão é q u e u m d e t e r -
m i n a d o m o d o d e concebê-la, q u e i m p l i c a t o d o u m e n t e n d i m e n t o d e
m u n d o , c o m o t e m o s v i s t o , o fez c o m relação a esses e l e m e n t o s exte-
riores, r e d u z i n d o o seu p o t e n c i a l d e afirmar-se p o r si. A s s i m , t a n t o a
produção das i m a g e n s q u a n t o a sua interpretação u t i l i z a t a m critérios
q u e as r e d u z i r a m a quesróes s u p o s t a m e n t e m a i o r e s e a n t e r i o r e s , c o m o ,
p o r e x e m p l o , o e s q u e m a sensório-motor. Q u a n d o essa redução se
quebra, é o u t r o p o t e n c i a l da i m a g e m q u e surge, i m p l i c a n d o n o v o s c o n -
ceitos, o u t r a epistemologia, e m s u m a , u m a n o v a i m a g e m d o p e n s a m e n t o .
M a s o c o n c e i t o d e " i m a g e m e m s i " d e B e r g s o n já nos m o s t r a v a
o s e n t i d o de r e f u t a r q u a i s q u e r esferas para além d a i m a g e m . O a u t o r
d i z q u e a i m a g e m t e m u m a existência além d a representação, porém
aquém d a coisa, o q u e seria e x a t a m e n t e o s e n t i d o q u e o senso c o m u m
29. I d e m , i b i d e m , p . 34.
30. I d e m , i b i d e m , p . 35.
2 7 4 D E L E U Z E H O J E
l h e a t r i b u i ' ' . Se a i m a g e m representa, sua existência exigiria u m a esfera
além, de o u t r a n a t u r e z a (representado); p o r o u t r o l a d o , se a i m a g e m
é a própria coisa, as coisas não e x i s t i r i a m e m sí, m a s apenas para u m a
consciência q u e as percebesse. E n f i m , já v i m o s o q u e é u m a i m a g e m
p a r a B e r g s o n : existe e m si, é l u z , é a própria matéria'
Poderíamos resumir, c o m efeito, nossas conclusões sobre a percepção
p u r a dizendo que h d n a matéria a l g o além, m a s não a l g o diferente, d a q u i l o q u e
é a t u a l m e n t e d a d o . S e m dúvida a percepção consciente alcança a totalidade
da matéria, já que ela consiste, e n q u a n t o consciente, na separação o u n o
"discernimento" daquilo que é atualmente dado."
A p a r t i r d o c o n c e i t o d e I m a g e m e m B e r g s o n , D e l e u z e p r o d u z i u
u m a t e o r i a r o b u s t a q u e i n c l u i u m a série de especificações de i m a g e n s .
D e n t r e as questões e n f r e n t a d a s p o r D e l e u z e a o l o n g o dos l i v r o s d e
c i n e m a , está a d a violência das i m a g e n s , acerca da q u a l f a r e m o s u m a
breve incursão a p a r t i r de agora.
A violência n o c i n e m a brasileiro está i n t i m a m e n t e ligada ao c o n -
t e x t o u r b a n o e m q u e está inserida. D e certa m a n e i r a , s e m p r e há u m a
conexão d o c i n e m a c o m a c u l t u t a , m a s resta averiguar os t e r m o s desta
relação. A estética d a f o m e d o C i n e m a N o v o , p o r e x e m p l o , parece
ter u m a inserção diferenciada: Gláuber R o c h a desejava u m c o n f r o n r o
c o m u m a o r d e m opressora, p o r e n t e n d e r q u e seria a única a l t e r n a -
t i v a possível p a r a r o m p e r as condições d e m i s e r a b i l i d a d e ( f o m e ) d a
população b r a s i l e i r a . N o c i n e m a b r a s i l e i r o pós-1995, p o r hipótese,
a inserção é d e o u r r a n a t u r e z a . E n t r e o u t r o s fatores, a violência n o
c i n e m a b r a s i l e i r o pós-1995 advém d a violência q u e t e m m a r c a d o a
v i d a u r b a n a sob u m número v a r i a d o d e perspectivas q u e n e m sequer
d i a l o g a m e n t r e si. E m q u a l q u e r dos casos, a c o m p l e x i d a d e da questão
náo se m o s t r a n a análise sobre o discurso q u e os filmes t e c e m sobre o
31. H . Bergson, Matéria e Memória, pp. 1-2.
32. "A matéria, para nós. é u m conjunto de 'imagens'" { i d e m , i b i d e m , p. 1).
