Este documento discute as visões sobre aborto na Bíblia, nos primeiros séculos do cristianismo e nas autoridades da Igreja Católica. Apresenta debates entre mulheres sobre o que a Bíblia diz sobre limitar a natalidade e sobre aborto, mostrando que a Bíblia não fornece respostas diretas. Também mostra que, no início do cristianismo, o aborto era comum e havia diferentes visões sobre ele entre os padres, focando-se mais no adultério do que na vida do feto.
2. Cartilha de Católicas pelo Direito de Decidir -
Introdução
A realidade do aborto é tão evidente e tão intrigante que não há como fugir do debate
sobre o mesmo. No Congresso Nacional tramita um projeto de lei sobre o aborto, que propõe
a regulamentação de uma lei que já existia há mais de 50 anos. Os Meios de Comunicação
Social deram muito destaque ao tema e milhares de brasileiros e brasileiras tiveram a
oportunidade de se pronunciar a respeito do assunto, ficando manifesta a opinião favorável a
essa regulamentação para uma grande parte da população.
Por outro lado, a hierarquia da igreja católica, principalmente na figura do Papa João
Paulo II, vem condenando a posição favorável a qualquer tipo de aborto. No Brasil, a igreja
católica fez e continua fazendo pressão no Congresso Nacional para impedir a aprovação da lei
que regulamenta o aborto.
No meio de todo esse fogo cruzado encontram-se as mulheres católicas de todas as
classes sociais, mas principalmente das camadas mais humildes da população, enfrentando
diariamente a realidade do aborto. Muitas delas já o praticaram, e outras se vêem frente a
situações em que só a interrupção da gravidez aparece como saída para seus problemas de
realização pessoal, de dificuldade financeira, de falta de condições psicológicas para enfrentar
uma gravidez indesejada.
Pensando em tudo isso, estamos lançando esta cartilha como subisídio para as
mulheres cristãs que desejam olhar de frente para a problemática do aborto e formar uma
opinião própria a respeito do mesmo. Nela, as mulheres terão oportunidade de se defrontar
com o que a Bíblia, os/as teólogos/teólogas e as autoridades da igreja católica dizem a
respeito do aborto, ao longo de uma história de dois mil anos. Com essas colocações, mais
a experiência das mulheres que lêem e debatem o tema, e ainda, a realidade que vivem e a
consciência ética (moral) de cada uma, estarão em condições de opinar e ter uma posição
responsável a respeito dessa difícil questão.
Os temas poderão ser tratados um de cada vez, ou até mesmo um só tema em duas
ou mais vezes, de acordo com a necessidade das leitoras ou do gruppo. Cada tema está
composto por três partes: na primeira, trata-se de colocar diversos ângulos da realidade do
aborto, para debater preconceitos e posições diversas a respeito do mesmo. A segunda visa
proporcionar uma maior informação sobre o pensamento da Igreja. Já na terceira, apresenta-
se a personagem Débora, baseada numa mulher real, de algum lugar deste país. Ao longo de
toda a cartilha, vamos perceber como acontece a mudança de idéias e opiniões e da própria
consciência ética das pessoas que têm a oportunidade de estudar e debater os temas que lhe
dizem respeito.
ÍNDICE
1. A Bíblia e o aborto …........................................................................................ 5
2. A questão do aborto no início do cristianismo …............................................. 11
3. O aborto e as autoridades da Igreja …............................................................ 15
4. Teólogos/teólogas e o aborto …...................................................................... 19
5. A realidade do aborto …................................................................................... 23
6. A defesa da vida …........................................................................................... 27
7. A escolha do melhor caminho …....................................................................... 31
8. A decisão de Rita ….......................................................................................... 37
Bibliografia …........................................................................................................ 39
3. 1 - A BÍBLIA E O ABORTO
A Bíblia não fala sobre aborto! Ela nos proporciona critérios para orientar nosso
comportamento!
Casos da vida real
Um grupo de mulheres que se reúne para fazer remédios caseiros acaba conversando
sobre um tema polêmico:
Dona Josefa: “Como tem mulheres fazendo aborto! E um crime tão grande, é o maior
pecado que a gente pode coometer: tirar uma vida! Mas também tem um monte de mulheres
esterelizando-se, outras, evitando! é uma loucura! parece que as mulheres esqueceram do que
Deus fala pra gente na Bíblia!”
