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O contador relutante
Temporariamente residente em Portugal sem que quase
ninguém dê por ele, exilado num escuro, anónimo, poeirento e
vazio gabinete do edifício de Antropologia da velha
universidade de Coimbra, está um angolano que teria muitas
histórias fantásticas para contar, se tal fosse a sua vontade.
Infelizmente, ao contrário do que poderia parecer à primeira
vista, é mais fácil encontrar Ruy Duarte de Carvalho num
labirintico e decadente imóvel da universidade de Coimbra do
que lhe arrancar alguma coisa palpável sobre os seus 50 anos
de filho de colonos que lutou pela liberdade da sua pátria
africana, a esperança “numa ideia de Angola” que o mantém
vivo, a poesia hermética, a ficção que nos traz mundos pouco
habituais, ou a investigação antropológica no sudoeste
angolano, de que resultou um dos mais belos livros de
aventuras da literatura portuguesa dos últimos anos.
Para se chegar a Ruy Duarte de Carvalho entra-se pela enorme
porta de madeira do departamento de antropologia, inquire-se
junto das quatro funcionárias que tagarelam junto ao
aquecedor eléctrico, admiram-se de passagem sequências
enormes de belos azulejos com motivos azuis que decoram as
paredes das escadas, ultrapassa-se um enorme, largo e escuro
corredor, abre-se a porta onde está escrito “Antropometrista -
gab 318” e encontra-se uma figura alta, elegante, magra, com
uma ligeira barriga, presumivelmente construída pela cerveja
angolana, uma barba branca cuidadosamente aparada, a
compensar alguma calvice na região frontal do crâneo, mas a
condizer com uns óculos de aros redondos. A figura veste de
preto, com um bom gosto ascético, e vê-se que está em casa
neste cenário despojado. Ela e o espaço parecem ter sido feitos
um para o outro. Talvez seja a luz escassa, a velha cadeira de
madeira, ou o silêncio que predispõe para ouvir histórias de
uma longitude longinqua, pausadas por fumaças saídas do
cachimbo do contador. A verdade é que, seja por que motivo
for, o gabinete do antropometrista é um cenário único. Um
pouco semelhante aos gabinetes clínicos dos velhos hospitais
públicos portugueses, depois do médico libertar boas notícias.
Pena é que nada disto interfira com o homem quando dele se
querem revelações, e que o percurso para as conseguir seja
ainda mais sinuoso que os corredores da universitas. Ruy
Duarte de Carvalho tem a sua alma e o seu percurso protegidos
por coletes à prova de curiosidade, seja esta de leitor, ou de
profissional. A sua delicadeza, o seu sentido de humor
apuradissimo, a sua capacidade de encantar com histórias, até a
sua camaradagem, que se percebem quando está envolvido
numa conversa sem consequências, desaparecem quando o
diálogo não é para ser só um momento a dois. As barreiras com
que se protege são várias: Há primeiro o autor “snob” que
defende estar tudo nos seus livros, não admitindo a
importância de esclarecer pormenores ou fornecer algumas
pistas sobre as origens das suas narrativas. Há, a par e passo, o
intelectual cosmopolita e simultaneamente periférico que,
fazendo uso de todo o arsenal linguístico que possui, à base de
conceitos teóricos e categorias cientifícas, consegue responder a
inúmeras perguntas sem nunca mostrar o que pensa. E, há
igualmente o lutador pela liberdade do seu continente, em
permanente descoincidência de rumo com o poder, que sabe
que em África as palavras ainda têm muito peso. Ruy Duarte
de Carvalho vigia-se a si próprio, e é muito disciplinado nesse
exercício. O preço são os cigarros Camel que desaparecem
velozmente, e o cachimbo trincado.
No entanto, é possível, mesmo assim, contar com ele para
descrever pedaços de um mundo a que muito poucos
conseguem pertencer.
Ruy Duarte de Carvalho nasceu em 1941, nas terras do Sul de
angola, perto de Moçamedes e do deserto do Namibe. Os pais
eram portugueses, e viveram sempre relacionados com a terra,
tendo o pai ocupado a posição de regente agrícola. “Razões da
cabeça e do coração, que às vezes não são as mesmas”, como
ele próprio diz, levaram cedo o jovem Ruy, então com 18 anos,
a estar inequivocamente do lado “dos angolanos, dos
independentistas e dos africanos”. Racionalmente, diz que a
vida o colocou do lado dos que estavam a ser oprimidos.
