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Baixar para ler offline
Tiragem: 33425
País: Portugal
Period.: Diária
Âmbito: Informação Geral
Pág: 32
Cores: Preto e Branco
Área: 25,70 x 30,48 cm²
Corte: 1 de 2ID: 59709504 14-06-2015
LídiaJorge:músicaeimagens
gratificadoras
Lídia Jorge senta-se na sua bibliote-
ca para ser fotografada. Escolhe-se,
para a fotografia, o canto onde tem
imagens de escritores nas pratelei-
ras, pequenos quadros cobrindo
algumas lombadas da biblioteca.
Senta-se e olha para a câmara, en-
quanto faz perguntas sobre os ân-
gulos preferidos dos fotógrafos. A
luz vem da janela à direita, alta so-
bre uma grande avenida de Lisboa.
Lídia Jorge tem uma elegância que
combina com aquelas imagens de
escritores que guardou, faz pensar
noutro tempo e, por outro lado, pa-
rece que o tempo não passa por ela,
como uma Xerazade que tivesse en-
contrado o segredo para entreteter
o grande carrasco.
Foi comprando as fotografias
a preto e branco, de Virginia Wo-
olf, William Faulkner, Tennessee
Williams, Samuel Beckett, Franz
Kafka ou Camilo Pessanha, ao longo
dos anos. Não tanto por admiração
ou para procurar inspiração, mas
como companhia. Escrever pode
ser solitário. Ler, pelo contrário, é
uma maneira de não estar sozinho.
E ainda que os livros desapareçam,
fiquem perdidos pelo caminho, en-
tre mudanças de casas, de cidades
ou de países, muitos problemas
de espaço, a memória da leitura já
será suficiente para se andar por
qualquer lado com uma pequena
multidão.
Foi sobre a memória de algumas
leituras que fez durante a vida que
falámos com Lídia Jorge. Isso, e a
importância que continua a ter uma
maneira de olhar para o mundo que
é própria da literatura e que talvez
seja insubstituível. Falar de livros é
falar de metáforas e logo de realida-
de: de política, de amor, de guerra,
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Lídia Jorge tem sido reconhecida
como uma das mais importantes es-
critoras europeias e, em Portugal,
faz parte de uma geração marcada
pela experiência da ditadura, da re-
lação colonial, da violência da guer-
ra. Uma geração que viu tudo mudar
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Na parede em frente da pequena
galeria de escritores, ou na parede
atrás da câmara do fotógrafo para
onde olha, está um pequeno qua-
dro com uma citação do escritor ar-
gelino assassinado em 1993, Tahar
Djaout: “Le silence c’est la mort / et
toi si tu te tais / tu meurs / et si tu par-
les / tu meurs / alors dis et meurs.”
(“O silêncio é a morte / e tu se tu te
calas / tu morres / e se tu falas / tu
morres / então diz e morre.”)
As primeiras companhias
“Lembro-me muito bem do primei-
ro livro que li, Maria Tonta [como
Eu]. Começava: ‘Maria Tonta, Maria
Tonta, Maria Tonta, de tanto ouvir
repetir Maria Tonta já não se lem-
brava do verdadeiro nome, Maria
Francisca, como a mãe lhe chama-
va quando era pequenina.’ A Maria
Tonta foi uma grande companheira.
Foi o primeiro livro que aprendi a
ler por mim mesma.”
Era a história de uma menina que
parte de uma aldeia, que podia ser
uma aldeia como a aldeia onde Lídia
Jorge cresceu no Algarve, para a ci-
dade, mas acaba por não se adaptar
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“Eram tantas as asneiras que ela
fazia que resolveu voltar para a terra
e ao regressar, e ao ver os pinheiros
da aldeia, pensa que não se impor-
ta que a chamem de Maria Tonta.
Eu tinha pena dela, pena daquele AescritoraLídiaJorgenasuacasaemLisboa
Lídia Jorge fala sobre leitura, as histórias que lhe fizeram
companhia ao longo da vida e o poder metafórico dos livros.
“Neste momento”, diz, “há milhares de páginas a serem
escritas que podem renovar o mundo”
destino. Sentia-me incomodada com
aquela escolha — então agora já não
se importa que a chamem de Maria
Tonta — mas, por outro lado, acha-
va que ali é que ela estava no sítio
certo. Não conseguia decidir se ela
tinha feito bem ou não. Até hoje,
não consegui resolver essa ques-
tão. Acho que foi a primeira obra
aberta que li.”
