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A Ditadura Militar

Governo Castello Branco (1964 – 1967)

Bem que Leonel Brizola propôs ao presidente Jango resistir ao golpe de
1964 com armas na mão, a partir do Rio Grande do Sul. Mas o
presidente, muito deprimido, não queria derramamento de sangue.
Como milhares de brasileiros, os dois também se exilaram no
estrangeiro.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro - Copacabana e Ipanema -, a classe
média se confraternizava com a burguesia. Chuva de papel picado,
toalhas nas janelas, buzinaço, banda e chope. Abraços, choro de
alegria, alívio pelo fim da desordem. O Brasil estava salvo do
comunismo! Os crioulos não invadiriam mais as casas das pessoas de
bem! As empregadinhas voltariam a ficar de cabeça baixa!

Mas nos subúrbios o medo substituía o chope. Ali, a revolução iria
procurar os quot;inimigos do Brasilquot;. E quem seriam esses monstros?
Pessoas simples, enrugadas pelo trabalho duro, mas que tinham
ousado não se curvar; operários, camponeses, sindicalistas.

Nenhum banqueiro, nenhum megaempresário, nenhum tubarão foi
sequer chamado para depor numa delegacia, Eram todos homens de
bem, pessoas que amavam o próximo... principalmente se o próximo
fosse um bom parceiro de negócios.

Os soldados armados de fuzis prendiam milhares de pessoas:
dirigentes populares, intelectuais, políticos democratas. A UNE foi
proibida e seu prédio, incendiado. A CGT, fechada. Sindicatos invadidos
à bala. Nas escolas e universidades, professores e alunos progressistas
expulsos. Os jornais foram ocupados por censores e muitos jornalistas
postos na cadeia. A ordem era calar a boca de qualquer oposição.

Os políticos que não concordaram com o golpe, geralmente do PTB,
tiveram seus mandatos cassados. Ou seja, perderam seus direitos
políticos por dez anos. O primeiro cassado, inimigo número um do
regime, foi Luís Carlos Prestes. O segundo foi o ex-presidente João
Goulart. Depois, veio uma lista de milhares de pessoas que foram
demitidas de empregos públicos, presas, perseguidas, arruinadas em
sua vida particular. Juscelino e Jânio também perderam seus direitos,
para que não tentassem nenhuma aventura engraçadinha na política.
Só a UDN não teve punidos: coincidência, não?
Os comunistas, claro, eram perseguidos como ratos. Muitos foram
presos e espancados com brutalidade. O pior é que o xingamento de
“comunista” servia para qualquer um que não concordasse com o
regime. Seria o suficiente para ser instalado numa cela, Fariam a
reforma agrária num cubículo 2 X 2 e socializariam a propriedade do
buraco no chão que servia de privada.

Para espionar a vida de todos os cidadãos, foi criado em 1964 o SNI
(Serviço Nacional de Informações). Havia agentes secretos do SNI em
quase todos os cantos: escolas, redações de jornais, sindicatos,
universidades, estações de televisão. Microfones, filmes, ouvidos
aguçados. Bastava o agente do SNI apontar um suspeito para ele ser
preso. Imagine o clima numa sala de aula, por exemplo. Eu mesmo
perguntei, certa vez, a um professor de história, “o que ele achava” de
algo que os militares haviam decretado. Ele, apavorado, respondeu
algo como: “Não acho nada! Eu tinha um amigo que achava muito e
hoje ninguém acha ele!” Eram muitos os “desaparecidos” naqueles
tempos... O professore correndo o risco de ser detido caso fizesse uma
crítica ao governo. Os alunos, falando baixinho, desconfiando de cada
pessoa nova, apavorados com os dedos-duros. A ditadura
comprometia até as novas amizades! O pior é que o SNI cresceu tanto
que quase acabou tendo vida própria, independente do general-
presidente, a quem estava ligado. Seu criador, o general Golbery do
Couto e Silva, no final da vida, diria amargurado: “Criei um monstro.”




                                                                Castello
Branco

O novo governo passou a governar por decreto, o chamado AI (Ato
Institucional) O presidente baixava o AI sem consultar ninguém e
todos tinham de obedecer. O AI-1 determinava que a eleição para
presidente da República seria indireta. Ou seja, com O Congresso
Nacional já sem os deputados e senadores incômodos, devidamente
cassados, e um único candidato. Adivinha quem ganhou? Pois é, em 15
de abril de 1964 era anunciado o primeiro general-presidente, que iria
nos governar o Brasil segundo interesses do grande capital estrangeiro
nos próximos anos: Humberto de Alencar Castello Branco.

Castello tinha sido um dos figurões da Sorbonne, ou seja, dos
intelectuais da ESG. A maioria de seus ministros também era oriunda
da ESG, a “Escola Superior de Guerra”, réplica nacional do “War
College” norte-americano. Tranqüilos com a vitória, os generais nem
se importaram com as eleições diretas para governador em 1965.
Esperavam que o povo brasileiro em massa votasse nos candidatos do
regime. Estavam errados. Na Guanabara e em Minas Gerais venceram
políticos ligados ao ex-presidente Juscelino Kubitschek. (Em São Paulo
não houve eleições. Seriam depois.) Mostra clara de que alguns meses
depois do golpe ainda tinha muita gente que não apoiava o regime.
Pois bem, os militares reagiram. Vinte e poucos dias depois das
eleições desastrosas, foi baixado o AI-2, que acabava em definitivo
com as eleições diretas para presidente da República. Agora, o
presidente seria “eleito” indiretamente, ou seja, só votariam os
deputados e senadores. Voto nominal e declarado, ou seja, o deputado
era chamado lá na frente para dizer, no microfone, se votava ou não
no candidato do regime. Quantos teriam coragem de dizer, na cara dos
ditadores, que não aprovavam aquela palhaçada? Muito poucos,
inclusive porque os mais ousados eram sumariamente cassados.

O AI-2 também acabou com os partidos políticos tradicionais. O PSD, o
PTB, a UDN, tudo isso foi proibido de funcionar. Agora, só poderiam
existir dois partidos políticos: a Arena e o MDB.

A Arena (Aliança Renovadora Nacional) era o partido do governo.
Estavam ali todos os políticos de direita que apoiavam descaradamente
a ditadura. De onde vinham? Basicamente, da UDN. Mas também um
bando de gente do PSD, do PSP de Adhemar de Barros e, por incrível
que pareça, muitos da velha guarda integralista. Apoiavam o regime
militar em tudo que ele fazia.

O MDB (Movimento Democrático Brasileiro) era o partido da oposição
consentida. A ditadura, querendo uma imagem de democrática,
permitia a existência de um partido levemente contrário. Contanto que
ninguém fizesse uma oposição muito forte. O MDB era formado pelos
que sobraram das cassações, um pessoal do PTB, alguns do PSD. No
começo, a oposição era muito tímida. Nos anos 70, porém o MDB
conseguia votações cada vez maiores para deputados e senadores.
Então seus políticos - muitos eram novos valores surgidos na década -
começaram a fazer uma oposição importante ao regime, capitaneados
pela figura do deputado paulista Ulisses Guimarães (1916-1992) .
Naqueles tempos, brincando é que se diz a verdade, comentávamos
que o MDB era o “Partido do Sim” e a ARENA era o “Partido do Sim
Senhor!”

O AI-3, do começo de 1966, determinava que as eleições para
governador também seriam indiretas. Os únicos com direito a voto
eram os deputados estaduais, que tinham de ir lá na frente e declarar
para todo mundo em quem votavam. Mais intimidação seria
impossível, não é mesmo? O circo estava todo armado para que a
ARENA governasse todos os setores da vida nacional.




A Constituição de 1967

No Brasil, os homens da ditadura faziam questão de criar uma imagem
de que o país era um regime “democrático”. Alegavam que existia
partido de oposição e eleições para deputado e senador. Vá lá, mas
acontece que os políticos mais críticos estavam cassados e o MDB, sob
vigilância. Além disso, o Congresso Nacional ficou com os poderes
muito cerceados. Um deputado podia fazer pouca coisa além de elogiar
as praias douradas do Brasil. No fundo, quem mandava mesmo era o
general-presidente e pronto. Dentro dessa preocupação de manter a
aparência (só a aparência) de “democrático”, o regime promulgou a
Constituição de 1967, que vigorou até 1988, quando finalmente foi
aprovada a Constituição atual. Promulgar não é bem a palavra. Porque
não existiu sequer uma Assembléia Constituinte. Os militares fizeram
um rascunho do texto constitucional e enviaram para o Congresso
aprovar. Congresso mutilado pelas cessações, nunca devemos
esquecer. O trabalho era pouco mais do que aplaudir. Trabalhos
regulados por um relógio que tocava corneta. Deputados obedientes
como soldados em marcha.

Para começar, eleições indiretas para presidente da República e
governadores de Estado, Os prefeitos de capital e cidades consideradas
de “segurança nacional” (como Santos, em São Paulo, o maior porto
do país, ou Volta Redonda, no Rio de Janeiro, por causa da gigantesca
Companhia Siderúrgica Nacional) seriam nomeados pelo governador.
Em outras palavras, a Arena governaria o país pela força da lei (e das
armas, claro).

A Constituição de 1967 aumentava as atribuições do Executivo e a
centralização do poder. É por isso que havia Congresso aberto. Pela
Constituição, os deputados e senadores não podiam fazer quase nada,
a não ser discursos. Veja bem: a lei não permitia nem mesmo que o
Congresso pudesse controlar as despesas do Executivo. No país inteiro,
governadores e prefeitos também podiam gastar à vontade no que
quisessem - estradas para valorizar latifúndios, estádios de futebol
para enriquecer empreiteiras, teatros para a elite se divertir, prédios
públicos enormes para os figurões ficarem sem fazer nada no ar
condicionado. Os deputados estaduais e vereadores não tinham
poderes para impedir esses gastos.




Repressão Militar

Os governadores perderam a autonomia para gastar. Para qualquer
obra importante, tinham de pedir dinheiro ao governo federal, ou seja,
ao general-presidente. O mesmo valia para os prefeitos. Por exemplo,
vamos imaginar que na cidade X, o Fulano do MDB fosse eleito
prefeito. A maior parte do dinheiro dos impostos ficava com o governo
federal, em Brasília. O prefeito Fulano quer fazer uma escola municipal
para X. Não tem dinheiro. Tem de pedir para o governador, que é da
Arena e, certamente, recebe ordens de Brasília para não dar nada.
Agora, se o prefeito fosse da Arena, as coisas mudavam de figura.
Principalmente porque o prefeito se lembraria de apoiar a eleição de
deputados e senadores da Arena. Esqueminha montado e quase sem
furos. Dá para entender por que o regime militar não teve medo de
manter eleições para o Congresso e permitir a existência do MDB? Era
como um jogo de futebol facílimo de ganhar, porque o juiz roubava
escancarado para o lado de quem já estava no poder...

O pior de tudo é que o regime iria fechar mais ainda. O último ato do
governo de Castello foi a LSN (Lei de Segurança Nacional). Reprimir
passava a ser sinônimo de “defender a pátria”.




A Economia no Governo Castello Branco
A primeira atitude do novo governo foi anular as reformas de base.
Criaram um Estatuto da Terra, que previa uma tímida reforma agrária.
Claro que jamais sairia do papel dos burocratas. O latifúndio estava
livre para engolir os camponeses.

A lei de 1962, que controlava remessas de lucros para o estrangeiro,
foi anulada. As multinacionais foram ofertadas com todas as
facilidades.

Os mestres do PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) foram os
ministros Otávio Gouveia de Bulhões (Fazenda) e Roberto Campos
(Planejamento).

Para diminuir a inflação, eles aplicaram receitas econômicas
monetaristas. Trataram de tirar o dinheiro de circulação. Para começar,
cortaram os gastos públicos, ou seja, o governo investiria menos em
hospitais e escolas – já se preparava a introdução do ensino pago nas
universidades públicas e começava-se com a política de esvaziamento
na qualidade do ensino público gratuito de boa qualidade, valorizando
mais as instituições privadas. Até antes da Ditadura Militar, estudar em
colégios    particulares   era    amesquinhante     demonstração       de
incompetência para acompanhar o elevadíssimo nível que então o
ensino público mantinha... Em 1964, tinha sido fundado o Banco
Central para controlar todas as operações financeiras do país. Também
foi criada uma nova moeda, o cruzeiro-novo.

Os salários foram considerados os grandes responsáveis pela crise
econômica do país. Claro, os operários deviam estar ganhando
fortunas e o país não poderia suportar um soldador ou torneiro
mecânico passando férias na Cote d’Azur, fazendo compras na Avenue
Montaigne, em Paris. Assim, os aumentos salariais passaram a ser
sempre menores do que a inflação. A idéia era fazer com que o
aumento de preços, por causa do crescimento dos salários, fosse cada
vez menor.

Acompanhe o raciocínio dos caras. Por exemplo, se a inflação fosse de
30% naquele ano, a lei obrigava o patrão a conceder um aumento
abaixo daquela inflação, de só, digamos, 20%. Claro que esse patrão
iria compensar o prejuízo de ter de pagar mais salários aumentando os
preços de seus produtos e serviços. (Por isso mesmo, diziam, existia a
inflação!) Mas, em quanto? Se o salário aumentava em 20%, o patrão
poderia aumentar os preços em, digamos, 21%: teria até um
pouquinho mais de lucro do que antes. Mas o aumento geral dos
preços (por causa do salário maior em 20%, todos os empresários
reagiriam aumentando os preços em 20% e quebrados) seria perto dos
vinte e pouco por cento, e não mais os 30% anteriores, No ano
seguinte, com inflação de, suponhamos, uns 22%, o patrão poderia
dar um aumento de salário de só uns 10%. Aí os preços, para
compensar esse aumento salarial, subiriam uns 12%, por exemplo. E
assim, num passe de mágica, a inflação teria caído de 30% para 12%
ao ano. Claro que tudo isso está simplificado, mas a idéia básica era
essa mesma. Agora, não sei se você se tocou: por essa receita, os
salários eram comidos pela inflação. Em outras palavras, a ditadura
militar reduziu a inflação arrochando os salários dos trabalhadores.

Um dos recursos para diminuir salários foi a extinção da estabilidade.
Pela lei antiga, depois de dez anos numa empresa, era quase
impossível despedir um empregado. Isso acabou. No lugar, foi criado o
FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), em 1966, que ainda
existe mas, com os ventos ainda mais conservadores que andam
soprando neste país, tem havido uma tendência a propor a suspensão
até deste direito para os trabalhadores. Funciona assim: a cada mês, o
patrão deposita nos bancos uma parte do salário do empregado,
formando uma espécie de caderneta de poupança (outra invenção do
regime militar) chamada de FGTS, Acontece que o FGTS só pode ser
sacado em momentos especiais, como na compra de uma casa própria
ou, caso mais comum, quando o empregado é despedido. Essa lei
facilitou a vida dos empresários. Agora, despedir era tranqüilo. Os
empregados, sabendo que podiam perder o emprego a qualquer
momento, eram obrigados a aceitar salários mixurucas.

Grandes empresas (como as automobilísticas) chegaram a ser
acusadas de ter uma armação para, de vez em quando, despedir
alguns operários (logo absorvidos por outra fábrica, tudo combinado
secretamente). A rotatividade da mão-de-obra (rodando de emprego
em emprego) seria um excelente mecanismo para baixar salários.

Em princípio, o dinheiro do FGTS serviria para que o recém-criado BNH
(Banco Nacional da Habitação) financiasse casas populares. Na prática,
o que aconteceu foi que o BNH acabou financiando a construção de
condomínios de luxo para milionários. Ou seja, o pobrezinho pagando,
indiretamente, a mansão do ricaço.

Não devemos esquecer que as greves estavam totalmente proibidas. O
peão tinha de engolir quieto a pancada salarial, senão haveria outra
paulada mais dolorosa ainda. Para que os empréstimos do governo
federal e os impostos devidos a ele fossem pagos decentemente, criou-
se a correção monetária. Antes, o sujeito podia esperar um ano para
pagar impostos porque então ele pagaria uma quantia desvalorizada
pela inflação. Agora, a correção monetária simplesmente aumentava o
valor da dívida no mesmo percentual da inflação.
Como o governo não queria emitir papel-moeda (estava combatendo a
inflação), obviamente os empresários sofreram restrições ao crédito.
Juros altos, dificuldade de obter empréstimos, poucos investimentos. A
economia crescia pouco. Os ministros sabiam que estavam provocando
esta recessão. Achavam que era um dos remédios para baixar a
inflação. Realmente, as compras diminuíram. Reduzida a demanda
(procura), caíram os preços: outro fator deflacionário.

Para agilizar o crescimento da economia, Roberto Campos e Otávio
Gouveia de Bulhões, os ministros-gurus do PAEG, criaram muitas
facilidades para o investimento estrangeiro. Tinham-se ido os tempos
do nacionalismo trabalhista.

Bem, e o PAEG deu certo? Para o que ele se propunha, sim, foi bem-
sucedido. A inflação caiu. O preço social disso é que representa
problema. Os economistas “iluminados” da época falavam pudicamente
no “lado perverso” das medidas econômicas.

Por que a economia voltou a se recuperar? Há várias explicações. Para
começar, os investidores estrangeiros ficaram mais tranqüilos: não
havia mais ameaça de nacionalismo, nem de greves e muito menos de
socialismo. Além disso, o novo governo tinha eliminado as restrições
ao capital estrangeiro. Assim, as multinacionais começaram a investir
em peso na construção de novas fábricas. O FMI, feliz com o Brasil
militar, também emprestou dinheiro, E nós vimos que ajuda do FMI era
uma espécie de garantia para que outros banqueiros confiassem no
país.

Uma das causas mais importantes da inflação é o descontrole da
economia: cada empresário tenta lucrar na marra, simplesmente
aumentando os preços. Vira uma corrida histérica de preços e salários
aumentando sem parar. Para reverter o quadro, deveria haver um
acordo nacional dos empresários entre si e dos empresários com os
trabalhadores. Mas Jango, no seu tempo, encontrara dificuldade em
montar o acordo. Ocorria o oposto: as lutas de classes se tornavam
mais agudas.

Obviamente, a ditadura não resolveu as coisas por consenso,
promovendo um plano com que toda a sociedade concordasse. As
coisas foram impostas na marra. Na marra principalmente sobre os
trabalhadores. Ou seja, o consenso foi obtido na base do “Ou você
concorda comigo ou entra na porrada!” De qualquer modo, a
estabilidade foi conseguida.

Quer dizer então que uma ditadura consegue estabilidade? Essa
pergunta necessita de outra: de que tipo de estabilidade estamos
falando? Quando examinamos as estatísticas econômicas percebemos
que a estabilidade teve um preço: o aumento de exploração da força
de trabalho.




Costa e Silva (1967 – 1969)

Os militares tinham indicado e o Congresso balançou a cabeça: o novo
general-presidente era Arthur da Costa e Silva. Só a Arena tinha
votado na eleição indireta. Em vez de levantar o braço, batia
continência. O MDB, em protesto (era minoria), havia se retirado do
plenário. Com mãos ao alto.




                                                                Costa
e Silva

Costa e Silva era tido como um homem de hábitos simples. Em vez da
companhia dos livros, como gostava o pedante Castello Branco,
preferia acompanhar as corridas de cavalos. Pessoalmente, diziam que
era “gente boa”. Mas se Costa e Silva queria tranqüilidade, tinha
escolhido mal o emprego. Melhor seria dar palpites no jockey.

Depois do impacto de 64, com aquela onda de prisões e fechamentos,
as oposições ao regime voltaram a se articular. Até mesmo Lacerda
tinha virado oposição. É que ele tivera esperança de se tornar
presidente, mas aqueles a quem bajulara lhe viraram as costas.
Magoado, procurou unir Juscelino e Jango, exilados, numa Frente
Ampla. Pouco resultado daria. Longe do país, tinham pouca influência.

Apesar do PAEG de Castello diminuir a inflação e retomar o
crescimento, a situação da classe operária vinha piorando. Em 1965,
os operários paulistas ganhavam, em média, apenas 89% do que
recebiam em 1960, em 1969, apenas 68%. Estava ficando feia a coisa.
Ícones dos anos 60
Os anos 60 formaram a grande década revolucionária. Os anos da
minissaia, dos homens de cabelo comprido, da pílula anticoncepcional;
da guerra do Vietnã, dos hippies, do feminismo; da Revolução Cultural
na China, da Primavera de Praga, dos Beatles, dos Rolling Stones, de
Jimi Hendrix e Janis Joplin, do LSD, do psicodelismo, das viagens à
Lua; de Kennedy, Krutchev e Mao Tsetung; do cinema de Godard,
Pasolini e Antonioni; das idéias e dos livros de Sartre, Marcuse,
Althusser, Hermann Hesse, Erich Fromm e Wilhelm Reich; dos
transplantes de coração, dos computadores e do amor livre, de Bob
Dylan, Jim Morrison e Martin Luther King; de quot;Paz e Amorquot;, Woodstock
e Che Guevara.

Especialmente, 1968. Trabalhadores e estudantes se levantaram no
mundo inteiro. Em Paris, cidadela do tranqüilo capitalismo
desenvolvido, os operários fizeram greve geral e os estudantes
jogavam pedras na polícia. Nos muros da capital francesa, os grafites
anunciavam o novo mundo: “É proibido proibir”, “A imaginação no
poder!”, “Amor e revolução andam juntos”. Nos EUA, atacava-se o
racismo. Tempos de Martin Luther King e de Malcolm X, grandes
líderes negros. Os estudantes norte-americanos também sonhavam
com socialismo e milhares deles protestariam contra o absurdo de a
máquina de guerra ianque agredir o povo do Vietnã. Na América
Latina, sonhava-se com guerrilhas libertadoras. Na Tcheco-Eslováquia,
aconteceu a Primavera de Praga: os comunistas, liderados por Dubcek,
tentaram construir o socialismo humanista. Na China Popular, o
camarada Mao Tsetung estimulava a Revolução Cultural. A Cuba
revolucionária de Fidel Castro e Che Guevara mostrava o caminho para
os jovens latino-americanos: guerrilha, revolução popular, socialismo
“Hasta la victoria compañeros!” (Até a vitória companheiros!) No
Brasil, a luta era contra uma ditadura militar e um capitalismo
troglodita. Desafiando abertamente o regime, os operários fizeram
greve em Contagem (Minas Gerais). Pouco depois, pararam os
metalúrgicos de Osasco (São Paulo).

O governo militar, através da Lei Suplicy, quis impedir que os
estudantes se organizassem. O maldito acordo MEC-Usaid previa a
colaboração dos técnicos americanos na reformulação do ensino
brasileiro. E o que os ianques propunham? Acabar com as discussões
políticas na universidade: estudante deveria apenas ser mão-de-obra
qualificada para atender as multinacionais aqui instaladas. Além disso,
o governo queria que o ensino superior fosse pago. Ou seja, faculdade
só para minoria de classe média alta para cima.

Mas a UNE estava lá para lutar contra. Época gloriosa do movimento
estudantil. Coragem, sonhos libertários, utopia na alma. A juventude
queria o poder no mundo! Os estudantes iam para a rua contra um
governo que esculhambava a universidade pública, contra um regime
militar. Apesar de proibidas, suas passeatas nas ruas atraíram cada
vez mais participantes, de operários e boys a donas de casa e
profissionais liberais. A grande imprensa chamava-os de “infantis”,
“toxicômanos”, “desequilibrados”. A polícia atacava. Cassetetes, gás
lacrimogêneo, caminhões brucutu. Eles respondiam com pedras, bolas
de gude (contra a cavalaria da PM), coquetéis molotov e idealismo. Os
principais líderes estudantis estavam no Rio de Janeiro: Vladimir
Palmeira e Luís Travassos.