Emotivamente, aquilo a que chama a “teoria do arrepio”desfez-
lhe todas as dúvidas. “Quando um jovem de 18 anos se arrepia
ao ler certos poemas, o seu destino está determinado. Eu tinha
uma alma angolana”. Viriato da Cruz e Aires de Almeida
Santos foram os poetas que o puseram no
caminho.Acompanhou o MPLA, nunca se arrependeu da sua
escolha. “Sou angolano. É a minha casa. Vou lá ver se a luz está
apagada”. Para ele é límpido, tudo “corresponde a uma
fidelidade a determinadas referências”.
No entanto, hoje como ontem, a sua alma não o cega. Na sua
casa na Maianga, um dos bairros mais carismáticos de Luanda,
na cátedra de Antropologia da universidade da capital do seu
país, ou nas inúmeras viagens que faz, sabe que o sonho vai
sendo destruído por uma terrível realidade de guerra, fome,
destruição, para indicar só alguns chavões mediáticos que não
deixam de se aplicar com propriedade ao dia a dia angolano.
Diz que a tristeza se gere não perdendo de vista “os
verdadeiros problemas angolanos”, mantendo uma
permanente “atitude muito crítica” e fazendo recurso de “uma
grande ironia”.
Acrescenta, com ardor na voz, que o que se passa em Angola é
igual ao que se passa no Congo ou na Serra Leoa,
correspondendo a “uma sequela de um processo de
ocidentalização que se mantém”. Para ele, Angola debate-se
com a falta de alternativas políticas e económicas, mas não é
isso que o faz desistir “de uma hipótese de Angola sobreviver
como país”.
Confidencia que este combate está todo descrito na sua poesia,
da qual “Observação Directa”, disponível em Portugal, é o
último volume.
Foi também a vontade de descobrir o que é ser angolano, e a
demanda de respostas para perguntas que o acompanhavam
desde a adolescência, que o fez abraçar a antropologia.
Curiosamente, começou pelo cinema – na sua biografia pode-se
ler que produziu vinte horas de cinema documental – que
considera uma óptima ferramenta para conhecer povos e
modos de vida. No entanto, foi a antropologia – intervalada
com outras actividades, como a regência agrícola, porque “os
anos têm muitos dias”- que o seduziu definitivamente, já que
lhe fornece “os instrumentos para tratar a diferença” e lhe
permite ir à procura, com sentido, “do cidadão angolano”.
Estudou a disciplina em Paris, entre 1979 e 1986.
De regresso à sua terra, bem apetrechado, Ruy Duarte de
Carvalho foi, a partir de 1992, ao encontro de um povo que
esteve sempre atravessado na sua vida: Os Kuvale do Namibe,
povo da lança, guerreiros, nómadas, pastores e angolanos como
ele. O antropólogo conhecera-os na sua infância, tinha ouvido
algumas das suas epopeias em conversas de mato e arredores,
filmara alguns deles em 1975. Entre 1992 e 1997, vivendo
longas expedições pelo mato e pelo deserto, viveu com os
kuvale tanto quanto eles permitiram, observou-os, recolheu os
seus depoimentos. Depois, durante um ano, escreveu um livro.
“Vou lá visitar pastores”, editado em Portugal pela Cotovia, é
um livro único, com a mesma magia e beleza estranha que o
“Breviário Mediterrânico” (edição Quetzal) Predrag
Matvejevitch. Um dos fios condutores da escrita, que tal como
a de Matvejevitch rouba coisas à ficção e à ciência, é todo o
mundo Kuvale, donos de uma cultura pastoril e guerreira, mas
também de resistência “porque preservam os traços de uma
economia e de uma cultura pouco afectada pela colonização e
pela desarticulação da sociedade que se deu após a
independência”, explica o antropólogo. É fascinante encontrar
nas páginas o minucioso trabalho de campo de Ruy Duarte de
Carvalho, que disseca as complexas hierarquias dos clans e das
famílias kuvale, as ainda mais complexas relações de poder,
parentesco, amor e familiares, o quotidiano dos pastores e os
seus trajectos, os roubos de gado e consequentes punições e,
acima de tudo, os fascinantes rituais e partilhas da carne, o
único verdadeiro bem que possuem. Está nas páginas descrito
todo um povo diferente, que mantém um equilíbrio na sua
sociedade e nos lugares que habitam. Todo o acto tem uma
razão, e um preço.