Dona Chica: “Eu acho que evitar filho não é pecado, ou não seria um pecado tão grave!
tão grave como abortar. Porque muitas pessoas, que dizem assim: Lá na Bíblia está escrito:
Crescei e multiplicai-vos, mas assim na Palavra de Deus, não é crescei tendo filho a cada ano,
cada ano... como na carreira que eu ia e muitas iam; porque colocando a Palavra de Deus
dessa maneira, a mulher vai se encher de filho. E como a mulher vai criar esse monte de filho,
muitas vezes até sozinha? Porque tem marido que não presta! Então, evitar filho, é uma
maneira melhor para a vida da gente, tudo ajudado por Deus, porque Ele tem a sabedoria e
então não é pra gente ficar de braços cruzados... mas sim como Ele nos disse na Bíblia: Faça
tua parte que eu te ajudarei. Por isso eu acho que evitar filho não é um pecado assim tão
grave, mas, se for pecado... Deus vai perdoar, porque Ele tá vendo, Ele conhece melhor a
nossa situação financeira aqui na terra.”
Dona Maria: “Se Deus disse pra gente Crescei e multiplicai-vos, é porque Deus nos dá
a missão de ter os filhos... para mim tudo é pecado sim... eu sou contra isso! nunca tomei
remédio, nem nunca fiz um aborto!”
Dona Sebastiana: “Eu acho que evitar filho não é pecado, pecado é tomar remédio para
fazer o aborto, porque aí a gente está fazendo o contrário do que Deus mandou: Crescei e
multiplicai-vos. É tirar a vida que Deus está dando para nós criar; é um pecado que Deus não
perdoa!”
Dona Rosa: “Quando Deus disse na Bíblia Faça tua parte que eu te ajudarei eu acredito
que seja para evitar fiho, não para abortar, porque isto sim é um grande pecado, é um crime!”
Dona Teresa: “Hoje em dia a gente vê que tem várias mulheres que precisam fazer
aborto, não encontram outra saída e aí, ponha-se no lugar delas... quantas de nós já tomamos
chá pra fazer vir a menstruação? Isso também é aborto! Mesmo que Deus nos fale na Bíblia
para ter fihos, Ele sabe o que a gente passa! Não sei não, mas será que Deus não vai perdoar
a gente?...”
Você sabia que...?
As mulheres que falaram sobre aborto e limitação de filhos citaram a Bíblia como
argumento. As que defendiam a não limitação dos nascimentos usaram o argumento do livro
do Gênesis: Crescei e multiplicai-vos. As que defendiam a possibilidade das mulheres limitarem
o número de filhos, citavam outra frase que elas diziam ser da Bíblia: Faça tua parte que eu te
ajudarei.
Será que essas afirmações da Bíblia são argumentos suficientes para sustentar a
4. decisão das mulheres sobre quantos filhos ter? Será que a Bíblia fala claramente sobre este
assunto? Será que podemos buscar na Bíblia respostas prontas sobre qualquer assunto?
Em primeiro lugar, não encontramos na Bíblia uma só palavra a respeito de praticar ou
não a limitação da natalidade, embora houvesse sempre um incentivo a ter filhos como modo
de garantir o futuro da descendência e do povo de Deus. Também não encontramos leis sobre
o aborto, nem a favor, nem contra sua legalização. O livro do Levítico que traz as leis de
convivência do povo de Israel, fala com detalhes sobre menstruação, fluxo seminal, relações
sexuais, infidelidade matrimonial, (seria bom ler os capítulos 15,18 e 20), mas não toca no
tema da limitação da natalidade. Sobre o aborto, os livros sapienciais falam alguma vez, mas
só em comparações. Vejam, por exemplo, o livro do Eclesiastes 6,3-5: Se alguém gerar cem
filhos e viver muitos anos até avançada idade e se sua alma não se fartar do bem, e além
disso, não tiver sepultura, divo que um aborto é mais feliz do que ele, pois debalde vem o
aborto e em trevas se vai, e de trevas se cobre seu nome; não viu o sol, nada conhece.
Todavia, tem mais descanso do que o outro.
E daí, será que podemos busca na Bíblia respostas prontas para problemas
relacionados à natalidade hoje? Por que será que o povo de Deus daquele tempo não tratava
desse tema ou não se interessou em registrar na Palavra de Deus o pensava a respeito?
A Bíblia não é um livro de perguntas e respostas, ou de receitas para cada situação
da nossa vida. Neste ponto têm razão as mulheres que disseram: Faça tua parte que eu te
ajudarei, ou seja, Deus não dá respostas prontas. Ele dá indicações, critérios para a gente
orientar o próprio comportamento.
Portanto, é preciso usar a inteligência e todas as capacidades humanas para entender o
que Deus quer em cada época e em cada situação que enfrentamos.
A Bíblia não fala de aborto, mas fala da Vida, da vida em abundância, da Lei favorável
aos homens e às mulheres. A Bíblia fala da misericórdia como mais importante que o
sacrifício; do perdão mais do que a culpa. É daí que devemos tirar critérios para orientar nosso
comportamento em relação à vida...