Voltando no tempo...
Imagine que você, com sua idade atual, acaba de voltar no tempo.
Estamos em 1968, no Rio de Janeiro. Em que é que você está
pensando? O que é que você faz no dia-a-dia?

Imagine que você é de classe média e está se preparando para o
vestibular. Assustador. A faculdade tem vagas reduzidas. Aliás, essa é
uma das bandeiras do movimento estudantil: alargar o funil que
desemboca na universidade. Que curso você vai seguir? A maioria quer
ser engenheiro, médico, advogado. Mas tem gente que quer conhecer
o Brasil para transformá-lo: vão estudar sociologia, história, filosofia e
até economia. Um amigo seu diz, brincando, que tem um professor de
sociologia da USP que um dia ainda vai ser presidente da República.

Na faculdade, quem não é de esquerda está por fora. Claro que há
uma povão de gente alienada, que nem dá bola para o que acontece
no país. Mas você e seus amigos são conscientizados. O problema é
que existe uma floresta de partidos e grupelhos de esquerda: PC do B,
AP, Polop, Dissidência na Guanabara e tantos outros (sigla era um
troço importante naquela época). Só não vale o PCB, que não é bem
visto pela garotada, que o chama de “Partidão”. Parece com um velho
sábio que não dá mais no couro. Na verdade, o fato de o PCB não
aceitar a luta armada contra o regime tira o charme dele. Afinal, todos
temos pôster de Che Guevara e Ho Chi Minh na parede de casa e
gostamos de nos imaginar na selva entre os camponeses, com idéias
na cabeça e um fuzil na mão.

As pessoas lêem o suficiente para não se sentirem alienadas. Estamos
em 1968 e alguns autores são obrigatórios: Leo Huberman, Engels,
Lênin, Nélson Werneck Sodré, Caio Prado Jr, Moniz Bandeira e o
famoso manual marxista de Politzer. Quem não leu, ouviu falar. O que
é suficiente para participar de um debate, que é o que mais interessa.
Para os mais metidos a espertos, cabe citar Marcuse, Althusser,
Gramsci e Erich Fromm.

No corredor da faculdade, vocês discutem política. Baixinho, mas
escancarado (até 1968 ainda dava para fazer isso). De um lado, os que
acham que primeiro devem organizar os trabalhadores para depois
partir para luta armada, do outro, os que acham que a luta armada
organizará os trabalhadores. Isso mesmo que você está lendo: na
cabeça do pessoal, a revolução está ali na esquina. É só pegar.

Hoje tem passeata convocada pela UNE. Na faculdade, pintamos as
faixas com os dizeres manjados como “Abaixo a ditadura” e o
provocativo “Povo armado derruba a ditadura”. Vamos para a
passeata? É um problema. Sua mãe tem medo, seu pai (na época, é
claro, lembre-se de que estamos em 68) apoiou o golpe. Melhor ir
escondido. Se você é mulher pior, porque tudo é proibido: freqüentar
boate, beber, chegar em casa tarde da noite, viajar com o namorado
e, óbvio, ir à passeata. Portanto, mais uma que vai escondida alegando
que ia “ficar na biblioteca estudando”.

Lá está você com o pessoal, no centro da cidade. Gritando palavras de
ordem contra o regime. Dos edifícios, papel picado e aplausos. O apoio
dos escritórios te enche de autoconfiança e você realmente se sente
fazendo algo de importante na história do Brasil. Na cabeça, o grande
hino da época, Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo
Vandré: “Vem, vamos embora / que esperar não é fazer / quem sabe
faz a hora / não espera acontecer”...

De repente, chegam os homens. Marcham juntos, compactos, uma
massa sem indivíduos. É a polícia. Escudo, cassetete de madeira,
capacete protegendo o miolo mole. Corre que eles estão vindo! Dá
tempo de pixar o muro com o spray “Abaixo a repressão!” Sai fora. O
cheiro de gás lacrimogêneo incomoda. Hora de botar a pastilha de
Cebion debaixo da língua, lenço molhado no nariz. O pau cantou!
Contra a violência cega, a consciência estudantil, contra a brutalidade
do Estado, pedradas, xingamentos e alma libertária transbordando.

Não há graça nenhuma. Tem gente que sai com o rosto ensopado de
sangue, hematomas pelo corpo, dentes quebrados, Muitos são presos e
empurrados para o carro coração de mãe. Haja claustrofobia. Seguirão
para a delegacia, para serem fichados, humilhados e levar uns
cascudos. Só no final do ano é que a polícia começa a atirar para
matar.

Se você não apanhou muito nem foi preso, dá para chegar num
barzinho no começo da noite, Depois de uns chopes, ou cuba-libre
(rum com Coca-Cola), todo mundo ficava animado para contar pela
décima vez suas proezas, sempre um pouquinho exageradas, é claro.
Você pode estar interessado(a) numa pessoa, num cara ou numa
menina. (Mas não há duplo sentido: o homossexualismo não era
tolerado nem pela esquerda. Ser bicha era quase sinônimo de ser
contra-revolucionário. Muitos guerrilheiros machos se remoeriam de
culpa pelos anônimos desejos inconfessáveis. Só no final dos anos 70
as mentalidades começaram a mudar.) Pois bem, se você estivesse a
fim de alguém, logo trataria de falar alto para aparecer. Essas coisas
não mudaram demais desde então, não é mesmo? Um bom caminho
era se mostrar intrépido no combate aos policiais e, ao mesmo tempo,
estar por dentro das últimas novidades culturais.

No cinema, contavam muito os filmes intelectualizados. O esquema de
Hollywood, bajulando atores e espetáculos, não estava com nada. Pelo
menos nos papos-cabeça. O negócio era filme de diretor-autor.
Antonioni (Blow-up, 1967, e , Zabriesky Point, 1969), Jean-Luc Godard
(A Chinesa, 1967), Pasolini, Bergman, Visconti, Fellini e o nosso
Glauber Rocha ( Terra em Transe, 1967, Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro, prêmio de Cannes 1969 como melhor diretor), É claro
que também se via muita coisa comercial... Aí as estrelas eram Marlon
Brando, Richard Burton, Marilyn Monroe, Sophia Loren, Jane Fonda,
Paul Newman, Marcelo Mastroiani, Alain Delon e, claro, Jane Fonda,
que depois de posar nua virou militante contra a Guerra do Vietnã.

Em literatura, a turma gostava de coisas engajadas como obras de
Brecht, Maiakovski, Pablo Neruda, Gorki, Sartre. Mas também valia
Franz Kafka, o judeu tcheco que escrevia em alemão sobre o absurdo
da sociedade burocrática. O americano Henry Miller descrevia o sexo
com uma crueza tão violenta que achavam que era arte. Quem já
gostava de misticismo lia Hermann Hesse.

Claro que ninguém era um chato de ir a um bar e ficar conversando
sobre coisas intelectuais e políticas o tempo inteiro. Isso só existe em
série da Globo. As pessoas também dançavam, iam a festas, bebiam
além da conta, namoravam, iam às compras, estudavam para as
provas.

Toda menina moderninha falava de amor livre. Anticoncepcional era a
pílula da moda. Entretanto, mesmo entre o pessoal de esquerda, havia
muito conservadorismo. A maioria das moças casaria virgem mesmo e,
no máximo, permitiriam algumas carícias avançadas. Mulher que
transasse com alguns caras era vista como “galinha”, e certamente
ninguém iria querer algo mais “sério” com elas. Como já ensinava
Maquiavel no Renascimento italiano, os preconceitos têm mais raízes
do que os princípios.




Ato Institucional nº 5, o AI-5
A esquerda voltava a crescer no Brasil. Nas ruas, as passeatas contra o
regime militar começavam a reunir milhares de pessoas em quase
todas as capitais. Diante disso, a direita mais selvagem partiu para
suas habituais covardias. Aliás, covardia era a especialidade da
organização terrorista de direita CCC (Comando de Caça aos
Comunistas). O nome já diz tudo. Consideravam que a esquerda era
feita por mamíferos a serem abatidos. Os trogloditas, então, atacaram
os atores da peça Roda Viva, de Chico Buarque, em São Paulo,
Surraram todo mundo, inclusive a atriz Marília Pêra. Depois,
metralharam a casa do arcebispo D. Hélder Câmara, em Recife (alguns
membros da Igreja Católica estavam deixando de bajular o regime).
Em São Paulo, os filhinhos-de-papai da Universidade Mackenzie (onde
nasceu o CCC) agrediam os estudantes da USP, na rua Maria Antônia,
valendo desde pedradas até tiros de revólver.

De acordo com o jornalista Zuenir Ventura, o fanático brigadeiro João
Paulo Burnier elaborou um plano criminoso, o Para-Sar. Uma loucura:
os pára-quedistas da aeronáutica, secretamente, pegariam os inimigos
do regime e jogariam do avião no mar alto, a uns 40 quilômetros da
costa. Além disso, havia o projeto de explodir o gasômetro do Rio de
Janeiro, começo da avenida Brasil, área industrial e de trânsito
engarrafado. Morreriam umas 10 mil pessoas queimadas. Tragédia
nacional. Burnier botaria a culpa nos comunistas e, com a população
querendo o linchamento dos responsáveis, prenderia os esquerdistas e
os executaria sumariamente. Que coisa diabólica, não? Só não se
concretizou graças à bravura e ao patriotismo de um militar da
aeronáutica: o grande brasileiro capitão Sérgio Ribeiro Miranda de
Carvalho, o Sérgio Macaco. A operação teve de ser cancelada. Mas o
capitão Sérgio foi afastado da Aeronáutica.

A greve operária de Contagem terminou com acordo salarial entre
patrões e empregados: Mas em Osasco a coisa foi diferente. Ela tinha
sido bem melhor preparada, inclusive com participação de estudantes
esquerdistas na organização do movimento. O governo então falou
grosso. O sindicato dos metalúrgicos foi invadido e o presidente, José
Ibraim, teve de se esconder da polícia. O exército preparou uma
operação de guerra e ocupou as instalações industriais. A partir daí,
quem fizesse gracinha de greve teria de enfrentar os blindados e fuzis
automáticos. Ou seja, as greves acabaram.

Contra os meninos e meninas do movimento estudantil, foram
lançados homens armados até os dentes. Agora passeata começava a
ser dissolvida a bala. No Calabouço, um restaurante carioca
freqüentado por estudantes, a polícia militar assassinou um rapaz,
Édson Luís. Nem a missa de sétimo dia, na catedral da Candelária, foi

respeitada pela polícia, que baixou o sarrafo nas pessoas que saíam do
templo. Em resposta, a maior passeata já vista na avenida Rio Branco:
a célebre Passeata dos Cem Mil (26/6/1968). Era a multidão, bonita,
vigorosa, olhando para a vida, exigindo a mudança.

Os militares estavam apavorados. Até onde aquilo tudo iria levar?
Concluíram que precisavam endurecer mais ainda o regime. E
endureceram. As passeatas de estudantes passaram a ser reprimidas
pelas próprias Fonas Armadas e muitos estudantes foram baleados.
Agora, em vez do cassetete, vinha o fuzil automático. O congresso
secreto da UNE, em Ibiúna (SP) foi dissolvido, com 1240 estudantes
presos.
O pior estava por vir. Faltava só o pretexto.

No Congresso Nacional, o jovem deputado Márcio Moreira Alves, do
MDB, fez um discurso em que recomendava que as mulheres não
namorassem os militares envolvidos com as violências do regime. O
que seria do país, se os oficiais não namorassem? Ficariam com o fuzil
na mão? Os generais exigiram sua punição, mas o Congresso não
permitiu.

Foi, então, que saiu o Ato Institucional nº 5, o AI-5, numa sexta-feira,
13 de dezembro de 1968. Claro que o caso do deputado era só
desculpa. Tratava-se, na verdade, de aumentar a repressão e silenciar
os opositores.




O AI-5 foi o principal instrumento de arbítrio da ditadura militar. Com
ele, o general-presidente poderia, sem dar satisfações a ninguém,
fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos. de parlamentares (isto
é, excluir o político do cargo que ocupava, fosse senador, governador,
deputado etc.), demitir juízes, suspender garantias do Poder Judiciário,
legislar por decretos, decretar estado de sítio, enfim, ter poderes tão
vastos como os dos tiranos.
Tem gente que chega a falar do “golpe dentro do golpe”. Se a ditadura
já era ruim, agora ela piorava.E muito!




A Oposição Parte Para a Luta Armada

O que significa viver sob uma ditadura militar? É exagerado achar que
a toda hora tem tanque na rua, soldados desfilando dentro das
faculdades. Aparentemente não muda muita coisa, porque você vai às
compras, ao dentista, à praia e ao cinema, namora e casa, vê
televisão. A não ser o fato de que seu vizinho é oficial do Exército e
você sabe que por isso ele manda aqui no prédio (e isso pode ser até
bom para a vizinhança), o resto parece bem normal. Mas, se você tiver
um pingo de consciência, desconfia que as coisas não vão bem. Existe
um cheirinho de esquisitice: as pessoas falam baixo, há uma nuvem de
mistério cobrindo o país, o estômago fica pesado demais.

Depois de 1964 ainda dava para fazer umas passeatazinhas e desafiar
o regime. Depois do AI-5 (dezembro de 1968) o regime tinha fechado
de vez. Passeata era dissolvida a tiros de fuzil. Em cada redação de
jornal havia um imbecil da polícia federal para fazer a censura, Não
poderia sair nenhuma notícia que desagradasse ao governo. Uma
simples reportagem esportiva sobre o time do Internacional de Porto
Alegre, com sua camisa vermelha, poderia ser encarada como
“propaganda da Internacional Comunista”. Além da censura, o jornal
não podia dizer que tinha sofrido a censura (isso, claro, também era
censurado). O jeito foi botar receitas de bolo nos vazios deixados pelas
partes retiradas pela polícia. As pessoas estavam lendo uma página
sobre política nacional e, de repente, vinha aquela absurda receita
para fazer uma torta de abacaxi. Os espertos sacavam logo que era
um protesto. Os mais ingênuos (por conivência ou conveniência,
chegavam a mandar cartas para as redações dos jornais, pois as
receitas, por vezes, eram irracionais: “cinco quilos de açúcar, 100 g de
farinha de trigo, dois quilos de sal, vinte tabletes de fermento, uma
colher de chá de suco de laranja...” Não há receita que dê certo assim,
hehehe. Claro que existem ainda hoje ingênuos ainda mais imbecis,
que declaram coisas como: “naquele tempo o governo era muito
melhor do que hoje. Bastava abrir os jornais, eles só tinham elogios
para o governo. Aliás, também tinham receitas de bolo muito boas.”

Ninguém podia falar mal do governo. Reclamação na fila do ônibus era
uma linha até à cadeia. Estudantes e professores que conversassem
sobre política poderiam ser expulsos da escola ou da faculdade, devido
ao decreto-lei nº 477 (1969), Imagine o clima dentro da sala de aula.
Se o professor contasse aos alunos o que você está lendo neste livro,
corria o sério risco de não poder voltar mais à sala de aula. Ou mesmo
para a sua própria casa...



_ O que você acha da situação atual?

_ Eu não acho nada! Tinha um amigo que achava muito e hoje
ninguém acha ele! To fora!



Qualquer aluno novo que tentasse se enturmar era logo suspeito de
pertencer ao SNI. Veja que coisa, a ditadura tolheu até as novas
amizades!

O político que fizesse oposição aguda seria logo cassado pelo AI-5. Foi
o caso, por exemplo, do deputado federal Francisco Pinto (MDB),
punido em 1974 porque fez no Congresso um discurso chamando de
“ditador” o ditador chileno Pinochet em visita ao Brasil, o deputado
Lysâneas Maciel (MDB) solicitou a criação de uma CPI (Comissão
Parlamentar de Inquérito) para apurar denúncias de corrupção no
regime. Não teve CPI nenhuma e ele ainda foi cassado. É isso aí: numa
ditadura, a sociedade não pode fiscalizar o governo. Os cidadãos estão
enjaulados, mas a corrupção está livre.

Com tantas dificuldades, como continuar fazendo oposição ao regime?
Para muitos jovens, só havia um caminho a seguir: a luta armada.

Falar em guerrilha nos anos 60 arrepiava muita gente. Ela parecia ser
a grande arma de libertação dos povos do Terceiro Mundo. Exemplos
não faltavam. Em Cuba, Fidel Castro e Che Guevara abriram o
caminho: No Vietnã, os guerrilheiros de Ho Chi (Minh derrotavam a
maior máquina de guerra do planeta, a do imperialismo norte-
americano. Na Argélia, os guerrilheiros dobraram as tropas francesas e
conquistaram a independência do país. Na própria China, a revolução
socialista foi vitoriosa depois de anos de guerrilha camponesa
comandada por Mao Tsetung. No Brasil não poderia ser diferente:
muitos estudantes, velhos militantes da esquerda e intelectuais
começaram a organizar grupos guerrilheiros. Para eles, depois do AI-5
não havia mais espaço para a legalidade. Só a luta armada libertaria o
Brasil.

Ao contrário do que você possa pensar, o PCB foi contra a luta armada.
Os comunistas acreditavam que a luta no momento não era nem
socialismo nem reformas básicas, mas pelo fim do regime autoritário.
Sua estratégia era a de se unir a todos os grupos democráticos contra
o regime. Atuaria, clandestino, no MDB.

Muita gente da esquerda considerou esse programa covarde,
reformista (um xingamento horroroso, pois isso equivaleria a não ser
um revolucionário. Mas naquele momento os comunistas eram
qualquer coisa, menos revolucionários...). A juventude queria a
mudança logo, a todo preço. E foram esses jovens, garotões e
meninas, adolescentes ainda, estudantes e sonhadoras, que
embarcaram na aventura da luta armada.




Libertação e Exílio de Presos Políticos em troca do Embaixador Americano
Seqüestrado.

Um dos grandes gurus era o francês Regis Debray, que tinha sido
companheiro de guerrilha de Che Guevara. Foi ele que lançou a teoria
foquista: meia dúzia de combatentes criariam um foco guerrilheiro
numa área rural. Primeira etapa, o treinamento militar. Depois, contato
com a população. Ganham a confiança através do trabalho, da
honestidade, de solidariedade. Imagine o efeito disso: o camponês
jamais viu um médico e, de repente, aquelas pessoas o tratam com
cuidado, curam seus filhos. Nesse processo, os guerrilheiros vão
transmitindo suas idéias, mostrando que o latifúndio deveria ser
confiscado, que os camponeses precisam se unir e se armar. E quando
chegam os jagunços do fazendeiro, os guerrilheiros estão prontos para
responder com fogo de armas de guerra, Pronto, está deflagrada a
luta. Agora, junto com os camponeses que aderem ao movimento, eles
se lançam para o mato. O Exército chega logo depois, quase sempre
truculento: tortura moradores, incendeia barracos, molesta as
meninas. O povo vê com clareza quem está do lado dele. Os
guerrilheiros, por sua vez, nunca enfrentam o Exército de frente. As
táticas incluem emboscadas, ações rápidas e fulminantes. Depois, a
fuga veloz: sua mobilidade e ataques de surpresa são armas letais.
Conhecem a região, contam com o apoio logístico dos moradores.
Quase invencíveis. Mas este é um foco. A teoria foquista imaginava
que surgiria outro foco ali, e mais outro adiante, e outro, e outro. Até
que um dia esses focos começariam a se unir para compor um grande
exército popular. Tal como ensinou Mao Tsetung, o campo cercaria a
cidade. E a revolução seria vitoriosa.

Simples, não? É, simples demais para dar certo: havia muitos sonhos e
pouco pé no chão. Como fazer guerrilha camponesa num país em que
a maioria já vivia na cidade? Bem que o sinal de alerta já havia sido
dado: em 8 de outubro de 1967, Che Guevara foi assassinado pela
CIA, quando organizava um foco guerrilheiro na Bolívia. Não era um
aviso de mau agouro?

Desde 1968 já existiam ações guerrilheiras. Mas o grosso mesmo foi
entre 1969 e 1973. Havia um cacho de grupos de luta armada,
diferentes nos objetivos e nas estratégias, embora no final todos
visassem ao socialismo (já se disse que as esquerdas só se encontram
na cadeia...). Uns achavam que primeiro era preciso derrotar a
ditadura, outros achavam que já era possível lutar imediatamente pelo
socialismo; uns achavam que primeiro era preciso organizar os
trabalhadores e depois se lançar na guerrilha, outros achavam que
através da luta guerrilheira os trabalhadores iriam se organizando; uns
achavam que a guerrilha urbana era a mais importante, outros, que
era a rural.

Não vamos estudar as minúcias das organizações. Basta dar uma idéia
geral de como funcionavam as mais importantes: VPR (Vanguarda
Popular Revolucionária), o MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de
Outubro), a ALN (Ação Libertadora Nacional), o PCBR (PCB
Revolucionário), o PC do B, a VAR-Palmares.

Quem eram esses guerrilheiros? Não eram muitos, apenas algumas
centenas. Os simpatizantes, que eventualmente podiam esconder
alguém em casa ou contribuir com dinheiro, não iam além de uns mil e
poucos. Apesar de sonharem com a revolução proletária, havia poucos
operários ou camponeses. Os líderes geralmente eram antigos
comunistas, rompidos com o Partidão porque o PCB estava contra a
luta armada. Ainda tinha um grupo importante de militares desertores
do Exército. Muitos guerrilheiros eram como talvez você seja, amigo
leitor, com 17 ou 18 anos de idade, estudantes secundaristas ou
acabando de entrar na faculdade.

A maioria dos guerrilheiros foi presa antes de começar a luta armada
no campo. Na verdade, a guerrilha ficou sendo urbana mesmo, sem
repercussão maior. Houve algumas tentativas de panfletar na porta de
fábricas, e um grupo chegou a levar um caminhão cheio de comida
para distribuir na favela, anunciando aquela como “a primeira das
muitas expropriações revolucionárias que o povo fará daqui em
diante”. Pura ilusão. A repressão do governo agia com muita eficácia e
rapidamente os grupos foram desmantelados. No final, tinham de
assaltar bancos para levantar fundos para a luta e seqüestrar
embaixadores em troca da libertação de presos políticos.

Desde o início a guerrilha já tinha muitos erros. Para começar, os
guerrilheiros consideravam-se marxistas, mas quase nada tinham lido
a respeito. Ninguém tinha feito uma análise profunda da sociedade
brasileira para ter certeza de que aquela era a melhor estratégia a ser
seguida. Por exemplo, sonhavam com uma guerrilha camponesa num
país enorme que já era urbano e industrial. Queriam buscar seus
próprios caminhos políticos, mas no fundo imitavam modelos de outros
países, como Cuba e China. Falavam em nome dos trabalhadores, mas
jamais tiveram um contato maior com a população. O povo, dominado
pela propaganda oficial e pela imprensa censurada, os ignorava ou os
tratava como bandidos, seqüestradores, assaltantes de banco,
“terroristas”. Viviam tão fora da realidade, que só faltaram dizer que
as vitórias do governo, pulverizando a guerrilha, eram “a mostra do
desespero da burguesia em sua crise final”. Coitados, eram rapazes e
moças que nunca tinham visto um revólver na vida enfrentando um
Exército profissional bem equipado e com assessoria dos EUA. Nem
dava para começar.