Lídia Jorge cresceu rodeada de
mulheres. A mãe ensinou-a a ler,
antes da escola. E com a avó, que
lhe contava histórias tradicionais,
aprendeu a ouvir.
“A minha avó tinha um regaço
maravilhoso. Abria os dois joelhos
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balouço. Ficava a vê-la de baixo para
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criança a ouvir histórias penso nis-
so, na sabedoria que vinha do alto,
da boca da minha avó.”
Assim que soube ler bem, come-
çou a ler alto nos serões, para as ou-
tras mulheres da família. Cada noite
lia mais um pouco de um romance,
e cada noite as ouvintes seguiam a
história, envolvendo-se com as per-
sonagens, alegrando-se, temendo,
chorando lágrimas verdadeiras por
elas. Foi assim, através desses livros
que lia em voz alta, que começou a
entrar, muito cedo, no mundo dos
adultos.
Sujar as mãos
“Um personagem levantou-se e dis-
se. Isto é uma história. E eu disse.
Sim. É uma história”, lê-se no início
de O Dia dos Prodígios. O primeiro
romance de Lídia Jorge foi publi-
cado em 1980 quando percebeu
que as personagens, como os mor-
tos — os passados e os futuros — se
levantavam, diziam coisas a quem
ouvisse.
Na altura da guerra colonial, Lídia
Jorge estava em Moçambique e so-
bre esse período e essa memória es-
creveria em A Costa dos Murmúrios.
Não estava na frente da batalha, mas
tudo era uma frente naquela altu-
ra. Sozinha, sem muitas pessoas que
conhecesse e ainda menos pessoas
com quem partilhasse interesses, lia.
“Vivia aquele mundo com uma espé-
cie de silêncio.” Ler era um pequeno
refúgio, mas, simultaneamente, um
“Acho que essa
experiência que
então se chamava
‘Ultramar’ foi
a experiência
cultural mais
marcante do último
século e meio para
Portugal”, defende
a escritora, que em
África descobriu os
autores sul-
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Oquelêemosescritores(3)
SusanaMoreiraMarques
Tiragem: 33425
País: Portugal
Period.: Diária
Âmbito: Informação Geral
Pág: 33
Cores: Cor
Área: 25,70 x 30,05 cm²
Corte: 2 de 2ID: 59709504 14-06-2015
FOTOS: ENRIC VIVES-RUBIO
ampliar de mundo. “Foram leituras
que me abriam o mundo, ao mesmo
tempo que eu estava a abrir o meu
mundo”, conta.
Noutra paisagem, noutra cultura,
tão distante da visão central euro-
peia, fazia sentido procurar outras
literaturas. Embora já conhecesse
alguma da literatura norte-ameri-
cana que a influenciou, sobretu-
do Faulkner, foi em África que leu
os sul-americanos. A exuberância
daquela literatura condizia com a
exuberância da paisagem. “Lembro-
me de uma viagem que fiz entre a
Beira e Maputo, com o Rayulea, o
Jogo da Amarelinha, do Cortázar. Ia
a meio do livro e lembro-me do de-
sejo que tinha de chegar para con-
tinuar a ler.”
De certa forma, O Dia dos Prodí-
gios é um livro sob a influência de
Juan Rulfo ou de Gabriel García Már-
quez ou Julio Cortázar — ou mesmo
William Faulkner — não tanto por-
que procurasse neles um estilo ou
uma escola, mas porque foram au-
tores que a ajudaram a acreditar na
sua própria história.
“O que eles me vieram dizer era
que o imaginário que eu trazia comi-
go era válido literariamente. Havia
um imaginário do romance francês,
na moda na altura, que me parecia
um luxo. Porque eu tinha uma histó-
ria bárbara, uma vida semi-selvagem
atrás de mim, no lugar onde tinha
crescido, e em África onde tinha ti-
do uma experiência tão forte. Eles
mostraram-me que não era preciso
lavar demasiado as mãos. Mesmo
com as mãos sujas, podia escrever.
Não era tanto o estilo mas a posi-
ção deles: a crença de que as raízes
contam.”
