2. 522 práticas de geografia
INTRODUÇÃO
A aula de campo é um recurso do qual se lança mão quando as experiências
de aprendizagem não podem ser realizadas dentro da sala de aula ou em labo‑
ratório. É um meio excelente de estimular a interação entre a escola e o meio
e, quando bem realizada, produz sempre excelente resultado. Diferencia
‑se do
trabalho de campo na medida em que este último está mais voltado à pesquisa,
enquanto a aula de campo é uma estratégia didática mais voltada ao ensino.
Em ambos os casos, como mostrados nos capítulos anteriores, exige
‑se uma
preparação adequada, de modo que cada aluno saiba o que deve fazer, seja na
observação e interpretação dos fatos da natureza, seja nos contatos com a co‑
munidade. Da mesma forma, o material a ser utilizado durante a aula de campo
precisa ser previamente selecionado e em quantidade suficiente para atender à
demanda dos alunos. O professor obviamente atuará como guia, orientando a
observação, estimulando o interesse da turma, fornecendo informações comple‑
mentares e sugerindo a relação entre os fatos e os conceitos aprendidos em sala.
Essa prática é, também, uma ocasião para uma aproximação saudável entre o
mestre e seus alunos e estes entre si. Há sempre os momentos de amenidades.
Este capítulo, porém, é o depoimento de um professor que, embora já apo‑
sentado das atividades de graduação, esteve, desde que iniciou sua vida pro‑
fissional, em 1959, no campo, com seus alunos, inúmeras vezes, em situações
muito diversas e circunstâncias variadas. Aqui, pretendo relatar fatos inusitados,
alguns divertidos, que tive o privilégio de vivenciar, alguns ainda de meu tempo
de aluno (1955
‑1958).
PRATGEO_2aprova.indb 522 09/12/10 16:55
3. 523
capítulo 25 – contos de campo
VAMOS AOS CAMPOS
Corria o ano de 1957 e eu cursava o terceiro
ano de bacharelado em Geografia na USP. A
aula de campo era um exercício frequente que
nós adorávamos porque podíamos conferir dire‑
tamente na natureza tudo que havíamos apren‑
dido na sala de aula e nos livros. E não se tra‑
tava apenas dos fatos da Geografia Física, mas
também dos da Geografia Humana, tais como
entender a diferença entre meio urbano e rural,
os tipos de habitats, o uso da terra etc.
Num dia de maio daquele ano, estávamos
caminhando ao longo de uma estrada no mu‑
nicípio de Mairiporã (região metropolitana de
São Paulo) que, como se sabe, é vizinho ao de
Franco da Rocha, onde havia um Hospital de
Alienados. O Professor Aziz Nacib Ab’Saber,
que era o nosso mestre, privilegiava as obser‑
vações de geomorfologia sem deixar, é claro,
de fazer as imprescindíveis relações com os de‑
mais fatos do espaço. Uma de nossas colegas
chamou a atenção da população local porque
usava calças compridas naquela época traje de
uso quase exclusivo masculino. Subia e descia as
encostas até que foi abordada por um cidadão,
desconfiado com as atitudes incomuns da jovem.
Perguntou
‑lhe de quem se tratava e recebeu a
resposta de que era aluna da USP e participava
de um trabalho de ensino ativo de Geografia.
O cidadão não entendeu nada, ficou muito in‑
trigado, e insistiu querendo saber o que estava
fazendo. Ela respondeu tranquilamente: “estou
medindo a inclinação das vertentes para interpretar
a forma do relevo”. A pessoa saiu em disparada
para denunciar que havia uma fugitiva do hos‑
pital de loucos que era preciso ser capturada. Ao
final, o Professor Aziz interveio e tudo acabou
bem, embora a população local possa ter pensa‑
do que éramos todos um pouco loucos.
Se, por um lado, muitas das técnicas de ob‑
servação daquela época ainda são válidas hoje,
os costumes mudaram muito de lá pra cá e,
provavelmente, uma aluna de saia em campo
chamaria mais a atenção hoje do que uma usan‑
do calças. Outro aspecto interessante é o pró‑
prio assunto que ela estava estudando, muito
diferente do que se esperava de uma moçoila
daquela época.