33. I d e m , i b i d e m , p . 75.
A C O N C E P Ç Ã O D E I M A G E M E M D E L E U Z E E B E R G S O N 275

13. Brasil. N e s t e caso, seria u m a pesquisa sobre as i m a g e n s d a violência, e
não sobre as imagens-violência. A diferença é s e m e l h a n t e àquela e n t r e
i m a g e m d o m o v i m e n t o e i m a g e m - m o v i m e n t o .
Há duas questões q u e , e m última análise, p o s s u e m a característica
de r e d u z i r e m a i m a g e m cinematográfica a u m estado de coisas q u e l h e
é e x t e r n o , e q u e não a t e n t a m , p o r t a n t o , às i m a g e n s óticas e sonoras
p u r a s . E m p r i m e i r o lugar, está a violência c o m relação a o e s q u e m a
sensório-motor. A violência não se opÕe a o r e g i m e d a s I m a g e n s -
- m o v i m e n t o , p e l o contrário, c o n v i v e e m h a r m o n i a . V e j a m o s : u m
p e r s o n a g e m reage c o m violência, se necessário, até m e s m o e m doses
d e s m e d i d a s , m a s n e m a s s i m o e s q u e m a sensório-motor está r o m -
pido^''. E s t a m o s a i n d a n o caso d a ação q u e se d e s d o b r a e m reação,
e a s s i m s u c e s s i v a m e n t e , d e m o d o q u e , p o d e m o s c o n c l u i r , não é a
q u a n t i d a d e de violência q u e faz r u i r o e s q u e m a sensório-motor. Além
disso, p o d e m o s pensar q u e a violência sente-se à v o n t a d e n o c o n t e x t o
q u e o e s q u e m a sensório-motor l h e oferece, pois, e m última análise,
é s e m p r e u m a violência m o t i v a d a . Nesse caso, o d e s d o b r a m e n t o e m
ação e reação serve c o m o u m a motivação p a r a a violência, o u seja,
inserção e m u m a o r d e m d e fatos d a q u a l ela está p r e v i a m e n t e c o n -
d e n a d a a p a r t i c i p a r . A i n d a q u e seja i n j u s t a , a violência será decidível
e localizada, c o n s t i t u i n d o u m s i s t e m a de j u l g a m e n t o ' ^ - "Justifica-se,
o u não?", " Q u e m é o c u l p a d o ? " , "É p r o p o r c i o n a l ? " . D e a c o r d o c o m
os seus próprios t e r m o s , a crítica q u e essa violência i n s p i r a é sobre a
f i d e d i g n i d a d e d o s e l e m e n t o s d o f i l m e q u e , e x p o s t o s d e t a l o u q u a l
m a n e i r a , d i t e c i o n a m o s i s t e m a d e j u l g a m e n t o . T o d a v i a , desse m o d o
náo há r u p t u r a c o m o e s q u e m a sensório-motor de j u l g a m e n t o da v i o -
lência. D i s c o t d a n d o o u c o n c o r d a n d o , essa crítica náo chega aos ele-
34. " O c i n e m a d e açáo expõe situações sensório-motoras: há p e r s o n a g e n s q u e estão
n u m a c e r t a situação, e q u e a g e m , c a s o necessário, c o m m u i t a violência, c o n -
f o r m e o q u e p e r c e b e m " ( G . D e l e u z e , Conversações, p . 68).
35. " M a s , explícito o u não, é s e m p r e a u m sistema de julgamento q u e a nartação [ v e -
rídica] s e refere: m e s m o q u a n d o a absolvição s e f a z e m benefício d a dúvida, o u
q u a n d o o c u l p a d o só é c u l p a d o p e l o d e s t i n o " { i d e m , A Imagem-Tempo, p . 163).
2 7 6 D E L E U Z E H O J E
m e n t o s essenciais d a i m a g e m cinematogtáfica, p o r q u e se mantém n a
análise desta i m a g e m e m t e r m o s náo imagéticos, o u seja, e m t e t m o s
de u m e s q u e m a sensório-motor q u e estaria além, c o m o característica
m a i s e l e m e n t a r d o c i n e m a .
