O documento discute a vocação profética na Bíblia e sua relação com a vida consagrada. Apresenta como os profetas bíblicos eram chamados por Deus e desafiavam o poder político em nome da justiça. Também descreve como o profetismo requer espírito crítico, ser sinal de contradição e ensinar os desígnios de Deus, papéis que a Igreja e todos os batizados devem desempenhar hoje.
2. O profetismo bíblico surgiu com Samuel no século XI
a.C.
No século IX a.C., destacaram-se Elias e Eliseu.
FORTALECER NA VIDA CONSAGRADA
MÍSTICA E PROFECIA
O período áureo da profecia foi o século VIII a.C.,
com Amós, Oséias, Isaías e Miquéias.
No final do século VII e início do século VI a.C., a
profecia declinou após Sofonias, Habacuc, Jeremias e
Ezequiel.
Até que apareceu, tempos depois, o profeta da
esperança, da justiça e da misericórdia, Jesus de
Nazaré.
3. Os profetas criticaram de forma desmedida a monarquia
estatal e seus componentes.
O profeta não estava comprometido com a política
monárquica.
Seu compromisso estava com Javé.
Uma das mais marcantes características dos profetas é
a sua vocação, sua relação pessoal com Javé.
O que há de comum entre os antigos profetas Moisés,
Samuel e Elias, e os profetas literários Amós, Isaías e
Jeremias é a sua vocação.
O profeta difere do sacerdote, porque este exerce sua
função pela hereditariedade. Isso explica porque o
profeta tinha coragem para confrontar reis, sacerdotes
e juízes. O profeta estava comprometido com sua
vocação, ou melhor, com o Deus de sua vocação.
4. Amós 7,10-17 – o profeta descreve sua experiência de
vocação:
Javé o “arrebatou”, “tomou” (7,15).
Deus subjuga e surpreende o profeta, ao chamá-lo.
Isaías 8,11 – se sente agarrado pela mão: “pois assim
disse o Senhor a mim, ao firmar-se a mão (i.e., de Deus)”.
A palavra “firmar-se”, no hebraico, é o substantivo
hezqah “firmeza”. A vocação profética fundamenta-se
na firmeza junto à mão de Javé, deliberada pelo
próprio Javé!
Ezequiel 3,14 - algo semelhante acontece com o profeta
Ezequiel.
Jeremias 20,7 – o profeta Jeremias também sente-se
“fascinado”, “vencido”.
5. Relacionado ainda à vocação, está o conceito do profeta
como um “enviado”.
Em Is 6,8 – Usa-se o verbo shalah “enviar” quando se
trata do envio de uma pessoa (por ex., Gn 32,3s.;
37,13s.).
Também, é frequente o uso do verbo “enviar” quando
Deus envia seus mensageiros (Êx 3,14s.; 4,13.28; 5,22;
7,16; Nm 16,28s.; Dt 34,11; Js 24,5; 1Sm 12,8; Mq 6,4;
Sl 105,26).
Regularmente esse verbo é aplicado quando se trata de
profetas:
Natã
2Sm 12,1
Gade
2Sm 24,3
Elias
2Rs 2,2.4.6; Ml 3,23
6. Isaías
Is 6,8
Jeremias
Jr 1,7; 19,14; 25,15.17; 26,12.15; 42,5.21; 43,1s.
Ezequiel
Ez 2,3s.; 3,6
Ageu
Ag 1,12
Zacarias
Zc 2,12s.15; 4,9; 6,15
Profetas em geral
Jz 6,8; Is 42,19; 48,16; 61,1; Jr 7,25; 25,4; 26,5; Ml 3,1;
2Rs 17,13; 2Cr 24,19; 25,15; 36,15, cf. Sl 107,20;
147,15.18
7. Realmente o verbo “enviar” é decisivo para a profecia!
Em Is 6 não se emprega o verbo niba’ “profetizar” nem
o substantivo nabi’ “profeta”.
Schwantes diz: “Parece que os profetas, em geral, não
gostavam de ser chamados de profetas (Am 7,14-15). No
caso de Isaías só sua esposa é designada de profetisa (Is
8,3); ele é enviado.”
Para a Bíblia, profeta é aquele que, movido por
profunda experiência de Deus, intui os seus
desígnios.
O profeta tem a missão de advertir quanto aos riscos
da infidelidade à aliança com o Senhor. Foi o que o
profeta Samuel fez quando o povo hebreu lhe pediu um
rei, mil anos antes de Cristo. O sistema comunitário,
tribal, seria sucedido pelo monárquico. O modelo
egípcio, de autocracia faraônica, causara impressão nos
escravos libertos.
8. Paulo Freire adverte que o oprimido tende a incorporar o
opressor. O empregado age como se fosse patrão; o servo
como se fosse senhor; o pobre como se fosse burguês.
Samuel tentou convencer o povo de que o modelo do
opressor não servia a quem fora oprimido:
“Este é o direito do rei que reinará sobre vós: (…) os fará
lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas
armas de guerra e as peças de seus carros. Ele tomará as
vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras.