Outro fato jocoso ocorreu em 1961, eu já for‑
mado geógrafo, exercendo atividade profissional
no antigo Instituto Geográfico e Geológico, em
missão de pesquisa de Geografia Humana na
zona urbana de uma certa cidade da região me‑
tropolitana de São Paulo, onde devíamos aplicar
um questionário para investigar a mobilidade
da população. Tratava
‑se de um bairro perifé‑
rico, de casas muito modestas, de população
simples. Numa das casas indaguei à moradora
onde residia antes, ao que ela me respondeu, mal
humorada: “morava em São Paulo, no bairro de
Jabaquara, era tão bom, e agora estou aqui, neste
fim de mundo, tudo por causa de meu ex
‑marido,
aquele desgraçado”.
Este fato mostra a dinâmica do campo, em
que muitas vezes acontecem coisas que não es‑
tavam no script, como foi também mostrado no
Capítulo 21 (Técnicas de Interlocução). O que
fazer com aquela resposta? Como classificá
‑la?
Dos meus tempos de aluno, algumas aulas
de campo ficaram na memória. A primeira foi
em maio de 1956, em uma viagem a Volta Re‑
donda (RJ), dirigida pelos Professores Araújo
Filho e Aziz Nacib Ab’Saber. Estávamos muito
interessados em conhecer a Companhia Side‑
rúrgica Nacional, iniciativa estatal, inaugurada
havia pouco mais de uma década e o principal
centro de produção de aço do país, na época.
Durante todo o percurso fomos brindados pelas
aulas dadas pelos dois professores com erudi‑
tas explicações sobre a organização do espaço
do Vale do Paraíba do Sul, especialmente do alto
vale, a montante de Jacareí, resultante do ciclo
cafeeiro que ali fora muito importante no século
XIX. Curioso que, tendo sido o percurso, desde
São Paulo, feito de trem, pela antiga Estrada de
PRATGEO_2aprova.indb 523 09/12/10 16:55
4. 524 práticas de geografia
Ferro Central do Brasil, o Professor Aziz nos
advertiu que, depois de Jacareí, entraríamos na
bacia sedimentar de Taubaté, percorrendo o re‑
ferido rio, e seguiríamos na direção de jusante,
conceito que aprendemos naquele momento. Em
cada estação havia uma placa com a informação
da altitude sobre o nível do mar e os professores
nos orientaram para irmos anotando. Ainda hoje
tenho guardados esses apontamentos: Jacareí
(561 m), Caçapava (542 m), Pindamonhangaba
(526 m), Guaratinguetá (519 m), Queluz (465 m)
e Resende (388 m), ou seja, íamos perdendo al‑
titude. Em Volta Redonda, depois da instrutiva
visita à Siderúrgica, o Professor Aziz nos levou
pelos arredores e descobriu, para surpresa de to‑
dos, os novos limites de outra bacia sedimentar,
a de Resende, que nem ele conhecia e não esta‑
vam ainda mapeados. Ou seja, aquela atividade
de campo permitiu uma efetiva contribuição do
nosso professor para o conhecimento da Geo‑
morfologia do Sudeste brasileiro. Percebemos,
portanto, que o campo é fértil tanto para o en‑
sino como para a pesquisa e que esssas duas ver‑
tentes do saber podem ocorrer simultaneamente.
A segunda aula que guardo bem na memória
foi em agosto de 1957, em Atibaia, minha cidade
natal, sob a direção do Professor Pasquale Petro‑
ne. Embora eu tivesse ali nascido e crescido, não
sabia interpretar aquela realidade com olhar de
geógrafo. No alto da Pedra Grande (1.400 m)
o Professor Petrone mostrou
‑nos (a mim, pela
primeira vez) as estreitas relações entre os fatos
físicos e humanos. Chamou a atenção para o
traçado dos caminhos e estradas, todos na dire‑
ção da Capital, situada a 60 km ao sul, ou seja,
enfatizou o efeito de polaridade exercido pela
metrópole. Assinalou a importância de se enten‑
der os arranjos espaciais resultantes do processo
interativo natureza versus sociedade, em todas
as escalas de grandeza, desde a local, que está‑
vamos avistando, até a global, e que essa tarefa
representava a identidade da Geografia. Para
mim, essa aula foi tão importante que, naquele
momento, tomei a decisão que já vinha amadu‑
recendo, de me dedicar à Geografia como opção
de vida. Nunca me arrependi.