Jesus disse: Vim para que tenham vida e vida em abundância. O que significa “ter vida
em abundância”? Quantas crianças vêm ao mundo só para sofrer e fazer outros sofrerem! Será
que Deus quer isso?
O que nos quis dizer Deus ao afirmar: Prefiro misericórdia e não o sacrifício?
Dialogando com Débora
- Fala, Débora!
- Quando eu arranjei marido eu era nova, tinha 14 anos, eu era toda abestada, eu não
sabia nem como evitava. Eu tive o primeiro filho, aí quis evitar, tomei injeção e baixou minha
pressão, aí eu engravidei logo do segundo... Aí eu tomava chá, tomava chá, a minha
menstruação não chegou, tive que me conformar a ter esse filho, mas com seis meses abortei.
Eu achava que era o chá que eu tinha tomado para abortar. Desde então eu estou com um
trauma na cabeça, mas eu sinto no meu coração que Deus me perdoou, mesmo que esteja
escrito na Bíblia que é pecado, eu acredito que Deus sim sabe perdoar!
No Brasil são feitos inúmeros abortos a cada dia... Assim como nesse caso, os motivos
pelos quais as mulheres fazem aborto é porque não acharam outra solução. Nenhuma mulher
faz aborto por prazer; o faz porque não acha outra saída para a situação pela qual está
passando... podem ser motivos econômicos, ou porque corre risco de vida, por sua situação de
5. trabalho, por pressão familiar... São muitas as razões! … O que elas tem em comum é a
tristeza e a culpa de ter pecado... a incerteza sobre o perdão de Deus...
Se elas conhcecessem a Bíblia, ou as interpretações da Bíblia, veriam que Deus se
preocupa pela vida delas. A vida das mulheres que passaram por esta situação não teria outra
cor?
Vamos conhecer o que dizem a Igreja e os padres da igreja sobre o aborto.
2 - A QUESTÃO DO ABORTO NO INÍCIO DO CRISTIANISMO
Será que a igreja sempre considerou o aborto como um pecado grave?
Casos da vida real
Estamos numa região do norte do Brasil, fazendo entrevistas com as mulheres que
acabam de participar da missa de domingo.
A Igreja diz que é pecado interromper uma gravidez?
- Eu escutei o padre falar que é pecado o aborto; uma criança é essencial assim como
qualquer outra pessoa, e que a mulher não deve tomar remédio para matar a criança; a mulher
tem que ter muito filho; Deus dá um jeito!
- A Igreja condena o aborto, é um crime, é um homicídio horrendo, é matar um inocente;
isso Deus não aceita.
- A Igreja fala que a mulher não deve evitar filhos; é contra Deus. Só que eu acho
importante evitar, melhor do que colocar um monte de filho no mundo, do jeito que está a vida,
tudo caro! Mas quanto o padre fala que não é para abortar, tá certo porque é matar um
inocente!...
- A Igreja é contra o aborto; ela também é contra mulher se operar, tomar remédio. Teve
uma missa agora em outubro, e o padre colocou aquela doença, a AIDS; se nós tivéssemos
obedecido os mandatos da Igreja, não teria ocorrido tanta doença; agora, o povo está fazendo
sexo adoidado.
- Os padres falam que é para ter os filhos que Deus quer, porque do jeito que tem, Deus
dá. Só que às vezes não entendo porque Deus dá tantos filhos para uma mulher pobre que
nem nós e só um ou dois para mulher rica.
Muitos padres e bispos dizem que a Igreja sempre considerou o aborto como um crime,
como um homicídio. Será que foi mesmo assim, desde o início da Igreja? Quando foi que os
padres de igreja acharam que era pecado evitar filhos e que o aborto é homicídio em todos os
casos? Vamos conhecer essa história.
Você sabia que...?
Segundo os historiadores, no começo do cristianismo, no Império Romano eram
praticaods com frequência o aborto, a anticoncepção e o infanticídio. Também contam que as
mulheres usavam muitos métodos para evitar filhos, como: o coito interrompido e certas
medicinas que impediam a concepção ou provocavam o aborto.
Frente a esta problemática da vida reprodutiva dos homens e das mulheres que viviam
no Império, muitos padres da igreja e teólogos tomaram posições diversas. Foi assim que, ao
longo de vários séculos, a discussão sobre a concepção e a anticoncepção se centrou em dois
6. temas:
Primeiro: qual seria o castigo para os casos em que se usava o aborto para ocultar a
fornicação e o adultério? Nesse caso, a maior preocupação era castigar o adultério.
