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As minhas estórias
do meu bairro
As minhas estórias do meu bairro
A ideia de criar um conjunto de pequenas crónicas sobre a Penha de França surgiu depois
de ter escrito o livro sobre esta que é a minha freguesia, um documento meramente
objetivo e informativo. No entanto, a verdadeira inspiração partiu de um projeto da
Biblioteca da Penha de França denominado “Vidas e memórias de bairro”.
Esta iniciativa, que surgiu em 2015, é dirigida aos idosos da freguesia e pretende
“recuperar e divulgar histórias de vida, vivências, testemunhos, relatos e memórias
importantes e relevantes que estes desejem partilhar e preservar”.
“Vidas e memórias de bairro” tem lugar todas as sextas-ferias à tarde, entre outubro e
maio e parte de “sessões denominadas “oficinas comunitárias da memórias” durante as
quais é trabalhado um determinado tema relacionado com o património material e/ou
imaterial da freguesia”.
In
http://blx.cm-lisboa.pt/vidasmemoriasbairro
A versão ilusrtrada destas crónicas pode ser consultada em
https://castelodasandrix.wordpress.com/
O livro "Penha de França Do Rio à Colina"
Da autoria de Sandra Terenas e editado pelas Edições Fénix, a obra "Penha de França
Do Rio à Colina“ tem como principal objetivo levar ao conhecimento dos cidadão o
património cultural e a identidade própria esta Freguesia, conhecida por ser um dos
melhores miradouros da cidade.
Contudo e considerando que a Penha de França é ainda pouco conhecida pelos lisboetas,
as Edições Fénix desafiaram a autora, com uma longa ligação ao bairro, a escrever a
história da Freguesia, contando com o apoio da Junta de Freguesia local.
O trabalho final sobre este território, que se estende desde o Tejo ao ponto mais alto de
Lisboa e que constitui a fronteira entre o centro histórico e a zona oriental da capital,
resultou num roteiro detalhado desta área destinado quer aos que ali residem ou
trabalham, quer aos que a visitam.
A fábrica Favorita
A Fábrica de Bolachas, Biscoitos e Chocolates Favorita, na Rua António Maria Baptista, é
um dos muitos sítios da Penha de França (não, não pertence à Graça, como anunciam para
aí alguns) que fazem parte das minhas memórias.
Contudo, estas são memórias que eu chamaria de interposta pessoa, uma vez que resultam
apenas dos relatos da minha avó materna e não de uma experiência pessoal.
No início do seu casamento, no começo da década de 40 do século passado, a minha avó
trabalhava na Favorita, aquele recanto quase escondido ali entre o Largo de Sapadores e o
Caminho de Baixo da Penha, que todos conheciam. À época, era, provavelmente, o maior
empregador da zona mas era, sobretudo, o sítio onde todos os miúdos das redondezas
saberiam ir ter seguindo apenas o viciante cheiro a chocolate.
Se era ou não um bom trabalho, isso não registei na memória. Talvez a minha avó nem
sequer o tenha comentado. Lembro-me sim dela contar que saía a correr à hora do almoço
para preparar a refeição para o meu avô, então instrutor de condução. Naqueles tempos
iam todos almoçar a casa. A casa ficava a uns meros dez minutos a pé da fábrica, outra
coisa que se alterou substancialmente de lá para cá.
Depois do almoço voltava a correr para a fábrica, de onde saía ao final do dia para
regressar a casa, fazer o jantar e cozer umas gravatas. Afinal, era esse o seu verdadeiro
ofício, ou seja, aquilo em que tivera formação profissional, como diríamos hoje...
Em 1988, a Fábrica de Bolachas, biscoitos e Chocolates Favorita existia ainda, como é
dado a provar pela cópias da sentença e do acórdão do 16.° Juízo Cível da Comarca de
Lisboa “proferidos no processo de registo de marca internacional n." 500 937”,
envolvendo uma questão de denominação comercial de um produto.
Biblioteca Municipal da Penha de França
As idas à Biblioteca Municipal da Penha de França são, provavelmente, das mais
simpáticas memórias da minha infância.
A Rua Cesário Verde, gigantesca aos meus olhos de criança, era a montanha a escalar no
topo da qual estava aquele mundo enorme, quase infinito que cabia todo dentro de uma
sala: a biblioteca.
Às portas daquele mundo estava um senhor que me intrigava. Ou melhor, a perna dele era
um mistério. Mais tarde percebi tratar-se de uma malformação congénita mas naquela
altura era muito estranho que ele coxeasse sempre. Mas aquela perna nunca ficaria boa?
De cada vez que me aproximava da porta, naquele antigo palacete onde hoje se mantém
apenas a sede da Junta de Freguesia, enchia-me de ansiedade: será que o senhor já não
coxeia?
Lá dentro, naquela sala cheia de mesas e cadeiras e de gente muito compenetrada,
envolvida num silêncio reconfortante, estava o mundo todo e mais além guardado em
arquivadores de metal.
Abria uma gaveta, com todo o cuidado para que o barulho dos rolamentos não perturbasse
o silêncio, desfilava os dedos por entre os cartões inscritos com nomes e códigos e perdia-
me. Bom, se estivesse disponível um álbum do Astérix que ainda não me tivesse passado
pelas mãos ou que precisasse urgentemente de reler - como era o caso de O Adivinho -
não me perdia.
Já se fosse um dia de aventura, corria uma e outra e outra gaveta até descobrir um título
que me cativasse ou um nome que me soasse a alguém de confiança. Foi assim que
descobri Alberto Morávia, entre outros. O nome inspirava-me confiança. Não me enganei.
Guardava os livros requisitados debaixo do braço, com a convicção de um pirata
guardando o seu tesouro, e descia a Césario Verde, então já mais curta.
A pressa de voltar a casa, ao meu castelo, e começar a devorar aqueles objetos mágicos
encurtava a distância.
Tive pena de nunca me ter esquecido de devolver um livro. Seria uma bela recordação,
aquele carimbo em cima das páginas amareladas, aquele cheiro tão próprio que só os
livros de biblioteca têm. Mas nunca me esqueci de nenhum, até porque era preciso ir
buscar outros e outros e outros até já não haver mais nenhum. Ai Almada, como tinhas
razão.
A minha escola primária
A minha escola primária, hoje conhecida como Arquitecto Victor Palla, e já antes
denominada de Nº143, era a do Vale Escuro. Estranho nome para uma escola primária,
mas recebia-o do local onde estava instalada.