Esse fato ilustra a grande importância das
aulas de campo como momentos essenciais na
formação do geógrafo, que podem levá
‑lo a se
apaixonar por esta ciência.
A terceira aula que guardo claramente na
memória, também riquíssima em aprendizado,
aconteceu em setembro daquele mesmo ano
(1957) em Campos do Jordão, novamente sob
a orientação do Professor Aziz Ab’Saber. No
percurso, aprendemos o que era sítio urbano e
que São José dos Campos situava
‑se sobre um
tabuleiro sedimentar, a cavaleiro da planície do
rio Paraíba.
Na sequência, atravessaríamos a região de
“mares de morros” (município de Monteiro Lo‑
bato) até atingirmos o planalto de Campos do
Jordão, já nos 1.600 a 2.000 m de altitude. No alto
do pico do Itapeva, o Professor Aziz deu
‑nos uma
esplêndida aula, destacando, entre outros fatos, o
traçado do Vale do Paraíba, que seria uma prová‑
Figura 25.1. Grupo que participou da excursão a Volta Redonda em
maio de 1956, com o professor Aziz sentado à direita da foto.
Arquivo
do
autor
PRATGEO_2aprova.indb 524 09/12/10 16:55
5. 525
capítulo 25 – contos de campo
vel fossa tectônica, e das principais cristas, orien‑
tadas predominantemente na direção SO
‑NE;
explicou o padrão predominantemente dentrítico
da hidrografia e as diferentes associações vegetais
(Mata Atlântica, floresta de araucárias e campos
de altitude), além de apontar para a urbanização
acelerada do Vale do Paraíba e sua forte vocação
industrial e localização estratégica entre as duas
maiores metrópoles do país. Ensinou
‑nos ainda a
fazer, na caderneta de campo, anotações e esboço
da paisagem, com todos os seus componentes1
.
Percebe
‑se, então, que, no campo, as divisões
entre as diferentes áreas da Geografia se diluem,
proporcionando uma visão integrada da reali‑
dade física e social.
A quarta aula que gostaria de relembrar foi
em 1958, durante a Assembleia Geral da Asso‑
ciação dos Geógrafos Brasileiros – AGB (hoje
chamada de Encontro Nacional de Geógrafos –
ENG) de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Na‑
quela época, organizavam
‑se equipes sobre qua‑
tro temas de pesquisa a fim de estudar a região
onde se realizaria a Assembleia. Um grupo de
alunos insatisfeitos, com as tarefas para as quais
haviam sido designados, resolveu “se rebelar” e,
sob a orientação do professor Aziz, também um
“dissidente” entre os professores, abandonou a
Assembleia. Por três dias, o grupo se dirigiu, de
trem, até Santana de Livramento, cidade gêmea
de Rivera, na fronteira Brasil/Uruguai. A “insur‑
reição”, no bom sentido, rendeu ótimos resulta‑
dos, pois já no percurso fizemos interessantes
observações. À medida que o trem avançava pela
depressão gaúcha, íamos olhando, atentamen‑
te, as colinas levemente abauladas, as “lombas”,
separadas entre si por depressões encharcadas
e os “banhados”. Chegamos ao anoitecer e, no
dia seguinte, no marco fronteiriço internacional,
situado na área urbana das cidades mencionadas
1 O Capítulo 17 (Técnicas de Desenho e Elaboração de
Perfis) e o Capítulo 23 (A Redação do Trabalho de Cam‑
po) deste livro lhes ajudarão a resgatar estas práticas.
(uma conurbação, conceito que aprendemos na‑
quele momento) o Professor Aziz deu
‑nos uma
aula que, para nós seria, digamos, antológica.
Entendemos o que era o relevo de cuesta, rios
consequentes e obsequentes, erosão remontan‑
te, mata galeria, habitat disperso e linear, e, no
espaço urbano, o mosaico espacial das diferen‑
tes funções da cidade (comercial, residencial, de
serviços etc.). Anotamos vários fatos curiosos da‑
quele local como, por exemplo, uma população
bilíngue porque, inclusive as crianças, falavam
castelhano e português; os carros todos tinham
duas placas, uma de cada cidade (Rivera e San‑
tana do Livramento) a fim de circular por ambos
os lados da fronteira.