Segundo: Em que momento o feto recebe a alma racional? Eles se perguntavam: O feto
tem uma alma racional a partir do momento da concepção ou se transforma em um ser
humano com alma, durante seu desenvolvimento?
Não havia uma opinião única entre os teólogos: Tertuliano, por exemplo, opinava que o
aborto era homicídio em qualquer momento e afirmava em seus documentos: A nós é proibido
o assassinato sob qualquer forma, nem sequer nos é permitido destruir o feto no ventre
materno, enquanto o sangue circule para formar um ser humano.
A posição de Santo Agostinho já era outra. Vejamos o que ele escreveu:
A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não
discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um
homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva num corpo que carece de
sensação, uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos.
Ao longo de muitos séculos de história cristã, continuaram as discussões e divergências
dos teólogos e dos bispos, tanto sobre o castigo para quem realizava um aborto para esconder
o pecado sexual, como as opiniões sobre se o aborto é homicídio ou não.
Dialogando com Débora
-- Mas eu pensava que tudo o que dizem os padres da Igreja era igualzinho desde sempre,
porque todos os padres dizem que o aborto é crime e a minha mãe sempre me ensinou isso...
Juro que nunca passou pela minha cabeça que o pensamento da Igreja muda com o tempo e
que nem todas as autoridades da Igreja pensam igual... Puxa vida! se as mulheres que fizeram
aborto conhecessem essa história, certamente estariam mais aliviadas... é difícil pensar... mas
acho que existe sim, diferença por exemplo entre a vida de um embrião, que é uma bolinha
de carne e a vida de um bebê de 6 meses... Gostaria de saber os diversos pensamentos dos
padres da igreja; de repente minha cabeça vai clarear e me ajuda a superar o trauma que eu
tenho...
3 - O ABORTO E AS AUTORIDADES DA IGREJA
Condenar os outros é muito fácil! Procurar compreender a situação dos outros e respeitar suas
decisões é mais difícil, mas é mais humano e mais cristão.
Casos da vida real
Uma catequista do bairro de Vista Alegre é encarregada das visitas aos doentes. Ela
foi avisada que dona Margarida estava passando muito mal e foi visitá-la. Chegando na casa,
o senhor João estava à porta esperando que chegasse um carro para levar sua esposa ao
hospital mais próximo. Ele estava com uma cara bastante aflita:
-Bom dia. Entre, que minha mulher quer muito lhe falar.
Dona Margarida se alegrou muito ao ver chegar a catequista: “Ah, minha querida, que
bom que você chegou! Precisava mesmo lhe falar... o médico disse que, se os exames fossem
positivos, tinha mesmo que tirar a criança pois não tem condições de salvar minha vida...” .
Margarida não conseguiu nem falar direito, pois explodiu num ataque de choro! “Você sabe que
eu não faria isso, mas pensei nos meus filhos; como vai fazer João para trabalhar e cuidar das
cinco crianças, todos pequenininhos? Porque Alice, que é a mais velha, só tem sete anos! Meu
7. Deus, o que vou fazer? Me ajuda, pelo amor de Deus, o que é que eu posso fazer?”
- Ah, dona Margarida, a senhora sabe que fazer isso é pecado, Deus não vai perdoar a
senhora. Matar uma criança inocente que não pode se defender é um crime dos maiores! Se
você não maltrata a Alice que tem sete anos, porque vai matar um inocente que não pode se
defender? Isto é claro para nós católicas, que seguimos os ensinamentos da nossa Igreja. Nós
temos que defender a vida, a vida é sagrada!
Você sabia que... ?
O que a catequista falou para dona Margarida é a posição que a maioria dos padres
ensinam atualmente para as catequistas e para o povo em geral. Mas até hoje existem
divergências no seio da Igreja sobre este assunto.
Ao longo da Idade Média, até metade do século passado (1869), como não havia
certeza a respeito do início da alma no feto, não havia uma condenação de todo tipo de
interrupção da gravidez. Só era considerado pecado muito grave a interrupção da gravidez
para esconder o adultério da mulher.
Santo Tomás, grande teólogo do século XIII, afirmava o seguinte: A união do corpo e da
alma acontece quarenta dias depois da concepção para os homens e oitenta dias depois, para
as mulheres. Portanto o aborto não era considerado homicídio, enquanto o feto não estivesse
unido à alma e não se desenvolvesse um ser humano pleno.