À volta, quase nada. Tão quase nada que, da minha sala de aulas, a nº2, via rebanhos de
ovelhas a pastarem alegremente numa colina que atualmente acolhe diversos edifícios de
habitação. E eram esses os melhores momentos extracurriculares dessa época. Viver e
estudar no meio da capital e poder sair da sala de aulas e viajar pela vida daqueles
animais, levá-los a viver aventuras como as dos desenhos animados do Vasco Granja.
Tudo sem sair da minha carteira de madeira, de tampo inclinado e corroído pelo tempo e
pelos lápis e canetas de estudantes anteriores.
Igualmente memoráveis eram os intervalos. Ou melhor, o intervalo, o único que existia e
que se estendia pelo tempo - creio que era de 30 m - mas que parecia sempre muito
pouco. Um daqueles muito pouco que dava para uma corrida de patins, vestir e despir as
bonecas, jogar à apanhada, comer um lanche, aprender lavores, jogar à bola e esfolar os
joelhos e as mãos. Vezes sem conta. Aliás, este era o resultado mais certo quando se
punham dezenas de crianças a correr num pátio com chão de brita.
A professora Gabriela, que me parecia altíssima, era a minha mestra e também ela era
residente no bairro, numa zona conhecida como Quinta dos Peixinhos. Quando a
professora Gabriela faltava e não se conseguia avisar os alunos - não se esqueçam que me
estou a reportar a uma época em que não existiam telemóveis e que muitas famílias não
tinham sequer telefone em casa - ficávamos com a professora Lúcia, da sala 3.
E algumas vezes, raríssimas, tão raras que parecem mais fruto da imaginação do que
memórias de factos concretos, não havia ninguém para tomar conta de nós e lá
voltávamos para casa sozinhos.
Um percurso pequeno para a maioria - quase todos os alunos residiam no bairro, uns mais
à frente, outros mais atrás, mas ninguém tinha que fazer horas de autocarro e de metro
para chegar a casa, como agora - mas que nos dava uma sensação de liberdade e de
aventura semelhante à que teríamos ao viajar para um país estrangeiro. Pelo caminho
acontecia tudo. Víamos nuvens cinzentas que aos nossos olhos eram roxas e indiciavam a
iminência de uma qualquer catástrofe que nunca se verificava. Cruzávamo-nos com
adultos que achávamos não serem de confiança e que não passavam de vizinhos mais
distantes. Chupávamos azedas e sabia-nos a um amarelo doce. Mas quase nunca nos
atrevíamos a atravessar a não semaforizada enorme General Roçadas. Dávamos voltas e
voltas e mais voltas por caminhos e azinhagas para fugir ao trânsito.
1976, o ano em que entrei para a 1ª classe, foi igualmente o ano de estreia da Victor Palla
como escola mista. Até ali, os meninos estudavam num andar e as meninas no outro.
Como o fim da ditadura, as coisas mudaram. Felizmente. Não consigo conceber andar
numa escola só de meninas. Parece-me coisa da Idade Média. Ou talvez pior do que isso.
O cruzamento da peixeira
Uma das memórias relacionadas com a Penha de França mais marcadas no meu cérebro
respeita a uma peixeira que fazia o seu negócio numa esquina do cruzamento das ruas
Sebastião Saraiva Lima e Carrilho Videira. Vá-se lá perceber porquê, mas aquela figura
castiça, de meias de lã até ao joelho e enfeitada com mais ouro que uma mordoma do
Minho, ficou-me.
Do nome dela não me lembro. Lembro-me, sim, das enguias que vendia – vivas, porque é
assim que devem ser compradas – e que a minha avó paterna guardava como se fosse um
tesouro. Eram caras, acredito, pois não eram petisco que se fizesse todos os dias. Como
morriam antes de serem cozinhadas, não me recordo. Mas também não me importava
muito. O que realmente importava era o sabor delicioso daquelas cobras de água saídas da
frigideira.
Engraçado mesmo era manter aqueles bichos ondulantes dentro do alguidar, uma vez
chegados a casa. Por muitos panos e tampas e engenhocas que se arranjasse, havia sempre
uma mais esperta que se escapulia e acabava a passear pela cozinha. Um pouco como os
caracóis. No entanto, no caso dos caracóis, o que fugia acabava, invariavelmente, como
meu animal de companhia, a viver num qualquer vaso de plantas ou em cima de uma
folha de alface até desaparecer para parte incerta.
Mas as enguias não eram o único peixe que a peixeira vendia. Lembro-me bem dos
carapaus, dos meus peixes preferidos até hoje.
Contudo, o mais fascinante era ver como ela guardava o dinheiro resultante da venda. De
dentro daquilo que pareciam pequenos bolsos do seu avental saíam saquinhos de plástico
com as notas e as moedas divididas para dar o troco às freguesas (no feminino porque
então, na década de 70 do século passado, a maior parte dos homens não iam às compras).
E saíam marcados com o sangue do peixe amanhado – sim, porque na época o peixe era
vendido já amanhado -, coisa que não atrapalhava nem assustava ninguém. Era assim e
pronto.
Até hoje, cada vez que passo naquele cruzamento, onde se mantém uma velha drogaria
onde ainda se podem encontrar vassouras como as das bruxas, consigo ver aquela figura
de meias de lã e avental.
A minha escola primária – Os colegas
A escola primária é sempre um momento marcante na vida de cada um de nós.
Já vos falei de algumas das recordações que tenho da minha, a atual Victor Palla, mas
muitas mais ficaram por contar. Na verdade, para relatar todas seria preciso um livro.
As pessoas são, provavelmente, a memória mais calcada desse tempo, em particular, os
colegas pela sua diversidade social e cultural.
Como o A., o rapaz repetente que vivia numas barracas – eu sei que a expressão “técnica”
é habitações degradadas, mas não gosto muito de fugir à dureza da realidade e ainda
menos de ser politicamente correta – e de quem me lembro sempre a preto e branco.
Cabelo que parecia palha áspera em desalinho, uma camisola de lã – poliéster, leia-se – de
gola alta, daquelas que picam por todo o lado, e umas calças demasiadamente curtas e
excessivamente largas que lhe dançavam animadamente no fundo das pernas a cada
passo. Sempre a preto e branco.
Ou como a C., a menina lourinha e magrinha de franja, a quem o sinalzito empoleirado na
testa, ali mesmo junto à cana do nariz, dava uma graça muito particular. Vivia num prédio
enorme – considerando que às crianças tudo parece maior do que aquilo que é – com
muitos andares e elevador, pelo que era sempre uma aventura visitá-la. Mas a aventura
não se ficava por aqui. Tal como tantos outros edifícios naquela época, a casa da C., numa
avenida muito próxima da escola, tinha um outro detalhe que me fascinava: uma varanda
fechada com vidro. E como o vidro era fosco, toda a gente se divertia a espreitar lá para
fora e a tentar adivinhar o que se passava lá baixo, muito lá em baixo, na rua.