Ao chegar de volta a Santa Maria, relatamos
tudo aos colegas e estes ficaram invejosos de
nossa “aventura”. Esse mesmo grupo de alunos,
ao encerrar
‑se a Assembleia da AGB, resolveu
voltar para São Paulo de trem, que, nessa épo‑
ca circulava regularmente entre Porto Alegre e
São Paulo. Professor Aziz veio conosco. Viaja‑
mos quatro dias e quatro noites pelas terras tão
bonitas do Planalto Meridional, coberto de arau‑
Figura 25.2. Grupo de alunos reunidos durante aula de campo no
alto da Pedra Grande, a 1.400 m, em Atibaia (SP).
Arquivo
do
autor
PRATGEO_2aprova.indb 525 09/12/10 16:55
6. 526 práticas de geografia
cárias e paisagens coloniais alemãs e italianas,
tudo explicado, em detalhes, pelo professor. Co‑
meçamos pelo município de Júlio de Castilhos,
seguindo a ferrovia por Cruz Alta, Passo Fundo,
Erexim e penetrando em Santa Catarina pelo
vale do rio do Peixe onde ocorreu, no começo do
século XX (1912
‑1916), a Guerra do Contesta‑
do, motivada por conflitos de terras. No Paraná,
percorremos todo o Segundo Planalto, por terras
de Ponta Grossa e Castro. Ficamos encantados
com tudo que vimos e com as explicações do
professor. Entramos em São Paulo por Itararé,
passamos por Itapetininga, Tatuí, Sorocaba e,
finalmente, chegamos à estação Júlio Prestes,
na capital paulista. Aqueles dias valeram por um
semestre de aprendizado.
Pode
‑se concluir que um certo espírito de
aventura é sempre muito útil ao geógrafo. Este
espírito é alimentado por sua curiosidade e
apoiado por sua coragem. Afinal, o mundo é nos‑
so grande laboratório. Então… entremos nele!
Conheci o Professor Milton Santos durante
a 12ª Assembleia Geral da AGB, em Colatina
(ES), em 1957. Mais tarde, tive oportunidade de
realizar atividades de campo sob sua orientação
durante a 17ª Assembleia Geral realizada em Pe‑
nedo (AL), em 1962. Foi em julho daquele ano
que participei da equipe que ele chefiou, desig‑
nada para viajar até Aracaju (SE) com a tarefa de
fazer registros e observações. O Professor Mil‑
ton, que nos deixou a imagem de um geógrafo de
gabinete dedicado às reflexões teóricas e muito
elaboradas intelectualmente, na realidade era
bom também no campo, embora suas observa‑
ções fossem dirigidas, de preferência, aos fatos
da Geografia Humana. Em Aracaju, reuniu
‑nos
na praça principal explicando que o estudo de
uma cidade deveria começar pela visita aos escri‑
tórios do IBGE, onde se encontravam as fontes
dos dados estatísticos, passando, em seguida, à
análise do meio urbano com suas diferentes fun‑
ções e espacialidades. Naquela aula, em plena
praça, o Professor Milton nos ensinou, ainda, o
papel determinante do fato urbano no contexto
Figura 25.3. Aula de campo no Vale do Paraíba, em 1957.
Arquivo
do
autor
da organização regional e a posição de Aracaju
na hierarquia das cidades nordestinas. Apren‑
demos muito. E, para oferecer um momento de
amenidade, contou
‑nos um fato divertido. Certo
dia estava no meio de uma palestra quando um
dos assistentes o interpelou pedindo que, sob de‑
terminado assusto exposto, ele fosse mais claro.
O Professor Milton, que era negro, respondeu:
“ah, isso para mim é impossível!”.