A única tentativa que teve alguma consistência foi a Guerrilha do
Araguaia. Ela se desenvolveu mais ou menos entre 1972 e 1974,
organizada pelo PC do B. Lembremos que, na época, ao contrário do
PCB (que era de linha soviética e contra a luta armada) o PC do B
seguia o socialismo chinês (o maoísmo) e apoiava a guerrilha. Pois
bem, no começo dos anos 70, grandes empresas do Sudeste e
multinacionais investiram em pecuária extensiva na região do
Tocantins-Araguaia. Quando chegaram lá, já havia pequenas roças na
mão de camponeses posseiros (não tinham documentos legais da
propriedade da terra, apesar de trabalharem nelas havia muitos anos).
Nem quiseram saber, passaram a fazer grilagem das terras (tomar
ilegalmente). Quando o camponês não queria abandonar a terra, os
capangas da empresa iam lá, ateavam fogo no barraco, destruíam a
plantação, espancavam os moradores. Como você pode perceber, as
lutas de classes entre os grileiros e os posseiros eram muito fortes. O
PC do B quis aproveitar esse potencial de revolta e chegou na região
para montar uma base de treinamento. Foram descobertos pelo
Exército, que deslocou para região milhares de soldados. Contra uns
60 guerrilheiros. Numa região isolada do país, imprensa censurada, as
pessoas só sabiam alguma coisa através de boatos. Mas na região do
Araguaia até hoje as pessoas humildes se recordam do que aconteceu.
Muitos militares abusaram do poder e espancaram brutalmente a
população para que revelasse os esconderijos dos guerrilheiros. Os
prisioneiros eram torturados de forma bárbara e muitos encontraram a
morte depois que o corpo virou uma massa de pedaços de carne e
sangue. Os guerrilheiros mortos foram enterrados em cemitérios
clandestinos e até hoje as famílias procuram seus corpos. Em 1974, a
guerrilha do Araguaia estava destruída.



O que dizer sobre essa loucura toda? Foram rapazes e moças, muitos
ainda adolescentes, que tiveram a coragem de abandonar o conforto
do lar, a segurança de uma vida encaminhada, a tranqüilidade da vida
de jovem de classe média, para combater um regime opressor com
armas na mão. Pessoas que dão a vida pelo ideal de libertação de seu
povo não podem ser consideradas criminosas. Mesmo que a gente não
concorde com os caminhos trilhados. Eles mataram? Certamente. Mas
nunca torturaram. Nem enterraram suas vítimas em cemitérios
clandestinos. E se o tivessem feito, nada disso justificaria a tortura e o
assassinato executados pelo governo. Além disso,            seria mesmo
inadmissível pegar em armas contra um regime antidemocrático que
esmagava o povo brasileiro? Que moral uma ditadura tem para definir
como deve ser combatida?



Repressão e Tortura

Como é que a ditadura conseguiu dizimar a guerrilha? A repressão foi
selvagem.

Imagine que você fosse um guerrilheiro naquela época. Documento
falso, revólver escondido na cintura, olhar assustado para qualquer
pessoa da rua. Distante da família, dos amigos, de qualquer conhecido.
Clandestino. Codinome, ou seja, nome inventado, nem os
companheiros sabiam sua identidade. Se fossem presos, não poderiam
te revelar. Vocês se escondem num apartamento discreto no subúrbio.
E mudam de residência quase todo o mês. Esse esconderijo é chamado
de “aparelho”. Um dia, você tem um ponto, ou seja, um encontro
marcado com outro guerrilheiro. Ele não aparece. Provavelmente, caiu
(foi preso). Em algumas horas, debaixo de paulada, pode ser que ele
abra. Os meganhas logo vão chegar. É preciso desativar o aparelho
rápido. De repente, chega a polícia. Tiroteio. Mortes. Se você escapar
com vida, vai direto para o porão. Agora sim, você vai sentir na pele a
face mais negra do regime. A tortura.

Não houve guerrilheiro preso que não fosse barbaramente torturado.
Ficar pendurado no pau-de-arara (um cavalete em que o sujeito fica
preso pela barra que passa na dobra do joelho, com pés e mãos
amarrados juntos) é um dos piores suplícios. Além disso, pontapés,
queimaduras de cigarros, choques elétricos, alicates arrancando os
mamilos, banhos de ácido, testículos amassados com alicate, arame
em brasa introduzido pela uretra, dente arrancado a pontapés, olhos
vazados com socos. Mulheres estupradas na frente dos filhos, homens
castrados. A lista de atrocidades é infindável.

Os torturadores são animais sádicos. Mas além da maldade pura e
simples, havia a necessidade estratégica: a tortura extraía confissões
em pouco tempo, dando oportunidade de prender outras pessoas, que
também seriam torturadas, revelando mais coisas e assim por diante.
Infelizmente, a tortura revelou-se bem eficaz.

Houve muita gente, entretanto, que nada falou. Veja bem, amigo
leitor, bastava contar tudo que a tortura acabaria. Essa era a diabólica
proposta. Imagine-se no lugar do preso, apanhando feito um cão, nu,
sangrando, com a cabeça enfiada num balde cheio de fezes e vômito
dos outros. Algumas frases e você seria mandado para um hospital. No
entanto, muitos não falaram. Bravamente, recusaram-se a colaborar
com a repressão.

Morto sob tortura tinha o caixão lacrado para ninguém ver o cadáver
arrebentado. O laudo oficial do IML, emitido por médicos venais
comprometidos com a ditadura dizia friamente que a morte tinha
ocorrido “em tiroteio com a polícia”.

Uma geração que pagou um alto preço por seus sonhos: pagou com o
próprio sangue. Por isso, amigo leitor, se hoje eu posso escrever essas
linhas, se hoje você pode dizer o que pensa, saiba que entre os
responsáveis por nossa liberdade estão aqueles que deram sua vida
para que um dia o país não estivesse mais sob o jugo das botas da
tirania.

Mas, afinal, quem eram os torturadores? Onde as pessoas eram
torturadas? Ao contrário do que se possa pensar, a tortura não era
feita em algum lugar escondido, uma casa de subúrbio ou uma fazenda
afastada de tudo. Não, infelizmente as pessoas eram torturadas em
lugares públicos, na frente de muitas testemunhas. Como Mário Alves,
dirigente do PCBR, torturado até a morte nas dependências do Primeiro
Batalhão de Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio
de Janeiro. Reparou no local? Um quartel do Exército! Como também
aconteceu em delegacias, em bases da Marinha. Através da Operação
Bandeirantes (OBAN), do DOI-CODI, dos Serviços de Informação das
Forças Armadas (CENIMAR, CISA, CIEX), do DOPS e do SNI, o governo
exterminou a guerrilha com brutalidade.
Claro que a maioria dos militares não teve nenhum envolvimento com
a tortura. Muitos sequer sabiam que ela estava acontecendo. Mas é
inegável que os torturadores ocupavam importantes posições no
aparelho repressivo do Estado: eram policiais civis, PMs, agentes da
polícia federal, delegados, oficiais e sargentos da Marinha, do Exército,
da Aeronáutica, médicos que avaliavam a saúde da vítima e
autorizavam a continuação da tortura.

Muito triste é saber que alguns desses monstros permanecem na
polícia, nas Forças Armadas e que foram anistiados pelo general
Figueiredo em 1979. Neste país, jamais um torturador sentou no banco
dos réus.

A ditadura não se manteve só com violência física. Ela soube se valer
de uma propaganda ideológica massacrante. Numa época em que
todas as críticas ao governo eram censuradas, os jornais, a tevê, os
rádios e revistas transmitiam a idéia de que o Brasil tinha encontrado
um caminho maravilhoso de desenvolvimento e progresso.
Reportagens sobre grandes obras do governo e o crescimento
econômico do país convenciam a população de que vivíamos numa
época incrível. Nas ruas, as pessoas cantavam: “Ninguém segura esse
país.”

Os guerrilheiros eram apresentados como “terroristas”, “inimigos da
pátria”, “agentes subversivos”. Qualquer crítica era vista como “coisa
de comunista”, de “baderneiro”. Houve até quem chegasse ao cúmulo
de acusar os comunistas de responsáveis pela difusão das drogas e da
pornografia!

O futebol, como não poderia deixar de ser, foi utilizado como arma de
propaganda ideológica. Na época, a esquerda se perguntava: “O
futebol aliena os trabalhadores, é o ópio do povo?” E houve até quem
torcesse para que o Brasil perdesse a Copa: como se o trabalhador
brasileiro precisasse de uma derrota no jogo de futebol para realmente
se sentir oprimido! Ou seja, quem estava supervalorizando o futebol: o
povão ou a esquerda? De qualquer modo, meu amigo, aquela seleção
brasileira de 1970 foi simplesmente o maior time de futebol que já
existiu. Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino, Clodoaldo, Carlos
Alberto Torres, seus craques são inesquecíveis. O tricampeonato
conquistado na Copa do México encheu o país de euforia. Nas casas
(pela primeira vez a Copa foi transmitida ao vivo pela televisão) e ruas
o povo explodia de alegria e cantava: “Todos juntos, vamos / Pra
frente Brasil..” Os homens do governo, claro, trataram logo de
aparecer em centenas de fotos ao lado dos craques. Queriam que o
país tivesse a impressão de que só tínhamos ganho a Copa graças à
ditadura militar (embora as vitórias de 1958 e 1962 tivessem sido no
tempo da democracia, com JK e Jango). O prefeito de São Paulo, Paulo
(que não era São) Maluf, resolveu dar para cada jogador um
automóvel zero quilômetro de presente. O presidente Médici, vestido
com a camisa rubronegra do Flamengo, era aplaudido de pé por parte
da torcida no Maracanã. Triste país, o general chutava a bola, os
torturadores chutavam os presos.

Além do futebol, os brasileiros conheceram uma nova paixão, o
automobilismo. Até hoje, o mundo só teve um único piloto capaz de
vencer na sua estréia na Fórmula 1: o nosso Émerson Fittipaldi,
campeão mundial em 1972 e 1974.

Nas escolas vivia-se um clima de ufanismo (exaltação da pátria). Todo
mundo tinha de acreditar que o Brasil estava se tornando um país
maravilhoso. Nos vidros dos carros, os adesivos diziam: “Brasil - Ame-
o ou Deixe-o!” É como se os perseguidos políticos foragidos tivessem
se exilado por antipatriotismo. Um pontapé na verdade.

Claro que essa euforia toda no começo dos anos 70 não vinha só das
vitórias esportivas e da máquina de propaganda do governo. Em
realidade, o país vivia a excitação de um crescimento econômico
espetacular. Era o tempo do “milagre econômico”.




Governo General Emílio Garrastazu Médici
(1969 – 1974)

quot;A plenitude do regime democrático é uma aspiração nacional. . . quot;

PRESIDENTE MÉDICI



Costa e Silva não teve muito tempo para se alegrar com os efeitos do
AI-5. um derrame o matou, em agosto de 1969. O povo não teve
tempo de se alegrar; uma Junta Militar, comandada pelo general Lyra
Tavares, assumiu o governo até se nomear o novo general-presidente.
0 vice de Costa e Silva, o civil Pedro Aleixo (ex-UDN), não tinha
apoiado totalmente o AI5 e por isso fora jogado para escanteio. No
mesmo ano, ocorreu a Emenda Constitucional nº 1, que alguns juristas
consideram quase como uma nova Constituição. Ela legalizou o arbítrio
e os poderes totalitários da ditadura. Todas aquelas medidas
arbitrárias tipo AI-5 e 477 foram incorporadas à Constituição. Além
disso, ela estabeleceu que o presidente podia baixar medidas
(decretos-leis) que valeriam imediatamente. 0 Congresso disporia de
60 dias para examinar o decreto. O Congresso tinha 60 dias para votar
a aprovação. Se depois desse prazo não tivesse havido votação (o
Congresso poderia, por exemplo, estar fechado pelo AI-5, ou com
número insuficiente de membros comparecendo às sessões), ele seria
automaticamente aprovado por decurso de prazo.




                                                              Presidente
Médici

Dias depois, era indicado o novo chefe supremo do país. O novo
presidente era o general Emílio Garrastazu Médici. Seu governo teve
dois pontos de destaque: o extermínio da guerrilha e o crescimento
econômico espetacular (o “milagre”).

Nenhuma época do regime militar foi tão repressora e brutal, Nunca se
torturou e assassinou tanto. Nos porões do regime, as pessoas tinham
suas vidas postas na marca do pênalti. E assim os órgãos de re-
pressão marcaram gols, liquidando guerrilheiros como Marighella
(4/11/69), Mário Alves (16/11/70) e Lamarca (17/09/71).

Na economia, o ministro Delfim Netto comandou o milagre econômico.
A produção crescia e se modernizava num ritmo espetacular. A
inflação, dentro dos padrões brasileiros, até que era moderada, lá na
casa dos vinte e tantos por cento. Construía-se com euforia. Obras,
como a ponte Rio-Niterói, a rodovia Transamazônica, a refinaria de
Paulínia e a instalação da tevê em cores (1972), pareciam mostrar que
a prosperidade seria eterna. A classe média comprava ações na Bolsa
de Valores e imaginava se tornar grande capitalista.

Para acelerar o crescimento, ampliaram-se as empresas estatais ou
criaram-se novas, principalmente na produção de aço, petróleo,
eletricidade, estradas, mineração e telecomunicações. Os nomes delas
você já ouviu falar: Petrobrás, Eletrobrás, Telebrás, Correios, Vale do
Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Usiminas e tantos outros.

Crescimento e modernização que não beneficiavam as classes
trabalhadoras. Pelo contrário, quanto mais o país crescia, tanto mais
piorava a vida do povo. Em 1969, por exemplo, o salário mínimo só
valia 42% do que representava em 1959, Em 1974, isso desceu para
36%.

Os ricos foram ficando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais
pobres, A ditadura foi uma espécie de Robin Hood às avessas.

Essa distribuição de renda ao contrário era facilitada pelo fato de que
não havia nenhuma greve, nem sindicato independente, nem a
oposição no Congresso tinha margem de manobra. Era uma ditadura
que fazia uma coisa incrível: o país crescia como poucos no mundo e
quanto mais riquezas eram produzidas, mais difícil ficava a vida dos
trabalhadores.



E a Rede Globo, principal aliada da Ditadura, sempre lembrando ao
povo miserável que quot;está tudo bemquot;...

Até nos países mais pobres da África, a mortalidade infantil diminuía.
Nas grandes cidades brasileiras ela crescia, Quanto mais a renda per
capita do Brasil aumentava, mais as crianças pobres morriam porque
comiam pouco, não eram vacinadas, não tinham médico, De repente,
houve uma epidemia de meningite, Doença que pode matar, É preciso
que os pais estejam alerta. O que fez a ditadura? Proibiu que os jornais
divulgassem qualquer notícia a respeito. O povo tinha de ser enganado
pela imagem de que no Brasil a saúde pública estava sob controle, o
que veio em seguida era previsível: os pais, sem saber do surto da
doença, não davam muita importância para aquela febrezinha do filho,
Achavam que era só uma gripe, Não levavam para o posto de saúde,
Até que a criança morria, A meningite mataria milhares de meninos e
meninas no Brasil, numa das mais terríveis epidemias do século, Só
esse caso já mostra o quanto a ditadura era absurda, não é mesmo?

O ministro Delfim Netto dizia que era para o povo ter paciência:
“temos de esperar o bolo crescer para depois distribuir os pedaços”. E
até hoje o povão está esperando sua fatia. Pois é, na cara-de-pau, o
general-presidente Médici dizia: “A economia vai bem, só o povo é que
vai mal.” Viu? Uma coisinha à toa é que ia mal, um trocinho assim,
sem importância, uma poeirinha desprezível chamada povo...

Grande parte da classe média até que gostava daquilo tudo. Afinal, a
ditadura, além de modernizar a indústria de base, estimulou a de bens
de consumo duráveis. Maravilha das maravilhas: a família de classe
média se realizava existencialmente comprando tevê em cores (desde
1972), aparelhagens de som, automóveis, eletrodomésticos. E até a
classe operária foi arrastada nesse processo de crença na ascensão
social baseada na aquisição do radinho de pilha ou do tênis maneiro,

A megalomania planejava as obras estatais, Assim como os cabelos
eram compridos e as barras das cabas eram “boca-de-sino”, as obras
eram gigantescas, o governo fazia estádios de futebol em tudo quanto
era canto, mas as escolas caíam aos pedaços, A rodovia
Transamazônica, importante para iniciar a colonização da Amazônia,
não incluiu nenhum projeto de proteção ao meio-ambiente, aos índios,
aos camponeses e aos garimpeiros. A ponte Rio-Niterói (1974) foi
realmente funda mental para ligar a economia do Nordeste do país ao
Sudeste industrial (RJ e SP), mas ela custou uma fortuna. Certamente
teria sido mais barata se as contas tivessem sido controladas
democraticamente. Muita empresa construtora se deu bem fazendo
essa obra encomendada pelo governo, Aliás, em quase todas essas
obras faraônicas (ou seja, enormes, caras e quase inúteis, tal como as
antigas pirâmides dos faraós do Egito) houve esquemas para homens
do governo e firmas de engenharia civil ganharem uma boa grana por
fora. Velha história: sem democracia a roubalheira rola solta porque
não há imprensa livre, Congresso independente.

Um tratamento especial foi dado às empresas multinacionais
(estrangeiras). Elas tiveram mais favores do governo do que as
empresas nacionais! O que não é de se espantar, pois grande parte
dos homens do poder eram profundamente ligados aos grupos
estrangeiros e não hesitaram em usar sua influência. Analistas como
Ricardo Bueno e Moniz Bandeira chegaram a considerar os ministros
Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen (que o presidente Collor queria
para seu ministro), Golbery do Couto e Silva, Roberto Campos e outros
como “notórios entreguistas”, ou seja, responsáveis conscientes pelo
favorecimento escancarado do governo aos monopólios estrangeiros,

É claro que hoje em dia não se pode ter mais aquela visão de ódio total
às multinacionais. Afinal, com a internacionalização da economia, ou
seja, a ligação econômica direta entre quase todos os países e
continentes, elas se tornaram peças fundamentais da economia
mundial. Inclusive, porque parecem realmente ser úteis parceiras em
alguns setores, já que nenhum país pode ter sozinho tecnologia e
capital para produzir tudo. Todavia, é sensato esclarecer alguns
pontos: por que elas são as responsáveis por grande parte da dívida
externa brasileira? Será benéfico o governo pedir dinheiro emprestado
aos banqueiros internacionais para fazer obras gigantescas a favor das
multinacionais? Ou simplesmente para financiá-las? Será correto que
elas mandem para fora lucros de bilhões de dólares, em vez de aqui
reinvestir? Será interessante o seu poder de levar à falência as
empresas nacionais, através de uma concorrência desleal? Será que
elas realmente nos transferem tecnologia ou só mandam pacotes
prontos feitos nos seus laboratórios? Será que elas não mandam
dinheiro escondido quot;por debaixo do panoquot;? Será que não interferem na
nossa vida interna, combatendo governos que não lhes interessam,
mesmo se estes forem a favor do povo? Será saudável que produzam
aqui remédios e produtos químicos proibidos em seus países de
origem? Por que será que um operário da Volkswagen ou da Ford no
Brasil faz o mesmo serviço, nos mesmos ritmos e níveis de tecnologia,
que operários dessas empresas na Alemanha ou nos EUA e, no
entanto, ganha tão menos? Tantas perguntas...

Bem, aí estava o “milagre econômico”: modernização, crescimento
acelerado, inflação moderada, facilidades para o investimento
estrangeiro, e também ricos mais ricos e pobres mais pobres e
aumento da dívida externa. Você reparou que era um esquema
parecido com o que já havia no tempo de Juscelino Kubitschek? O
desenvolvimento espetacular das telecomunicações e da indústria de
bens de consumo duráveis (automóveis, eletrodomésticos, prédios de
luxo e mansões financiados pelo BNH) eram voltados principalmente
para a classe média e superior. Milhões de brasileiros estavam meia
por fora desse mercado. Claro, portanto, que essa festa não iria durar
muito. 0 modelo se esgotava e a crise chegava mais rápido do que o
Émerson Fittipaldi.




Governo do General Ernesto Geisel ( 1974
– 1979 )

O novo general-presidente, Ernesto Geisel, assumiu o governo num
momento difícil da economia do Brasil e do mundo, Para alimentar o
crescimento, ele pediu emprestado aos banqueiros estrangeiros e
tratou de emitir papel-moeda. A inflação começou a aumentar e a
engolir salários. Era o fim do “milagre econômico”. Agora, a
insatisfação crescia. Isso ficava claro com o aumento de votos do MDB.
Geisel percebeu que a ditadura estava chegando ao fim de sua vida
útil. O jeito era acabar com o regime mas manter as coisas sob
controle. Com ele, começaria a “distensão lenta e gradual”.

O ano de 1973 assinalou o inicio de um choque na economia capitalista
mundial. Parecida com a de 1929, mas com efeitos bem menores para
os países capitalistas desenvolvidos, que empurraram a crise para cima
do Terceiro Mundo. De certa forma, os apertos econômicos dos países
subdesenvolvidos, nos anos 90, foram continuação do processo de
1973.
Ernesto Geisel

Tentaram botar a culpa nos árabes, porque eles aumentaram os preços
do petróleo: Conversa fiada. O aumento foi apenas a recuperação de
preços, que vinham caindo muito, desde os anos 50. Para você ter
uma idéia, antes do aumento imposto pela OPEP (Organização dos
Países Exportadores de Petróleo) em 1973, o preço do barril de
petróleo no mercado mundial era inferior ao do barril de água mineral!
Claro que o aumento dos preços pegou todo mundo de surpresa,
aumentou os custos, cortou os lucros, provocando inflação e
desemprego. A crise do petróleo reforçou a crise geral do capitalismo
em 1973. Mas com certeza a crise não foi só energética. Afinal, países
exportadores de petróleo também entraram em crise!

O que aconteceu foi uma crise clássica de superprodução de
mercadorias, tal como ocorrera em 1929. Depois da Segunda Guerra,
os EUA representavam metade da produção econômica mundial. Mas
nos anos seguintes a Europa Ocidental recuperou plenamente sua
economia. Surgiu também um grande competidor, o Japão. De
repente, o mercado mundial ficou apertado, não havia como continuar
investindo capital nos mesmos ritmos. As mercadorias começaram a
ficar encalhadas e logo vieram as falências, a inflação, a recessão.
Aqui no Brasil, o governo botava a culpa nos outros. Dizia que a crise
era mundial. Certo. Mas por que aqui ela era tão devastadora? Porque
a política econômica da ditadura nos tornava indefesos. O petróleo não
representava nem 25% das nossas importações em 1975. Além disso,
não só aumentou nossa produção interna, como seus preços
internacionais cairiam nos anos 80. No entanto, a crise foi
aumentando, ano após ano. Uma coisa tão braba que o nosso jovem
leitor com certeza viveu a maior parte de sua vida sob o signo da crise
econômica brasileira.

O que acontece é que o modelo econômico da ditadura era baseado no
pequeno mercado interno, representado pelos ricos e pela classe
média. O país estava se transformando na Belíndia, uma mistura da
Bélgica com a Índia: uma quantidade razoável de pessoas (classe
média e superior) com padrão de consumo de país desenvolvido,
vivendo numa área com grandes centros industriais e financeiros, ou
seja, a parte do Brasil parecida com a Bélgica, e a gigantesca maioria
(classe média baixa e classes inferiores) com padrão de vida muito
baixo, milhões vivendo tão miseravelmente como na Índia. Tinha-se
alcançado um estágio em que não dava para aumentar a produção, por
falta de consumidores aqui dentro. A Bélgica da Belíndia era pequena e
a Índia da Belíndia era cada vez maior. Como produzir mais
automóveis se a maioria dos brasileiros não tinha dinheiro para
comprá-los?

Ficava claro que só havia um jeito de ampliar o mercado consumidor:
distribuindo renda. Para isso, seria preciso tocar em privilégios, mexer
em interesses poderosos. Então, o regime militar não faria nada disso.