Mesmo sendo aceita esta posição por muitos padres da Igreja, o debate continuou e
surgiram as dúvidas nos casos em que a mãe corre risco de vida, o que se chama de aborto
terapêutico. Os médicos queria ter certeza de que não cometiam um homicídio quando tiravam
o feto para salvar a vida de uma mulher. Assim por exemplo, o Papa Gregório XIII, no século
19 escreveu: Quando o médico acredita que, possivelmente, o feto não foi animado, ele não
provoca a morte de um ser humano. Portanto, o aborto terapêutico antes do feto completar
quarenta dias era permitido.
Dialogando com Débora
- Bem, agora, sim, que minha cabeça embananou de vez! Eu não entendo isso dos
teólogos, do Papa, dos bispos. Afinal de contas, quem é que pode falar sobre a interrupção da
gravidez, sobre os castigos de quem faz ou não faz...?!
- O que a igreja católica ensina sobre o aborto não se limita ao Papa e aos bispos. Eles
formam o Magistério da Igreja, que é a instância que define a doutrina oficial. Porém, o
pensamento dos teólogos, teólogas e dos fiéis da igreja também são importantes para saber o
que Deus quer de nós. Por isso que o Magistério, para elaborar a doutrina, deve levar em conta
a realidade da vida e os diversos pensamentos de seus e suas fiéis.
Agora, uma coisa complicada é que o Papa e uma grande parte dos bispos defendem
que a interrupção da gravidez é moralmente inaceitável por acreditarem que, desde o momento
da união do esperma e do óvulo, já existe uma pessoa humana em desenvolvimento. Para
muitos cientistas isso não é evidente! Passam-se algumas semanas até que o embrião se torne
feto e tenha sinais de um ser diferente da mãe que o carrega e sustenta...
Todas essas dúvidas, discussões, posições diferentes trazem complicações para a
compreensão da situação das mulheres que decidem interromper a sua gravidez.
- Isto está muito complicado... não vai dar para entender!
- Débora, o importante é continuar estudando um pouco mais sobre o que dizem
8. teólogos, teólogas e especialistas sobre este assunto... assim as mulheres podem ter mais
informação no momento em que elas precisam tomar a decisão de interromper ou não uma
gravidez, você não acha?
4 - TEÓLOGOS/TEÓLOGAS E O ABORTO
Acima das leis está a consciência e o bem-estar da mãe, do casal e/ou da família!
Casos da vida real
ABORTO NÃO É PECADO!
A religiosa Ivone Gebara afirma que o aborto não é pecado, e que o Evangelho não
trata deste assunto. (Veja, 06/10/93)
ABORTO É CONTRA A VIDA
Dom Serafim, arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, afirma que ninguém tem
direito de tirar uma vida. Isto é um crime! (Jornal da Casa, Belo Horizonte, 06/09/97)
EM DEFESA DAS MULHERES
Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, afirma: Uma pessoa estuprada
deveria recorrer ao médico imediatamente, porque aí ela evita sofrimentos interiores, tanto dela
como de uma criança que poderia nascer. (Folha de São Paulo, 22/12/95)
CNBB DEFENDE DESOBEDIÊNCIA À LEI DO ABORTO LEGAL
Dom Damasceno, secretário geral da CNBB, defende a desobediência à lei que obriga
os hospitais da rede pública a atender casos de aborto legal. Ninguém pode ser obrigado a
matar um inocente! (Folha de São Paulo, 24/08/97)
Que dizem as manchetes acima? Que impressões nos transmitem?
Falemos, então, do que os Papas, os teólogos e teólogas deste século dizem sobre o
aborto...
Você sabia que...?
Desde Pio IX, no século XIX, até João Paulo II, existe uma norma oficial da igreja
segundo a qual o aborto praticado, sob qualquer circunstância, tem como castigo a
excomunhão.
De fato, a posição atual do Vaticano é de que a vida deve ser preservada desde o
instante da concepção, deixando de lado as diferentes teorias e discussões sobre o começo da
vida humana. Para o Vaticano, o principal é a proteção da vida do embrião e do feto.
Mas, ao longo deste século, teólogos, teólogas e até mesmo membros da hierarquia
continuaram refletindo e pensando sobre a problemática do aborto. Porque, mesmo havendo
essa posição oficial da Igreja Católica, a interrupção da gravidez é uma realidade do dia-a-dia
9. das mulheres e traz inúmeros problemas para suas vidas, principalmente a morte de muitas
delas.
Teólogos católicos admitem, neste momento, que nem eles, nem os cientistas, sabem
exatamente quando um embrião se converte em ser humano... Então, se nem a Igreja, nem a
ciência esclareceram totalmente este ponto, o problema recai sobre a consciência individual.
O que significa orientar-nos pela própria conciência, quando temos que tomar uma
decisão difícil? Vamos tomar um exemplo recente da igreja católica.