Mas “Vou lá visitar pastores” é muito mais que só observação
participante dos Kuvale. É também o diário de um angolano
intelectual que deixa a cidade, que viaja num Land Rover
acompanhado pelo seu ajudante Paulino, dorme na tenda,
adormece no deserto, sofre com o calor, em busca dos seus. “Eu
cresci ali e observo concidadãos meus. Estamos implicados”.
Durante aqueles cinco anos, Ruy Duarte de Carvalho
percorreu as inúmeras picadas do Namibe, esperou pela altura
certa para falar com os homens certos, escutou confidências e
histórias míticas, observou as festas, onde às vezes também era
convidado. “A confiança com os kuvale é uma manta que se vai
tecendo muito lentamente”. Com um lápis e o bloco sempre na
algibeira, e um gravador para todas as entrevistas. “Nas
entrevistas, anoto todos os espirros, exclamações, suspiros. Um
suspiro pode ser mais revelador que horas de palavras”.
Realizou um daqueles projectos que perseguem a vida inteira
certos homens, o que é um feito. E teve ainda tempo para ser
feliz. “Estar no deserto, sair da tenda de madrugada, pelas 5
horas, antes do mundo acordar, e beber um café, é qualquer
coisa... “.
Poder-se-ia pensar que “Vou lá visitar pastores” encerraria o
capítulo do Sul. Mas não. Nesse inesgotável bloco notas que é o
cérebro ficaram alguns apontamentos que mereciam ficção. Daí
nasceu “Os papéis do Inglês”, agora editado pela Cotovia,
gerado pela leitura de um conto de quatro páginas de Henrique
Galvão, porque “há uma carga dramática nessas páginas que
mereciam mais corpo”, explica Ruy Duarte.
Diz ele que este seu livro é todo ficção, mas di-lo com um
sorriso irónico. Nunca se sabe. A narrativa cruza várias
histórias a partir da reproduzida por Galvão, sobre um inglês,
Archibald Perkings, que no princípio do século se refugia do
mundo no mato angolano, vivendo da caça, até cometer um
crime, e se suicidar algum tempo depois. Dos escritos de
Archibald, os papéis do inglês, que terão passado por inúmeras
mãos mas nunca terão saído do sul de Angola, parte Ruy
Duarte Carvalho, para se confrontar com o seu passado, e o da
sua família, para voltar aos kuvale e aos seus territórios, para
veladamente descrever a sua Angola de hoje, e todos aqueles
que nela vivem ou não a esquecem. É uma ficção com tanto de
real, mas os livros costumam ser assim.
Ruy Duarte de Carvalho está agora em repouso, ensinando
antropologia comparada e métodos e técnicas comparadas aos
estudantes de Coimbra. Celibatário, depois de dois casamentos
e dois filhos, ambos angolanos, vai tecendo, no segredo natural
que faz parte dele, novos projectos e viagens, que darão novos
livros. Continua a levantar-se de madrugada, para ver o
mundo acordar. E continua a batalhar pela “hipótese que
justifica a minha vida: Angola”. Foi uma das poucas revelações
claras que fez.
Galvão, porque “há uma carga dramática nessas páginas que
mereciam mais corpo”, explica Ruy Duarte.
Diz ele que este seu livro é todo ficção, mas di-lo com um
sorriso irónico. Nunca se sabe. A narrativa cruza várias
histórias a partir da reproduzida por Galvão, sobre um inglês,
Archibald Perkings, que no princípio do século se refugia do
mundo no mato angolano, vivendo da caça, até cometer um
crime, e se suicidar algum tempo depois. Dos escritos de
Archibald, os papéis do inglês, que terão passado por inúmeras
mãos mas nunca terão saído do sul de Angola, parte Ruy
Duarte Carvalho, para se confrontar com o seu passado, e o da
sua família, para voltar aos kuvale e aos seus territórios, para
veladamente descrever a sua Angola de hoje, e todos aqueles
que nela vivem ou não a esquecem. É uma ficção com tanto de
real, mas os livros costumam ser assim.