O governo preferiu outro caminho. Para a economia não entrar em
recessão, isto é, para a economia não regredir, o Estado começou a
tomar empréstimos externos para financiar a produção. Supunham que
a economia cresceria, que as exportaÇões se tornariam espetaculares
e que tudo isso daria condições de pagar a dívida externa. Só que os
banqueiros internacionais não são trouxas. Emprestaram dinheiro
porque sabiam que o Brasil teria de devolver muito mais em forma de
juros. Se fizer mos as contas direitinho no papel, vamos concluir que
nos anos 70 e 80, o Brasil pagou, só de juros, muito mais do que pediu
emprestado! Ou seja, já pagamos tudo, continuamos pagando e
ficamos devendo mais ainda! A dívida externa funciona como uma
bomba de sucção que chupa os recursos da economia do Brasil. Aliás,
o problema da dívida externa é comum em todo o Terceiro Mundo.
Segundo os dados insuspeitos do Banco Mundial, na década de 80
foram drenados bilhões de dólares do Terceiro Mundo para o Primeiro.
Ou seja, a parte pobre, esfarrapada e faminta do planeta é que
mandou dinheiro para a parte milionária! Nos anos 90, é óbvio, esse
esquema continua.
O mais triste é quando a gente constata que grande parte da dívida
externa brasileira foi contraída financiando a vinda de multinacionais,
construindo obras gigantescas só para favorecer empresas
estrangeiras (estradas, hidrelétricas), sem falar construções que o
governo nunca terminou, deixando as máquinas e o material serem
destruídos pelo tempo.

Pois é, apertado, o governo precisava de mais dinheiro ainda. Para ele,
é fácil. É só fabricar, emitir papel-moeda. Aí, vem a inflação. Para
evitar a inundação de dinheiro, o governo criou mercados abertos
(opens markets), vendendo títulos, ou seja, papéis expedidos com a
garantia do governo, que mais tarde poderiam ser resgatados (o
proprietário devolveria para o governo em troca de dinheiro) por um
valor superior. A idéia era quot;enxugarquot; o mercado, mas a medida deu a
maior força para tudo quanto é tipo de especulação financeira, quer
dizer, os empresários manobravam para negociar esses títulos com
altos lucros. Eis aí um dos grandes problemas da economia brasileira a
partir dali: a especulação financeira. Ela é um ganho artificial, já que
não envolve nenhum investimento produtivo. No fundo, está
transferindo riqueza da sociedade para o bolso de alguns espertinhos.

A crise se manifestava com a queda da proporção dos lucros. Os
empresários não tinham conversa: buscaram lucrar na marra, botando
os preços lá em cima. Ora, é impossível que os empresários, como um
todo, possam lucrar na base do simples aumento de preços. Quando
alguém aumenta os preços, o outro aumenta também para compensar.
Os trabalhadores querem salário maior só para compensar a perda
com os aumentos gerais de preços. Os empresários aumentam os
salários e, em seguida, sobem mais ainda os preços para reparar as
perdas com a alfa de preços e salários. Vira um círculo vicioso.
Resultado: o dinheiro vai perdendo o valor. Espiral inflacionária. E o
pior é que geralmente os preços crescem mais rápido do que os
salários. Portanto, quem mais perde com a inflação são os
trabalhadores. Pois a inflação veio a jato, mas os salários andam a
passo de cágado.

O general Ernesto Geisel era irmão do arquipoderoso general Orlando
Geisel. Família unida é ditadura unida. Sua presidência ocorreu dentro
desse panorama de crise econômica. Mesmo assim; Geisel se deu ao
luxo de ter um ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, cuja mansão em
Brasília, segundo o Jornal do Brasil, consumia, mensalmente, 954 kg
de carne e 432 kg de manteiga, Que coisa: uma tonelada de bifes por
mês, como devia ser gordo o ministro do Trabalho! Bem, com certeza
os salários dos trabalhadores não eram tão gordos.
No meio da crise de energia, o Brasil teve a sorte de descobrir petróleo
na bacia de Campos (RJ), em frente à cidade de Macaé. A Petrobrás
pôde aumentar sua produção espetacularmente. Mas Geisel tinha
também outros planos para resolver o problema energético: como não
havia dinheiro no Brasil, a solução foi gastar mais dinheiro ainda. O
acordo nuclear Brasil-Alemanha custou uma fortuna de bilhões de
dólares. Para fazer usinas perigosíssimas num país onde 80% do
potencial hidrelétrico ainda não foi aproveitado. Incrível, não? A usina
de Angra dos Reis (RJ) fica exatamente entre os dois maiores centros
industriais do país: São Paulo e Rio de Janeiro. Imagine se houvesse
um acidente nuclear!

Na verdade, a velha Doutrina de Segurança Nacional continuava ativa.
Geisel montou um acordo nuclear com a Alemanha porque acreditava
que o Brasil precisava aprender a dominar a tecnologia capaz de
produzir, num futuro próximo, a bomba atômica. Na mesma época, a
Argentina, que vivia uma ditadura militar desde 1976, também
sonhava com cogumelos nucleares. Guerra: coisa de gente que andou
tomando uns cogumelos não exatamente nucleares, não é verdade?

No mesmo ano (1975), teve início o Projeto Pró-álcool. A idéia era
substituir a gasolina pelo álcool combustível. Os usineiros se
alegraram. As plantações de cana-de-açúcar foram ocupando tudo
quanto é lugar, expulsando os camponeses moradores, acabando com
as plantações de alimentos (tornando a comida mais cara) e
despejando o poluente vinhoto nos rios. Nos anos 80, com a queda do
preço mundial de petróleo, o Brasil ficou com uma enorme frota de
carros movidos a um combustível caríssimo. Já em 1990, querendo
melhores preços, os usineiros '`sumiriamquot; com o álcool. Na verdade, o
álcool se revelou um combustível muito mais caro do que a gasolina
(no posto, o álcool é mais barato porque é subsidiado, ou seja, o
governo paga uma parte da conta. Mas onde arruma dinheiro para
fazer essa caridade? Cobrando mais alto pela gasolina. Trocando em
miúdos: quem tem carro a gasolina está ajudando a encher o tanque
de quem tem carro a álcool). O que se viu nesses anos todos foi o
governo emprestando milhões de dólares aos usineiros do Nordeste, do
Rio de Janeiro e de São Paulo e depois perdoando as dívidas porque
não suporta mais a choradeira dos produtores de álcool e açúcar.
Enquanto isso, os cortadores de cana continuam passando fome.

Ora, por que não estimularam o transporte ferroviário e o fluvial, bem
mais baratos, podendo, em alguns casos, usar energia elétrica? Não foi
incompetência. Na verdade, desde Juscelino que uma das espinhas
dorsais de nossa indústria é fabricação de automóveis e caminhões. As
pressões das multinacionais desse setor forçaram o governo a
abandonar outras opões de transporte. As estradas de ferro, tão
importantes nos países desenvolvidos, foram relegadas a segundo
plano pelo governo e as estatais deste setor tiveram seus recursos
cortados.

O II PND (Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento) - o I PND foi
no governo Médici, sob a batuta do ministro Delfim Netto -,
comandado pelo ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, e
pelo do Planejamento, Reis Velloso, tinha como objetivo começar a
substituir as importações de bens de capital (indústria de base). Para
isso, o BNDE concedeu créditos generosos a empresas privadas do
setor, mas principalmente as empresas estatais tiveram grande
crescimento, especialmente a Eletrobrás (que comprou a multinacional
Light and Power e levou adiante a construção da maior usina
hidrelétrica do mundo, Itaipu, na fronteira com o Paraguai), a Embratel
(telefones, satélites de comunicações, televisão etc.), a Petrobrás e as
estatais de aço. Tudo isso alimentado por uma dívida externa que
aumentava sem parar. Em breve, os banqueiros viriam cobrar a dívida
e os juros. Aí, a economia sentiria a fona de sucção dos interesses
internacionais.




“Distensão ‘lenta, gradual e segura’ rumo
à democracia”

Os resultados dos problemas econômicos foi que nas eleições para
deputado federal e estadual e para o Senado, em 1974 e 1978, o MDB
teve ótima votação. Um aviso claro para o pessoal da ditadura se
mancar. O povo estava dizendo não ao regime.

No Alto Comando Militar, as divisões políticas se acentuaram. Uns
achavam que a ditadura deveria ir afrouxando, acabando de modo
lento e controlado. Talvez, para os ditadores saírem discretamente
pelos fundos, sem ninguém correr atrás deles. Esses generais
moderados e favoráveis ao gradual retorno à normalidade democrática
eram chamados de castelistas, porque se sentiam continuadores de
Castello Branco. Era o caso do próprio Geisel e do presidente seguinte,
Figueiredo. Outros militares defendiam a “linha dura” - alguns desses
eram civis -, e queriam apertar mais ainda. Costa e Silva e Médici, por
exemplo, tinham sido de linha dura. Começou então um combate nos
bastidores, entre os militares castelistas e os linha dura. E os linha
dura bem que pegaram pesado.

Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de
telejornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi chamado para um
interrogatório num quartel do Exército, sede do DOI-CODI. Lá ficou,
preso e incomunicável. Dias depois, a família recebeu a notícia de que
ele havia “se suicidado”. Com um detalhe: teria de ser enterrado em
um caixão lacrado, para que ninguém pudesse ver o estado do
cadáver. Suicídio mesmo ou o corpo estava arrebentado pela tortura?
No ano seguinte, o operário Manoel Fiel Filho sofreu o mesmo destino.
A farsa era evidente: é óbvio que ambos tinham sido mortos por
espancamento. Em homenagem a Herzog, o cardeal de São Paulo, D.
Paulo Evaristo Arns, junto ao pastor James Wright e ao rabino Henri
Sobel, dirigiu um culto religioso ecumênico (reunindo as religiões) em
frente à catedral da Sé. Havia milhares de pessoas nesta que foi a
primeira manifestação de massa desde 1968. Mostra clara de que a
sociedade civil estava voltando para as ruas para protestar contra o
arbítrio.

Indiretamente, Geisel reconheceu o crime. Não prendeu ninguém, mas
exonerou o comandante do II Exército, responsável pelos
acontecimentos. Deixava claro que não admitiria os atos violentos da
linha dura. Em 1978, o Poder Judiciário daria ganho de causa à família
de Herzog, botando a culpa na União. Sinal dos tempos.

Claro que a esquerda não podia dar bobeira. A ditadura ainda existia.
Um trágico exemplo disso foi o massacre da Lapa, quando agentes do
Exército invadiram uma casa nesse bairro da capital paulista, em 1976,
onde se realizava uma reunião secreta de dirigentes do PC do B. As
pessoas nem puderam esboçar reação: foram exterminadas ali mesmo,
covardemente.

Apesar disso, Geisel apostava na distensão lenta e gradual. Para isso,
teve de usar a habilidade para derrubar seus opositores de linha dura.
A balança pendeu para o seu lado quando ele, num gesto fulminante,
exonerou o general Sílvio Frota (1977), ministro do Exército, tido como
de extrema direita e ligado à tortura.

A partir daí, a dureza do regime começou a diminuir bem devagar.
Alguns militares eram favoráveis à distensão política porque realmente
estavam imbuídos de convicções democráticas. Outros, não tão
liberais, avaliavam que as Forças Armadas estavam começando a se
desgastar ao se manter num governo que enfrentava uma crise
econômica violenta. Geisel, portanto, tinha um plano claro: distensão
lenta e gradual. Ou seja, abrir o regime bem devagarzinho e sem
perder o comando sobre ele.

Dentro deste espírito de distensão controlada, Geisel buscou evitar as
vitórias eleitorais do MDB. Para isso, mudou as regras das eleições.
Seu ministro da Justiça, Armando Falcão, famoso pela inteligente
proibição da transmissão, pela tevê, do balé Bolshoi de Moscou
(bailarinos são presa fácil do comunismo?), inventou a tal Lei Falcão
(1976), que dizia que a propaganda política na tevê só podia exibir
uma foto 3X4 do candidato e seu currículo, lido por um locutor. Nada
de um candidato do MDB aparecer na telinha ou no rádio para criticar o
governo e fazer propostas novas.

O natal de 1977 foi antecipado: Geisel fechou o Congresso e deu um
presentinho para os brasileiros, o Pacotão de Abril. Lindas surpresas.
Para começar, a cada eleição a Arena perdia mais deputados para o
MDB. Em breve, o partido do governo não teria os 2/3 do Congresso
necessários para mudar alguma coisa da Constituição. Então, o
Pacotão determinava que a Constituição agora poderia ser modificada
com apenas 50% dos votos dos congressistas mais um. Assim, a Arena
(ainda maioria) garantia seu poder constitucional. No senado, o MDB
também ameaçava. Resultado: o Pacotão determinou que um terço
dos senadores passariam a ser biônicos, ou seja, escolhidos
indiretamente pelas Assembléias Legislativas de cada Estado. Em
outras palavras, a Arena já tinha garantido quase 1/3 do senado, os
outros 2/3 seriam disputados com o MDB nas eleições normais, o
Pacotão também alterou o quociente eleitoral, de modo que os estados
do Nordeste, onde a população rural ainda era dominada pelos currais
eleitorais, e portanto votava com a Arena, tivessem assegurado o
direito de eleger um número maior de deputados para o Congresso. No
sertão nordestino, chuva mesmo, só de deputados da Arena. O
Pacotão fazia das eleições um jogo de futebol em que o dono da bola
joga de um lado e, ao mesmo tempo, é juiz.

Em 1978 foi decretado o fim do AI-5, o que mostrava alguma boa
vontade de Geisel com a distensão política, Mas antes de ele acabar
com o ato arbitrário, usou o AI-5 para cassar diversos opositores. Mais
ou menos como o pistoleiro que mata todo mundo e que, depois de
acabarem as balas, resolve se arrepender do que fez. A garantia disso.
tudo era a Lei de Segurança Nacional (LSN) que continuava sendo
mantida.

Em política exterior, o Brasil baseou-se no chamado pragmatismo
responsável: restabeleceu relações com países comunistas como a
China, porque isso trazia vantagem comercial e diplomática. Em 1975,
na África, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde deixaram
de ser colônias de Portugal. No poder, partidos de orientação marxista,
apoiados por Cuba e URSS. Acontecia que o governo militar ainda
seguia a visão da Doutrina de Segurança Nacional que sonhava em
transformar o Brasil na grande potência que dominaria a América do
Sul e o Sul da África. Por isso, o Brasil não teve conversa e apoiou os
governos de esquerda em Angola e Moçambique, inclusive
contrariando a vontade do governo racista da África do Sul e dos EUA.
Na verdade, os EUA, do presidente Carter, andaram pressionando o
governo militar brasileiro por causa da violação de direitos humanos
(incluindo tortura e execução de presos políticos). Coisa de
americanos: apoiaram o golpe de 64, depois mudaram de governo e
passaram a criticar. Diante disso, e de olho no acordo nuclear Brasil –
Alemanha, Geisel acabou rompendo um acordo militar Brasil-EUA. Isso
mostra uma coisa muito importante: apesar de o regime militar
brasileiro ter sido apoiado pelos EUA, isso não quer dizer que o Brasil
sempre tivesse seguido os americanos. Não foram eles que impuseram
o regime aqui. A explicação básica do que acontece no Brasil tem de
ser buscada aqui mesmo, nas nossas estruturas, nas nossas
contradições internas, Culpar o imperialismo por tudo é cômodo e
superficial.

No final do seu governo, Geisel passou o bastão para o general
Figueiredo. A crise continuava e as pressões populares pelas
mudanças, também.




Governo Figueiredo (1979-1985)

Com a escolha do general João Baptista de Oliveira Figueiredo para
governar o país, ficou assegurada a continuidade do processo de
abertura política. O mandato presidencial de Figueiredo durou seis
anos e encerrou 21 anos de ditadura militar no Brasil.




João Figueiredo

Ao longo do governo Figueiredo, a ditadura militar perdeu legitimidade
social e sofreu desgaste politico. Mas ainda assim houve ameaças de
retrocesso devido à radicalização de setores das Forças Armadas que
tentaram barrar o processo de redemocratização.
Militares radicais ligados ao aparato de repressão política promoveram
atos terroristas com objetivo de desestabilizar o governo e amedrontar
a sociedade. O presidente Figueiredo, porém, teve condições de conter
o radicalismo militar e encaminhar a transição da ditadura para o
regime democrático.



Anistia
A anistia era um passo imprescíndivel ao processo de
redemocratização. Com ela, os presos políticos ganhariam liberdade e
os exilados puderam retornar ao país. Em fevereiro de 1978 foi criado,
no Rio de Janeiro, o primeiro Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA).

O CBA foi o resultado da agregação de várias correntes políticas de
oposição (liberais e de esquerdas democráticas), de familiares de
presos, mortos, desaparecidos e exilados políticos, e também de
setores progressistas da Igreja Católica.

Em diversos estados brasileiros surgiram novos comitês e por todo o
país a campanha pela anistia obteve expressivo apoio popular. A fim
de desarticular o movimento pró-anistia, o então presidente Geisel
promulgou, em 1978, vários decretos-leis revogando a maior parte das
leis de exceção, inclusive o Ato Institucional nº 5 (AI-5).


Lei de Anistia de 1979
Desse modo, gradualmente os presos políticos foram sendo libertados
e os exilados pouco a pouco puderam retornar ao país. A Lei de Anistia
de 1979 serviu para dar continuidade a este processo, mas ela
desagradou os movimentos de oposição que reivindicavam uma anistia
quot;ampla, geral e irrestritaquot;.

A Lei de Anistia deixava de solucionar a questão mais polêmica do
período da ditadura, isto é, os atos terroristas de autoria das
organizações guerrilheiras de esquerda armada e as violações dos
direitos humanos praticadas pelos agentes dos órgãos de repressão
policial-militar que cometeram assassinatos e tortura.

A Lei excluía de seus benefícios os guerrilheiros condenados por atos
terroristas envolvendo quot;crimes de sanguequot; (ou seja, crimes contra a
vida humana), mas concedia perdão aos agentes da repressão
envolvidos em assassinatos e prática de tortura. Por esse motivo, a Lei
de Anistia de 1979 representou um claro sinal de que os militares não
admitiriam qualquer tentativa de punição legal às Forças Armadas.
A reforma partidária
Com o crescimento dos movimentos de oposição à ditadura, o governo
Figueiredo avaliou, corretamente, que a manutenção do bipartidarismo
ocasionaria um desgaste ainda maior das bases de sustentação política
do regime.

Na conjuntura da redemocratização, era esperada uma polarização
política cada vez mais acentuada em favor do Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), partido da oposição legal; contra o partido
governista, a Aliança Nacional Renovadora (ARENA). A fim de provocar
uma divisão no bloco oposicionista, o governo Figueiredo forçou uma
reforma partidária.

A ARENA e MDB foram extintos. Os políticos governistas criaram o
Partido Democrático Social (PDS), enquanto que o MDB se transformou
no PMDB. Surgiu também o Partido Democrático Trabalhista (PDT),
liderado por Leonel Brizola; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
composto por uma ala de políticos arenistas menos influentes.


Partido dos Trabalhadores (PT)




                                                                   O
Sindicalista Lula, preso político em 1981.

Os partidos comunistas continuaram na ilegalidade. A maior novidade
no cenário político-partidário foi o surgimento do Partido dos
Trabalhadores (PT). Defendendo uma proposta socialista, o PT se
originou do novo e combatente movimento sindical do ABC paulista,
liderado por Luiz Inácio Lula da Silva.
Em novembro de 1982, foram realizadas eleições diretas para
governador (o que não ocorria desde 1967), para deputados estaduais
e federais, prefeitos e vereadores. O governo promulgou uma lei
proibindo alianças partidárias com objetivo de evitar que as oposições
se unissem.

O PDS conseguiu eleger 12 governadores, enquanto as oposições
conseguiram eleger dez. Foram vitoriosas, no entanto, nos Estados
mais populosos e desenvolvidos do país, como no Rio de Janeiro
(elegendo Leonel Brizola do PDT) e em São Paulo (elegendo Franco
Montoro do PMDB).


A crise econômica e o novo movimento sindical
O governo Figueiredo herdou uma grave crise econômica. Neste
contexto, a insatisfação dos trabalhadores cresceu. As primeiras greves
foram deflagradas pelo operariado do setor metalúrgico do ABC
paulista, região de maior concentração fabril do país.

Inicialmente, as reivindicações dos operários se concentraram em
reajustes salariais. Contudo, à medida que o movimento grevista
adquiriu força, os trabalhadores ampliaram suas reivindicações
exigindo mudanças políticas, entre elas a abolição do controle
governamental sobre os sindicatos, restabelecimento do direito de
greve e a livre negociação com os empregadores.

Outras categorias de trabalhadores do setor industrial e do
funcionalismo público também deflagraram greves. O governo reprimiu
com violência os movimentos grevistas, principalmente dos operários
do ABC paulista. Mas já não era possível ao governo manter sob rígido
controle estatal e policial os sindicatos e impedir a reorganização da
classe trabalhadora.

Os trabalhadores foram um dos mais importantes segmentos da
sociedade brasileira a contribuir, com suas greves e reivindicações,
para o avanço do processo de redemocratização.


O terrorismo           de Estado          e o atentado             do
Riocentro
O processo de abertura política levada adiante pelo governo Figueiredo
não esteve a salvo de tentativas de retrocesso. Militares radicais
ligados aos órgãos de repressão espalharam o pânico através de atos
terroristas. Igrejas, editoras, órgãos de imprensa, bancas de jornal,
sedes de partidos políticos e de entidades democráticas, foram alvos
de atentados a bomba.

O terrorismo proveniente de setores radicais das Forças Armadas tinha
por objetivo amedrontar a população e as oposições, e desestabilizar o
governo, a fim de provocar um endurecimento do regime. A sociedade,
porém, reagiu. Foram organizados inúmeros atos e manifestações
públicas em que se exigia do governo medidas contra a violência.

O ato terrorista mais grave ocorreu em abril de 1981, no Rio de
Janeiro. Antecipando uma comemoração do Dia do Trabalho,
trabalhadores estavam realizando um show no Centro de Convenções
do Riocentro. Um sargento e um capitão do Exército planejaram
detonar uma bomba no local, mas um acidente provocou a explosão da
bomba quando eles ainda estavam de posse do artefato.




O atentado do Riocentro provocou uma grave crise militar devido às
pressões das oposições para o governo investigar o caso. Figueiredo,
porém, cedeu aos interesses dos militares ao impedir que o inquérito
policial aberto chegasse a apontar os responsáveis. Não houve
punições e nem mesmo investigações.

Porém, o atentado do Riocentro foi o último ato terrorista praticado por
militares radicais. O episódio ocasionou um maior desgaste e perda de
legitimidade política e social do governo e do regime.


Diretas Já!
A Constituição previa que o sucessor do presidente Figueiredo seria
eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. Em março de 1983,
porém, o deputado federal do PMDB, Dante de Oliveira, apresentou
uma emenda constitucional que estabelecia eleições diretas para
presidência da República.




Manifestação pelas quot;Diretas Jáquot; na Candelária/RJ
Foto: Hipólito Pereira

A partir daí, as oposições mobilizaram a população com objetivo de
pressionar os parlamentares a aprovarem a emenda constitucional. Por
todo o país, grandes comícios, atos e manifestações públicas foram
realizadas. O lema da campanha era quot;Diretas Jáquot;.

Estudantes, líderes sindicais e políticos, setores da Igreja católica,
artistas e personalidades da sociedade civil e milhares de populares
compunham as forças que reivindicavam eleições diretas. Mas o
governo ainda tinha força parlamentar suficiente para barrar a
aprovação da emenda constitucional que estabelecia eleiçõ4es diretas.
Foi o que aconteceu, em abril de 1984: o Congresso Nacional rejeitou
a emenda Dante de Oliveira.
Maluf e Tancredo
Na corrida pela sucessão presidencial, o partido governista, PDS,
lançou o nome do paulista Paulo Maluf. Discordando dessa indicação,
líderes políticos nordestinos, como Antonio Carlos Magalhães e Marco
Maciel não a aceitaram e abandonaram o PDS, fundando o Partido da
Frente Liberal (PFL).
Maluf x Tancredo: o pleito que encerrou a ditadura militar no Brasil.