Lídia Jorge tinha desde sempre
conhecido a sua Comala ou o seu
Macondo, isto é, a nossa Comala ou
Macondo, e lançou O Dia dos Pro-
dígios na muito jovem democracia
que era então Portugal, em que tudo
parecia estar a mudar, quase de um
dia para outro.
“Acho que escrevi esse primeiro
romance como uma espécie de ul-
tra-reportagem — de um povo que
ia mudar”, diz. “Depois não mudou
assim tanto.”
Terreno para caminhar
Há livros que são, para um escritor,
como mapas. Não mapas precisos fa-
bricados com a mais alta tecnologia,
mas mapas em processo, mapas de
quando ainda de desconheciam par-
tes do mundo e iam sendo marcados
na água os lugares onde se desco-
bria que afinal ali havia terra firme.
Desde pequena que parecia natu-
ral a Lídia Jorge que os livros fossem
escritos por homens ou por mulhe-
res, e que fossem lidos por homens e
por mulheres. Foi só em adulta que
entendeu que não era tão simples.
Tinha lido a Agustina Bessa-Luís, a
Isabel de Nóbrega, a Sophia de Mello
Breyner, mas foi sobretudo com a
Maria Teresa Horta, a Maria Velho
da Costa e a Maria Isabel Barreno,
e as Novas Cartas Portuguesas, pu-
blicado em 1972 e logo banido pelo
Foicomprando
asfotografias
deVirginia
Woolf,William
Faulkner,
SamuelBeckett
ouFranzKafka
aolongodos
anoscomo
companhia
regime, que Lídia Jorge começou a
pensar sobre esse espaço de con-
quista e no tempo de falar do corpo
ou da intimidade.
“A nossa diferença de idade não
é muita, mas eu tive a ideia de que
era um terreno conquistado, que
estava feito. E fui completamente
tomada pela questão da História.
Creio que as escritoras da minha
geração tiveram outra urgência: a
de falar das mulheres no seu papel
na História.”
E esse é o terreno que ela talvez
tenha aplanado para os escritores —
e leitores — seguintes. Vivemos num
mundo pós-colonial, mas foi preciso
primeiro escrever — e ler — o mundo
colonial.
“Acho que essa experiência que
então se chamava ‘Ultramar’ foi a
experiência cultural mais marcante
do último século e meio para Por-
tugal”, diz. Para Lídia Jorge é essa
relação com os outros continentes e
a experiência da violência da guerra
que une os escritores da sua gera-
ção, os que foi lendo ao mesmo tem-
po que fazia o seu percurso como
escritora, até perceber, mais tarde,
que era talvez esse o contributo que
estavam a dar: abrir portas para o
imaginário do outro, o que lhe pa-
rece cada vez mais relevante num
mundo onde nos podemos deslocar
com uma velocidade estonteante,
e onde essa velocidade física nem
sempre vai a par com a mudança
de mentalidades.
Hoje, acha, “desprenderam-se as
amarras” da política, das escolas,
de género, e interessa-lhe, como
leitora também, a individualidade
que a escrita permite. Como lhe in-
teressa continuamente uma ideia
de literatura em que o pensamento
metafórico é capaz de nos transpor-
tar para os mistérios, resolvê-los ou
deixá-los enigmáticos, mas sempre
fazendo-nos comungar da humani-
dade. Continua a procurar nos au-
tores novos, a descoberta, mas tam-
bém a companhia. E a segurança de
que, enquanto está aqui sentada a
dar uma entrevista, “há milhares de
páginas a serem escritas que podem
renovar o mundo”.
“O que procuro nos livros que leio
hoje: uma música e uma imagem
gratificadora”, diz. Recentemente,
descobriu um livro chamado La Iu-
cina, de António Moresco, e gosta-
va de o ver traduzido. Um homem
parte para uma floresta para viver
isolado. E, no entanto, à noite, na
floresta onde julgava estar com-
pletamente só, uma pequena luz
acende-se.