Ou a I., que morava numa praceta alguns metros acima da C., de cabelo encaracolado e
algumas sardas sumidas, a quem brilhavam os olhos azuis – ou verdes, quem sabe –
quando lhe perguntavam qual era o seu país preferido. A resposta era sempre a mesma:
Massachusetts. Naturalmente, ela não fazia ideia que aquele nome complicado mas
promissor de muitas coisas diferentes não era um país. Não sabia ela nem nós.
Como o J.P., pequenito de cabelos ao vento e galochas vermelhas, mais pequenito que a
maioria dos outros rapazes, mas dono da mesma malandrice inocente dos seus pares.
Chegar a casa do J.P. era outra aventura, esta de maior dureza física. Não vivia num
andar tão alto como a C., mas a sua casa ficava no topo da colina, a segunda mais alta da
capital. Para lá chegar era preciso subir até à igreja, ultrapassar uma velha casa de
candeeiros onde os meus pais compraram um candeeiro de louça com várias cores que,
infelizmente, durou muitos anos – ao contrário da loja onde fora adquirido – e descer
uma estreita rua que se desdobrava ao longo de uma esquina apertada. E depois de
algumas brincadeiras, era necessário ganhar coragem para fazer o caminho inverso.
Ou a C.J., que não faço a mínima ideia de onde morava, mas que me fazia fazia
companhia nas poses mais pirosas que as meninas daquelas idades conseguem fazer. E o
pior de tudo – ou melhor, depende da perspetiva – é que está tudo registado em
fotografia. Eu, de cabelo à rapaz e uma saia de peitilho às riscas, ela, de cabelo ondulado
e franja presa por ganchos e, como sempre, de bata impecavelmente branca, e a I.C., de
longas tranças pretas e sardas, lembrando uma personagem da série “Uma Casa na
Pradaria”, deitadas no relvado fronteiro da escola, fazendo de conta que éramos umas
top models. Claro, na altura ninguém sabia o que isso era, mas nós as três já tínhamos
uma Sara Sampaio dentro de nós.
Os colegas da primária voltarão em breve...
O autocarro de dois andares
Desta vez, a minha “estória” está relacionada com o aniversário da Carris. Sim, porque
quando se é pequeno, tudo é uma aventura e nda prova melhor que as coisas simples da
vida são sempre as mais importantes e as que perduram no nosso cérebro.
Pois é. Hoje em dia os autocarros são híbridos, amarelos e têm apenas um andar. Alguns
têm até internet.
Mas há mais de 30 anos, Lisboa parecia ser um versão pequena e latina de Londres.
Os autocarros tinham dois andares, uma porta articulada rudimentar à frente e outra
atrás, bancos rijos de uma pele com pequenos relevos e armações de metal.
Ao segundo andar chegava-se através de umas escadas quase em caracol. E o segundo
andar era um sítio mítico para a criançada, o topo do farol de onde se avistava a cidade
de uma forma diferente. Éramos uns gigantes que observavam os outros tão pequenos
que pareciam formigas.
Na minha rua passava um desses autocarros de dois andares. A carreira não me lembro,
talvez fosse a que hoje corresponde ao 730, mas isso também não era importante.
Importante mesmo era que cada vez que o veículo se fazia anunciar – e era muito fácil
perceber pelo ruído do motor, que se ouvia à distância -, eu corria para a janela para ver
o seu topo branco com rebites mal pintados e imaginar quem vinha lá dentro.
Homens, mulheres, crianças, de onde vinham, para onde iam, a caminho de que
aventuras estariam ou que desafios teriam deixado para trás antes de embarcarem no
autocarro.
E o autocarro lá passava. Ficava a vê-lo até passar pelo largo da cabine, como o
conhecíamos então, graças a uma cabine telefónica que, apesar de incontáveis atos de
vandalismo, por ali ficou durante muitos anos. Depois de passar pelo largo, o autocarro
seguia o seu percurso e eu voltava para dentro, ansiosa pela próxima passagem.
De volta aos colegas de escola
Cá estou de volta aos colegas de escola. Da primária, sobretudo, porque o resto do meu
percurso escolar é uma grande mancha distorcida. Um ou outro ficaram, mas nada de
muito significativo.
Bom, na escola do Vale Escuro a minha colega de carteira era a C.C. que era, também,
vizinha próxima, para aí uma ou duas ruas para além da minha. Menina docinha, de risco
ao lado com um gancho a segurar a franja, companheira de brincadeiras mais femininas,
como vestir e despir bonecas e admirar os modelos da revista Burda que sonhávamos
em transformar em roupas para as nossas “filhas” de plástico e borracha.
A C.C. tinha uma casa que me parecia fantástica. À primeira vista, era um apartamento
como todos os outros, mas guardava um enorme segredo no sótão: os quartos dela e da
irmã mais nova. Era o sonho de qualquer criança, dormir no sótão. E elas podiam.
Da C.C. e da irmã vou sabendo que estão bem e recomendam-se, notícias que recebo com
frequência – felizmente – pelos pais.
Havia também o P.A., o miúdo sardento que era o mais alto de todos, ou talvez não fosse,
mas é assim que a minha memória o guarda. A sua franja traquina estava de acordo com a
sua personalidade irrequieta mas amável e mais amigo do seu amigo.
E o L., o sempre atinadinho que sabia a lição na ponta da língua mas que não conseguia
controlar o cabelo lisinho como as folhas das árvores por mais que se esforçasse. Ao
longo dos anos conseguiu domar o cabelo, mas, quando voltou a ser meu colega na
secundária, continuava a ser o mesmo atinadinho de sempre. Tratava-me então pelo
apelido como se estivéssemos na tropa e embirrava comigo por eu gostar de séries
policiais britânicas. E eu embirrava com ele por ser tão atinadinho.
Sem esquecer a E., que morava num prédio enorme no cruzamento da grande artéria da
freguesia com a maior praça cá do sítio. Com um certo ar de menina saída de uma
adaptação dos anos 70 de uma personagem de Enid Blyton, dava umas ótimas festas de
aniversário. Se bem que as melhores memórias não eram propriamente das festas, mas
sim dos livros de aventuras dos 5 e dos 7 que emprestávamos uma à outra.
Mais tarde ou mais cedo, os colegas de escola estarão de volta.
As filas para encher o garrafão
Nesta altura de seca severa e extrema, assolam-me a mente as memórias pessoais
relacionadas com a falta de água.