E m o u t r o p o n t o de vista, as imagens-violência p o d e m reduzir-se
à violência d o q u e é m o s t r a d o , à violência d o figurativo, c o m o d i z
D e l e u z e : " O c h o q u e i a se c o n f u n d i r , n o c i n e m a r u i m , c o m a v i o -
lência figurativa d o r e p r e s e n t a d o [ . . . ] " ' ^ O a u t o r refere o receio d e
a n t i g o s cineastas de q u e sangue e sexo, c o m o "figurações c o m e r c i a i s " ,
t o m a s s e m a vez d o c h o q u e cerebral das i m a g e n s - m o v i m e n t o , q u e i m -
p o r i a m o p e n s a m e n t o a o espectador. S e g u n d o D e l e u z e , o r e g i m e das
i m a g e n s - m o v i m e n t o é i n d u b i t a v e l m e n t e u m avanço e m relação a o
c i n e m a d o figurativo, m a s o a u t o r explica q u e é apenas n o r e g i m e das
i m a g e n s - t e m p o q u e o p e n s a m e n t o é l e v a d o ao seu l i m i t e , c o n f r o n t a d o
até m e s m o , c o m a sua própria possibilidade'^ T o d a v i a , n e m de l o n g e
o risco d o figurativo está afastado. A violência é p o r si u m esperáculo
q u e t e n d e a se m o s t r a r a t r a t i v o para a figuração. Nesses casos, pensa-
m o s q u e náo é p r o p r i a m e n t e da violência da i m a g e m de c i n e m a q u e
e s t a m o s f a l a n d o , m a s s i m d a violência d o q u e é representado.
A construçáo da i m a g e m de violência p r o p r i a m e n t e cinematográ-
fica t e n d e a ser construída através d o q u e D e l e u z e c h a m o u de série d o
t e m p o . Esta é u m a das duas grandes m o d a l i d a d e s da i m a g e m - t e m p o .
A o u t r a é a o r d e m d o t e m p o , q u e , p o r sua vez, se d i v i d e e m lençóis d o
passado e p o n t a s de p r e s e n t e desatualizadas. V a l e d i z e r q u e a o r d e m
d o t e m p o se refere às relações i n t e r i o r e s d o t e m p o , q u e i m p l i c a m u m a
coexistência de relações o u u m a s i m u l t a n e i d a d e de e l e m e n t o s i n t e r n o s ,
o u , a i n d a , q u e se refere a u m c i n e m a d o cérebro, c u j o s c r o n o s i g n o s
i m p l i c a m relações m e n t a i s m a i s d o q u e corporais. Já a série d o tempo'**
36. I d e m , i b i d e m , p . 190.
37. E u m t e m a q u e p e r p a s s a o s capítulos sétimo e o i t a v o d e G . D e l e u z e , A Imagem-
-Tempo.
38. " U m a série é u m a sequência d e i m a g e n s , m a s q u e t e n d e m e m s i m e s m a s p a r a
u m l i m i t e , o q u a l o r i e n t a e i n s p i r a a p r i m e i r a sequência ( o a n t e s ) e dá l u g a r a
A C O N C E P Ç Ã O D E I M A G E M E M D E L E U Z E E B E R G S O N

14. m o s t r a o d e v i r n a i m a g e m , o antes e o depois inseparáveis, não suces-
sivos, o u , a i n d a , o t e m p o q u e é u m c i n e m a de c o r p o s , de c r o n o s i g n o s
q u e se m o s t r a m e m relações antes c o r p o r a i s d o q u e cerebrais.
S e g u n d o R o d o w i c k , a i m a g e m - t e m p o c o m o série é s e m p r e políti-
ca. Para ele, o t e m p o c o m o o r d e m não expressa necessariamente u m a
v o n t a d e d i f e r e n t e d e p o d e r , a o contrário d o t e m p o c o m o série. A s
séries d o t e m p o s e r i a m , p o r t a n t o , s e m p r e políticas''. Isso explicaria o
f a t o d e D e l e u z e trazer os cineastas políticos quase s e m p r e n o c o n t e x t o
das séries d o t e m p o . A explicação é q u e , n o d e v i r das i m a g e n s e m
série, é s e m p r e d a construçáo d o n o v o q u e se t r a t a , d e u m d e v i r q u e
u n e a potência d o passado n a diteçáo d a construção d e u m f u t u r o .
E s t a p a r t e dos l i v r o s d e c i n e m a estaria e m consonância d i t e t a c o m o
l i v r o de D e l e u z e e G u a t t a r i sobre Kafka^°, e m q u e os autores f a l a m d e
u m a l i t e r a t u r a m e n o r . A g o r a , a l t e r a n d o apenas o o b j e t o , falaríamos
de u m c i n e m a m e n o r , e m q u e os devires minoritários avançam além
das imposições c u l t u r a i s d o m i n a n t e s : " A característica q u e define u m a
m i n o r i a é, de f a t o ; filosófica: o t o r n a r - s e o u t r o c o m o u m a v o n t a d e d e
p o d e r afirmativa"'"'.