Ruy Duarte de Carvalho está agora em repouso, ensinando
antropologia comparada e métodos e técnicas comparadas aos
estudantes de Coimbra. Celibatário, depois de dois casamentos
e dois filhos, ambos angolanos, vai tecendo, no segredo natural
que faz parte dele, novos projectos e viagens, que darão novos
livros. Continua a levantar-se de madrugada, para ver o
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O contador relutante do Sul de Angola

  • 1. O contador relutante Temporariamente residente em Portugal sem que quase ninguém dê por ele, exilado num escuro, anónimo, poeirento e vazio gabinete do edifício de Antropologia da velha universidade de Coimbra, está um angolano que teria muitas histórias fantásticas para contar, se tal fosse a sua vontade. Infelizmente, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, é mais fácil encontrar Ruy Duarte de Carvalho num labirintico e decadente imóvel da universidade de Coimbra do que lhe arrancar alguma coisa palpável sobre os seus 50 anos de filho de colonos que lutou pela liberdade da sua pátria africana, a esperança “numa ideia de Angola” que o mantém vivo, a poesia hermética, a ficção que nos traz mundos pouco habituais, ou a investigação antropológica no sudoeste angolano, de que resultou um dos mais belos livros de aventuras da literatura portuguesa dos últimos anos. Para se chegar a Ruy Duarte de Carvalho entra-se pela enorme porta de madeira do departamento de antropologia, inquire-se junto das quatro funcionárias que tagarelam junto ao aquecedor eléctrico, admiram-se de passagem sequências enormes de belos azulejos com motivos azuis que decoram as paredes das escadas, ultrapassa-se um enorme, largo e escuro corredor, abre-se a porta onde está escrito “Antropometrista - gab 318” e encontra-se uma figura alta, elegante, magra, com uma ligeira barriga, presumivelmente construída pela cerveja angolana, uma barba branca cuidadosamente aparada, a compensar alguma calvice na região frontal do crâneo, mas a condizer com uns óculos de aros redondos. A figura veste de preto, com um bom gosto ascético, e vê-se que está em casa neste cenário despojado. Ela e o espaço parecem ter sido feitos um para o outro. Talvez seja a luz escassa, a velha cadeira de madeira, ou o silêncio que predispõe para ouvir histórias de
  • 2. uma longitude longinqua, pausadas por fumaças saídas do cachimbo do contador. A verdade é que, seja por que motivo for, o gabinete do antropometrista é um cenário único. Um pouco semelhante aos gabinetes clínicos dos velhos hospitais públicos portugueses, depois do médico libertar boas notícias. Pena é que nada disto interfira com o homem quando dele se querem revelações, e que o percurso para as conseguir seja ainda mais sinuoso que os corredores da universitas. Ruy Duarte de Carvalho tem a sua alma e o seu percurso protegidos por coletes à prova de curiosidade, seja esta de leitor, ou de profissional. A sua delicadeza, o seu sentido de humor apuradissimo, a sua capacidade de encantar com histórias, até a sua camaradagem, que se percebem quando está envolvido numa conversa sem consequências, desaparecem quando o diálogo não é para ser só um momento a dois. As barreiras com que se protege são várias: Há primeiro o autor “snob” que defende estar tudo nos seus livros, não admitindo a importância de esclarecer pormenores ou fornecer algumas pistas sobre as origens das suas narrativas. Há, a par e passo, o intelectual cosmopolita e simultaneamente periférico que, fazendo uso de todo o arsenal linguístico que possui, à base de conceitos teóricos e categorias cientifícas, consegue responder a inúmeras perguntas sem nunca mostrar o que pensa. E, há igualmente o lutador pela liberdade do seu continente, em permanente descoincidência de rumo com o poder, que sabe que em África as palavras ainda têm muito peso. Ruy Duarte de Carvalho vigia-se a si próprio, e é muito disciplinado nesse exercício. O preço são os cigarros Camel que desaparecem velozmente, e o cachimbo trincado. No entanto, é possível, mesmo assim, contar com ele para descrever pedaços de um mundo a que muito poucos conseguem pertencer. Ruy Duarte de Carvalho nasceu em 1941, nas terras do Sul de angola, perto de Moçamedes e do deserto do Namibe. Os pais eram portugueses, e viveram sempre relacionados com a terra,