Apesar de motivada por razões totalmente diversas, nomeadamente, por problemas graves
no sistema de abastecimento de água às cidades portuguesas, o certo é que em pequena
foram algumas as vezes em que, com a minha família, tive que ir à fonte.
Estamos a falar de meados da década de 70 do século passado, sendo que a fonte era, na
minha memória e de uma forma mais impressiva, um autotanque dos bombeiros.
Esta era a Lisboa e a Penha de França na segunda metade do século XX.
As famílias, sendo que nalguns casos, eram apenas os elementos mais jovens, faziam fila
naquela que é hoje a Av. Coronel Eduardo Galhardo, junto à ponte (como é conhecido o
viaduto da Av. General Roçadas), mesmo ali ao pé do Espaço Multiusos da Junta de
Freguesia, carregadas de garrafões. Há também quem se recorde de subir até à Igreja e
atestar os garrafões no chafariz que fica no largo fronteiro. Se lá fui alguma vez, a minha
memória não o registou.
Provavelmente porque os longos momentos de convívio que se vivam enquanto
esperávamos a nossa vez para encher os garrafões eram mais cativantes na Coronel
Eduardo Galhardo. E também porque ali estavam os bombeiros com o seu gigantesco carro
tanque, o que era a concretização do da mística de qualquer criança.
À época, a Coronel Eduardo Galhardo não era a artéria organizada que conhecemos hoje.
Na realidade, estava cheia de barracas erguidas junto às duas encostas que a recortam,
barracas estas para cujos habitantes estavam, tristemente, mais habituados à falta de água
do que eu.
Estas habitações precárias não tinham nem água canalizada nem instalação elétrica legal e
segura, mas eram enfeitadas por pequenas hortas que os seus proprietários de então
cultivavam com todo o seu amor. Mais tarde, mas antes da transformação urbana que
alterou por completo este cenário, foi nestas barracas que vi, pela primeira vez na vida,
uma antena parabólica, enquanto alguns conhecidos testemunharam a maravilha que era
um videogravador beta. Sinal de alguma evolução, talvez não na direção mais desejada…
Esta era a Penha de França apenas 25 anos antes do século XXI. E replicava-se por toda a
Lisboa.
Quem sabe um dia vos conte a história das filas para o bacalhau, provavelmente, uma das
raríssimas coisas de origem norueguesa pelas quais não sou profundamente apaixonada.
O Natal
A forma de viver a época de Natal mudou muito nos últimos 40, 50 anos.
Nos Natais da minha infância, o bairro não tinha iluminações de rua, tal como muitos outros
recantos de Lisboa.
Na altura, o brilho das luzes era coisa das zonas mais nobres da cidade, como a Baixa ou
Alvalade, para onde toda a gente corria para comprar as prendas. Sem centros comerciais, era
ali que os pais e as mães e os avós Natais encontravam as maiores modernicies da época que
nos deixavam de boca aberta na noite de 24 para 25.
Já os bairros como o meu, a luz e as cores natalícias mostravam-se nas montras das tabacarias
e nos pinheiros enfeitados dos cafés e das mercearias, onde os clientes penduravam notas de
diferente valor. Passeando pelas ruas de nariz no ar, podíamos descobrir alguns pelas luzes
fraquinhas a brilhar através dos vidros. Porque, afinal, as decorações eram feitas para a
família mas com tanto orgulho que se encostavam às janelas e varandas fechadas para que os
vizinhos tivessem um vislumbre do que se passava dentro de casa.
Havia também quem pintasse figuras alusivas à época nos vidros, com “neve” em spray ou
colasse os bonequinhos que as crianças faziam na escola. Nesta época do ano, as escolas
eram um verdadeiro espaço industrial de pequenos seres desenhadores de supostas bolas,
sinos, azevinhos e anjinhos de todas as cores que existiam nas latas de lápis de cor e que
inundavam o edifício da própria escola e as casas de cada um.
Existia assim como que uma saudável competição para saber quem tinha a decoração mais
bonita, uma espécie de filme americano numa versão mais à nossa medida…
Lembro-me em particular de dois exemplos, perto da minha casa: o da cabeleireria Lina e o
de uns ilustres desconhecidos de um prédio de esquina. Pensando bem, os dois prédios são
prédios de esquina…
O da cabeleireira Lina, dada alguma proximidade das famílias, costumava ver dentro da
própria casa. Ao que parece, dizia-se nesta zona do bairro, era das maiores árvores das
redondezas e ostentava o título de melhor decoração. Claro que, uma vez que era de uma
cabeleireira que toda a gente frequentava, era o pinheiro mais visto do bairro e arredores.
O outro ficava meio escondido numa varanda meio hexagonal – é assim que me lembro
dela e não me apetece chegar à janela para confirmar – que se mantinha fechada quase
todo o ano, como se os seus proprietários pretendessem manter uma aura de mistério em
redor de si mesmos. Mesmo da rua, percebia-se que era um pinheiro enorme e carregado
de luzes que brilhavam ao longe. Nunca soube quem morava ali, naquela varanda quase
hexagonal, por cima da mercearia, num prédio de esquina.
Os pinheiros eram naturais, arrancados à natureza ainda crianças, sem qualquer ideia do
prejuízo causado. Eram assimétricos, um tronco torto, um ramo demasiado saliente,
agulhas que se agarravam à roupa e que deixavam um rasto desde a loja onde se
compravam até ao seu destino final. E a resina? Ui, essa representava um perigo que,
suspeito, não passava de um mito urbano: fazia o cabelo cair!
As árvores de Natal daqueles tempos compravam-se nas mercearias e nas drogarias,
coisas também muito naturais naquela época e que já vão rareando.
A minha era comprada na Rua Castelo Branco Saraiva, mas não me lembro em que tipo
de loja.
O primeiro problema era transportá-la para casa.
O percurso não era longo, mas implicava contornar diversos obstáculos, não bater em
ninguém, atravessar ruas e, finalmente, subir as escadas do prédio.
Depois seguia-se a complicada tarefa de a instalar, de forma segura e permanente, na sala.
Arranjava-se um vaso e folhas de jornal que se enrolavam à volta do tronco torto,
apertando-o até se ter a certeza que não tombaria. Por fim, era preciso um papel de
embrulho bonito, de preferência com bolas e sinos. para esconder toda aquela
salganhada.
O último problema, e provavelmente, o maior, era a decoração.