Um teólogo latinoamericano lembra que, após o Concílio Vaticano II, discutiu-se muito
sobre a “Humanae Vitae” - encíclica de Paulo VI que condena todos os métodos
anticoncepcionais, excetuando a chamada “via natural”. Nessa época houve grande
diversidade de opiniões. Prevaleceu então, o ensinamento tradicional da Igreja, segundo o qual
o critério último de decisão no campo da moral é o da consciência individual. A partir do texto
conciliar sabemos que o ser humano não será julgado por Deus em razão do seguimento de
leis ou normas de qualquer índole, mas em razão do seguimento de sua consciência.
Há um outro texto do Concílio Vaticano II que diz: O primeiro bem que a pessoa tem
a obrigação moral de buscar é o próprio bem, o bem pessoal. Este teólogo explica que, no
campo da procriação, atender ao bem pessoal significa que o casal não deve procriar, se isto
prejudica de forma significativa o bem de um dos cônjuges ou dos dois.
Temos também o pensamento da teóloga Ivone Gebara que afirma: Acho que a mãe
tem algum direito sobre a vida que carrega no útero. O feto não pode sobreviver sem ela; é
lícito considerar que o feto não tem própria vontade. Se a mãe não tem condições psicológicas
de enfrentar a gravidez, tem o direito de interrompê-la.
Dialogando com Débora
- Espera um pouquinho, quero ir mais devagar. Como não vou obedecer à palavra de
Deus, dita pelo Santo Padre, se ele é infalível?!
- Nem todas as declarações e escritos do Papa são infalíveis. Para que uma declaração
do Papa seja infalível e se converta no que se chama “artigo de fé”, é indispensável que o
Papa pronuncie “Ex cathedra”, ou seja, como declaração oficial do Magistério da Igreja. Para
que essa declaração oficial aconteça, é necessário que todos os membros do Magistério da
Igreja estudem e debatam o tema da declaração por muito tempo e cheguem a um consenso
sobre o assunto. Por isso é que uma declaração “Ex cathedra” acontece muito raramente.
- Como fica então a doutrina da Igreja sobre o aborto?
- Fica com diversas opiniões. Alguns afirmam que é pecado e outros dizem que não é.
- Então, como uma católica pode decidir interromper uma gravidez?
- Quando homens e mulheres se deparam com a necessidade de interromper uma
gravidez, cabe a eles, segundo sua consciência, aplicar os ensinamentos teológicos que os
orientam nessa decisão. Portanto, segundo os princípios do Concílio Vaticano II, eles têm a
obrigação moral de buscar o próprio bem, o bem pessoal, sabendo que Deus vai julgá-los em
razão do seguimento da sua consciência.
- Mas isto muda tudo o que eu tinha aprendido sobre evitar filho, sobre o aborto... E eu
que sou catequista, como não conhecia essas outras idéias sobre algo tão importante?!
- Débora, não podemos esquecer que um direito que temos todos os batizados e
batizadas é aquele direito pelo qual podemos discutir e até mesmo discordar dos ensinamentos
da Igreja que não são propostos como dogmas. Este direito está consagrado na Tradição da
Igreja.
10. 5 - A REALIDADE DO ABORTO
O aborto ilegal e clandestino causa inúmeras mortes de mulheres e muitos males para toda a
sociedade. Não se poderia mudar essa situação?!
Casos da vida real
Conhecemos alguma amiga, colega, vizinha, parente, que já fez aborto? No campo e na
cidade existem clínicas, farmácias e outros lugares onde se pratica o aborto? Conhecem
farmácias onde se vendem remédios para abortar? Alguns remédios naturais e chás servem
para abortar? Sabemos quantas mulheres interrompem a gravidez em nosso bairro? No Brasil
todo?
Pois bem, a realidade do aborto é uma realidade cotidiana, convivemos com ela e com
as consequências da mesma para a vida das mulheres e das famílias.
Realizam-se no Brasil, aproximadamente, 1 milhão e meio de abortos por ano!
Ao nível mundial, cerca de 150 mil mulheres morrem anualmente por prática de aborto
clandestino, incompleto. No Brasil, a média de mortes maternas é de 156 mulheres para cada
100 mil nascimentos. Em torno de 12,4 % das mortes maternas são decorrentes de abortos
mal feitos. Isto significa que a terceira causa da mortalidade materna é o aborto clandestino,
Calcula-se que, em nosso país, 300 mil mulheres são internadas anualmente com
complicações por abortos mal feitos; cerca de 60% dos leitos de ginecologia são ocupados por
mulheres com sequelas de aborto.
Frente a esta realidade de morte e sofrimento, surge sempre uma pergunta:
Por que as mulheres abortam?