Tomará os vossos campos, as vossas vinhas, os vossos
melhores olivais, e os dará a seus oficiais. (…) Exigirá o
dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos
tornareis seus escravos.” (1 Samuel 8,11-17).
Vamos transferir isso para a vida religiosa ou o âmbito eclesial e
perceberemos certas patologias que isso cria em vários aspectos da
vida eclesial.
9. Como previsto, os reis de Judá e de Israel tornaram-se,
por volta dos séculos IX e VIII a.C., semelhantes ao
faraó.
Para se manter no poder, os reis preferiam recorrer ao
apoio das potências imperialistas a confiar em Javé.
Toda aliança política se resume em buscar ampliar seu
poder à custa do outro. Ninguém faz aliança para
perder. Não é preciso, porém, ter bola de cristal para
saber quem lucra na aliança entre o cordeiro e o leão.
Samaria, capital do reino de Israel (Norte), caiu em mãos
do Império Assírio, e Jerusalém, capital do reino de Judá
(Sul), foi arrasada pelo Império Babilônico.
Diante de um cenário marcado por dúvidas e incertezas
surge o profeta arrebatado, tomado, fascinado, vencido e
firmado na mão de Javé, enviado por Ele com o poder de
sua palavra e mensagem.
10. O que caracteriza o profeta?
a) espírito crítico
são capazes de analisar em profundidade consciências,
estruturas e instituições que escravizam ou reduzem a
compreensão da vida e de sua dignidade. Por isso,
consumidos pelo amor a Javé, os profetas bíblicos
denunciaram erros dos reis e do povo; formaram grupos
de discípulos; anunciaram as derrotas (os cativeiros na
Assíria e na Babilônia) em função de políticas
equivocadas dos reis; solidarizaram-se com o povo, a
quem ajudaram a ler os fatos históricos à luz da fé.
A contradição entre o profeta e o poderoso reflete o
descompasso entre os desígnios de Deus e a política dos
homens.
11. Samuel chocou-se com o rei Saul;
Elias com o rei Acab;
Isaías com o rei Ezequias;
Ezequiel com o rei Sedecias;
Jeremias com o rei Joaquim, a quem chamou de corrupto
(22, 13-19).
Com o exílio dos hebreus na Babilônia (586-538 a.C.),
encerra-se a “profecia da catástrofe” e, ali, se inicia a da
libertação: “Teu futuro é feito de esperança” (Jeremias
31,17). O que hoje o Papa Francisco chama de “consolo
da fé” aos que vivem nas periferias não só geográficas
mas também existenciais.
b) sinal de contradição
O profeta é sempre sinal de contradição (Jeremias 15,
10-15).
12. c) pedagogo nos desígnios de Deus.
Um dos exemplos mais emblemáticos é o da visita do
profeta Natã ao rei Davi (2 Samuel 12, 1-10). O profeta
conta ao rei: — “Havia dois homens na mesma cidade,
um rico e outro pobre. O rico possuía muitas ovelhas e
vacas. O pobre, uma única ovelha, que cresceu com seus
filhos, bebeu de seu copo, dormiu em seu colo. Era como
uma filha. Um hóspede veio à casa do homem rico. Ele
não quis tirar uma de suas ovelhas ou vacas para servir
ao viajante que o visitava. Tomou a ovelha do vizinho
pobre e a ofereceu à sua visita”.
Ao ouvir o relato, Davi, encolerizado, decretou a morte
do homem rico. Natã o fez admitir que este homem era
ele, o rei Davi, que tomara do guerreiro Urias a mulher
Betsabéia, tramando para que o marido dela fosse
colocado no ponto mais perigoso da batalha
13. O poder possui o monopólio da violência. Por vezes,
sacrifica inocentes em função de seus propósitos. Cabe
ao profeta denunciar os abusos.
Hoje, o profetismo não é dado a uma pessoa, mas à
Igreja, e nela somos todos profetas, pois participamos
pelo batismo da missão profética de Cristo.
É função dela – da Igreja, e nela de todos os
batizados/as –, impor limites ao poder da violência que
sacrifica inocentes em função de seus interesses, pedir-
lhe contas, exigir que aja segundo a ética e a justiça.
14. O Papa João Paulo II, na exortação pós sinodal “Vita
Consagrada” afirmou: “De facto, o profetismo é inerente à
vida consagrada enquanto tal, devido ao radicalismo do
seguimento de Cristo e da consequente dedicação à
missão que o caracteriza. A função de sinal, que o
Concílio Vaticano II atribui à vida consagrada, exprime-se
no testemunho profético da primazia que Deus e os
valores do Evangelho têm na vida cristã. Em virtude
desta primazia, nada pode ser preferido ao amor pessoal
por Cristo e pelos pobres, nos quais Ele vive” (VC 84)
15. O testemunho profético requer a busca constante e
apaixonada da vontade de Deus, uma comunhão
eclesial generosa e imprescindível, o exercício do
discernimento espiritual, o amor pela verdade. O
referido testemunho exprime-se ainda mediante a
denúncia do que é contrário à vontade divina e a busca
de novos caminhos para atuar o Evangelho na história,
na perspectiva do Reino de Deus (VC 84)