A análise de R o d o w i c k sobre Borom Sarret, d e O u s m a n e S e m b e n e ,
é e l u c i d a t i v a q u a n t o ao viés político das séties"'. O a u t o r reconhece
n a narração d o filme u m a permanência d o passado a f r i c a n o , d e v i -
d o a o a c i o n a m e n t o d a tradição o r a l p o p u l a r . T o d a v i a , esse passado,
o u t r a sequência o r g a n i z a d a c o m o série q u e t e n d e , p o r s u a v e z , p a r a o u t r o l i m i -
t e (o d e p o i s ) . O a n t e s e o d e p o i s já náo sáo, p o r t a n t o , determinações s u c e s s i v a s
d o c u r s o d o t e m p o , m a s a s d u a s f a c e s d a potência, o u a p a s s a g e m d a potência
a u m a potência s u p e r i o r " ( i d e m , i b i d e m , p . 326).
39. " [ . . . ] w h e r e s h e e t s a n d p o i n t s r e f e r t o o r d e r s o f t i m e a s c o e x i s t e n c e o r s i m u l -
t a n e i t y , s e r i e s o f t i m e a r e b e s t a b l e t o e x p r e s s v i r t u a l i t y a s a f o r c e o f b e c o m -
i n g r e a l i z e d i n t h e p r e s e n t , a p o t e n t i a l i t y b e i n g u r g e d i n t o a b e c o m i n g " ( D .
R o d o w i c k , Gilles Deleuzes T i m e M a c h i n e , p . 142).
40. G . D e l e u z e e F. G u a t t a r i , Kafka: Por uma Literatura M e n o r .
4 1 . " H i e d e f i n i n g c h a r a c t e r i s t i c o f a m i n o r i t y i s i n f a c t p h i l o s o p h i c a l : t o b e c o m e -
o t h e r a s a n afílrmative w i l l t o p o w e r " . D . R o d o w i c k , op. cit., p.153.
42. I d e m , i b i d e m , p p . 162-167.
2 7 8 D E L E U Z E H O J E
e m vez de ser t o m a d o p u r a e h e g e m o n i c a m e n t e , e m u m a espécie d e
c u l t o a o período pré-colonização, é c o n t r a p o s t o a u m a tendência d e
i n c e r t e z a , d e vagueza, i n t r o d u z i d a pela disjunção e n t r e s o m e i m a -
g e m . A s s i m , o filme estaria m o s t r a n d o o passado q u e se conserva, m a s
q u e e n f r e n t a a resistência d e u m f u t u r o a i n d a p o r v i r , a i n d a i n d e f i -
n i d o , n o q u a l este passado se v e r i a o b r i g a d o a r e i n v e n t a r - s e . O u t r o
p o n t o relevante da análise de R o d o w i c k é q u a n t o à inserção d o cole-
t i v o m e s m o s e m a representação d a "massa". O filme foca e m apenas
dois personagens p r i n c i p a i s , m a s , através d a construção p o r m e i o d e
episódios q u e se c o n e c t a m , d e n o t a a intersecção de t o d o p o v o senega-
lês, f u g i n d o d a utilização d e estereótipos n o s personagens p r i n c i p a i s
para representar u m p o v o . A s s i m , pode-se dizer q u e o filme, político,
não oferece u m p l a n o de ação e denúncia, m a s m o s t r a devires d e u m
p o v o e m construção.
A implicação das séries c o m o v o n t a d e d i f e r e n t e de p o d e r é e x p l o -
rada p o r França n a p e s q u i s a sobre c i n e m a político contemporâneo.