Eis o que elas mesmas respondem:
● Porque o dinheiro não dá
● Porque tenho muitos filhos
● Porque eu perderia o emprego
● Porque dá medo assumir sozinha uma criança
● Porque meu corpo foi usado por um macho, sem amor
● Porque fui estuprada
● Porque corro risco de vida
● Porque o feto tem má-formação
● Porque falharam os anticoncepcionais
● Porque teria de abandonar meus estudos
● Porque teria de abandonar minha casa
● Pela pressão do preconceito da sociedade por eu ser mãe solteira
● Porque… Porque… Porque...
11. Em que condições as mulheres abortam?
● Na clandestinidade
● Julgadas pela lei
● Acusadas pela igreja
● Ignoradas pela saúde pública
● Rejeitadas pela família
● Esquecidas pelos maridos e/ou companheiros
● Na solidão!
Você sabia que... ?
Quando se fala da vida, do valor da vida, da dignidade da vida, não se pode esquecer
que esta só acontece num contexto humano, no contexto da história humana, onde se dá a
convivência dos seres humanos. Esta convivência humana ocorre muitas vezes em situações
conflitivas e até dramáticas, geradas por pobreza, ignorância, opressão social, violência...
As razões pelas quais as mulheres decidem interromper uma gravidez não são mero
egoísmo ou por conveniência social. Geralmente se trata de mulheres pobres, que objetiva e
subjetivamente não tem condições de assumir um filho naquele momento.
Os métodos anticoncepcionais não são acessíveis a todas as mulheres, seja por
questão econômica, seja porque não se conta com bom atendimento de saúde pública, seja
por falta de educação sexual, por motivos religiosos ou por questões culturais. A “família ideal”,
com boas condições econômicas, sociais, psicológicas e afetivas, está longe do nosso
cotidiano. A realidade mostra que no Brasil, 25 % das famílias é mantida por mulheres, ou
seja, há muitas mulheres sozinhas, sem companheiro e com os filhos para criar. Este é o nosso
cotidiano, isso é o que vemos nas periferias das grandes cidades e nos lugares pobres do meio
rural.
Frei Betto, religioso da Ordem Dominicana, afirma: E a defesa do sagrado dom da vida
que levanta a pergunta se é lícito manter o aborto à margem da lei, pondo em risco também a
vida de inúmeras mulheres pobres que, na falta de recursos, tentam provocá-lo com chás,
venenos, agulhas ou a ajuda de curiosas, em precárias condições higiências e terapêuticas. É
possível que uma legislação em favor da vida faça este problema humano emergir das
sombras, para ser adequadamente tratado à luz do Direito, da Moral e da responsabilidade
social do poder público...
A Irmã Ivone Gebara, teóloga, afirma: A moral católica não atinge as mulheres ricas.
Elas fazem aborto e tem os meios econômicos que garantem uma cirurgia em condições
humanas. Portanto, a lei que a Igreja defende prejudica as mulheres pobres.
Dialogando com Débora
- Por tudo o que temos conversado, uma mulher que se vê em situação de extrema
pobreza, ou que tem muitos filhos, pode interromper uma gravidez sem cometer pecado?
12. - Pode sim. Se ela, segundo sua consciência, vê que interromper a gravidez vai trazer
um bem para ela e até para sua família, ela não comete pecado. Isto porque ela está agindo
moralmente ao seguir um princípio ético ensinado pela própria Igreja, ou seja, o princípio da
busca do bem pessoal e de guiar-se pela sua conciência.
- Se for assim, muitas mulheres vão abortar!
- Não! As mulheres abortam quanto são obrigadas pelas circunstâncias, quando o
aborto aparece para elas como a única saída, como a solução para a situação limite em que
se encontram. Para muitas mulheres, interromper uma gravidez significa ter condições de mais
vida, de vida com mais qualidade.
- Como é isso de que interromper uma gravidez significar ter mais vida?
- Quando estamos falando da vida, não é de uma vida abstrata. Trata-se da vida
concreta das mulheres que se encontram em condições muito difíceis e que, por isso, decidem
abortar. Por exemplo, uma mulher que fica grávida e já tem cinco filhos, passando fome e o
marido desempregado... como criar outro filho? Ela não tem nem cabeça para lidar com os
filhos e a casa. Ela decide interromper a gravidez, o que não é fácil!... Mas depois ela fica com
mais condições para tocar sua vida para frente!
- Isso da vida é bem complexo, não é?
- É. Precisamos aprofundar isso da defesa da vida!
6 - DEFESA DA VIDA
Defender a vida, sim! Mas de todos: da mãe, dos familiares e não só do feto!