Notáveis, também, eram as aulas de campo
dadas pelo Professor Araújo Filho. Sua especia‑
lidade eram os espaços do café e uma vez, em
1958, ele nos levou à região de Espírito Santo
do Pinhal e Casa Branca, no estado de São Pau‑
lo, para mostrar as diferenças entre o Planalto
Atlântico e a Depressão Periférica, não só quan‑
to às características naturais, mas, também,
quanto à ocupação humana e econômica. Íamos
na carroceria de um caminhão (o professor na
cabine) e era de se admirar a alegria do Profes‑
sor Araújo cada vez que aparecia um cafezal.
Parávamos imediatamente e ele nos dava uma
longa aula sobre o produto básico da economia
brasileira e a transformação que havia operado
nas paisagens do sudeste, desde o estado do Rio
de Janeiro até o norte do Paraná. Explicava
‑nos
a tese do Professor Pierre Monbeig, o primeiro
a estudar o assunto nos anos trinta e quarenta
do século XX.
Outra interessante aula ao campo foi em
setembro de 1963, quando oSudeste brasileiro
PRATGEO_2aprova.indb 526 09/12/10 16:55
7. 527
capítulo 25 – contos de campo
Figura 25.4. Alunos no pico de Itapeva, praticando a observação da
paisagem e o uso da caderneta de campo.
Arquivo
do
autor
estava sendo assolado pela mais severa estiagem
do século XX. Naquele ano, o principal posto
pluviométrico da capital, no Mirante de San‑
tana, integrante da rede do Instituto Nacional
de Meteorologia, registrou apenas 815 mm de
janeiro a dezembro, excepcionalidade climato‑
lógica que até hoje não voltou a acontecer. Sob
a orientação da Professora Maria de Lourdes
Radesca, assistente da antiga Cadeira de Geo‑
grafia Física, fomos visitar a represa Billings e
constatamos que ela estava com apenas 4,2%
de sua capacidade, ou seja, quase seca, e havia
veículos estacionados no chão do reservatório,
antes ocupado pela água.
As turbinas da Usina Henry Borden, em
Cubatão, paralisaram e o abastecimento de ener‑
gia elétrica da cidade de São Paulo entrou em
colapso. Para nós foi importante porque apren‑
demos o que era a variabilidade climática (e sua
relação com o uso e a ocupação do território),
sobre a qual tanto se fala hoje, frequentemente
de maneira pouco fundamentada cientificamen‑
te e apresentada como se fosse uma novidade.
Esses relatos, selecionados por amostragem,
revelam o quanto foi importante para minha for‑
mação a prática das aulas de campo e o quanto
elas ainda o são para a formação dos atuais alu‑
nos, a despeito dos recursos tecnológicos hoje
disponíveis. Nos meus anos de docência tive
oportunidade de orientar inúmeras atividades
de ensino no campo. Pelo menos uma vez no
semestre isso acontecia.
Numa de minhas primeiras atividades fora
da sala de aula, quando eu ainda era iniciante na
carreira (1966), ocorreu um fato surpreendente
durante uma caminhada que se realizava dentro
do campus da USP. Estávamos diante de uma
pequena voçoroca entalhada numa colina atrás
de onde está hoje o edifício do Instituto Oceano‑
gráfico. O processo erosivo havia deslocado uma
parcela de solo e material decomposto, expon‑
do uma cavidade com vertentes acentuadas nas
quais era possível distinguir os sulcos abertos
pela água. Era ótimo como aula de Geomorfo‑
logia, para se mostrar aos alunos os processos
de erosão remontante e como se organizavam
os canais durante o escoamento, formando uma
verdadeira hierarquia, além de se poder visuali‑
zar os “divisores de água”, o “nível de base” local
e as áreas de deposição de sedimentos. Foi então
que um aluno, interessado no que estava apren‑
dendo, saiu
‑se com esta pergunta: “professor, foi
o reitor que mandou abrir essa voçoroca para que
os professores de Geografia possam vir dar aulas de
campo aqui?”.
Na fase de professor do Departamento de
Geografia da USP (1964
‑2006) minha tarefa foi,
prioritariamente, ministrar as disciplinas de Cli‑
matologia (fundamentos, sistemática, manuseio
de instrumentos etc.), acentuando que os fatos
climáticos devem concorrer para a compreensão
do meio geográfico como um todo, pois não é
bom que o comportamento atmosférico seja es‑
tudado como um fim em si mesmo, mas como
meio de compreensão das paisagens nele inte‑
gradas.