“Foram leituras
que me abriam o
mundo, ao mesmo
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estava a abrir o meu
mundo”, diz sobre
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Foi comprando as fotografias a preto e branco, de Virginia Wo- olf, William Faulkner, Tennessee Williams, Samuel Beckett, Franz Kafka ou Camilo Pessanha, ao longo dos anos. Não tanto por admiração ou para procurar inspiração, mas como companhia. Escrever pode ser solitário. Ler, pelo contrário, é uma maneira de não estar sozinho. E ainda que os livros desapareçam, fiquem perdidos pelo caminho, en- tre mudanças de casas, de cidades ou de países, muitos problemas de espaço, a memória da leitura já será suficiente para se andar por qualquer lado com uma pequena multidão. Foi sobre a memória de algumas leituras que fez durante a vida que falámos com Lídia Jorge. Isso, e a importância que continua a ter uma maneira de olhar para o mundo que é própria da literatura e que talvez seja insubstituível. Falar de livros é falar de metáforas e logo de realida- de: de política, de amor, de guerra, de erotismo. Lídia Jorge tem sido reconhecida como uma das mais importantes es- critoras europeias e, em Portugal, faz parte de uma geração marcada pela experiência da ditadura, da re- lação colonial, da violência da guer- ra. Uma geração que viu tudo mudar e, depois, tanto permanecer. Na parede em frente da pequena galeria de escritores, ou na parede atrás da câmara do fotógrafo para onde olha, está um pequeno qua- dro com uma citação do escritor ar- gelino assassinado em 1993, Tahar Djaout: “Le silence c’est la mort / et toi si tu te tais / tu meurs / et si tu par- les / tu meurs / alors dis et meurs.” (“O silêncio é a morte / e tu se tu te calas / tu morres / e se tu falas / tu morres / então diz e morre.”) As primeiras companhias “Lembro-me muito bem do primei- ro livro que li, Maria Tonta [como Eu]. Começava: ‘Maria Tonta, Maria Tonta, Maria Tonta, de tanto ouvir repetir Maria Tonta já não se lem- brava do verdadeiro nome, Maria Francisca, como a mãe lhe chama- va quando era pequenina.’ A Maria Tonta foi uma grande companheira. Foi o primeiro livro que aprendi a ler por mim mesma.” Era a história de uma menina que parte de uma aldeia, que podia ser uma aldeia como a aldeia onde Lídia Jorge cresceu no Algarve, para a ci- dade, mas acaba por não se adaptar e regressa a casa. “Eram tantas as asneiras que ela fazia que resolveu voltar para a terra e ao regressar, e ao ver os pinheiros da aldeia, pensa que não se impor- ta que a chamem de Maria Tonta. Eu tinha pena dela, pena daquele AescritoraLídiaJorgenasuacasaemLisboa Lídia Jorge fala sobre leitura, as histórias que lhe fizeram companhia ao longo da vida e o poder metafórico dos livros. “Neste momento”, diz, “há milhares de páginas a serem escritas que podem renovar o mundo” destino. Sentia-me incomodada com aquela escolha — então agora já não se importa que a chamem de Maria Tonta — mas, por outro lado, acha- va que ali é que ela estava no sítio certo. Não conseguia decidir se ela tinha feito bem ou não. Até hoje, não consegui resolver essa ques- tão. Acho que foi a primeira obra aberta que li.” Lídia Jorge cresceu rodeada de mulheres. A mãe ensinou-a a ler, antes da escola. E com a avó, que lhe contava histórias tradicionais, aprendeu a ouvir. “A minha avó tinha um regaço maravilhoso. Abria os dois joelhos e eu sentava-me na saia, fazia um balouço. Ficava a vê-la de baixo para cima. Ainda hoje, quando vejo uma criança a ouvir histórias penso nis- so, na sabedoria que vinha do alto, da boca da minha avó.” Assim que soube ler bem, come- çou a ler alto nos serões, para as ou- tras mulheres da família. 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Sozinha, sem muitas pessoas que conhecesse e ainda menos pessoas com quem partilhasse interesses, lia. “Vivia aquele mundo com uma espé- cie de silêncio.” Ler era um pequeno refúgio, mas, simultaneamente, um “Acho que essa experiência que então se chamava ‘Ultramar’ foi a experiência cultural mais marcante do último século e meio para Portugal”, defende a escritora, que em África descobriu os autores sul- -americanos Oquelêemosescritores(3) SusanaMoreiraMarques