A oposição lançou o nome de Tancredo Neves, do PMDB. Tancredo era
um político oposicionista de tendência moderada, e por conta disso
conseguiu o apoio do PFL.

Em 15 de janeiro de 1985, foi eleito pelo colégio eleitoral presidente da
República. Do ponto de vista institucional, contudo, o país completaria
a transição para democracia somente quando o povo pôde votar
livremente para presidente, em 1989.




Fim da ditadura
Os militares se exauriram no controle governamental, mas se
retiraram da política de modo a garantir suas prerrogativas. A
transição democrática no Brasil foi pacífica e se pautou por um
processo de negociação entre as elites, envolvendo acordos para que
não houvesse qualquer tipo de punição legal às Forças Armadas diante
de todas as violações dos direitos humanos a que foram vítimas os
opositores da ditadura.

A eleição de Tancredo Neves não representou ameaça aos interesses
dos militares e nem mesmo a ordem social estabelecida por eles desde
1964. Mas a tentativa de esquecer o passado, ou seja, de impedir que
viessem a público os crimes cometidos pelos agentes da repressão,
fracassou.


Dom Paulo Evaristo Arns e quot;Brasil: Nunca Maisquot;
A Igreja Católica de São Paulo, sob a liderança do cardeal Dom Paulo
Evaristo Arns, realizou uma pesquisa secreta baseada no exame dos
processos judiciais militares. A pesquisa deu origem à monumental
obra quot;Brasil: Nunca Maisquot;, coleção composta por vários volumes que
descreve e analisa minuciosamente a repressão policial militar ao longo
da ditadura.

Com a publicação do quot;Brasil: Nunca Maisquot;, tornaram-se públicas as
atrocidades da ditadura militar e a identificação de todos os
torturadores. Foi um importante e ousado passo no sentido de
elucidação do passado histórico do país.



Bibliografia:

http://www.culturabrasil.pro.br/ditadura.htm

http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/ult1689u72.jhtm

http://indoafundo.com

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Brasil RepúBlica Iii

  • 1. A Ditadura Militar Governo Castello Branco (1964 – 1967) Bem que Leonel Brizola propôs ao presidente Jango resistir ao golpe de 1964 com armas na mão, a partir do Rio Grande do Sul. Mas o presidente, muito deprimido, não queria derramamento de sangue. Como milhares de brasileiros, os dois também se exilaram no estrangeiro. Enquanto isso, no Rio de Janeiro - Copacabana e Ipanema -, a classe média se confraternizava com a burguesia. Chuva de papel picado, toalhas nas janelas, buzinaço, banda e chope. Abraços, choro de alegria, alívio pelo fim da desordem. O Brasil estava salvo do comunismo! Os crioulos não invadiriam mais as casas das pessoas de bem! As empregadinhas voltariam a ficar de cabeça baixa! Mas nos subúrbios o medo substituía o chope. Ali, a revolução iria procurar os quot;inimigos do Brasilquot;. E quem seriam esses monstros? Pessoas simples, enrugadas pelo trabalho duro, mas que tinham ousado não se curvar; operários, camponeses, sindicalistas. Nenhum banqueiro, nenhum megaempresário, nenhum tubarão foi sequer chamado para depor numa delegacia, Eram todos homens de bem, pessoas que amavam o próximo... principalmente se o próximo fosse um bom parceiro de negócios. Os soldados armados de fuzis prendiam milhares de pessoas: dirigentes populares, intelectuais, políticos democratas. A UNE foi proibida e seu prédio, incendiado. A CGT, fechada. Sindicatos invadidos à bala. Nas escolas e universidades, professores e alunos progressistas expulsos. Os jornais foram ocupados por censores e muitos jornalistas postos na cadeia. A ordem era calar a boca de qualquer oposição. Os políticos que não concordaram com o golpe, geralmente do PTB, tiveram seus mandatos cassados. Ou seja, perderam seus direitos políticos por dez anos. O primeiro cassado, inimigo número um do regime, foi Luís Carlos Prestes. O segundo foi o ex-presidente João Goulart. Depois, veio uma lista de milhares de pessoas que foram demitidas de empregos públicos, presas, perseguidas, arruinadas em sua vida particular. Juscelino e Jânio também perderam seus direitos, para que não tentassem nenhuma aventura engraçadinha na política. Só a UDN não teve punidos: coincidência, não?
  • 2. Os comunistas, claro, eram perseguidos como ratos. Muitos foram presos e espancados com brutalidade. O pior é que o xingamento de “comunista” servia para qualquer um que não concordasse com o regime. Seria o suficiente para ser instalado numa cela, Fariam a reforma agrária num cubículo 2 X 2 e socializariam a propriedade do buraco no chão que servia de privada. Para espionar a vida de todos os cidadãos, foi criado em 1964 o SNI (Serviço Nacional de Informações). Havia agentes secretos do SNI em quase todos os cantos: escolas, redações de jornais, sindicatos, universidades, estações de televisão. Microfones, filmes, ouvidos aguçados. Bastava o agente do SNI apontar um suspeito para ele ser preso. Imagine o clima numa sala de aula, por exemplo. Eu mesmo perguntei, certa vez, a um professor de história, “o que ele achava” de algo que os militares haviam decretado. Ele, apavorado, respondeu algo como: “Não acho nada! Eu tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha ele!” Eram muitos os “desaparecidos” naqueles tempos... O professore correndo o risco de ser detido caso fizesse uma crítica ao governo. Os alunos, falando baixinho, desconfiando de cada pessoa nova, apavorados com os dedos-duros. A ditadura comprometia até as novas amizades! O pior é que o SNI cresceu tanto que quase acabou tendo vida própria, independente do general- presidente, a quem estava ligado. Seu criador, o general Golbery do Couto e Silva, no final da vida, diria amargurado: “Criei um monstro.” Castello Branco O novo governo passou a governar por decreto, o chamado AI (Ato Institucional) O presidente baixava o AI sem consultar ninguém e todos tinham de obedecer. O AI-1 determinava que a eleição para presidente da República seria indireta. Ou seja, com O Congresso Nacional já sem os deputados e senadores incômodos, devidamente
  • 3. cassados, e um único candidato. Adivinha quem ganhou? Pois é, em 15 de abril de 1964 era anunciado o primeiro general-presidente, que iria nos governar o Brasil segundo interesses do grande capital estrangeiro nos próximos anos: Humberto de Alencar Castello Branco. Castello tinha sido um dos figurões da Sorbonne, ou seja, dos intelectuais da ESG. A maioria de seus ministros também era oriunda da ESG, a “Escola Superior de Guerra”, réplica nacional do “War College” norte-americano. Tranqüilos com a vitória, os generais nem se importaram com as eleições diretas para governador em 1965. Esperavam que o povo brasileiro em massa votasse nos candidatos do regime. Estavam errados. Na Guanabara e em Minas Gerais venceram políticos ligados ao ex-presidente Juscelino Kubitschek. (Em São Paulo não houve eleições. Seriam depois.) Mostra clara de que alguns meses depois do golpe ainda tinha muita gente que não apoiava o regime. Pois bem, os militares reagiram. Vinte e poucos dias depois das eleições desastrosas, foi baixado o AI-2, que acabava em definitivo com as eleições diretas para presidente da República. Agora, o presidente seria “eleito” indiretamente, ou seja, só votariam os deputados e senadores. Voto nominal e declarado, ou seja, o deputado era chamado lá na frente para dizer, no microfone, se votava ou não no candidato do regime. Quantos teriam coragem de dizer, na cara dos ditadores, que não aprovavam aquela palhaçada? Muito poucos, inclusive porque os mais ousados eram sumariamente cassados. O AI-2 também acabou com os partidos políticos tradicionais. O PSD, o PTB, a UDN, tudo isso foi proibido de funcionar. Agora, só poderiam existir dois partidos políticos: a Arena e o MDB. A Arena (Aliança Renovadora Nacional) era o partido do governo. Estavam ali todos os políticos de direita que apoiavam descaradamente a ditadura. De onde vinham? Basicamente, da UDN. Mas também um bando de gente do PSD, do PSP de Adhemar de Barros e, por incrível que pareça, muitos da velha guarda integralista. Apoiavam o regime militar em tudo que ele fazia. O MDB (Movimento Democrático Brasileiro) era o partido da oposição consentida. A ditadura, querendo uma imagem de democrática, permitia a existência de um partido levemente contrário. Contanto que ninguém fizesse uma oposição muito forte. O MDB era formado pelos que sobraram das cassações, um pessoal do PTB, alguns do PSD. No começo, a oposição era muito tímida. Nos anos 70, porém o MDB conseguia votações cada vez maiores para deputados e senadores. Então seus políticos - muitos eram novos valores surgidos na década - começaram a fazer uma oposição importante ao regime, capitaneados pela figura do deputado paulista Ulisses Guimarães (1916-1992) . Naqueles tempos, brincando é que se diz a verdade, comentávamos
  • 4. que o MDB era o “Partido do Sim” e a ARENA era o “Partido do Sim Senhor!” O AI-3, do começo de 1966, determinava que as eleições para governador também seriam indiretas. Os únicos com direito a voto eram os deputados estaduais, que tinham de ir lá na frente e declarar para todo mundo em quem votavam. Mais intimidação seria impossível, não é mesmo? O circo estava todo armado para que a ARENA governasse todos os setores da vida nacional. A Constituição de 1967 No Brasil, os homens da ditadura faziam questão de criar uma imagem de que o país era um regime “democrático”. Alegavam que existia partido de oposição e eleições para deputado e senador. Vá lá, mas acontece que os políticos mais críticos estavam cassados e o MDB, sob vigilância. Além disso, o Congresso Nacional ficou com os poderes muito cerceados. Um deputado podia fazer pouca coisa além de elogiar as praias douradas do Brasil. No fundo, quem mandava mesmo era o general-presidente e pronto. Dentro dessa preocupação de manter a aparência (só a aparência) de “democrático”, o regime promulgou a Constituição de 1967, que vigorou até 1988, quando finalmente foi aprovada a Constituição atual. Promulgar não é bem a palavra. Porque não existiu sequer uma Assembléia Constituinte. Os militares fizeram um rascunho do texto constitucional e enviaram para o Congresso aprovar. Congresso mutilado pelas cessações, nunca devemos esquecer. O trabalho era pouco mais do que aplaudir. Trabalhos regulados por um relógio que tocava corneta. Deputados obedientes como soldados em marcha. Para começar, eleições indiretas para presidente da República e governadores de Estado, Os prefeitos de capital e cidades consideradas de “segurança nacional” (como Santos, em São Paulo, o maior porto do país, ou Volta Redonda, no Rio de Janeiro, por causa da gigantesca Companhia Siderúrgica Nacional) seriam nomeados pelo governador. Em outras palavras, a Arena governaria o país pela força da lei (e das armas, claro). A Constituição de 1967 aumentava as atribuições do Executivo e a centralização do poder. É por isso que havia Congresso aberto. Pela Constituição, os deputados e senadores não podiam fazer quase nada, a não ser discursos. Veja bem: a lei não permitia nem mesmo que o Congresso pudesse controlar as despesas do Executivo. No país inteiro, governadores e prefeitos também podiam gastar à vontade no que
  • 5. quisessem - estradas para valorizar latifúndios, estádios de futebol para enriquecer empreiteiras, teatros para a elite se divertir, prédios públicos enormes para os figurões ficarem sem fazer nada no ar condicionado. Os deputados estaduais e vereadores não tinham poderes para impedir esses gastos. Repressão Militar Os governadores perderam a autonomia para gastar. Para qualquer obra importante, tinham de pedir dinheiro ao governo federal, ou seja, ao general-presidente. O mesmo valia para os prefeitos. Por exemplo, vamos imaginar que na cidade X, o Fulano do MDB fosse eleito prefeito. A maior parte do dinheiro dos impostos ficava com o governo federal, em Brasília. O prefeito Fulano quer fazer uma escola municipal para X. Não tem dinheiro. Tem de pedir para o governador, que é da Arena e, certamente, recebe ordens de Brasília para não dar nada. Agora, se o prefeito fosse da Arena, as coisas mudavam de figura. Principalmente porque o prefeito se lembraria de apoiar a eleição de deputados e senadores da Arena. Esqueminha montado e quase sem furos. Dá para entender por que o regime militar não teve medo de manter eleições para o Congresso e permitir a existência do MDB? Era como um jogo de futebol facílimo de ganhar, porque o juiz roubava escancarado para o lado de quem já estava no poder... O pior de tudo é que o regime iria fechar mais ainda. O último ato do governo de Castello foi a LSN (Lei de Segurança Nacional). Reprimir passava a ser sinônimo de “defender a pátria”. A Economia no Governo Castello Branco
  • 6. A primeira atitude do novo governo foi anular as reformas de base. Criaram um Estatuto da Terra, que previa uma tímida reforma agrária. Claro que jamais sairia do papel dos burocratas. O latifúndio estava livre para engolir os camponeses. A lei de 1962, que controlava remessas de lucros para o estrangeiro, foi anulada. As multinacionais foram ofertadas com todas as facilidades. Os mestres do PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) foram os ministros Otávio Gouveia de Bulhões (Fazenda) e Roberto Campos (Planejamento). Para diminuir a inflação, eles aplicaram receitas econômicas monetaristas. Trataram de tirar o dinheiro de circulação. Para começar, cortaram os gastos públicos, ou seja, o governo investiria menos em hospitais e escolas – já se preparava a introdução do ensino pago nas universidades públicas e começava-se com a política de esvaziamento na qualidade do ensino público gratuito de boa qualidade, valorizando mais as instituições privadas. Até antes da Ditadura Militar, estudar em colégios particulares era amesquinhante demonstração de incompetência para acompanhar o elevadíssimo nível que então o ensino público mantinha... Em 1964, tinha sido fundado o Banco Central para controlar todas as operações financeiras do país. Também foi criada uma nova moeda, o cruzeiro-novo. Os salários foram considerados os grandes responsáveis pela crise econômica do país. Claro, os operários deviam estar ganhando fortunas e o país não poderia suportar um soldador ou torneiro mecânico passando férias na Cote d’Azur, fazendo compras na Avenue Montaigne, em Paris. Assim, os aumentos salariais passaram a ser sempre menores do que a inflação. A idéia era fazer com que o aumento de preços, por causa do crescimento dos salários, fosse cada vez menor. Acompanhe o raciocínio dos caras. Por exemplo, se a inflação fosse de 30% naquele ano, a lei obrigava o patrão a conceder um aumento abaixo daquela inflação, de só, digamos, 20%. Claro que esse patrão iria compensar o prejuízo de ter de pagar mais salários aumentando os preços de seus produtos e serviços. (Por isso mesmo, diziam, existia a inflação!) Mas, em quanto? Se o salário aumentava em 20%, o patrão poderia aumentar os preços em, digamos, 21%: teria até um pouquinho mais de lucro do que antes. Mas o aumento geral dos preços (por causa do salário maior em 20%, todos os empresários reagiriam aumentando os preços em 20% e quebrados) seria perto dos vinte e pouco por cento, e não mais os 30% anteriores, No ano
  • 7. seguinte, com inflação de, suponhamos, uns 22%, o patrão poderia dar um aumento de salário de só uns 10%. Aí os preços, para compensar esse aumento salarial, subiriam uns 12%, por exemplo. E assim, num passe de mágica, a inflação teria caído de 30% para 12% ao ano. Claro que tudo isso está simplificado, mas a idéia básica era essa mesma. Agora, não sei se você se tocou: por essa receita, os salários eram comidos pela inflação. Em outras palavras, a ditadura militar reduziu a inflação arrochando os salários dos trabalhadores. Um dos recursos para diminuir salários foi a extinção da estabilidade. Pela lei antiga, depois de dez anos numa empresa, era quase impossível despedir um empregado. Isso acabou. No lugar, foi criado o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), em 1966, que ainda existe mas, com os ventos ainda mais conservadores que andam soprando neste país, tem havido uma tendência a propor a suspensão até deste direito para os trabalhadores. Funciona assim: a cada mês, o patrão deposita nos bancos uma parte do salário do empregado, formando uma espécie de caderneta de poupança (outra invenção do regime militar) chamada de FGTS, Acontece que o FGTS só pode ser sacado em momentos especiais, como na compra de uma casa própria ou, caso mais comum, quando o empregado é despedido. Essa lei facilitou a vida dos empresários. Agora, despedir era tranqüilo. Os empregados, sabendo que podiam perder o emprego a qualquer momento, eram obrigados a aceitar salários mixurucas. Grandes empresas (como as automobilísticas) chegaram a ser acusadas de ter uma armação para, de vez em quando, despedir alguns operários (logo absorvidos por outra fábrica, tudo combinado secretamente). A rotatividade da mão-de-obra (rodando de emprego em emprego) seria um excelente mecanismo para baixar salários. Em princípio, o dinheiro do FGTS serviria para que o recém-criado BNH (Banco Nacional da Habitação) financiasse casas populares. Na prática, o que aconteceu foi que o BNH acabou financiando a construção de condomínios de luxo para milionários. Ou seja, o pobrezinho pagando, indiretamente, a mansão do ricaço. Não devemos esquecer que as greves estavam totalmente proibidas. O peão tinha de engolir quieto a pancada salarial, senão haveria outra paulada mais dolorosa ainda. Para que os empréstimos do governo federal e os impostos devidos a ele fossem pagos decentemente, criou- se a correção monetária. Antes, o sujeito podia esperar um ano para pagar impostos porque então ele pagaria uma quantia desvalorizada pela inflação. Agora, a correção monetária simplesmente aumentava o valor da dívida no mesmo percentual da inflação.
  • 8. Como o governo não queria emitir papel-moeda (estava combatendo a inflação), obviamente os empresários sofreram restrições ao crédito. Juros altos, dificuldade de obter empréstimos, poucos investimentos. A economia crescia pouco. Os ministros sabiam que estavam provocando esta recessão. Achavam que era um dos remédios para baixar a inflação. Realmente, as compras diminuíram. Reduzida a demanda (procura), caíram os preços: outro fator deflacionário. Para agilizar o crescimento da economia, Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões, os ministros-gurus do PAEG, criaram muitas facilidades para o investimento estrangeiro. Tinham-se ido os tempos do nacionalismo trabalhista. Bem, e o PAEG deu certo? Para o que ele se propunha, sim, foi bem- sucedido. A inflação caiu. O preço social disso é que representa problema. Os economistas “iluminados” da época falavam pudicamente no “lado perverso” das medidas econômicas. Por que a economia voltou a se recuperar? Há várias explicações. Para começar, os investidores estrangeiros ficaram mais tranqüilos: não havia mais ameaça de nacionalismo, nem de greves e muito menos de socialismo. Além disso, o novo governo tinha eliminado as restrições ao capital estrangeiro. Assim, as multinacionais começaram a investir em peso na construção de novas fábricas. O FMI, feliz com o Brasil militar, também emprestou dinheiro, E nós vimos que ajuda do FMI era uma espécie de garantia para que outros banqueiros confiassem no país. Uma das causas mais importantes da inflação é o descontrole da economia: cada empresário tenta lucrar na marra, simplesmente aumentando os preços. Vira uma corrida histérica de preços e salários aumentando sem parar. Para reverter o quadro, deveria haver um acordo nacional dos empresários entre si e dos empresários com os trabalhadores. Mas Jango, no seu tempo, encontrara dificuldade em montar o acordo. Ocorria o oposto: as lutas de classes se tornavam mais agudas. Obviamente, a ditadura não resolveu as coisas por consenso, promovendo um plano com que toda a sociedade concordasse. As coisas foram impostas na marra. Na marra principalmente sobre os trabalhadores. Ou seja, o consenso foi obtido na base do “Ou você concorda comigo ou entra na porrada!” De qualquer modo, a estabilidade foi conseguida. Quer dizer então que uma ditadura consegue estabilidade? Essa pergunta necessita de outra: de que tipo de estabilidade estamos falando? Quando examinamos as estatísticas econômicas percebemos
  • 9. que a estabilidade teve um preço: o aumento de exploração da força de trabalho. Costa e Silva (1967 – 1969) Os militares tinham indicado e o Congresso balançou a cabeça: o novo general-presidente era Arthur da Costa e Silva. Só a Arena tinha votado na eleição indireta. Em vez de levantar o braço, batia continência. O MDB, em protesto (era minoria), havia se retirado do plenário. Com mãos ao alto. Costa e Silva Costa e Silva era tido como um homem de hábitos simples. Em vez da companhia dos livros, como gostava o pedante Castello Branco, preferia acompanhar as corridas de cavalos. Pessoalmente, diziam que era “gente boa”. Mas se Costa e Silva queria tranqüilidade, tinha escolhido mal o emprego. Melhor seria dar palpites no jockey. Depois do impacto de 64, com aquela onda de prisões e fechamentos, as oposições ao regime voltaram a se articular. Até mesmo Lacerda tinha virado oposição. É que ele tivera esperança de se tornar presidente, mas aqueles a quem bajulara lhe viraram as costas. Magoado, procurou unir Juscelino e Jango, exilados, numa Frente Ampla. Pouco resultado daria. Longe do país, tinham pouca influência. Apesar do PAEG de Castello diminuir a inflação e retomar o crescimento, a situação da classe operária vinha piorando. Em 1965, os operários paulistas ganhavam, em média, apenas 89% do que recebiam em 1960, em 1969, apenas 68%. Estava ficando feia a coisa.
  • 10. Ícones dos anos 60 Os anos 60 formaram a grande década revolucionária. Os anos da minissaia, dos homens de cabelo comprido, da pílula anticoncepcional; da guerra do Vietnã, dos hippies, do feminismo; da Revolução Cultural na China, da Primavera de Praga, dos Beatles, dos Rolling Stones, de Jimi Hendrix e Janis Joplin, do LSD, do psicodelismo, das viagens à Lua; de Kennedy, Krutchev e Mao Tsetung; do cinema de Godard, Pasolini e Antonioni; das idéias e dos livros de Sartre, Marcuse, Althusser, Hermann Hesse, Erich Fromm e Wilhelm Reich; dos transplantes de coração, dos computadores e do amor livre, de Bob Dylan, Jim Morrison e Martin Luther King; de quot;Paz e Amorquot;, Woodstock e Che Guevara. Especialmente, 1968. Trabalhadores e estudantes se levantaram no mundo inteiro. Em Paris, cidadela do tranqüilo capitalismo desenvolvido, os operários fizeram greve geral e os estudantes jogavam pedras na polícia. Nos muros da capital francesa, os grafites anunciavam o novo mundo: “É proibido proibir”, “A imaginação no poder!”, “Amor e revolução andam juntos”. Nos EUA, atacava-se o
  • 11. racismo. Tempos de Martin Luther King e de Malcolm X, grandes líderes negros. Os estudantes norte-americanos também sonhavam com socialismo e milhares deles protestariam contra o absurdo de a máquina de guerra ianque agredir o povo do Vietnã. Na América Latina, sonhava-se com guerrilhas libertadoras. Na Tcheco-Eslováquia, aconteceu a Primavera de Praga: os comunistas, liderados por Dubcek, tentaram construir o socialismo humanista. Na China Popular, o camarada Mao Tsetung estimulava a Revolução Cultural. A Cuba revolucionária de Fidel Castro e Che Guevara mostrava o caminho para os jovens latino-americanos: guerrilha, revolução popular, socialismo “Hasta la victoria compañeros!” (Até a vitória companheiros!) No Brasil, a luta era contra uma ditadura militar e um capitalismo troglodita. Desafiando abertamente o regime, os operários fizeram greve em Contagem (Minas Gerais). Pouco depois, pararam os metalúrgicos de Osasco (São Paulo). O governo militar, através da Lei Suplicy, quis impedir que os estudantes se organizassem. O maldito acordo MEC-Usaid previa a colaboração dos técnicos americanos na reformulação do ensino brasileiro. E o que os ianques propunham? Acabar com as discussões políticas na universidade: estudante deveria apenas ser mão-de-obra qualificada para atender as multinacionais aqui instaladas. Além disso, o governo queria que o ensino superior fosse pago. Ou seja, faculdade só para minoria de classe média alta para cima. Mas a UNE estava lá para lutar contra. Época gloriosa do movimento estudantil. Coragem, sonhos libertários, utopia na alma. A juventude queria o poder no mundo! Os estudantes iam para a rua contra um governo que esculhambava a universidade pública, contra um regime militar. Apesar de proibidas, suas passeatas nas ruas atraíram cada vez mais participantes, de operários e boys a donas de casa e profissionais liberais. A grande imprensa chamava-os de “infantis”, “toxicômanos”, “desequilibrados”. A polícia atacava. Cassetetes, gás lacrimogêneo, caminhões brucutu. Eles respondiam com pedras, bolas de gude (contra a cavalaria da PM), coquetéis molotov e idealismo. Os principais líderes estudantis estavam no Rio de Janeiro: Vladimir Palmeira e Luís Travassos. Voltando no tempo...
  • 12. Imagine que você, com sua idade atual, acaba de voltar no tempo. Estamos em 1968, no Rio de Janeiro. Em que é que você está pensando? O que é que você faz no dia-a-dia? Imagine que você é de classe média e está se preparando para o vestibular. Assustador. A faculdade tem vagas reduzidas. Aliás, essa é uma das bandeiras do movimento estudantil: alargar o funil que desemboca na universidade. Que curso você vai seguir? A maioria quer ser engenheiro, médico, advogado. Mas tem gente que quer conhecer o Brasil para transformá-lo: vão estudar sociologia, história, filosofia e até economia. Um amigo seu diz, brincando, que tem um professor de sociologia da USP que um dia ainda vai ser presidente da República. Na faculdade, quem não é de esquerda está por fora. Claro que há uma povão de gente alienada, que nem dá bola para o que acontece no país. Mas você e seus amigos são conscientizados. O problema é que existe uma floresta de partidos e grupelhos de esquerda: PC do B, AP, Polop, Dissidência na Guanabara e tantos outros (sigla era um troço importante naquela época). Só não vale o PCB, que não é bem visto pela garotada, que o chama de “Partidão”. Parece com um velho sábio que não dá mais no couro. Na verdade, o fato de o PCB não aceitar a luta armada contra o regime tira o charme dele. Afinal, todos temos pôster de Che Guevara e Ho Chi Minh na parede de casa e gostamos de nos imaginar na selva entre os camponeses, com idéias na cabeça e um fuzil na mão. As pessoas lêem o suficiente para não se sentirem alienadas. Estamos em 1968 e alguns autores são obrigatórios: Leo Huberman, Engels, Lênin, Nélson Werneck Sodré, Caio Prado Jr, Moniz Bandeira e o famoso manual marxista de Politzer. Quem não leu, ouviu falar. O que é suficiente para participar de um debate, que é o que mais interessa. Para os mais metidos a espertos, cabe citar Marcuse, Althusser, Gramsci e Erich Fromm. No corredor da faculdade, vocês discutem política. Baixinho, mas escancarado (até 1968 ainda dava para fazer isso). De um lado, os que acham que primeiro devem organizar os trabalhadores para depois partir para luta armada, do outro, os que acham que a luta armada organizará os trabalhadores. Isso mesmo que você está lendo: na cabeça do pessoal, a revolução está ali na esquina. É só pegar. Hoje tem passeata convocada pela UNE. Na faculdade, pintamos as faixas com os dizeres manjados como “Abaixo a ditadura” e o provocativo “Povo armado derruba a ditadura”. Vamos para a passeata? É um problema. Sua mãe tem medo, seu pai (na época, é claro, lembre-se de que estamos em 68) apoiou o golpe. Melhor ir escondido. Se você é mulher pior, porque tudo é proibido: freqüentar
  • 13. boate, beber, chegar em casa tarde da noite, viajar com o namorado e, óbvio, ir à passeata. Portanto, mais uma que vai escondida alegando que ia “ficar na biblioteca estudando”. Lá está você com o pessoal, no centro da cidade. Gritando palavras de ordem contra o regime. Dos edifícios, papel picado e aplausos. O apoio dos escritórios te enche de autoconfiança e você realmente se sente fazendo algo de importante na história do Brasil. Na cabeça, o grande hino da época, Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré: “Vem, vamos embora / que esperar não é fazer / quem sabe faz a hora / não espera acontecer”... De repente, chegam os homens. Marcham juntos, compactos, uma massa sem indivíduos. É a polícia. Escudo, cassetete de madeira, capacete protegendo o miolo mole. Corre que eles estão vindo! Dá tempo de pixar o muro com o spray “Abaixo a repressão!” Sai fora. O cheiro de gás lacrimogêneo incomoda. Hora de botar a pastilha de Cebion debaixo da língua, lenço molhado no nariz. O pau cantou! Contra a violência cega, a consciência estudantil, contra a brutalidade do Estado, pedradas, xingamentos e alma libertária transbordando. Não há graça nenhuma. Tem gente que sai com o rosto ensopado de sangue, hematomas pelo corpo, dentes quebrados, Muitos são presos e empurrados para o carro coração de mãe. Haja claustrofobia. Seguirão para a delegacia, para serem fichados, humilhados e levar uns cascudos. Só no final do ano é que a polícia começa a atirar para matar. Se você não apanhou muito nem foi preso, dá para chegar num barzinho no começo da noite, Depois de uns chopes, ou cuba-libre (rum com Coca-Cola), todo mundo ficava animado para contar pela décima vez suas proezas, sempre um pouquinho exageradas, é claro. Você pode estar interessado(a) numa pessoa, num cara ou numa menina. (Mas não há duplo sentido: o homossexualismo não era tolerado nem pela esquerda. Ser bicha era quase sinônimo de ser contra-revolucionário. Muitos guerrilheiros machos se remoeriam de culpa pelos anônimos desejos inconfessáveis. Só no final dos anos 70 as mentalidades começaram a mudar.) Pois bem, se você estivesse a fim de alguém, logo trataria de falar alto para aparecer. Essas coisas não mudaram demais desde então, não é mesmo? Um bom caminho era se mostrar intrépido no combate aos policiais e, ao mesmo tempo, estar por dentro das últimas novidades culturais. No cinema, contavam muito os filmes intelectualizados. O esquema de Hollywood, bajulando atores e espetáculos, não estava com nada. Pelo menos nos papos-cabeça. O negócio era filme de diretor-autor. Antonioni (Blow-up, 1967, e , Zabriesky Point, 1969), Jean-Luc Godard
  • 14. (A Chinesa, 1967), Pasolini, Bergman, Visconti, Fellini e o nosso Glauber Rocha ( Terra em Transe, 1967, Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, prêmio de Cannes 1969 como melhor diretor), É claro que também se via muita coisa comercial... Aí as estrelas eram Marlon Brando, Richard Burton, Marilyn Monroe, Sophia Loren, Jane Fonda, Paul Newman, Marcelo Mastroiani, Alain Delon e, claro, Jane Fonda, que depois de posar nua virou militante contra a Guerra do Vietnã. Em literatura, a turma gostava de coisas engajadas como obras de Brecht, Maiakovski, Pablo Neruda, Gorki, Sartre. Mas também valia Franz Kafka, o judeu tcheco que escrevia em alemão sobre o absurdo da sociedade burocrática. O americano Henry Miller descrevia o sexo com uma crueza tão violenta que achavam que era arte. Quem já gostava de misticismo lia Hermann Hesse. Claro que ninguém era um chato de ir a um bar e ficar conversando sobre coisas intelectuais e políticas o tempo inteiro. Isso só existe em série da Globo. As pessoas também dançavam, iam a festas, bebiam além da conta, namoravam, iam às compras, estudavam para as provas. Toda menina moderninha falava de amor livre. Anticoncepcional era a pílula da moda. Entretanto, mesmo entre o pessoal de esquerda, havia muito conservadorismo. A maioria das moças casaria virgem mesmo e, no máximo, permitiriam algumas carícias avançadas. Mulher que transasse com alguns caras era vista como “galinha”, e certamente ninguém iria querer algo mais “sério” com elas. Como já ensinava Maquiavel no Renascimento italiano, os preconceitos têm mais raízes do que os princípios. Ato Institucional nº 5, o AI-5 A esquerda voltava a crescer no Brasil. Nas ruas, as passeatas contra o regime militar começavam a reunir milhares de pessoas em quase todas as capitais. Diante disso, a direita mais selvagem partiu para suas habituais covardias. Aliás, covardia era a especialidade da organização terrorista de direita CCC (Comando de Caça aos Comunistas). O nome já diz tudo. Consideravam que a esquerda era feita por mamíferos a serem abatidos. Os trogloditas, então, atacaram os atores da peça Roda Viva, de Chico Buarque, em São Paulo, Surraram todo mundo, inclusive a atriz Marília Pêra. Depois, metralharam a casa do arcebispo D. Hélder Câmara, em Recife (alguns membros da Igreja Católica estavam deixando de bajular o regime). Em São Paulo, os filhinhos-de-papai da Universidade Mackenzie (onde