Não é p o r acaso, p o r t a n t o , q u e a a u t o r a r e t o m a R o d o w i c k para as-
s e n t a r a s i n g u l a r i d a d e deste t i p o d e i m a g e m - t e m p o n a constituição
de u m c i n e m a político. M a s , s e g u n d o França, não é q u a l q u e r c i n e m a
político q u e f o r m u l a a i m a g e m v i a séries d o t e m p o . Há u m a divisão
q u e a a u t o r a faz e n t r e n a r r a t i v a s consensuais e n a r r a t i v a s dissensuais:
as p r i m e i r a s são atravessadas p o r u m " d e v i r harmónico, t o t a l i z a n t e e
u n i f i c a d o r " , p o r u m a " v o n t a d e de significar o m u n d o " , "de m o d o q u e
o a c o n t e c i m e n t o r e e n v i a a u m princípio d e r e a l i d a d e " . N o caso das
n a r r a t i v a s dissensuais, são o u t r a s as características i m p l i c a d a s , todas de
a l g u m m o d o v i n c u l a d a s às séries d o t e m p o : " P o d e - s e d e l i n e a r então
q u e o s pressupostos básicos d o c i n e m a d o dissenso i m p l i c a m seriahs-
m o , t e m p o não cronológico q u e náo para de bifurcar, u m a memória
não psicológica, u m a n a r r a t i v a n e u t r a " " ' . A s s i m , d e n t r o d o c i n e m a
político seria possível observar essas duas tendências: u m a baseada n a
43. A . França, Terras e Fronteiras no C i n e m a Político Contemporâneo, p . 192.
A C O N C E P Ç Ã O D E I M A G E M E M D E L E U Z E E B E R G S O N 279

15. t e n t a t i v a de explicar u m m u n d o e a o u t r a baseada n a t e n t a t i v a d e se
conectar e p r o d u z i r a potencializaçáo d o devir.
D o a m p l o c o n c e i t o d e i m a g e m d e B e r g s o n , D e l e u z e e x t r a i u as
i m a g e n s específicas d o c i n e m a : I m a g e m - m o v i m e n t o e i m a g e m - t e m p o .
P a r a D e l e u z e , a i m a g e m d e c i n e m a q u e p r e t e n d e p r o d u z i r diferença
deve se conectar ao t e m p o , à duração q u e é a p u r a i m p r e v i s i b i l i d a d e .
É esse c a m i n h o q u e a imagem-violência p e r c o r r e para se afastar d a
m e r a i m a g e m d a violência. A s s i m , a imagem-violência, t e m p o r a l i z a d a ,
se t o r n a política, dissensual, p a r a p o t e n c i a l i z a r o d e v i r e p r o d u z i r a
diferença no c i n e m a e para além d o c i n e m a .
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2 8 0 D E L E U Z E H O J E
1 6 . M A T E R I A L I S M O D A I D E I A :
P O R Q U E A D I F E R E N Ç A N Ã O É O D I V E R S O ?
João G a b r i e l A l v e s D o m i n g o s
I •'alvez u m p o u c o i n t u i t i v a m e n t e , o t e m a d a diferença e m G i l l e s
- L D e l e u z e é r e f e r i d o à diferença q u a l i t a t i v a . A s s i m , trata-se o u d a
proliferação d o diverso ( o fluxo d o d e v i r ) , o u da p a r t i c u l a r i d a d e r a d i -
cal d e u m e n t e ( a q u i l o q u e difere de todas as coisas), f a z e n d o eco a o
F u n e s d e Borges. M a s será, nos dois casos, u m a b o a apresentação d o
p r o b l e m a da diferença? O risco é c o m p o r u m a i m a g e m da diferença a
p a r t i r de u m s i s t e m a de p e n s a m e n t o n o q u a l ela já se e n c o n t r a excluí-
da. Desse m o d o , a filosofia d e D e l e u z e seria s i m p l e s m e n t e o i n v e r s o
das pretensóes à representação. T u d o se passaria c o m o se a representa-
ção fosse a redução d a m u l t i p l i c i d a d e d o m u n d o ao c o n c e i t o idêntico
e c o m o se a tarefa da filosofia da diferença fosse s i m p l e s m e n t e a de re-
a f i r m a r a m u l t i p l i c i d a d e c o n t r a o c o n c e i t o . A o contrário, gostaríamos
de pensar o recurso à diferença c o m o u m a t e n t a t i v a de elaborar u m a
resposta a o p r o b l e m a d a génese. Então, e m vez de s e r m o s c o n s t r a n -
g i d o s a recusar a existência d a representação e d a i d e n t i d a d e ( o q u e
é u m contrassenso, p o r q u e elas são fatos d a experiência), deveríamos
m o s t t a r c o m o elas são efeitos d e u m a dinâmica diferencial.
Para fins d e compreensão, p o d e r i a se t r a n s p o r o d e b a t e para o
p r o b l e m a dos m o d o s de subjetivaçáo. Será a prohferação i n i n t e r r u p t a
de d i f e r e n t e s e n g a j a m e n t o s o u posições subjetlvas o t i p o d e p r o j e t o
d e l e u z i a n o para a s u b j e t i v i d a d e q u a n d o s a b e m o s que, e m u m m o m e n -
281