Em Climatologia, mesmo sem instrumentos,
a saída ao campo era bastante proveitosa. Os
alunos eram treinados, por exemplo, a identi‑
ficar nuvens pelo formato e níveis de altitude
e a fazer uma classificação básica em estratos,
cirros e cúmulos, além de avaliar a cobertura
do céu e a identificar um nevoeiro orográfico
e as diferenças entre vertente a barlavento e a
PRATGEO_2aprova.indb 527 09/12/10 16:55
8. 528 práticas de geografia
Figura 25.6. Veículo com duas placas na fronteira do Brasil com
Uruguai, em 1958.
Figura 25.5. Um pé no Brasil e outro no Paraguai. Professor Conti
(atrás) e um colega na fronteira que atravessa área urbana.
Arquivo
do
autor
Arquivo
do
autor
sotavento. Uma vez, levei
‑os até Paranapiacaba
(SP), especialmente com essa finalidade, mas, ao
chegarmos lá, a neblina era tão intensa que não
se distinguia nada. O fator climático se impunha
muito fortemente sobre os outros componentes
da paisagem, e isso era algo relevante a ser ob‑
servado. A visibilidade não ia além de 3 ou 4 me‑
tros, e os alunos se queixaram de que não viam
coisa alguma do relevo, nem a crista da Serra do
Mar. Eu respondi, com a maior sem cerimônia:
“vocês podem ver tudo com os olhos da fé”.
Naquela época, o material que utilizávamos
era bastante precário, não se comparando com
o de hoje. Não havia termômetros digitais, nem
data
‑loggers para armazenar e processar os dados.
Reduzidas eram as áreas cobertas por levanta‑
mentos aerofotogramétricos. O importante era a
observação direta e a caderneta de campo para as
anotações. O que se pode afirmar de todos esses
anos de experiência é que os atuais instrumentos
são muito úteis às pesquisas, pois aumentam a
velocidade, a precisão etc, como já foi tratado no
Capítulo 1 (A Técnica e a Observação na Pesqui‑
sa). No entanto, o trabalho de campo mantém
‑se
muito atual e essencial na formação do geógrafo,
sendo um momento insubstituível na sua forma‑
ção. O ideal, então, é unir estas duas dimensões
da pesquisa: o campo e a tecnologia.
As aulas de campo com instrumentos, eram
bem mais interessantes. Levávamos máquina fo‑
tográfica, termômetro, psicrômetro, barômetro,
altímetro, bússola e carta sinótica e, nos últimos
anos, GPS, imagens de satélites e de radar, obti‑
das diretamente da internet. Fazíamos as aulas
de campo com a finalidade de exercitar o que se
chama de climatologia de campo.
As aulas de campo de meus últimos anos
de atividade na graduação (2003
‑2006) foram
dadas no percurso São Paulo
‑Santos, de tal for‑
ma que as medidas e observações feitas durante
as paradas permitiam registrar as diferenças de
temperatura, pressão, umidade relativa, direção
do vento etc, nos vários níveis de altitude, en‑
tre o Planalto Paulistano e a Baixada Santista,
mostrando a correlação dos atributos do clima
com as características do estrato geográfico
local, tais como relevo, vegetação, uso do solo,
entre outras. Na área urbana de Santos, subí‑
amos as escadarias do Monte Serrat fazendo
paradas e medidas (também para descansar um
pouco) a fim de entender as características do
tempo que fazia naquele momento, na escala
local, inserindo
‑as na escala sinótica. Na últi‑
ma dessas aulas, em 2006, tive a colaboração
do monitor Gustavo Armani, hoje doutor em
Geografia Física, e Emerson Galvani, um dos
PRATGEO_2aprova.indb 528 09/12/10 16:55
9. 529
capítulo 25 – contos de campo
novos professores de Climatologia. Nessa aula,
no alto do Monte Serrat, ocorreu um “incidente”
com uma professora de História, que merece ser
contado. Foi assim: no encerramento de minha
exposição disse aos alunos que a Geografia era
a mais importante das ciências humanas e acres‑
centei, em tom de amenidade, que a História, ao
contrário, não tinha o mesmo destaque. Cuidava
só do passado, de abstrações e que seus textos,
pelo menos parcialmente, eram fruto da imagi‑
nação de seus autores; um tipo de “fofoca com
metodologia”, que não deveria ser levada muito a
sério, e fui mais longe, num tom lúdico dizendo:
“se vocês encontrarem um trabalho de História bem
feito, na realidade não é História, é Geografia re‑
trospectiva”. O que eu não sabia é que havia uma
professora de História nas imediações, acom‑
panhada de seus alunos. Contestou de forma
veemente, replicando que não estava nem um
pouco de acordo com o que eu acabara de afir‑
mar, deixando
‑me numa situação de “saia justa”.