Lá vinham as irritantes fitas brilhantes, que largavam tantas ou mais “agulhas” que o
próprio pinheiro, as luzes que todos os anos tinham uma ou duas lâmpadas fundidas, as
bolas que perdiam bocados de tinta a casa utilização, as pinhas falsas prateadas e
douradas e um ou outro pináculo gigantesco que ninguém sabia muito bem o que
representava. Respirava-se fundo e atirava-se com tudo para cima do pobre do pinheiro
até ele desaparecer. Por último, disparava-se com o frasco de spray de tinta branca a
fingir neve. Ou então espalhavam-se pedaços de algodão…
Disponível em diversas livrarias e online

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As minhas estórias do meu bairro

  • 2. As minhas estórias do meu bairro A ideia de criar um conjunto de pequenas crónicas sobre a Penha de França surgiu depois de ter escrito o livro sobre esta que é a minha freguesia, um documento meramente objetivo e informativo. No entanto, a verdadeira inspiração partiu de um projeto da Biblioteca da Penha de França denominado “Vidas e memórias de bairro”. Esta iniciativa, que surgiu em 2015, é dirigida aos idosos da freguesia e pretende “recuperar e divulgar histórias de vida, vivências, testemunhos, relatos e memórias importantes e relevantes que estes desejem partilhar e preservar”. “Vidas e memórias de bairro” tem lugar todas as sextas-ferias à tarde, entre outubro e maio e parte de “sessões denominadas “oficinas comunitárias da memórias” durante as quais é trabalhado um determinado tema relacionado com o património material e/ou imaterial da freguesia”. In http://blx.cm-lisboa.pt/vidasmemoriasbairro A versão ilusrtrada destas crónicas pode ser consultada em https://castelodasandrix.wordpress.com/
  • 3. O livro "Penha de França Do Rio à Colina" Da autoria de Sandra Terenas e editado pelas Edições Fénix, a obra "Penha de França Do Rio à Colina“ tem como principal objetivo levar ao conhecimento dos cidadão o património cultural e a identidade própria esta Freguesia, conhecida por ser um dos melhores miradouros da cidade. Contudo e considerando que a Penha de França é ainda pouco conhecida pelos lisboetas, as Edições Fénix desafiaram a autora, com uma longa ligação ao bairro, a escrever a história da Freguesia, contando com o apoio da Junta de Freguesia local. O trabalho final sobre este território, que se estende desde o Tejo ao ponto mais alto de Lisboa e que constitui a fronteira entre o centro histórico e a zona oriental da capital, resultou num roteiro detalhado desta área destinado quer aos que ali residem ou trabalham, quer aos que a visitam.
  • 4. A fábrica Favorita A Fábrica de Bolachas, Biscoitos e Chocolates Favorita, na Rua António Maria Baptista, é um dos muitos sítios da Penha de França (não, não pertence à Graça, como anunciam para aí alguns) que fazem parte das minhas memórias. Contudo, estas são memórias que eu chamaria de interposta pessoa, uma vez que resultam apenas dos relatos da minha avó materna e não de uma experiência pessoal. No início do seu casamento, no começo da década de 40 do século passado, a minha avó trabalhava na Favorita, aquele recanto quase escondido ali entre o Largo de Sapadores e o Caminho de Baixo da Penha, que todos conheciam. À época, era, provavelmente, o maior empregador da zona mas era, sobretudo, o sítio onde todos os miúdos das redondezas saberiam ir ter seguindo apenas o viciante cheiro a chocolate. Se era ou não um bom trabalho, isso não registei na memória. Talvez a minha avó nem sequer o tenha comentado. Lembro-me sim dela contar que saía a correr à hora do almoço para preparar a refeição para o meu avô, então instrutor de condução. Naqueles tempos iam todos almoçar a casa. A casa ficava a uns meros dez minutos a pé da fábrica, outra coisa que se alterou substancialmente de lá para cá. Depois do almoço voltava a correr para a fábrica, de onde saía ao final do dia para regressar a casa, fazer o jantar e cozer umas gravatas. Afinal, era esse o seu verdadeiro ofício, ou seja, aquilo em que tivera formação profissional, como diríamos hoje... Em 1988, a Fábrica de Bolachas, biscoitos e Chocolates Favorita existia ainda, como é dado a provar pela cópias da sentença e do acórdão do 16.° Juízo Cível da Comarca de Lisboa “proferidos no processo de registo de marca internacional n." 500 937”, envolvendo uma questão de denominação comercial de um produto.
  • 5. Biblioteca Municipal da Penha de França As idas à Biblioteca Municipal da Penha de França são, provavelmente, das mais simpáticas memórias da minha infância. A Rua Cesário Verde, gigantesca aos meus olhos de criança, era a montanha a escalar no topo da qual estava aquele mundo enorme, quase infinito que cabia todo dentro de uma sala: a biblioteca. Às portas daquele mundo estava um senhor que me intrigava. Ou melhor, a perna dele era um mistério. Mais tarde percebi tratar-se de uma malformação congénita mas naquela altura era muito estranho que ele coxeasse sempre. Mas aquela perna nunca ficaria boa? De cada vez que me aproximava da porta, naquele antigo palacete onde hoje se mantém apenas a sede da Junta de Freguesia, enchia-me de ansiedade: será que o senhor já não coxeia? Lá dentro, naquela sala cheia de mesas e cadeiras e de gente muito compenetrada, envolvida num silêncio reconfortante, estava o mundo todo e mais além guardado em arquivadores de metal. Abria uma gaveta, com todo o cuidado para que o barulho dos rolamentos não perturbasse o silêncio, desfilava os dedos por entre os cartões inscritos com nomes e códigos e perdia- me. Bom, se estivesse disponível um álbum do Astérix que ainda não me tivesse passado pelas mãos ou que precisasse urgentemente de reler - como era o caso de O Adivinho - não me perdia. Já se fosse um dia de aventura, corria uma e outra e outra gaveta até descobrir um título que me cativasse ou um nome que me soasse a alguém de confiança. Foi assim que descobri Alberto Morávia, entre outros. O nome inspirava-me confiança. Não me enganei.
  • 6. Guardava os livros requisitados debaixo do braço, com a convicção de um pirata guardando o seu tesouro, e descia a Césario Verde, então já mais curta. A pressa de voltar a casa, ao meu castelo, e começar a devorar aqueles objetos mágicos encurtava a distância. Tive pena de nunca me ter esquecido de devolver um livro. Seria uma bela recordação, aquele carimbo em cima das páginas amareladas, aquele cheiro tão próprio que só os livros de biblioteca têm. Mas nunca me esqueci de nenhum, até porque era preciso ir buscar outros e outros e outros até já não haver mais nenhum. Ai Almada, como tinhas razão.
