O antropólogo Roberto DaMatta pretende lançar um livro sobre como a falta de educação e percepção dos motoristas sobre o espaço público causa o caos no trânsito. Ele argumenta que os motoristas se comportam de forma hostil e agressiva na rua porque não foram educados para competir e obedecer regras de forma cordial. DaMatta usa exemplos de conversas com pedestres idosos para ilustrar como o comportamento dos motoristas desrespeita as leis e torna as ruas hostis.
Antropólogo analisa caos no trânsito e falta de educação para competição e regras universais
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ANTROPOLOGIA
Falta de educação e de percepção que a rua é um espaço público provoca o caos
no trânsito. Antropólogo Roberto DaMatta pretende lançar livro sobre o assunto
JAIR AMARAL/EM
Carros
ocupando
faixa
destinada
à travessia
de pedestre
na Praça Sete,
no Centro
de BH,
é exemplo
do desrespeito
às leis
Quando o cordial
CYAN MAGENTA AMARELO PRETO
vira bestial DANIEL CAMARGOS (1984) e doutor em antropologia social pela Univer-
sidade Harvard, nos Estados Unidos, ex-professor
Os olhares de Leopoldo e José para o movimen- da Universidade Notre Dame, no Estado de India-
to contínuo de veículos e pedestres no cruzamen- na, e atual professor da PUC do Rio de Janeiro, Da-
to das avenidas Amazonas e Afonso Pena carre- Matta é, na verdade, um estudioso do Brasil e retira
gam certa indiferença, mas fixam o foco na per- do cotidiano o cerne de seus pensamentos. Quando
plexidade. A dupla de aposentados se encontra saiu do país pela primeira vez e depois retornou,
diariamente no quarteirão do antigo Cine Brasil em 1963, ficou assustado com o comportamento
na Praça Sete, no Centro de Belo Horizonte, e colo- dos motoristas que avançavam para cima dos pe-
ca a conversa em dia, além de lembrar das histó- destres, na Praça XV, na cidade do Rio de Janeiro.
rias do passado. Leopoldo Portela, de 81 anos, é Para DaMatta, a relação de conflito entre moto-
motorista habilitado desde 1943 e José Pimentel, ristas e pedestres ocorre por diversos fatores. “A
de 78, desde 1955. “Quando a pessoa entra no car- rua, em oposição à casa, que é o local dos espaços
ro muda o comportamento, começa a buzinar e fi- demarcados, é um lugar de competição. A casa es-
ca bem alterado”, pondera Leopoldo. “O trânsito tá definida por laços de sangue e hierarquia e, na
hoje? É horrível. Ninguém respeita ninguém”, de- rua, as pessoas têm um espaço de igualdade”, ex-
clara José. Eles insistem na conversa na praça à plica. O problema é que a igualdade se dá por “um
sombra de uma árvore – mesmo que cercada por acordo de obedecer a determinadas regras”, mas
uma grade -, mas a fumaça, o barulho e a desor- que, no mundo real, ganha status de “causa perdi-
dem não negam que a rua é um espaço hostil. da, de um valor, um ideal”.
A hostilidade é sustentada pelo antropólogo Ro-
berto DaMatta. Em 1984, ele publicou A casa e a CORDIAL Entre buzinas e ofensas, a máscara do
rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. A cidadão cordial cai no teatro do cotidiano. Parte
obra contempla parte do pensamento que DaMat- da análise do historiador Sérgio Buarque de Ho-
ta trabalhou na tese de mestrado que orientou, nos landa – autor de Raízes do Brasil (1936) e de ou-
últimos dois anos, sobre as relações entre o carro, tras obras que dissecam a identidade nacional – é
o espaço público e a violência no trânsito urbano. atualizada por DaMatta: “O brasileiro é cordial,
Agora, ele pretende publicar um livro, abordando mas, ao mesmo tempo, é agressivo e grosseiro.
as questões. “O trânsito é um exemplo de como No contexto do trânsito, isso fica muito claro.
não sabemos funcionar em espaços totalitários e Acontece porque somos treinados para quando
competitivos com a rua”, afirma DaMatta. O caos sairmos de casa esperarmos apenas coisas ruins”,
que desalenta os aposentados na Praça Sete é um explica. Para DaMatta, uma solução paliativa po-
mal cultural e vai além de vias mais largas, viadu- de ser personalizar as relações. Ele exemplifica
tos, túneis e uma profusão de obras para contem- que, mesmo que o motorista não conheça quem
plar o número de veículos. “Sem a presença física, está ao lado, se abrir a janela e fizer um sinal com
o motorista não obedece às regras e não se pode o braço com certeza terá a pista livre para passar.
colocar um guarda em cada sinal. A tragédia que “Mas o que agasta (irrita) no trânsito é absoluta
emerge no campo do trânsito é que não fomos necessidade de ser igual. Não há como aplicar o
educados para competição e internacionalização ‘sabe com quem está falando’. É arriscado, pode
de regras universais”, afirma DaMatta. matar ou morrer, não é como na fila do banco. O
Autor de outros clássicos como Carnavais, ma- motorista de uma Mercedes tem que cumprir as
landros e heróis (1979) e O que faz o brasil, Brasil? mesmas regras que o motorista de um Fusqui-
nha e isso dá uma raiva desgraçada nele”.
MARLOS NEY VIDAL / EM Raiva que o aposentado José Pimentel sentiu ou-
tro dia. “Estava na avenida e, na frente, tinham seis
motoqueiros em fila, lado a lado e parados no se-
máforo. Não precisa. Eles se acham os donos da rua”,
lembra. Perguntado se fica bravo, xinga e discute no
trânsito, Pimentel esclarece que é calmo e que, ape- c
sar de ter carro, prefere se deslocar do Bairro Caiça- m
ra, na Região Noroeste, até o Centro, todos os dias, y
de ônibus. “Aqui não tem lugar para estacionar. Fico
tranqüilo e tomo meu café ali no Nice, além de con- k
versar com os amigos”, explica Pimentel. Seu par-
ceiro de café e conversa, Leopoldo Portela, resigna-
se: “Somos sujeitos a tudo isso”.
José e Leopoldo perplexos com atitude dos motoristas ❚ LEIA MAIS SOBRE O COMPORTAMENTO NO TRÂNSITO
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CYAN MAGENTA AMARELO PRETO