Defendi
‑me usando um palavrório rebuscado:
“cara professora, trata
‑se de uma interpretação equi‑
vocada de sua parte, pois sempre ensinei que a Geo‑
grafia e História trabalham, respectivamente, com
as categorias de espaço e tempo e, portanto, estão no
mesmo campo epistemológico, sendo indissociáveis”.
Informei, ainda, que no ano do meu ingresso no
curso (1955), o diploma era único, uma herança
do pensamento acadêmico francês, e considera‑
va isso certo, dadas as afinidades entre as duas
ciências. Só não revelei, marotamente, que, no
ano seguinte, uma lei federal separou as duas
licenciaturas e eu passei sem demora para a Geo‑
grafia, é claro, a minha preferida.
Na ocasião dessas aulas de campo, quando a
tarefa estava terminada, eu lhes ensinava o Hino
dos Geógrafos que eu lembrava, de memória, de
minha época de aluno e, alguma parte já esque‑
cida, eu a refiz, de minha autoria.
Encerro este relato reproduzindo os versos do
referido hino (a música é da Canção do Soldado)
que os alunos de Geografia adoram cantar e que
se tornou um traço forte de nossa identidade.
Duvido que o leitor avalie o sabor que têm
para mim esses casos que acabei de narrar. Ain‑
da que os tivesse contado com mais talento, não
conseguiria transmitir o sentimento da saudade
que só o sente quem a tem.
Durante a formação do geógrafo, o trabalho
de campo é absolutamente indispensável para se
entender e interpretar a paisagem. Como costu‑
mo dizer, aquele que não é geógrafo vê a paisa‑
gem com “olhar bovino”, isto é, não apreende o
sentido daquela realidade complexa.
A Geografia está entre os primeiros interesses
do homem culto porque é a mais abrangente e
singular das ciências, a única comprometida, ao
mesmo tempo, com a sociedade e com a nature‑
za, capaz de decodificar cada uma das infinitas
unidades paisagísticas que compõem a superfície
terrestre. Daí decorre sua grande relevância no
universo do conhecimento humano.
Hino dos Geógrafos
Nós somos do vale em V
fiéis geógrafos, não sei por quê.
Nas trilhas da verde mata
Só dá bermuda, falta gravata.
Montanha após montanha
vamos subindo, vales seguindo.
Mas quando surge um terraço,
ninguém mais liga, é só cansaço.
Na sala falamos prá valer,
depois de léguas percorrer,
da grande questão do espaço
que, sem o geógrafo, é um fracasso.
Refrão: relevo hostil/do meu Brasil.
Tem dó de mim/cansado assim.
Geografia é avançada.
É muito estudo, é caminhada.
O clima e o relevo,
no caderninho, eu tudo escrevo
Lugares após lugares
vou pesquisando, terras e mares.
Quem sabe da paisagem
é o geógrafo, não diz bobagem.
Refrão: relevo hostil/do meu Brasil.
Tem dó de mim/cansado assim.
PRATGEO_2aprova.indb 529 09/12/10 16:55
10. 530 práticas de geografia
SOBRE O AUTOR
José Bueno Conti possui graduação em Geogra‑
fia pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Huma‑
nas da Universidade de São Paulo (1958) e doutorado
em Geografia Física pela mesma instituição (1973).
Atualmente é professor titular do Departamento de
Geografia da FFLCH/USP. Tem experiência na área de
Geociências, com ênfase em Geografia Física.
PRATGEO_2aprova.indb 530 09/12/10 16:55