  • 7. A minha escola primária A minha escola primária, hoje conhecida como Arquitecto Victor Palla, e já antes denominada de Nº143, era a do Vale Escuro. Estranho nome para uma escola primária, mas recebia-o do local onde estava instalada. À volta, quase nada. Tão quase nada que, da minha sala de aulas, a nº2, via rebanhos de ovelhas a pastarem alegremente numa colina que atualmente acolhe diversos edifícios de habitação. E eram esses os melhores momentos extracurriculares dessa época. Viver e estudar no meio da capital e poder sair da sala de aulas e viajar pela vida daqueles animais, levá-los a viver aventuras como as dos desenhos animados do Vasco Granja. Tudo sem sair da minha carteira de madeira, de tampo inclinado e corroído pelo tempo e pelos lápis e canetas de estudantes anteriores. Igualmente memoráveis eram os intervalos. Ou melhor, o intervalo, o único que existia e que se estendia pelo tempo - creio que era de 30 m - mas que parecia sempre muito pouco. Um daqueles muito pouco que dava para uma corrida de patins, vestir e despir as bonecas, jogar à apanhada, comer um lanche, aprender lavores, jogar à bola e esfolar os joelhos e as mãos. Vezes sem conta. Aliás, este era o resultado mais certo quando se punham dezenas de crianças a correr num pátio com chão de brita. A professora Gabriela, que me parecia altíssima, era a minha mestra e também ela era residente no bairro, numa zona conhecida como Quinta dos Peixinhos. Quando a professora Gabriela faltava e não se conseguia avisar os alunos - não se esqueçam que me estou a reportar a uma época em que não existiam telemóveis e que muitas famílias não tinham sequer telefone em casa - ficávamos com a professora Lúcia, da sala 3.
  • 8. E algumas vezes, raríssimas, tão raras que parecem mais fruto da imaginação do que memórias de factos concretos, não havia ninguém para tomar conta de nós e lá voltávamos para casa sozinhos. Um percurso pequeno para a maioria - quase todos os alunos residiam no bairro, uns mais à frente, outros mais atrás, mas ninguém tinha que fazer horas de autocarro e de metro para chegar a casa, como agora - mas que nos dava uma sensação de liberdade e de aventura semelhante à que teríamos ao viajar para um país estrangeiro. Pelo caminho acontecia tudo. Víamos nuvens cinzentas que aos nossos olhos eram roxas e indiciavam a iminência de uma qualquer catástrofe que nunca se verificava. Cruzávamo-nos com adultos que achávamos não serem de confiança e que não passavam de vizinhos mais distantes. Chupávamos azedas e sabia-nos a um amarelo doce. Mas quase nunca nos atrevíamos a atravessar a não semaforizada enorme General Roçadas. Dávamos voltas e voltas e mais voltas por caminhos e azinhagas para fugir ao trânsito. 1976, o ano em que entrei para a 1ª classe, foi igualmente o ano de estreia da Victor Palla como escola mista. Até ali, os meninos estudavam num andar e as meninas no outro. Como o fim da ditadura, as coisas mudaram. Felizmente. Não consigo conceber andar numa escola só de meninas. Parece-me coisa da Idade Média. Ou talvez pior do que isso.
  • 9. O cruzamento da peixeira Uma das memórias relacionadas com a Penha de França mais marcadas no meu cérebro respeita a uma peixeira que fazia o seu negócio numa esquina do cruzamento das ruas Sebastião Saraiva Lima e Carrilho Videira. Vá-se lá perceber porquê, mas aquela figura castiça, de meias de lã até ao joelho e enfeitada com mais ouro que uma mordoma do Minho, ficou-me. Do nome dela não me lembro. Lembro-me, sim, das enguias que vendia – vivas, porque é assim que devem ser compradas – e que a minha avó paterna guardava como se fosse um tesouro. Eram caras, acredito, pois não eram petisco que se fizesse todos os dias. Como morriam antes de serem cozinhadas, não me recordo. Mas também não me importava muito. O que realmente importava era o sabor delicioso daquelas cobras de água saídas da frigideira. Engraçado mesmo era manter aqueles bichos ondulantes dentro do alguidar, uma vez chegados a casa. Por muitos panos e tampas e engenhocas que se arranjasse, havia sempre uma mais esperta que se escapulia e acabava a passear pela cozinha. Um pouco como os caracóis. No entanto, no caso dos caracóis, o que fugia acabava, invariavelmente, como meu animal de companhia, a viver num qualquer vaso de plantas ou em cima de uma folha de alface até desaparecer para parte incerta. Mas as enguias não eram o único peixe que a peixeira vendia. Lembro-me bem dos carapaus, dos meus peixes preferidos até hoje. Contudo, o mais fascinante era ver como ela guardava o dinheiro resultante da venda. De dentro daquilo que pareciam pequenos bolsos do seu avental saíam saquinhos de plástico com as notas e as moedas divididas para dar o troco às freguesas (no feminino porque
  • 10. então, na década de 70 do século passado, a maior parte dos homens não iam às compras). E saíam marcados com o sangue do peixe amanhado – sim, porque na época o peixe era vendido já amanhado -, coisa que não atrapalhava nem assustava ninguém. Era assim e pronto. Até hoje, cada vez que passo naquele cruzamento, onde se mantém uma velha drogaria onde ainda se podem encontrar vassouras como as das bruxas, consigo ver aquela figura de meias de lã e avental.