  • 15. nasceu o CCC) agrediam os estudantes da USP, na rua Maria Antônia, valendo desde pedradas até tiros de revólver. De acordo com o jornalista Zuenir Ventura, o fanático brigadeiro João Paulo Burnier elaborou um plano criminoso, o Para-Sar. Uma loucura: os pára-quedistas da aeronáutica, secretamente, pegariam os inimigos do regime e jogariam do avião no mar alto, a uns 40 quilômetros da costa. Além disso, havia o projeto de explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, começo da avenida Brasil, área industrial e de trânsito engarrafado. Morreriam umas 10 mil pessoas queimadas. Tragédia nacional. Burnier botaria a culpa nos comunistas e, com a população querendo o linchamento dos responsáveis, prenderia os esquerdistas e os executaria sumariamente. Que coisa diabólica, não? Só não se concretizou graças à bravura e ao patriotismo de um militar da aeronáutica: o grande brasileiro capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco. A operação teve de ser cancelada. Mas o capitão Sérgio foi afastado da Aeronáutica. A greve operária de Contagem terminou com acordo salarial entre patrões e empregados: Mas em Osasco a coisa foi diferente. Ela tinha sido bem melhor preparada, inclusive com participação de estudantes esquerdistas na organização do movimento. O governo então falou grosso. O sindicato dos metalúrgicos foi invadido e o presidente, José Ibraim, teve de se esconder da polícia. O exército preparou uma operação de guerra e ocupou as instalações industriais. A partir daí, quem fizesse gracinha de greve teria de enfrentar os blindados e fuzis automáticos. Ou seja, as greves acabaram. Contra os meninos e meninas do movimento estudantil, foram lançados homens armados até os dentes. Agora passeata começava a ser dissolvida a bala. No Calabouço, um restaurante carioca freqüentado por estudantes, a polícia militar assassinou um rapaz, Édson Luís. Nem a missa de sétimo dia, na catedral da Candelária, foi respeitada pela polícia, que baixou o sarrafo nas pessoas que saíam do templo. Em resposta, a maior passeata já vista na avenida Rio Branco: a célebre Passeata dos Cem Mil (26/6/1968). Era a multidão, bonita, vigorosa, olhando para a vida, exigindo a mudança. Os militares estavam apavorados. Até onde aquilo tudo iria levar? Concluíram que precisavam endurecer mais ainda o regime. E endureceram. As passeatas de estudantes passaram a ser reprimidas pelas próprias Fonas Armadas e muitos estudantes foram baleados. Agora, em vez do cassetete, vinha o fuzil automático. O congresso secreto da UNE, em Ibiúna (SP) foi dissolvido, com 1240 estudantes presos.
  • 16. O pior estava por vir. Faltava só o pretexto. No Congresso Nacional, o jovem deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, fez um discurso em que recomendava que as mulheres não namorassem os militares envolvidos com as violências do regime. O que seria do país, se os oficiais não namorassem? Ficariam com o fuzil na mão? Os generais exigiram sua punição, mas o Congresso não permitiu. Foi, então, que saiu o Ato Institucional nº 5, o AI-5, numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1968. Claro que o caso do deputado era só desculpa. Tratava-se, na verdade, de aumentar a repressão e silenciar os opositores. O AI-5 foi o principal instrumento de arbítrio da ditadura militar. Com ele, o general-presidente poderia, sem dar satisfações a ninguém, fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos. de parlamentares (isto é, excluir o político do cargo que ocupava, fosse senador, governador, deputado etc.), demitir juízes, suspender garantias do Poder Judiciário, legislar por decretos, decretar estado de sítio, enfim, ter poderes tão vastos como os dos tiranos.
  • 17. Tem gente que chega a falar do “golpe dentro do golpe”. Se a ditadura já era ruim, agora ela piorava.E muito! A Oposição Parte Para a Luta Armada O que significa viver sob uma ditadura militar? É exagerado achar que a toda hora tem tanque na rua, soldados desfilando dentro das faculdades. Aparentemente não muda muita coisa, porque você vai às compras, ao dentista, à praia e ao cinema, namora e casa, vê televisão. A não ser o fato de que seu vizinho é oficial do Exército e você sabe que por isso ele manda aqui no prédio (e isso pode ser até bom para a vizinhança), o resto parece bem normal. Mas, se você tiver um pingo de consciência, desconfia que as coisas não vão bem. Existe um cheirinho de esquisitice: as pessoas falam baixo, há uma nuvem de mistério cobrindo o país, o estômago fica pesado demais. Depois de 1964 ainda dava para fazer umas passeatazinhas e desafiar o regime. Depois do AI-5 (dezembro de 1968) o regime tinha fechado de vez. Passeata era dissolvida a tiros de fuzil. Em cada redação de jornal havia um imbecil da polícia federal para fazer a censura, Não poderia sair nenhuma notícia que desagradasse ao governo. Uma simples reportagem esportiva sobre o time do Internacional de Porto Alegre, com sua camisa vermelha, poderia ser encarada como “propaganda da Internacional Comunista”. Além da censura, o jornal não podia dizer que tinha sofrido a censura (isso, claro, também era censurado). O jeito foi botar receitas de bolo nos vazios deixados pelas partes retiradas pela polícia. As pessoas estavam lendo uma página sobre política nacional e, de repente, vinha aquela absurda receita para fazer uma torta de abacaxi. Os espertos sacavam logo que era um protesto. Os mais ingênuos (por conivência ou conveniência, chegavam a mandar cartas para as redações dos jornais, pois as receitas, por vezes, eram irracionais: “cinco quilos de açúcar, 100 g de farinha de trigo, dois quilos de sal, vinte tabletes de fermento, uma colher de chá de suco de laranja...” Não há receita que dê certo assim, hehehe. Claro que existem ainda hoje ingênuos ainda mais imbecis, que declaram coisas como: “naquele tempo o governo era muito melhor do que hoje. Bastava abrir os jornais, eles só tinham elogios para o governo. Aliás, também tinham receitas de bolo muito boas.” Ninguém podia falar mal do governo. Reclamação na fila do ônibus era uma linha até à cadeia. Estudantes e professores que conversassem sobre política poderiam ser expulsos da escola ou da faculdade, devido ao decreto-lei nº 477 (1969), Imagine o clima dentro da sala de aula. Se o professor contasse aos alunos o que você está lendo neste livro,
  • 18. corria o sério risco de não poder voltar mais à sala de aula. Ou mesmo para a sua própria casa... _ O que você acha da situação atual? _ Eu não acho nada! Tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha ele! To fora! Qualquer aluno novo que tentasse se enturmar era logo suspeito de pertencer ao SNI. Veja que coisa, a ditadura tolheu até as novas amizades! O político que fizesse oposição aguda seria logo cassado pelo AI-5. Foi o caso, por exemplo, do deputado federal Francisco Pinto (MDB), punido em 1974 porque fez no Congresso um discurso chamando de “ditador” o ditador chileno Pinochet em visita ao Brasil, o deputado Lysâneas Maciel (MDB) solicitou a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar denúncias de corrupção no regime. Não teve CPI nenhuma e ele ainda foi cassado. É isso aí: numa ditadura, a sociedade não pode fiscalizar o governo. Os cidadãos estão enjaulados, mas a corrupção está livre. Com tantas dificuldades, como continuar fazendo oposição ao regime? Para muitos jovens, só havia um caminho a seguir: a luta armada. Falar em guerrilha nos anos 60 arrepiava muita gente. Ela parecia ser a grande arma de libertação dos povos do Terceiro Mundo. Exemplos não faltavam. Em Cuba, Fidel Castro e Che Guevara abriram o caminho: No Vietnã, os guerrilheiros de Ho Chi (Minh derrotavam a maior máquina de guerra do planeta, a do imperialismo norte- americano. Na Argélia, os guerrilheiros dobraram as tropas francesas e conquistaram a independência do país. Na própria China, a revolução socialista foi vitoriosa depois de anos de guerrilha camponesa comandada por Mao Tsetung. No Brasil não poderia ser diferente: muitos estudantes, velhos militantes da esquerda e intelectuais começaram a organizar grupos guerrilheiros. Para eles, depois do AI-5 não havia mais espaço para a legalidade. Só a luta armada libertaria o Brasil. Ao contrário do que você possa pensar, o PCB foi contra a luta armada. Os comunistas acreditavam que a luta no momento não era nem socialismo nem reformas básicas, mas pelo fim do regime autoritário.
  • 19. Sua estratégia era a de se unir a todos os grupos democráticos contra o regime. Atuaria, clandestino, no MDB. Muita gente da esquerda considerou esse programa covarde, reformista (um xingamento horroroso, pois isso equivaleria a não ser um revolucionário. Mas naquele momento os comunistas eram qualquer coisa, menos revolucionários...). A juventude queria a mudança logo, a todo preço. E foram esses jovens, garotões e meninas, adolescentes ainda, estudantes e sonhadoras, que embarcaram na aventura da luta armada. Libertação e Exílio de Presos Políticos em troca do Embaixador Americano Seqüestrado. Um dos grandes gurus era o francês Regis Debray, que tinha sido companheiro de guerrilha de Che Guevara. Foi ele que lançou a teoria foquista: meia dúzia de combatentes criariam um foco guerrilheiro numa área rural. Primeira etapa, o treinamento militar. Depois, contato com a população. Ganham a confiança através do trabalho, da honestidade, de solidariedade. Imagine o efeito disso: o camponês jamais viu um médico e, de repente, aquelas pessoas o tratam com cuidado, curam seus filhos. Nesse processo, os guerrilheiros vão transmitindo suas idéias, mostrando que o latifúndio deveria ser confiscado, que os camponeses precisam se unir e se armar. E quando chegam os jagunços do fazendeiro, os guerrilheiros estão prontos para responder com fogo de armas de guerra, Pronto, está deflagrada a luta. Agora, junto com os camponeses que aderem ao movimento, eles se lançam para o mato. O Exército chega logo depois, quase sempre truculento: tortura moradores, incendeia barracos, molesta as meninas. O povo vê com clareza quem está do lado dele. Os guerrilheiros, por sua vez, nunca enfrentam o Exército de frente. As táticas incluem emboscadas, ações rápidas e fulminantes. Depois, a fuga veloz: sua mobilidade e ataques de surpresa são armas letais. Conhecem a região, contam com o apoio logístico dos moradores.
  • 20. Quase invencíveis. Mas este é um foco. A teoria foquista imaginava que surgiria outro foco ali, e mais outro adiante, e outro, e outro. Até que um dia esses focos começariam a se unir para compor um grande exército popular. Tal como ensinou Mao Tsetung, o campo cercaria a cidade. E a revolução seria vitoriosa. Simples, não? É, simples demais para dar certo: havia muitos sonhos e pouco pé no chão. Como fazer guerrilha camponesa num país em que a maioria já vivia na cidade? Bem que o sinal de alerta já havia sido dado: em 8 de outubro de 1967, Che Guevara foi assassinado pela CIA, quando organizava um foco guerrilheiro na Bolívia. Não era um aviso de mau agouro? Desde 1968 já existiam ações guerrilheiras. Mas o grosso mesmo foi entre 1969 e 1973. Havia um cacho de grupos de luta armada, diferentes nos objetivos e nas estratégias, embora no final todos visassem ao socialismo (já se disse que as esquerdas só se encontram na cadeia...). Uns achavam que primeiro era preciso derrotar a ditadura, outros achavam que já era possível lutar imediatamente pelo socialismo; uns achavam que primeiro era preciso organizar os trabalhadores e depois se lançar na guerrilha, outros achavam que através da luta guerrilheira os trabalhadores iriam se organizando; uns achavam que a guerrilha urbana era a mais importante, outros, que era a rural. Não vamos estudar as minúcias das organizações. Basta dar uma idéia geral de como funcionavam as mais importantes: VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), o MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro), a ALN (Ação Libertadora Nacional), o PCBR (PCB Revolucionário), o PC do B, a VAR-Palmares. Quem eram esses guerrilheiros? Não eram muitos, apenas algumas centenas. Os simpatizantes, que eventualmente podiam esconder alguém em casa ou contribuir com dinheiro, não iam além de uns mil e poucos. Apesar de sonharem com a revolução proletária, havia poucos operários ou camponeses. Os líderes geralmente eram antigos comunistas, rompidos com o Partidão porque o PCB estava contra a luta armada. Ainda tinha um grupo importante de militares desertores do Exército. Muitos guerrilheiros eram como talvez você seja, amigo leitor, com 17 ou 18 anos de idade, estudantes secundaristas ou acabando de entrar na faculdade. A maioria dos guerrilheiros foi presa antes de começar a luta armada no campo. Na verdade, a guerrilha ficou sendo urbana mesmo, sem repercussão maior. Houve algumas tentativas de panfletar na porta de fábricas, e um grupo chegou a levar um caminhão cheio de comida para distribuir na favela, anunciando aquela como “a primeira das
  • 21. muitas expropriações revolucionárias que o povo fará daqui em diante”. Pura ilusão. A repressão do governo agia com muita eficácia e rapidamente os grupos foram desmantelados. No final, tinham de assaltar bancos para levantar fundos para a luta e seqüestrar embaixadores em troca da libertação de presos políticos. Desde o início a guerrilha já tinha muitos erros. Para começar, os guerrilheiros consideravam-se marxistas, mas quase nada tinham lido a respeito. Ninguém tinha feito uma análise profunda da sociedade brasileira para ter certeza de que aquela era a melhor estratégia a ser seguida. Por exemplo, sonhavam com uma guerrilha camponesa num país enorme que já era urbano e industrial. Queriam buscar seus próprios caminhos políticos, mas no fundo imitavam modelos de outros países, como Cuba e China. Falavam em nome dos trabalhadores, mas jamais tiveram um contato maior com a população. O povo, dominado pela propaganda oficial e pela imprensa censurada, os ignorava ou os tratava como bandidos, seqüestradores, assaltantes de banco, “terroristas”. Viviam tão fora da realidade, que só faltaram dizer que as vitórias do governo, pulverizando a guerrilha, eram “a mostra do desespero da burguesia em sua crise final”. Coitados, eram rapazes e moças que nunca tinham visto um revólver na vida enfrentando um Exército profissional bem equipado e com assessoria dos EUA. Nem dava para começar. A única tentativa que teve alguma consistência foi a Guerrilha do Araguaia. Ela se desenvolveu mais ou menos entre 1972 e 1974, organizada pelo PC do B. Lembremos que, na época, ao contrário do PCB (que era de linha soviética e contra a luta armada) o PC do B seguia o socialismo chinês (o maoísmo) e apoiava a guerrilha. Pois bem, no começo dos anos 70, grandes empresas do Sudeste e multinacionais investiram em pecuária extensiva na região do Tocantins-Araguaia. Quando chegaram lá, já havia pequenas roças na mão de camponeses posseiros (não tinham documentos legais da propriedade da terra, apesar de trabalharem nelas havia muitos anos). Nem quiseram saber, passaram a fazer grilagem das terras (tomar ilegalmente). Quando o camponês não queria abandonar a terra, os capangas da empresa iam lá, ateavam fogo no barraco, destruíam a plantação, espancavam os moradores. Como você pode perceber, as lutas de classes entre os grileiros e os posseiros eram muito fortes. O PC do B quis aproveitar esse potencial de revolta e chegou na região para montar uma base de treinamento. Foram descobertos pelo Exército, que deslocou para região milhares de soldados. Contra uns 60 guerrilheiros. Numa região isolada do país, imprensa censurada, as pessoas só sabiam alguma coisa através de boatos. Mas na região do Araguaia até hoje as pessoas humildes se recordam do que aconteceu. Muitos militares abusaram do poder e espancaram brutalmente a população para que revelasse os esconderijos dos guerrilheiros. Os
  • 22. prisioneiros eram torturados de forma bárbara e muitos encontraram a morte depois que o corpo virou uma massa de pedaços de carne e sangue. Os guerrilheiros mortos foram enterrados em cemitérios clandestinos e até hoje as famílias procuram seus corpos. Em 1974, a guerrilha do Araguaia estava destruída. O que dizer sobre essa loucura toda? Foram rapazes e moças, muitos ainda adolescentes, que tiveram a coragem de abandonar o conforto do lar, a segurança de uma vida encaminhada, a tranqüilidade da vida de jovem de classe média, para combater um regime opressor com armas na mão. Pessoas que dão a vida pelo ideal de libertação de seu povo não podem ser consideradas criminosas. Mesmo que a gente não concorde com os caminhos trilhados. Eles mataram? Certamente. Mas nunca torturaram. Nem enterraram suas vítimas em cemitérios clandestinos. E se o tivessem feito, nada disso justificaria a tortura e o assassinato executados pelo governo. Além disso, seria mesmo inadmissível pegar em armas contra um regime antidemocrático que esmagava o povo brasileiro? Que moral uma ditadura tem para definir como deve ser combatida? Repressão e Tortura Como é que a ditadura conseguiu dizimar a guerrilha? A repressão foi selvagem. Imagine que você fosse um guerrilheiro naquela época. Documento falso, revólver escondido na cintura, olhar assustado para qualquer pessoa da rua. Distante da família, dos amigos, de qualquer conhecido. Clandestino. Codinome, ou seja, nome inventado, nem os companheiros sabiam sua identidade. Se fossem presos, não poderiam te revelar. Vocês se escondem num apartamento discreto no subúrbio. E mudam de residência quase todo o mês. Esse esconderijo é chamado de “aparelho”. Um dia, você tem um ponto, ou seja, um encontro marcado com outro guerrilheiro. Ele não aparece. Provavelmente, caiu (foi preso). Em algumas horas, debaixo de paulada, pode ser que ele abra. Os meganhas logo vão chegar. É preciso desativar o aparelho rápido. De repente, chega a polícia. Tiroteio. Mortes. Se você escapar com vida, vai direto para o porão. Agora sim, você vai sentir na pele a face mais negra do regime. A tortura. Não houve guerrilheiro preso que não fosse barbaramente torturado. Ficar pendurado no pau-de-arara (um cavalete em que o sujeito fica preso pela barra que passa na dobra do joelho, com pés e mãos
  • 23. amarrados juntos) é um dos piores suplícios. Além disso, pontapés, queimaduras de cigarros, choques elétricos, alicates arrancando os mamilos, banhos de ácido, testículos amassados com alicate, arame em brasa introduzido pela uretra, dente arrancado a pontapés, olhos vazados com socos. Mulheres estupradas na frente dos filhos, homens castrados. A lista de atrocidades é infindável. Os torturadores são animais sádicos. Mas além da maldade pura e simples, havia a necessidade estratégica: a tortura extraía confissões em pouco tempo, dando oportunidade de prender outras pessoas, que também seriam torturadas, revelando mais coisas e assim por diante. Infelizmente, a tortura revelou-se bem eficaz. Houve muita gente, entretanto, que nada falou. Veja bem, amigo leitor, bastava contar tudo que a tortura acabaria. Essa era a diabólica proposta. Imagine-se no lugar do preso, apanhando feito um cão, nu, sangrando, com a cabeça enfiada num balde cheio de fezes e vômito dos outros. Algumas frases e você seria mandado para um hospital. No entanto, muitos não falaram. Bravamente, recusaram-se a colaborar com a repressão. Morto sob tortura tinha o caixão lacrado para ninguém ver o cadáver arrebentado. O laudo oficial do IML, emitido por médicos venais comprometidos com a ditadura dizia friamente que a morte tinha ocorrido “em tiroteio com a polícia”. Uma geração que pagou um alto preço por seus sonhos: pagou com o próprio sangue. Por isso, amigo leitor, se hoje eu posso escrever essas linhas, se hoje você pode dizer o que pensa, saiba que entre os responsáveis por nossa liberdade estão aqueles que deram sua vida para que um dia o país não estivesse mais sob o jugo das botas da tirania. Mas, afinal, quem eram os torturadores? Onde as pessoas eram torturadas? Ao contrário do que se possa pensar, a tortura não era feita em algum lugar escondido, uma casa de subúrbio ou uma fazenda afastada de tudo. Não, infelizmente as pessoas eram torturadas em lugares públicos, na frente de muitas testemunhas. Como Mário Alves, dirigente do PCBR, torturado até a morte nas dependências do Primeiro Batalhão de Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio de Janeiro. Reparou no local? Um quartel do Exército! Como também aconteceu em delegacias, em bases da Marinha. Através da Operação Bandeirantes (OBAN), do DOI-CODI, dos Serviços de Informação das Forças Armadas (CENIMAR, CISA, CIEX), do DOPS e do SNI, o governo exterminou a guerrilha com brutalidade.
  • 24. Claro que a maioria dos militares não teve nenhum envolvimento com a tortura. Muitos sequer sabiam que ela estava acontecendo. Mas é inegável que os torturadores ocupavam importantes posições no aparelho repressivo do Estado: eram policiais civis, PMs, agentes da polícia federal, delegados, oficiais e sargentos da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, médicos que avaliavam a saúde da vítima e autorizavam a continuação da tortura. Muito triste é saber que alguns desses monstros permanecem na polícia, nas Forças Armadas e que foram anistiados pelo general Figueiredo em 1979. Neste país, jamais um torturador sentou no banco dos réus. A ditadura não se manteve só com violência física. Ela soube se valer de uma propaganda ideológica massacrante. Numa época em que todas as críticas ao governo eram censuradas, os jornais, a tevê, os rádios e revistas transmitiam a idéia de que o Brasil tinha encontrado um caminho maravilhoso de desenvolvimento e progresso. Reportagens sobre grandes obras do governo e o crescimento econômico do país convenciam a população de que vivíamos numa época incrível. Nas ruas, as pessoas cantavam: “Ninguém segura esse país.” Os guerrilheiros eram apresentados como “terroristas”, “inimigos da pátria”, “agentes subversivos”. Qualquer crítica era vista como “coisa de comunista”, de “baderneiro”. Houve até quem chegasse ao cúmulo de acusar os comunistas de responsáveis pela difusão das drogas e da pornografia! O futebol, como não poderia deixar de ser, foi utilizado como arma de propaganda ideológica. Na época, a esquerda se perguntava: “O futebol aliena os trabalhadores, é o ópio do povo?” E houve até quem torcesse para que o Brasil perdesse a Copa: como se o trabalhador brasileiro precisasse de uma derrota no jogo de futebol para realmente se sentir oprimido! Ou seja, quem estava supervalorizando o futebol: o povão ou a esquerda? De qualquer modo, meu amigo, aquela seleção brasileira de 1970 foi simplesmente o maior time de futebol que já existiu. Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres, seus craques são inesquecíveis. O tricampeonato conquistado na Copa do México encheu o país de euforia. Nas casas (pela primeira vez a Copa foi transmitida ao vivo pela televisão) e ruas o povo explodia de alegria e cantava: “Todos juntos, vamos / Pra frente Brasil..” Os homens do governo, claro, trataram logo de aparecer em centenas de fotos ao lado dos craques. Queriam que o país tivesse a impressão de que só tínhamos ganho a Copa graças à ditadura militar (embora as vitórias de 1958 e 1962 tivessem sido no tempo da democracia, com JK e Jango). O prefeito de São Paulo, Paulo
  • 25. (que não era São) Maluf, resolveu dar para cada jogador um automóvel zero quilômetro de presente. O presidente Médici, vestido com a camisa rubronegra do Flamengo, era aplaudido de pé por parte da torcida no Maracanã. Triste país, o general chutava a bola, os torturadores chutavam os presos. Além do futebol, os brasileiros conheceram uma nova paixão, o automobilismo. Até hoje, o mundo só teve um único piloto capaz de vencer na sua estréia na Fórmula 1: o nosso Émerson Fittipaldi, campeão mundial em 1972 e 1974. Nas escolas vivia-se um clima de ufanismo (exaltação da pátria). Todo mundo tinha de acreditar que o Brasil estava se tornando um país maravilhoso. Nos vidros dos carros, os adesivos diziam: “Brasil - Ame- o ou Deixe-o!” É como se os perseguidos políticos foragidos tivessem se exilado por antipatriotismo. Um pontapé na verdade. Claro que essa euforia toda no começo dos anos 70 não vinha só das vitórias esportivas e da máquina de propaganda do governo. Em realidade, o país vivia a excitação de um crescimento econômico espetacular. Era o tempo do “milagre econômico”. Governo General Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974) quot;A plenitude do regime democrático é uma aspiração nacional. . . quot; PRESIDENTE MÉDICI Costa e Silva não teve muito tempo para se alegrar com os efeitos do AI-5. um derrame o matou, em agosto de 1969. O povo não teve tempo de se alegrar; uma Junta Militar, comandada pelo general Lyra Tavares, assumiu o governo até se nomear o novo general-presidente. 0 vice de Costa e Silva, o civil Pedro Aleixo (ex-UDN), não tinha apoiado totalmente o AI5 e por isso fora jogado para escanteio. No mesmo ano, ocorreu a Emenda Constitucional nº 1, que alguns juristas consideram quase como uma nova Constituição. Ela legalizou o arbítrio e os poderes totalitários da ditadura. Todas aquelas medidas arbitrárias tipo AI-5 e 477 foram incorporadas à Constituição. Além disso, ela estabeleceu que o presidente podia baixar medidas (decretos-leis) que valeriam imediatamente. 0 Congresso disporia de
  • 26. 60 dias para examinar o decreto. O Congresso tinha 60 dias para votar a aprovação. Se depois desse prazo não tivesse havido votação (o Congresso poderia, por exemplo, estar fechado pelo AI-5, ou com número insuficiente de membros comparecendo às sessões), ele seria automaticamente aprovado por decurso de prazo. Presidente Médici Dias depois, era indicado o novo chefe supremo do país. O novo presidente era o general Emílio Garrastazu Médici. Seu governo teve dois pontos de destaque: o extermínio da guerrilha e o crescimento econômico espetacular (o “milagre”). Nenhuma época do regime militar foi tão repressora e brutal, Nunca se torturou e assassinou tanto. Nos porões do regime, as pessoas tinham suas vidas postas na marca do pênalti. E assim os órgãos de re- pressão marcaram gols, liquidando guerrilheiros como Marighella (4/11/69), Mário Alves (16/11/70) e Lamarca (17/09/71). Na economia, o ministro Delfim Netto comandou o milagre econômico. A produção crescia e se modernizava num ritmo espetacular. A inflação, dentro dos padrões brasileiros, até que era moderada, lá na casa dos vinte e tantos por cento. Construía-se com euforia. Obras, como a ponte Rio-Niterói, a rodovia Transamazônica, a refinaria de Paulínia e a instalação da tevê em cores (1972), pareciam mostrar que a prosperidade seria eterna. A classe média comprava ações na Bolsa de Valores e imaginava se tornar grande capitalista. Para acelerar o crescimento, ampliaram-se as empresas estatais ou criaram-se novas, principalmente na produção de aço, petróleo, eletricidade, estradas, mineração e telecomunicações. Os nomes delas você já ouviu falar: Petrobrás, Eletrobrás, Telebrás, Correios, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Usiminas e tantos outros. Crescimento e modernização que não beneficiavam as classes trabalhadoras. Pelo contrário, quanto mais o país crescia, tanto mais
  • 27. piorava a vida do povo. Em 1969, por exemplo, o salário mínimo só valia 42% do que representava em 1959, Em 1974, isso desceu para 36%. Os ricos foram ficando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres, A ditadura foi uma espécie de Robin Hood às avessas. Essa distribuição de renda ao contrário era facilitada pelo fato de que não havia nenhuma greve, nem sindicato independente, nem a oposição no Congresso tinha margem de manobra. Era uma ditadura que fazia uma coisa incrível: o país crescia como poucos no mundo e quanto mais riquezas eram produzidas, mais difícil ficava a vida dos trabalhadores. E a Rede Globo, principal aliada da Ditadura, sempre lembrando ao povo miserável que quot;está tudo bemquot;... Até nos países mais pobres da África, a mortalidade infantil diminuía. Nas grandes cidades brasileiras ela crescia, Quanto mais a renda per capita do Brasil aumentava, mais as crianças pobres morriam porque comiam pouco, não eram vacinadas, não tinham médico, De repente, houve uma epidemia de meningite, Doença que pode matar, É preciso que os pais estejam alerta. O que fez a ditadura? Proibiu que os jornais divulgassem qualquer notícia a respeito. O povo tinha de ser enganado pela imagem de que no Brasil a saúde pública estava sob controle, o que veio em seguida era previsível: os pais, sem saber do surto da doença, não davam muita importância para aquela febrezinha do filho, Achavam que era só uma gripe, Não levavam para o posto de saúde, Até que a criança morria, A meningite mataria milhares de meninos e meninas no Brasil, numa das mais terríveis epidemias do século, Só esse caso já mostra o quanto a ditadura era absurda, não é mesmo? O ministro Delfim Netto dizia que era para o povo ter paciência: “temos de esperar o bolo crescer para depois distribuir os pedaços”. E até hoje o povão está esperando sua fatia. Pois é, na cara-de-pau, o general-presidente Médici dizia: “A economia vai bem, só o povo é que vai mal.” Viu? Uma coisinha à toa é que ia mal, um trocinho assim, sem importância, uma poeirinha desprezível chamada povo... Grande parte da classe média até que gostava daquilo tudo. Afinal, a ditadura, além de modernizar a indústria de base, estimulou a de bens de consumo duráveis. Maravilha das maravilhas: a família de classe média se realizava existencialmente comprando tevê em cores (desde 1972), aparelhagens de som, automóveis, eletrodomésticos. E até a
  • 28. classe operária foi arrastada nesse processo de crença na ascensão social baseada na aquisição do radinho de pilha ou do tênis maneiro, A megalomania planejava as obras estatais, Assim como os cabelos eram compridos e as barras das cabas eram “boca-de-sino”, as obras eram gigantescas, o governo fazia estádios de futebol em tudo quanto era canto, mas as escolas caíam aos pedaços, A rodovia Transamazônica, importante para iniciar a colonização da Amazônia, não incluiu nenhum projeto de proteção ao meio-ambiente, aos índios, aos camponeses e aos garimpeiros. A ponte Rio-Niterói (1974) foi realmente funda mental para ligar a economia do Nordeste do país ao Sudeste industrial (RJ e SP), mas ela custou uma fortuna. Certamente teria sido mais barata se as contas tivessem sido controladas democraticamente. Muita empresa construtora se deu bem fazendo essa obra encomendada pelo governo, Aliás, em quase todas essas obras faraônicas (ou seja, enormes, caras e quase inúteis, tal como as antigas pirâmides dos faraós do Egito) houve esquemas para homens do governo e firmas de engenharia civil ganharem uma boa grana por fora. Velha história: sem democracia a roubalheira rola solta porque não há imprensa livre, Congresso independente. Um tratamento especial foi dado às empresas multinacionais (estrangeiras). Elas tiveram mais favores do governo do que as empresas nacionais! O que não é de se espantar, pois grande parte dos homens do poder eram profundamente ligados aos grupos estrangeiros e não hesitaram em usar sua influência. Analistas como Ricardo Bueno e Moniz Bandeira chegaram a considerar os ministros Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen (que o presidente Collor queria para seu ministro), Golbery do Couto e Silva, Roberto Campos e outros como “notórios entreguistas”, ou seja, responsáveis conscientes pelo favorecimento escancarado do governo aos monopólios estrangeiros, É claro que hoje em dia não se pode ter mais aquela visão de ódio total às multinacionais. Afinal, com a internacionalização da economia, ou seja, a ligação econômica direta entre quase todos os países e continentes, elas se tornaram peças fundamentais da economia mundial. Inclusive, porque parecem realmente ser úteis parceiras em alguns setores, já que nenhum país pode ter sozinho tecnologia e capital para produzir tudo. Todavia, é sensato esclarecer alguns pontos: por que elas são as responsáveis por grande parte da dívida externa brasileira? Será benéfico o governo pedir dinheiro emprestado aos banqueiros internacionais para fazer obras gigantescas a favor das multinacionais? Ou simplesmente para financiá-las? Será correto que elas mandem para fora lucros de bilhões de dólares, em vez de aqui reinvestir? Será interessante o seu poder de levar à falência as empresas nacionais, através de uma concorrência desleal? Será que elas realmente nos transferem tecnologia ou só mandam pacotes