  • 3. tendo o pai ocupado a posição de regente agrícola. “Razões da cabeça e do coração, que às vezes não são as mesmas”, como ele próprio diz, levaram cedo o jovem Ruy, então com 18 anos, a estar inequivocamente do lado “dos angolanos, dos independentistas e dos africanos”. Racionalmente, diz que a vida o colocou do lado dos que estavam a ser oprimidos. Emotivamente, aquilo a que chama a “teoria do arrepio”desfez- lhe todas as dúvidas. “Quando um jovem de 18 anos se arrepia ao ler certos poemas, o seu destino está determinado. Eu tinha uma alma angolana”. Viriato da Cruz e Aires de Almeida Santos foram os poetas que o puseram no caminho.Acompanhou o MPLA, nunca se arrependeu da sua escolha. “Sou angolano. É a minha casa. Vou lá ver se a luz está apagada”. Para ele é límpido, tudo “corresponde a uma fidelidade a determinadas referências”. No entanto, hoje como ontem, a sua alma não o cega. Na sua casa na Maianga, um dos bairros mais carismáticos de Luanda, na cátedra de Antropologia da universidade da capital do seu país, ou nas inúmeras viagens que faz, sabe que o sonho vai sendo destruído por uma terrível realidade de guerra, fome, destruição, para indicar só alguns chavões mediáticos que não deixam de se aplicar com propriedade ao dia a dia angolano. Diz que a tristeza se gere não perdendo de vista “os verdadeiros problemas angolanos”, mantendo uma permanente “atitude muito crítica” e fazendo recurso de “uma grande ironia”. Acrescenta, com ardor na voz, que o que se passa em Angola é igual ao que se passa no Congo ou na Serra Leoa, correspondendo a “uma sequela de um processo de ocidentalização que se mantém”. Para ele, Angola debate-se com a falta de alternativas políticas e económicas, mas não é isso que o faz desistir “de uma hipótese de Angola sobreviver como país”.
  • 4. Confidencia que este combate está todo descrito na sua poesia, da qual “Observação Directa”, disponível em Portugal, é o último volume. Foi também a vontade de descobrir o que é ser angolano, e a demanda de respostas para perguntas que o acompanhavam desde a adolescência, que o fez abraçar a antropologia. Curiosamente, começou pelo cinema – na sua biografia pode-se ler que produziu vinte horas de cinema documental – que considera uma óptima ferramenta para conhecer povos e modos de vida. No entanto, foi a antropologia – intervalada com outras actividades, como a regência agrícola, porque “os anos têm muitos dias”- que o seduziu definitivamente, já que lhe fornece “os instrumentos para tratar a diferença” e lhe permite ir à procura, com sentido, “do cidadão angolano”. Estudou a disciplina em Paris, entre 1979 e 1986. De regresso à sua terra, bem apetrechado, Ruy Duarte de Carvalho foi, a partir de 1992, ao encontro de um povo que esteve sempre atravessado na sua vida: Os Kuvale do Namibe, povo da lança, guerreiros, nómadas, pastores e angolanos como ele. O antropólogo conhecera-os na sua infância, tinha ouvido algumas das suas epopeias em conversas de mato e arredores, filmara alguns deles em 1975. Entre 1992 e 1997, vivendo longas expedições pelo mato e pelo deserto, viveu com os kuvale tanto quanto eles permitiram, observou-os, recolheu os seus depoimentos. Depois, durante um ano, escreveu um livro. “Vou lá visitar pastores”, editado em Portugal pela Cotovia, é um livro único, com a mesma magia e beleza estranha que o “Breviário Mediterrânico” (edição Quetzal) Predrag Matvejevitch. Um dos fios condutores da escrita, que tal como a de Matvejevitch rouba coisas à ficção e à ciência, é todo o mundo Kuvale, donos de uma cultura pastoril e guerreira, mas também de resistência “porque preservam os traços de uma economia e de uma cultura pouco afectada pela colonização e pela desarticulação da sociedade que se deu após a independência”, explica o antropólogo. É fascinante encontrar