  • 11. A minha escola primária – Os colegas A escola primária é sempre um momento marcante na vida de cada um de nós. Já vos falei de algumas das recordações que tenho da minha, a atual Victor Palla, mas muitas mais ficaram por contar. Na verdade, para relatar todas seria preciso um livro. As pessoas são, provavelmente, a memória mais calcada desse tempo, em particular, os colegas pela sua diversidade social e cultural. Como o A., o rapaz repetente que vivia numas barracas – eu sei que a expressão “técnica” é habitações degradadas, mas não gosto muito de fugir à dureza da realidade e ainda menos de ser politicamente correta – e de quem me lembro sempre a preto e branco. Cabelo que parecia palha áspera em desalinho, uma camisola de lã – poliéster, leia-se – de gola alta, daquelas que picam por todo o lado, e umas calças demasiadamente curtas e excessivamente largas que lhe dançavam animadamente no fundo das pernas a cada passo. Sempre a preto e branco. Ou como a C., a menina lourinha e magrinha de franja, a quem o sinalzito empoleirado na testa, ali mesmo junto à cana do nariz, dava uma graça muito particular. Vivia num prédio enorme – considerando que às crianças tudo parece maior do que aquilo que é – com muitos andares e elevador, pelo que era sempre uma aventura visitá-la. Mas a aventura não se ficava por aqui. Tal como tantos outros edifícios naquela época, a casa da C., numa avenida muito próxima da escola, tinha um outro detalhe que me fascinava: uma varanda fechada com vidro. E como o vidro era fosco, toda a gente se divertia a espreitar lá para fora e a tentar adivinhar o que se passava lá baixo, muito lá em baixo, na rua. Ou a I., que morava numa praceta alguns metros acima da C., de cabelo encaracolado e algumas sardas sumidas, a quem brilhavam os olhos azuis – ou verdes, quem sabe –
  • 12. quando lhe perguntavam qual era o seu país preferido. A resposta era sempre a mesma: Massachusetts. Naturalmente, ela não fazia ideia que aquele nome complicado mas promissor de muitas coisas diferentes não era um país. Não sabia ela nem nós. Como o J.P., pequenito de cabelos ao vento e galochas vermelhas, mais pequenito que a maioria dos outros rapazes, mas dono da mesma malandrice inocente dos seus pares. Chegar a casa do J.P. era outra aventura, esta de maior dureza física. Não vivia num andar tão alto como a C., mas a sua casa ficava no topo da colina, a segunda mais alta da capital. Para lá chegar era preciso subir até à igreja, ultrapassar uma velha casa de candeeiros onde os meus pais compraram um candeeiro de louça com várias cores que, infelizmente, durou muitos anos – ao contrário da loja onde fora adquirido – e descer uma estreita rua que se desdobrava ao longo de uma esquina apertada. E depois de algumas brincadeiras, era necessário ganhar coragem para fazer o caminho inverso. Ou a C.J., que não faço a mínima ideia de onde morava, mas que me fazia fazia companhia nas poses mais pirosas que as meninas daquelas idades conseguem fazer. E o pior de tudo – ou melhor, depende da perspetiva – é que está tudo registado em fotografia. Eu, de cabelo à rapaz e uma saia de peitilho às riscas, ela, de cabelo ondulado e franja presa por ganchos e, como sempre, de bata impecavelmente branca, e a I.C., de longas tranças pretas e sardas, lembrando uma personagem da série “Uma Casa na Pradaria”, deitadas no relvado fronteiro da escola, fazendo de conta que éramos umas top models. Claro, na altura ninguém sabia o que isso era, mas nós as três já tínhamos uma Sara Sampaio dentro de nós. Os colegas da primária voltarão em breve...
  • 13. O autocarro de dois andares Desta vez, a minha “estória” está relacionada com o aniversário da Carris. Sim, porque quando se é pequeno, tudo é uma aventura e nda prova melhor que as coisas simples da vida são sempre as mais importantes e as que perduram no nosso cérebro. Pois é. Hoje em dia os autocarros são híbridos, amarelos e têm apenas um andar. Alguns têm até internet. Mas há mais de 30 anos, Lisboa parecia ser um versão pequena e latina de Londres. Os autocarros tinham dois andares, uma porta articulada rudimentar à frente e outra atrás, bancos rijos de uma pele com pequenos relevos e armações de metal. Ao segundo andar chegava-se através de umas escadas quase em caracol. E o segundo andar era um sítio mítico para a criançada, o topo do farol de onde se avistava a cidade de uma forma diferente. Éramos uns gigantes que observavam os outros tão pequenos que pareciam formigas. Na minha rua passava um desses autocarros de dois andares. A carreira não me lembro, talvez fosse a que hoje corresponde ao 730, mas isso também não era importante. Importante mesmo era que cada vez que o veículo se fazia anunciar – e era muito fácil perceber pelo ruído do motor, que se ouvia à distância -, eu corria para a janela para ver o seu topo branco com rebites mal pintados e imaginar quem vinha lá dentro. Homens, mulheres, crianças, de onde vinham, para onde iam, a caminho de que aventuras estariam ou que desafios teriam deixado para trás antes de embarcarem no autocarro. E o autocarro lá passava. Ficava a vê-lo até passar pelo largo da cabine, como o conhecíamos então, graças a uma cabine telefónica que, apesar de incontáveis atos de vandalismo, por ali ficou durante muitos anos. Depois de passar pelo largo, o autocarro seguia o seu percurso e eu voltava para dentro, ansiosa pela próxima passagem.
  • 14. De volta aos colegas de escola Cá estou de volta aos colegas de escola. Da primária, sobretudo, porque o resto do meu percurso escolar é uma grande mancha distorcida. Um ou outro ficaram, mas nada de muito significativo. Bom, na escola do Vale Escuro a minha colega de carteira era a C.C. que era, também, vizinha próxima, para aí uma ou duas ruas para além da minha. Menina docinha, de risco ao lado com um gancho a segurar a franja, companheira de brincadeiras mais femininas, como vestir e despir bonecas e admirar os modelos da revista Burda que sonhávamos em transformar em roupas para as nossas “filhas” de plástico e borracha. A C.C. tinha uma casa que me parecia fantástica. À primeira vista, era um apartamento como todos os outros, mas guardava um enorme segredo no sótão: os quartos dela e da irmã mais nova. Era o sonho de qualquer criança, dormir no sótão. E elas podiam. Da C.C. e da irmã vou sabendo que estão bem e recomendam-se, notícias que recebo com frequência – felizmente – pelos pais. Havia também o P.A., o miúdo sardento que era o mais alto de todos, ou talvez não fosse, mas é assim que a minha memória o guarda. A sua franja traquina estava de acordo com a sua personalidade irrequieta mas amável e mais amigo do seu amigo. E o L., o sempre atinadinho que sabia a lição na ponta da língua mas que não conseguia controlar o cabelo lisinho como as folhas das árvores por mais que se esforçasse. Ao longo dos anos conseguiu domar o cabelo, mas, quando voltou a ser meu colega na secundária, continuava a ser o mesmo atinadinho de sempre. Tratava-me então pelo apelido como se estivéssemos na tropa e embirrava comigo por eu gostar de séries policiais britânicas. E eu embirrava com ele por ser tão atinadinho.
  • 15. Sem esquecer a E., que morava num prédio enorme no cruzamento da grande artéria da freguesia com a maior praça cá do sítio. Com um certo ar de menina saída de uma adaptação dos anos 70 de uma personagem de Enid Blyton, dava umas ótimas festas de aniversário. Se bem que as melhores memórias não eram propriamente das festas, mas sim dos livros de aventuras dos 5 e dos 7 que emprestávamos uma à outra. Mais tarde ou mais cedo, os colegas de escola estarão de volta.