  • 29. prontos feitos nos seus laboratórios? Será que elas não mandam dinheiro escondido quot;por debaixo do panoquot;? Será que não interferem na nossa vida interna, combatendo governos que não lhes interessam, mesmo se estes forem a favor do povo? Será saudável que produzam aqui remédios e produtos químicos proibidos em seus países de origem? Por que será que um operário da Volkswagen ou da Ford no Brasil faz o mesmo serviço, nos mesmos ritmos e níveis de tecnologia, que operários dessas empresas na Alemanha ou nos EUA e, no entanto, ganha tão menos? Tantas perguntas... Bem, aí estava o “milagre econômico”: modernização, crescimento acelerado, inflação moderada, facilidades para o investimento estrangeiro, e também ricos mais ricos e pobres mais pobres e aumento da dívida externa. Você reparou que era um esquema parecido com o que já havia no tempo de Juscelino Kubitschek? O desenvolvimento espetacular das telecomunicações e da indústria de bens de consumo duráveis (automóveis, eletrodomésticos, prédios de luxo e mansões financiados pelo BNH) eram voltados principalmente para a classe média e superior. Milhões de brasileiros estavam meia por fora desse mercado. Claro, portanto, que essa festa não iria durar muito. 0 modelo se esgotava e a crise chegava mais rápido do que o Émerson Fittipaldi. Governo do General Ernesto Geisel ( 1974 – 1979 ) O novo general-presidente, Ernesto Geisel, assumiu o governo num momento difícil da economia do Brasil e do mundo, Para alimentar o crescimento, ele pediu emprestado aos banqueiros estrangeiros e tratou de emitir papel-moeda. A inflação começou a aumentar e a engolir salários. Era o fim do “milagre econômico”. Agora, a insatisfação crescia. Isso ficava claro com o aumento de votos do MDB. Geisel percebeu que a ditadura estava chegando ao fim de sua vida útil. O jeito era acabar com o regime mas manter as coisas sob controle. Com ele, começaria a “distensão lenta e gradual”. O ano de 1973 assinalou o inicio de um choque na economia capitalista mundial. Parecida com a de 1929, mas com efeitos bem menores para os países capitalistas desenvolvidos, que empurraram a crise para cima do Terceiro Mundo. De certa forma, os apertos econômicos dos países subdesenvolvidos, nos anos 90, foram continuação do processo de 1973.
  • 30. Ernesto Geisel Tentaram botar a culpa nos árabes, porque eles aumentaram os preços do petróleo: Conversa fiada. O aumento foi apenas a recuperação de preços, que vinham caindo muito, desde os anos 50. Para você ter uma idéia, antes do aumento imposto pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1973, o preço do barril de petróleo no mercado mundial era inferior ao do barril de água mineral! Claro que o aumento dos preços pegou todo mundo de surpresa, aumentou os custos, cortou os lucros, provocando inflação e desemprego. A crise do petróleo reforçou a crise geral do capitalismo em 1973. Mas com certeza a crise não foi só energética. Afinal, países exportadores de petróleo também entraram em crise! O que aconteceu foi uma crise clássica de superprodução de mercadorias, tal como ocorrera em 1929. Depois da Segunda Guerra, os EUA representavam metade da produção econômica mundial. Mas nos anos seguintes a Europa Ocidental recuperou plenamente sua economia. Surgiu também um grande competidor, o Japão. De repente, o mercado mundial ficou apertado, não havia como continuar investindo capital nos mesmos ritmos. As mercadorias começaram a ficar encalhadas e logo vieram as falências, a inflação, a recessão.
  • 31. Aqui no Brasil, o governo botava a culpa nos outros. Dizia que a crise era mundial. Certo. Mas por que aqui ela era tão devastadora? Porque a política econômica da ditadura nos tornava indefesos. O petróleo não representava nem 25% das nossas importações em 1975. Além disso, não só aumentou nossa produção interna, como seus preços internacionais cairiam nos anos 80. No entanto, a crise foi aumentando, ano após ano. Uma coisa tão braba que o nosso jovem leitor com certeza viveu a maior parte de sua vida sob o signo da crise econômica brasileira. O que acontece é que o modelo econômico da ditadura era baseado no pequeno mercado interno, representado pelos ricos e pela classe média. O país estava se transformando na Belíndia, uma mistura da Bélgica com a Índia: uma quantidade razoável de pessoas (classe média e superior) com padrão de consumo de país desenvolvido, vivendo numa área com grandes centros industriais e financeiros, ou seja, a parte do Brasil parecida com a Bélgica, e a gigantesca maioria (classe média baixa e classes inferiores) com padrão de vida muito baixo, milhões vivendo tão miseravelmente como na Índia. Tinha-se alcançado um estágio em que não dava para aumentar a produção, por falta de consumidores aqui dentro. A Bélgica da Belíndia era pequena e a Índia da Belíndia era cada vez maior. Como produzir mais automóveis se a maioria dos brasileiros não tinha dinheiro para comprá-los? Ficava claro que só havia um jeito de ampliar o mercado consumidor: distribuindo renda. Para isso, seria preciso tocar em privilégios, mexer em interesses poderosos. Então, o regime militar não faria nada disso. O governo preferiu outro caminho. Para a economia não entrar em recessão, isto é, para a economia não regredir, o Estado começou a tomar empréstimos externos para financiar a produção. Supunham que a economia cresceria, que as exportaÇões se tornariam espetaculares e que tudo isso daria condições de pagar a dívida externa. Só que os banqueiros internacionais não são trouxas. Emprestaram dinheiro porque sabiam que o Brasil teria de devolver muito mais em forma de juros. Se fizer mos as contas direitinho no papel, vamos concluir que nos anos 70 e 80, o Brasil pagou, só de juros, muito mais do que pediu emprestado! Ou seja, já pagamos tudo, continuamos pagando e ficamos devendo mais ainda! A dívida externa funciona como uma bomba de sucção que chupa os recursos da economia do Brasil. Aliás, o problema da dívida externa é comum em todo o Terceiro Mundo. Segundo os dados insuspeitos do Banco Mundial, na década de 80 foram drenados bilhões de dólares do Terceiro Mundo para o Primeiro. Ou seja, a parte pobre, esfarrapada e faminta do planeta é que mandou dinheiro para a parte milionária! Nos anos 90, é óbvio, esse esquema continua.
  • 32. O mais triste é quando a gente constata que grande parte da dívida externa brasileira foi contraída financiando a vinda de multinacionais, construindo obras gigantescas só para favorecer empresas estrangeiras (estradas, hidrelétricas), sem falar construções que o governo nunca terminou, deixando as máquinas e o material serem destruídos pelo tempo. Pois é, apertado, o governo precisava de mais dinheiro ainda. Para ele, é fácil. É só fabricar, emitir papel-moeda. Aí, vem a inflação. Para evitar a inundação de dinheiro, o governo criou mercados abertos (opens markets), vendendo títulos, ou seja, papéis expedidos com a garantia do governo, que mais tarde poderiam ser resgatados (o proprietário devolveria para o governo em troca de dinheiro) por um valor superior. A idéia era quot;enxugarquot; o mercado, mas a medida deu a maior força para tudo quanto é tipo de especulação financeira, quer dizer, os empresários manobravam para negociar esses títulos com altos lucros. Eis aí um dos grandes problemas da economia brasileira a partir dali: a especulação financeira. Ela é um ganho artificial, já que não envolve nenhum investimento produtivo. No fundo, está transferindo riqueza da sociedade para o bolso de alguns espertinhos. A crise se manifestava com a queda da proporção dos lucros. Os empresários não tinham conversa: buscaram lucrar na marra, botando os preços lá em cima. Ora, é impossível que os empresários, como um todo, possam lucrar na base do simples aumento de preços. Quando alguém aumenta os preços, o outro aumenta também para compensar. Os trabalhadores querem salário maior só para compensar a perda com os aumentos gerais de preços. Os empresários aumentam os salários e, em seguida, sobem mais ainda os preços para reparar as perdas com a alfa de preços e salários. Vira um círculo vicioso. Resultado: o dinheiro vai perdendo o valor. Espiral inflacionária. E o pior é que geralmente os preços crescem mais rápido do que os salários. Portanto, quem mais perde com a inflação são os trabalhadores. Pois a inflação veio a jato, mas os salários andam a passo de cágado. O general Ernesto Geisel era irmão do arquipoderoso general Orlando Geisel. Família unida é ditadura unida. Sua presidência ocorreu dentro desse panorama de crise econômica. Mesmo assim; Geisel se deu ao luxo de ter um ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, cuja mansão em Brasília, segundo o Jornal do Brasil, consumia, mensalmente, 954 kg de carne e 432 kg de manteiga, Que coisa: uma tonelada de bifes por mês, como devia ser gordo o ministro do Trabalho! Bem, com certeza os salários dos trabalhadores não eram tão gordos.
  • 33. No meio da crise de energia, o Brasil teve a sorte de descobrir petróleo na bacia de Campos (RJ), em frente à cidade de Macaé. A Petrobrás pôde aumentar sua produção espetacularmente. Mas Geisel tinha também outros planos para resolver o problema energético: como não havia dinheiro no Brasil, a solução foi gastar mais dinheiro ainda. O acordo nuclear Brasil-Alemanha custou uma fortuna de bilhões de dólares. Para fazer usinas perigosíssimas num país onde 80% do potencial hidrelétrico ainda não foi aproveitado. Incrível, não? A usina de Angra dos Reis (RJ) fica exatamente entre os dois maiores centros industriais do país: São Paulo e Rio de Janeiro. Imagine se houvesse um acidente nuclear! Na verdade, a velha Doutrina de Segurança Nacional continuava ativa. Geisel montou um acordo nuclear com a Alemanha porque acreditava que o Brasil precisava aprender a dominar a tecnologia capaz de produzir, num futuro próximo, a bomba atômica. Na mesma época, a Argentina, que vivia uma ditadura militar desde 1976, também sonhava com cogumelos nucleares. Guerra: coisa de gente que andou tomando uns cogumelos não exatamente nucleares, não é verdade? No mesmo ano (1975), teve início o Projeto Pró-álcool. A idéia era substituir a gasolina pelo álcool combustível. Os usineiros se alegraram. As plantações de cana-de-açúcar foram ocupando tudo quanto é lugar, expulsando os camponeses moradores, acabando com as plantações de alimentos (tornando a comida mais cara) e despejando o poluente vinhoto nos rios. Nos anos 80, com a queda do preço mundial de petróleo, o Brasil ficou com uma enorme frota de carros movidos a um combustível caríssimo. Já em 1990, querendo melhores preços, os usineiros '`sumiriamquot; com o álcool. Na verdade, o álcool se revelou um combustível muito mais caro do que a gasolina (no posto, o álcool é mais barato porque é subsidiado, ou seja, o governo paga uma parte da conta. Mas onde arruma dinheiro para fazer essa caridade? Cobrando mais alto pela gasolina. Trocando em miúdos: quem tem carro a gasolina está ajudando a encher o tanque de quem tem carro a álcool). O que se viu nesses anos todos foi o governo emprestando milhões de dólares aos usineiros do Nordeste, do Rio de Janeiro e de São Paulo e depois perdoando as dívidas porque não suporta mais a choradeira dos produtores de álcool e açúcar. Enquanto isso, os cortadores de cana continuam passando fome. Ora, por que não estimularam o transporte ferroviário e o fluvial, bem mais baratos, podendo, em alguns casos, usar energia elétrica? Não foi incompetência. Na verdade, desde Juscelino que uma das espinhas dorsais de nossa indústria é fabricação de automóveis e caminhões. As pressões das multinacionais desse setor forçaram o governo a abandonar outras opões de transporte. As estradas de ferro, tão importantes nos países desenvolvidos, foram relegadas a segundo
  • 34. plano pelo governo e as estatais deste setor tiveram seus recursos cortados. O II PND (Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento) - o I PND foi no governo Médici, sob a batuta do ministro Delfim Netto -, comandado pelo ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, e pelo do Planejamento, Reis Velloso, tinha como objetivo começar a substituir as importações de bens de capital (indústria de base). Para isso, o BNDE concedeu créditos generosos a empresas privadas do setor, mas principalmente as empresas estatais tiveram grande crescimento, especialmente a Eletrobrás (que comprou a multinacional Light and Power e levou adiante a construção da maior usina hidrelétrica do mundo, Itaipu, na fronteira com o Paraguai), a Embratel (telefones, satélites de comunicações, televisão etc.), a Petrobrás e as estatais de aço. Tudo isso alimentado por uma dívida externa que aumentava sem parar. Em breve, os banqueiros viriam cobrar a dívida e os juros. Aí, a economia sentiria a fona de sucção dos interesses internacionais. “Distensão ‘lenta, gradual e segura’ rumo à democracia” Os resultados dos problemas econômicos foi que nas eleições para deputado federal e estadual e para o Senado, em 1974 e 1978, o MDB teve ótima votação. Um aviso claro para o pessoal da ditadura se mancar. O povo estava dizendo não ao regime. No Alto Comando Militar, as divisões políticas se acentuaram. Uns achavam que a ditadura deveria ir afrouxando, acabando de modo lento e controlado. Talvez, para os ditadores saírem discretamente pelos fundos, sem ninguém correr atrás deles. Esses generais moderados e favoráveis ao gradual retorno à normalidade democrática eram chamados de castelistas, porque se sentiam continuadores de Castello Branco. Era o caso do próprio Geisel e do presidente seguinte, Figueiredo. Outros militares defendiam a “linha dura” - alguns desses eram civis -, e queriam apertar mais ainda. Costa e Silva e Médici, por exemplo, tinham sido de linha dura. Começou então um combate nos bastidores, entre os militares castelistas e os linha dura. E os linha dura bem que pegaram pesado. Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de telejornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi chamado para um interrogatório num quartel do Exército, sede do DOI-CODI. Lá ficou,
  • 35. preso e incomunicável. Dias depois, a família recebeu a notícia de que ele havia “se suicidado”. Com um detalhe: teria de ser enterrado em um caixão lacrado, para que ninguém pudesse ver o estado do cadáver. Suicídio mesmo ou o corpo estava arrebentado pela tortura? No ano seguinte, o operário Manoel Fiel Filho sofreu o mesmo destino. A farsa era evidente: é óbvio que ambos tinham sido mortos por espancamento. Em homenagem a Herzog, o cardeal de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, junto ao pastor James Wright e ao rabino Henri Sobel, dirigiu um culto religioso ecumênico (reunindo as religiões) em frente à catedral da Sé. Havia milhares de pessoas nesta que foi a primeira manifestação de massa desde 1968. Mostra clara de que a sociedade civil estava voltando para as ruas para protestar contra o arbítrio. Indiretamente, Geisel reconheceu o crime. Não prendeu ninguém, mas exonerou o comandante do II Exército, responsável pelos acontecimentos. Deixava claro que não admitiria os atos violentos da linha dura. Em 1978, o Poder Judiciário daria ganho de causa à família de Herzog, botando a culpa na União. Sinal dos tempos. Claro que a esquerda não podia dar bobeira. A ditadura ainda existia. Um trágico exemplo disso foi o massacre da Lapa, quando agentes do Exército invadiram uma casa nesse bairro da capital paulista, em 1976, onde se realizava uma reunião secreta de dirigentes do PC do B. As pessoas nem puderam esboçar reação: foram exterminadas ali mesmo, covardemente. Apesar disso, Geisel apostava na distensão lenta e gradual. Para isso, teve de usar a habilidade para derrubar seus opositores de linha dura. A balança pendeu para o seu lado quando ele, num gesto fulminante, exonerou o general Sílvio Frota (1977), ministro do Exército, tido como de extrema direita e ligado à tortura. A partir daí, a dureza do regime começou a diminuir bem devagar. Alguns militares eram favoráveis à distensão política porque realmente estavam imbuídos de convicções democráticas. Outros, não tão liberais, avaliavam que as Forças Armadas estavam começando a se desgastar ao se manter num governo que enfrentava uma crise econômica violenta. Geisel, portanto, tinha um plano claro: distensão lenta e gradual. Ou seja, abrir o regime bem devagarzinho e sem perder o comando sobre ele. Dentro deste espírito de distensão controlada, Geisel buscou evitar as vitórias eleitorais do MDB. Para isso, mudou as regras das eleições. Seu ministro da Justiça, Armando Falcão, famoso pela inteligente proibição da transmissão, pela tevê, do balé Bolshoi de Moscou (bailarinos são presa fácil do comunismo?), inventou a tal Lei Falcão
  • 36. (1976), que dizia que a propaganda política na tevê só podia exibir uma foto 3X4 do candidato e seu currículo, lido por um locutor. Nada de um candidato do MDB aparecer na telinha ou no rádio para criticar o governo e fazer propostas novas. O natal de 1977 foi antecipado: Geisel fechou o Congresso e deu um presentinho para os brasileiros, o Pacotão de Abril. Lindas surpresas. Para começar, a cada eleição a Arena perdia mais deputados para o MDB. Em breve, o partido do governo não teria os 2/3 do Congresso necessários para mudar alguma coisa da Constituição. Então, o Pacotão determinava que a Constituição agora poderia ser modificada com apenas 50% dos votos dos congressistas mais um. Assim, a Arena (ainda maioria) garantia seu poder constitucional. No senado, o MDB também ameaçava. Resultado: o Pacotão determinou que um terço dos senadores passariam a ser biônicos, ou seja, escolhidos indiretamente pelas Assembléias Legislativas de cada Estado. Em outras palavras, a Arena já tinha garantido quase 1/3 do senado, os outros 2/3 seriam disputados com o MDB nas eleições normais, o Pacotão também alterou o quociente eleitoral, de modo que os estados do Nordeste, onde a população rural ainda era dominada pelos currais eleitorais, e portanto votava com a Arena, tivessem assegurado o direito de eleger um número maior de deputados para o Congresso. No sertão nordestino, chuva mesmo, só de deputados da Arena. O Pacotão fazia das eleições um jogo de futebol em que o dono da bola joga de um lado e, ao mesmo tempo, é juiz. Em 1978 foi decretado o fim do AI-5, o que mostrava alguma boa vontade de Geisel com a distensão política, Mas antes de ele acabar com o ato arbitrário, usou o AI-5 para cassar diversos opositores. Mais ou menos como o pistoleiro que mata todo mundo e que, depois de acabarem as balas, resolve se arrepender do que fez. A garantia disso. tudo era a Lei de Segurança Nacional (LSN) que continuava sendo mantida. Em política exterior, o Brasil baseou-se no chamado pragmatismo responsável: restabeleceu relações com países comunistas como a China, porque isso trazia vantagem comercial e diplomática. Em 1975, na África, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde deixaram de ser colônias de Portugal. No poder, partidos de orientação marxista, apoiados por Cuba e URSS. Acontecia que o governo militar ainda seguia a visão da Doutrina de Segurança Nacional que sonhava em transformar o Brasil na grande potência que dominaria a América do Sul e o Sul da África. Por isso, o Brasil não teve conversa e apoiou os governos de esquerda em Angola e Moçambique, inclusive contrariando a vontade do governo racista da África do Sul e dos EUA. Na verdade, os EUA, do presidente Carter, andaram pressionando o governo militar brasileiro por causa da violação de direitos humanos
  • 37. (incluindo tortura e execução de presos políticos). Coisa de americanos: apoiaram o golpe de 64, depois mudaram de governo e passaram a criticar. Diante disso, e de olho no acordo nuclear Brasil – Alemanha, Geisel acabou rompendo um acordo militar Brasil-EUA. Isso mostra uma coisa muito importante: apesar de o regime militar brasileiro ter sido apoiado pelos EUA, isso não quer dizer que o Brasil sempre tivesse seguido os americanos. Não foram eles que impuseram o regime aqui. A explicação básica do que acontece no Brasil tem de ser buscada aqui mesmo, nas nossas estruturas, nas nossas contradições internas, Culpar o imperialismo por tudo é cômodo e superficial. No final do seu governo, Geisel passou o bastão para o general Figueiredo. A crise continuava e as pressões populares pelas mudanças, também. Governo Figueiredo (1979-1985) Com a escolha do general João Baptista de Oliveira Figueiredo para governar o país, ficou assegurada a continuidade do processo de abertura política. O mandato presidencial de Figueiredo durou seis anos e encerrou 21 anos de ditadura militar no Brasil. João Figueiredo Ao longo do governo Figueiredo, a ditadura militar perdeu legitimidade social e sofreu desgaste politico. Mas ainda assim houve ameaças de retrocesso devido à radicalização de setores das Forças Armadas que tentaram barrar o processo de redemocratização.
  • 38. Militares radicais ligados ao aparato de repressão política promoveram atos terroristas com objetivo de desestabilizar o governo e amedrontar a sociedade. O presidente Figueiredo, porém, teve condições de conter o radicalismo militar e encaminhar a transição da ditadura para o regime democrático. Anistia A anistia era um passo imprescíndivel ao processo de redemocratização. Com ela, os presos políticos ganhariam liberdade e os exilados puderam retornar ao país. Em fevereiro de 1978 foi criado, no Rio de Janeiro, o primeiro Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). O CBA foi o resultado da agregação de várias correntes políticas de oposição (liberais e de esquerdas democráticas), de familiares de presos, mortos, desaparecidos e exilados políticos, e também de setores progressistas da Igreja Católica. Em diversos estados brasileiros surgiram novos comitês e por todo o país a campanha pela anistia obteve expressivo apoio popular. A fim de desarticular o movimento pró-anistia, o então presidente Geisel promulgou, em 1978, vários decretos-leis revogando a maior parte das leis de exceção, inclusive o Ato Institucional nº 5 (AI-5). Lei de Anistia de 1979 Desse modo, gradualmente os presos políticos foram sendo libertados e os exilados pouco a pouco puderam retornar ao país. A Lei de Anistia de 1979 serviu para dar continuidade a este processo, mas ela desagradou os movimentos de oposição que reivindicavam uma anistia quot;ampla, geral e irrestritaquot;. A Lei de Anistia deixava de solucionar a questão mais polêmica do período da ditadura, isto é, os atos terroristas de autoria das organizações guerrilheiras de esquerda armada e as violações dos direitos humanos praticadas pelos agentes dos órgãos de repressão policial-militar que cometeram assassinatos e tortura. A Lei excluía de seus benefícios os guerrilheiros condenados por atos terroristas envolvendo quot;crimes de sanguequot; (ou seja, crimes contra a vida humana), mas concedia perdão aos agentes da repressão envolvidos em assassinatos e prática de tortura. Por esse motivo, a Lei de Anistia de 1979 representou um claro sinal de que os militares não admitiriam qualquer tentativa de punição legal às Forças Armadas.
  • 39. A reforma partidária Com o crescimento dos movimentos de oposição à ditadura, o governo Figueiredo avaliou, corretamente, que a manutenção do bipartidarismo ocasionaria um desgaste ainda maior das bases de sustentação política do regime. Na conjuntura da redemocratização, era esperada uma polarização política cada vez mais acentuada em favor do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição legal; contra o partido governista, a Aliança Nacional Renovadora (ARENA). A fim de provocar uma divisão no bloco oposicionista, o governo Figueiredo forçou uma reforma partidária. A ARENA e MDB foram extintos. Os políticos governistas criaram o Partido Democrático Social (PDS), enquanto que o MDB se transformou no PMDB. Surgiu também o Partido Democrático Trabalhista (PDT), liderado por Leonel Brizola; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), composto por uma ala de políticos arenistas menos influentes. Partido dos Trabalhadores (PT) O Sindicalista Lula, preso político em 1981. Os partidos comunistas continuaram na ilegalidade. A maior novidade no cenário político-partidário foi o surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT). Defendendo uma proposta socialista, o PT se originou do novo e combatente movimento sindical do ABC paulista, liderado por Luiz Inácio Lula da Silva.
  • 40. Em novembro de 1982, foram realizadas eleições diretas para governador (o que não ocorria desde 1967), para deputados estaduais e federais, prefeitos e vereadores. O governo promulgou uma lei proibindo alianças partidárias com objetivo de evitar que as oposições se unissem. O PDS conseguiu eleger 12 governadores, enquanto as oposições conseguiram eleger dez. Foram vitoriosas, no entanto, nos Estados mais populosos e desenvolvidos do país, como no Rio de Janeiro (elegendo Leonel Brizola do PDT) e em São Paulo (elegendo Franco Montoro do PMDB). A crise econômica e o novo movimento sindical O governo Figueiredo herdou uma grave crise econômica. Neste contexto, a insatisfação dos trabalhadores cresceu. As primeiras greves foram deflagradas pelo operariado do setor metalúrgico do ABC paulista, região de maior concentração fabril do país. Inicialmente, as reivindicações dos operários se concentraram em reajustes salariais. Contudo, à medida que o movimento grevista adquiriu força, os trabalhadores ampliaram suas reivindicações exigindo mudanças políticas, entre elas a abolição do controle governamental sobre os sindicatos, restabelecimento do direito de greve e a livre negociação com os empregadores. Outras categorias de trabalhadores do setor industrial e do funcionalismo público também deflagraram greves. O governo reprimiu com violência os movimentos grevistas, principalmente dos operários do ABC paulista. Mas já não era possível ao governo manter sob rígido controle estatal e policial os sindicatos e impedir a reorganização da classe trabalhadora. Os trabalhadores foram um dos mais importantes segmentos da sociedade brasileira a contribuir, com suas greves e reivindicações, para o avanço do processo de redemocratização. O terrorismo de Estado e o atentado do Riocentro O processo de abertura política levada adiante pelo governo Figueiredo não esteve a salvo de tentativas de retrocesso. Militares radicais ligados aos órgãos de repressão espalharam o pânico através de atos terroristas. Igrejas, editoras, órgãos de imprensa, bancas de jornal,
  • 41. sedes de partidos políticos e de entidades democráticas, foram alvos de atentados a bomba. O terrorismo proveniente de setores radicais das Forças Armadas tinha por objetivo amedrontar a população e as oposições, e desestabilizar o governo, a fim de provocar um endurecimento do regime. A sociedade, porém, reagiu. Foram organizados inúmeros atos e manifestações públicas em que se exigia do governo medidas contra a violência. O ato terrorista mais grave ocorreu em abril de 1981, no Rio de Janeiro. Antecipando uma comemoração do Dia do Trabalho, trabalhadores estavam realizando um show no Centro de Convenções do Riocentro. Um sargento e um capitão do Exército planejaram detonar uma bomba no local, mas um acidente provocou a explosão da bomba quando eles ainda estavam de posse do artefato. O atentado do Riocentro provocou uma grave crise militar devido às pressões das oposições para o governo investigar o caso. Figueiredo, porém, cedeu aos interesses dos militares ao impedir que o inquérito policial aberto chegasse a apontar os responsáveis. Não houve punições e nem mesmo investigações. Porém, o atentado do Riocentro foi o último ato terrorista praticado por militares radicais. O episódio ocasionou um maior desgaste e perda de legitimidade política e social do governo e do regime. Diretas Já! A Constituição previa que o sucessor do presidente Figueiredo seria eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. Em março de 1983,
  • 42. porém, o deputado federal do PMDB, Dante de Oliveira, apresentou uma emenda constitucional que estabelecia eleições diretas para presidência da República. Manifestação pelas quot;Diretas Jáquot; na Candelária/RJ Foto: Hipólito Pereira A partir daí, as oposições mobilizaram a população com objetivo de pressionar os parlamentares a aprovarem a emenda constitucional. Por todo o país, grandes comícios, atos e manifestações públicas foram realizadas. O lema da campanha era quot;Diretas Jáquot;. Estudantes, líderes sindicais e políticos, setores da Igreja católica, artistas e personalidades da sociedade civil e milhares de populares compunham as forças que reivindicavam eleições diretas. Mas o governo ainda tinha força parlamentar suficiente para barrar a aprovação da emenda constitucional que estabelecia eleiçõ4es diretas. Foi o que aconteceu, em abril de 1984: o Congresso Nacional rejeitou a emenda Dante de Oliveira. Maluf e Tancredo Na corrida pela sucessão presidencial, o partido governista, PDS, lançou o nome do paulista Paulo Maluf. Discordando dessa indicação, líderes políticos nordestinos, como Antonio Carlos Magalhães e Marco Maciel não a aceitaram e abandonaram o PDS, fundando o Partido da Frente Liberal (PFL).
  • 43. Maluf x Tancredo: o pleito que encerrou a ditadura militar no Brasil. A oposição lançou o nome de Tancredo Neves, do PMDB. Tancredo era um político oposicionista de tendência moderada, e por conta disso conseguiu o apoio do PFL. Em 15 de janeiro de 1985, foi eleito pelo colégio eleitoral presidente da República. Do ponto de vista institucional, contudo, o país completaria a transição para democracia somente quando o povo pôde votar livremente para presidente, em 1989. Fim da ditadura Os militares se exauriram no controle governamental, mas se retiraram da política de modo a garantir suas prerrogativas. A transição democrática no Brasil foi pacífica e se pautou por um processo de negociação entre as elites, envolvendo acordos para que não houvesse qualquer tipo de punição legal às Forças Armadas diante de todas as violações dos direitos humanos a que foram vítimas os opositores da ditadura. A eleição de Tancredo Neves não representou ameaça aos interesses dos militares e nem mesmo a ordem social estabelecida por eles desde 1964. Mas a tentativa de esquecer o passado, ou seja, de impedir que viessem a público os crimes cometidos pelos agentes da repressão, fracassou. Dom Paulo Evaristo Arns e quot;Brasil: Nunca Maisquot; A Igreja Católica de São Paulo, sob a liderança do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, realizou uma pesquisa secreta baseada no exame dos
  • 44. processos judiciais militares. A pesquisa deu origem à monumental obra quot;Brasil: Nunca Maisquot;, coleção composta por vários volumes que descreve e analisa minuciosamente a repressão policial militar ao longo da ditadura. Com a publicação do quot;Brasil: Nunca Maisquot;, tornaram-se públicas as atrocidades da ditadura militar e a identificação de todos os torturadores. Foi um importante e ousado passo no sentido de elucidação do passado histórico do país. Bibliografia: http://www.culturabrasil.pro.br/ditadura.htm http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/ult1689u72.jhtm http://indoafundo.com