  • 5. nas páginas o minucioso trabalho de campo de Ruy Duarte de Carvalho, que disseca as complexas hierarquias dos clans e das famílias kuvale, as ainda mais complexas relações de poder, parentesco, amor e familiares, o quotidiano dos pastores e os seus trajectos, os roubos de gado e consequentes punições e, acima de tudo, os fascinantes rituais e partilhas da carne, o único verdadeiro bem que possuem. Está nas páginas descrito todo um povo diferente, que mantém um equilíbrio na sua sociedade e nos lugares que habitam. Todo o acto tem uma razão, e um preço. Mas “Vou lá visitar pastores” é muito mais que só observação participante dos Kuvale. É também o diário de um angolano intelectual que deixa a cidade, que viaja num Land Rover acompanhado pelo seu ajudante Paulino, dorme na tenda, adormece no deserto, sofre com o calor, em busca dos seus. “Eu cresci ali e observo concidadãos meus. Estamos implicados”. Durante aqueles cinco anos, Ruy Duarte de Carvalho percorreu as inúmeras picadas do Namibe, esperou pela altura certa para falar com os homens certos, escutou confidências e histórias míticas, observou as festas, onde às vezes também era convidado. “A confiança com os kuvale é uma manta que se vai tecendo muito lentamente”. Com um lápis e o bloco sempre na algibeira, e um gravador para todas as entrevistas. “Nas entrevistas, anoto todos os espirros, exclamações, suspiros. Um suspiro pode ser mais revelador que horas de palavras”. Realizou um daqueles projectos que perseguem a vida inteira certos homens, o que é um feito. E teve ainda tempo para ser feliz. “Estar no deserto, sair da tenda de madrugada, pelas 5 horas, antes do mundo acordar, e beber um café, é qualquer coisa... “. Poder-se-ia pensar que “Vou lá visitar pastores” encerraria o capítulo do Sul. Mas não. Nesse inesgotável bloco notas que é o cérebro ficaram alguns apontamentos que mereciam ficção. Daí nasceu “Os papéis do Inglês”, agora editado pela Cotovia, gerado pela leitura de um conto de quatro páginas de Henrique
  • 6. Galvão, porque “há uma carga dramática nessas páginas que mereciam mais corpo”, explica Ruy Duarte. Diz ele que este seu livro é todo ficção, mas di-lo com um sorriso irónico. Nunca se sabe. A narrativa cruza várias histórias a partir da reproduzida por Galvão, sobre um inglês, Archibald Perkings, que no princípio do século se refugia do mundo no mato angolano, vivendo da caça, até cometer um crime, e se suicidar algum tempo depois. Dos escritos de Archibald, os papéis do inglês, que terão passado por inúmeras mãos mas nunca terão saído do sul de Angola, parte Ruy Duarte Carvalho, para se confrontar com o seu passado, e o da sua família, para voltar aos kuvale e aos seus territórios, para veladamente descrever a sua Angola de hoje, e todos aqueles que nela vivem ou não a esquecem. É uma ficção com tanto de real, mas os livros costumam ser assim. Ruy Duarte de Carvalho está agora em repouso, ensinando antropologia comparada e métodos e técnicas comparadas aos estudantes de Coimbra. Celibatário, depois de dois casamentos e dois filhos, ambos angolanos, vai tecendo, no segredo natural que faz parte dele, novos projectos e viagens, que darão novos livros. Continua a levantar-se de madrugada, para ver o mundo acordar. E continua a batalhar pela “hipótese que justifica a minha vida: Angola”. Foi uma das poucas revelações claras que fez.
  • 7. Galvão, porque “há uma carga dramática nessas páginas que mereciam mais corpo”, explica Ruy Duarte. Diz ele que este seu livro é todo ficção, mas di-lo com um sorriso irónico. Nunca se sabe. A narrativa cruza várias histórias a partir da reproduzida por Galvão, sobre um inglês, Archibald Perkings, que no princípio do século se refugia do mundo no mato angolano, vivendo da caça, até cometer um crime, e se suicidar algum tempo depois. Dos escritos de Archibald, os papéis do inglês, que terão passado por inúmeras mãos mas nunca terão saído do sul de Angola, parte Ruy Duarte Carvalho, para se confrontar com o seu passado, e o da sua família, para voltar aos kuvale e aos seus territórios, para veladamente descrever a sua Angola de hoje, e todos aqueles que nela vivem ou não a esquecem. É uma ficção com tanto de real, mas os livros costumam ser assim. Ruy Duarte de Carvalho está agora em repouso, ensinando antropologia comparada e métodos e técnicas comparadas aos estudantes de Coimbra. Celibatário, depois de dois casamentos e dois filhos, ambos angolanos, vai tecendo, no segredo natural que faz parte dele, novos projectos e viagens, que darão novos livros. Continua a levantar-se de madrugada, para ver o mundo acordar. E continua a batalhar pela “hipótese que justifica a minha vida: Angola”. Foi uma das poucas revelações claras que fez.