  • 2. Tiragem: 33425 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Informação Geral Pág: 33 Cores: Cor Área: 25,70 x 30,05 cm² Corte: 2 de 2ID: 59709504 14-06-2015 FOTOS: ENRIC VIVES-RUBIO ampliar de mundo. “Foram leituras que me abriam o mundo, ao mesmo tempo que eu estava a abrir o meu mundo”, conta. Noutra paisagem, noutra cultura, tão distante da visão central euro- peia, fazia sentido procurar outras literaturas. Embora já conhecesse alguma da literatura norte-ameri- cana que a influenciou, sobretu- do Faulkner, foi em África que leu os sul-americanos. A exuberância daquela literatura condizia com a exuberância da paisagem. “Lembro- me de uma viagem que fiz entre a Beira e Maputo, com o Rayulea, o Jogo da Amarelinha, do Cortázar. 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Não era tanto o estilo mas a posi- ção deles: a crença de que as raízes contam.” Lídia Jorge tinha desde sempre conhecido a sua Comala ou o seu Macondo, isto é, a nossa Comala ou Macondo, e lançou O Dia dos Pro- dígios na muito jovem democracia que era então Portugal, em que tudo parecia estar a mudar, quase de um dia para outro. “Acho que escrevi esse primeiro romance como uma espécie de ul- tra-reportagem — de um povo que ia mudar”, diz. “Depois não mudou assim tanto.” Terreno para caminhar Há livros que são, para um escritor, como mapas. Não mapas precisos fa- bricados com a mais alta tecnologia, mas mapas em processo, mapas de quando ainda de desconheciam par- tes do mundo e iam sendo marcados na água os lugares onde se desco- bria que afinal ali havia terra firme. Desde pequena que parecia natu- ral a Lídia Jorge que os livros fossem escritos por homens ou por mulhe- res, e que fossem lidos por homens e por mulheres. Foi só em adulta que entendeu que não era tão simples. Tinha lido a Agustina Bessa-Luís, a Isabel de Nóbrega, a Sophia de Mello Breyner, mas foi sobretudo com a Maria Teresa Horta, a Maria Velho da Costa e a Maria Isabel Barreno, e as Novas Cartas Portuguesas, pu- blicado em 1972 e logo banido pelo Foicomprando asfotografias deVirginia Woolf,William Faulkner, SamuelBeckett ouFranzKafka aolongodos anoscomo companhia regime, que Lídia Jorge começou a pensar sobre esse espaço de con- quista e no tempo de falar do corpo ou da intimidade. “A nossa diferença de idade não é muita, mas eu tive a ideia de que era um terreno conquistado, que estava feito. E fui completamente tomada pela questão da História. Creio que as escritoras da minha geração tiveram outra urgência: a de falar das mulheres no seu papel na História.” E esse é o terreno que ela talvez tenha aplanado para os escritores — e leitores — seguintes. Vivemos num mundo pós-colonial, mas foi preciso primeiro escrever — e ler — o mundo colonial. “Acho que essa experiência que então se chamava ‘Ultramar’ foi a experiência cultural mais marcante do último século e meio para Por- tugal”, diz. Para Lídia Jorge é essa relação com os outros continentes e a experiência da violência da guerra que une os escritores da sua gera- ção, os que foi lendo ao mesmo tem- po que fazia o seu percurso como escritora, até perceber, mais tarde, que era talvez esse o contributo que estavam a dar: abrir portas para o imaginário do outro, o que lhe pa- rece cada vez mais relevante num mundo onde nos podemos deslocar com uma velocidade estonteante, e onde essa velocidade física nem sempre vai a par com a mudança de mentalidades. Hoje, acha, “desprenderam-se as amarras” da política, das escolas, de género, e interessa-lhe, como leitora também, a individualidade que a escrita permite. Como lhe in- teressa continuamente uma ideia de literatura em que o pensamento metafórico é capaz de nos transpor- tar para os mistérios, resolvê-los ou deixá-los enigmáticos, mas sempre fazendo-nos comungar da humani- dade. Continua a procurar nos au- tores novos, a descoberta, mas tam- bém a companhia. E a segurança de que, enquanto está aqui sentada a dar uma entrevista, “há milhares de páginas a serem escritas que podem renovar o mundo”. “O que procuro nos livros que leio hoje: uma música e uma imagem gratificadora”, diz. Recentemente, descobriu um livro chamado La Iu- cina, de António Moresco, e gosta- va de o ver traduzido. Um homem parte para uma floresta para viver isolado. E, no entanto, à noite, na floresta onde julgava estar com- pletamente só, uma pequena luz acende-se. “Foram leituras que me abriam o mundo, ao mesmo tempo que eu estava a abrir o meu mundo”, diz sobre os livros que leu durante a guerra