  • 16. As filas para encher o garrafão Nesta altura de seca severa e extrema, assolam-me a mente as memórias pessoais relacionadas com a falta de água. Apesar de motivada por razões totalmente diversas, nomeadamente, por problemas graves no sistema de abastecimento de água às cidades portuguesas, o certo é que em pequena foram algumas as vezes em que, com a minha família, tive que ir à fonte. Estamos a falar de meados da década de 70 do século passado, sendo que a fonte era, na minha memória e de uma forma mais impressiva, um autotanque dos bombeiros. Esta era a Lisboa e a Penha de França na segunda metade do século XX. As famílias, sendo que nalguns casos, eram apenas os elementos mais jovens, faziam fila naquela que é hoje a Av. Coronel Eduardo Galhardo, junto à ponte (como é conhecido o viaduto da Av. General Roçadas), mesmo ali ao pé do Espaço Multiusos da Junta de Freguesia, carregadas de garrafões. Há também quem se recorde de subir até à Igreja e atestar os garrafões no chafariz que fica no largo fronteiro. Se lá fui alguma vez, a minha memória não o registou. Provavelmente porque os longos momentos de convívio que se vivam enquanto esperávamos a nossa vez para encher os garrafões eram mais cativantes na Coronel Eduardo Galhardo. E também porque ali estavam os bombeiros com o seu gigantesco carro tanque, o que era a concretização do da mística de qualquer criança. À época, a Coronel Eduardo Galhardo não era a artéria organizada que conhecemos hoje. Na realidade, estava cheia de barracas erguidas junto às duas encostas que a recortam, barracas estas para cujos habitantes estavam, tristemente, mais habituados à falta de água do que eu.
  • 17. Estas habitações precárias não tinham nem água canalizada nem instalação elétrica legal e segura, mas eram enfeitadas por pequenas hortas que os seus proprietários de então cultivavam com todo o seu amor. Mais tarde, mas antes da transformação urbana que alterou por completo este cenário, foi nestas barracas que vi, pela primeira vez na vida, uma antena parabólica, enquanto alguns conhecidos testemunharam a maravilha que era um videogravador beta. Sinal de alguma evolução, talvez não na direção mais desejada… Esta era a Penha de França apenas 25 anos antes do século XXI. E replicava-se por toda a Lisboa. Quem sabe um dia vos conte a história das filas para o bacalhau, provavelmente, uma das raríssimas coisas de origem norueguesa pelas quais não sou profundamente apaixonada.
  • 18. O Natal A forma de viver a época de Natal mudou muito nos últimos 40, 50 anos. Nos Natais da minha infância, o bairro não tinha iluminações de rua, tal como muitos outros recantos de Lisboa. Na altura, o brilho das luzes era coisa das zonas mais nobres da cidade, como a Baixa ou Alvalade, para onde toda a gente corria para comprar as prendas. Sem centros comerciais, era ali que os pais e as mães e os avós Natais encontravam as maiores modernicies da época que nos deixavam de boca aberta na noite de 24 para 25. Já os bairros como o meu, a luz e as cores natalícias mostravam-se nas montras das tabacarias e nos pinheiros enfeitados dos cafés e das mercearias, onde os clientes penduravam notas de diferente valor. Passeando pelas ruas de nariz no ar, podíamos descobrir alguns pelas luzes fraquinhas a brilhar através dos vidros. Porque, afinal, as decorações eram feitas para a família mas com tanto orgulho que se encostavam às janelas e varandas fechadas para que os vizinhos tivessem um vislumbre do que se passava dentro de casa. Havia também quem pintasse figuras alusivas à época nos vidros, com “neve” em spray ou colasse os bonequinhos que as crianças faziam na escola. Nesta época do ano, as escolas eram um verdadeiro espaço industrial de pequenos seres desenhadores de supostas bolas, sinos, azevinhos e anjinhos de todas as cores que existiam nas latas de lápis de cor e que inundavam o edifício da própria escola e as casas de cada um. Existia assim como que uma saudável competição para saber quem tinha a decoração mais bonita, uma espécie de filme americano numa versão mais à nossa medida… Lembro-me em particular de dois exemplos, perto da minha casa: o da cabeleireria Lina e o de uns ilustres desconhecidos de um prédio de esquina. Pensando bem, os dois prédios são prédios de esquina…
  • 19. O da cabeleireira Lina, dada alguma proximidade das famílias, costumava ver dentro da própria casa. Ao que parece, dizia-se nesta zona do bairro, era das maiores árvores das redondezas e ostentava o título de melhor decoração. Claro que, uma vez que era de uma cabeleireira que toda a gente frequentava, era o pinheiro mais visto do bairro e arredores. O outro ficava meio escondido numa varanda meio hexagonal – é assim que me lembro dela e não me apetece chegar à janela para confirmar – que se mantinha fechada quase todo o ano, como se os seus proprietários pretendessem manter uma aura de mistério em redor de si mesmos. Mesmo da rua, percebia-se que era um pinheiro enorme e carregado de luzes que brilhavam ao longe. Nunca soube quem morava ali, naquela varanda quase hexagonal, por cima da mercearia, num prédio de esquina. Os pinheiros eram naturais, arrancados à natureza ainda crianças, sem qualquer ideia do prejuízo causado. Eram assimétricos, um tronco torto, um ramo demasiado saliente, agulhas que se agarravam à roupa e que deixavam um rasto desde a loja onde se compravam até ao seu destino final. E a resina? Ui, essa representava um perigo que, suspeito, não passava de um mito urbano: fazia o cabelo cair! As árvores de Natal daqueles tempos compravam-se nas mercearias e nas drogarias, coisas também muito naturais naquela época e que já vão rareando. A minha era comprada na Rua Castelo Branco Saraiva, mas não me lembro em que tipo de loja. O primeiro problema era transportá-la para casa. O percurso não era longo, mas implicava contornar diversos obstáculos, não bater em ninguém, atravessar ruas e, finalmente, subir as escadas do prédio. Depois seguia-se a complicada tarefa de a instalar, de forma segura e permanente, na sala.
  • 20. Arranjava-se um vaso e folhas de jornal que se enrolavam à volta do tronco torto, apertando-o até se ter a certeza que não tombaria. Por fim, era preciso um papel de embrulho bonito, de preferência com bolas e sinos. para esconder toda aquela salganhada. O último problema, e provavelmente, o maior, era a decoração. Lá vinham as irritantes fitas brilhantes, que largavam tantas ou mais “agulhas” que o próprio pinheiro, as luzes que todos os anos tinham uma ou duas lâmpadas fundidas, as bolas que perdiam bocados de tinta a casa utilização, as pinhas falsas prateadas e douradas e um ou outro pináculo gigantesco que ninguém sabia muito bem o que representava. Respirava-se fundo e atirava-se com tudo para cima do pobre do pinheiro até ele desaparecer. Por último, disparava-se com o frasco de spray de tinta branca a fingir neve. Ou então espalhavam-se pedaços de algodão…
  • 21. Disponível em diversas livrarias e online