Casos da vida real
Num município do interior do país está sendo julgada Zezinha, branca, 20 anos, solteira,
do lar, acusada de ter praticado um aborto. Este julgamento provocou muita confusão na
comunidade de Zezinha. Foram convidados para discutir o assunto: o vigário, as irmãs e os
casias mais amigos de Zezinha.
Irmã Consolata: Bem, estamos reunidos porque amanhã é o julgamento da Zezinha e
alguns de nós vamos ser chamados a depor... Todos conhecemos a Zezinha, sabemos que ela
é uma boa mulher, trabalhadora, lutadora, que colabora na comunidade... mas o que ela fez foi
terrível!
Terezinha: Para mim, não tenho dúvida! A Zezinha não tinha mesmo condição de criar
esse filho... todos conhecemos as condições dela... Fazendo o que fez, ela foi responsável com
a vida dela e da criança.
13. O vigário: Zezinha cometeu um crime. Ela não tinha direito sobre a vida da criança. Nós
não somos donos da vida humana. Deus é o Senhor da vida!
Irmã Elenice: Mas a vida da Zezinha como é que ia ficar? A vida dela também é
sagrada, ela defendeu a vida dela... Talvez ia estragar duas vidas, se não interrompesse a
gravidez.
O vigário: É mesmo, irmã, é difícil... a posição da Igreja é assim... às vezes a gente não
sabe como agir, principalmente quando se conhece a realidade.
Pedro: A Zezinha poderia ter tido a criança e depois dado para alguém!
Adelaide: Não se iluda, Pedro! Nenhum de nós aqui ia ter condições de criar, educar,
formar a criança! Além do mais, é intolerável pedir a uma mulher que entregue o filho depois de
carregá-lo por 9 meses no seu ventre, como se dar o filho fosse algo fácil! Por acaso ela é um
animal? Imaginem como se sentem as mulheres!
O vigário: O direito à vida é inalienável, ninguém pode tocar! Ela tirou a vida de um
inocente... Mas ao mesmo tempo, como isto fica complicado, pois vejo que a vida da Zezinha
também tem de ser preservada.
Terezinha: Eu estou preocupada sim, mas é com a Zezinha: todo o sofrimento que ela
passou e ainda vai ser julgada!...
Adelaide: Mas o pior é que ela estava passando muito mal: ela tomou cytotec de
montão e o sangramento dela não tinha passado quando foi levada pela polícia...
E a discussão continuou sem chegar a um consenso...
Você sabia que...?
Quando se fala da defesa da vida, todo mundo a defende... pois defender a vida é
indispensável, importante, fundamental. Agora... falando claro, de que tipo de vida estamos
falando? Uma vida boa? Uma vida sofrida? Da vida de quem estamos falando? Da vida
humana em geral? Da vida de uma mulher? Da vida da Margarida? Da Zezinha, da Joana, da
Isabel?
A vida humana merece respeito profundo, é intocável precisamente porque é sagrada,
ou seja, porque pertence a Deus. É verdade que a vida vem de Deus, mas somos nós que a
vivemos e que cuidamos dela. E esta nossa vida não acontece nas nuvens ou em outro
mundo: ela faz parte da história da humanidade e tem a ver com a vida de todos. Às vezes,
para defendê-la é preciso decidir. Por isso é que até mesmo a Igreja, consciente dessa
realidade, relativiza o princípio absoluto da defesa da vida e aceita a eliminação da vida no que
ela chama de “guerra justa”; na pena de morte (em alguns casos), na legítima defesa e na
entrega da vida em nome da fé, como é o caso dos mártires. Nós podemos até discordar dessa
aceitação da guerra e da pena de morte, mas essa posição da Igreja mostra que ela aceita que
se tire a vida, em certos casos. Apenas no caso do aborto ela não admite nenhuma exceção. A
Igreja não fala em “aborto justo”.
Quando se diz que Deus é dono de nossa vida, não significa que nós somos uns robôs
dirigidos por Ele com controle remoto. Ele nos fez à sua imagem e semelhança, isto é, nos fez
criativos, inteligentes, cheios de potencialidades para desenvolver, com uma razão para
14. raciocinar, com responsabilidade para escolher o que é mais conveniente em cada situação da
nossa vida. Para isso nos deu uma consciência que nos ajuda nas escolhas da vida. Isto vale
para todas as situações humanas, também para quando se trata da supressão, ou não, de uma
vida humana.
Muita gente, e também a Igreja, diz que só Deus pode tirar a vida de alguém; mas
teólogas afirmam que a mãe tem algum direito sobre a vida que carrega no útero. O embrião
não pode sobreviver sem ela, este não tem vontade própria. Se a mãe não tem condições
físicas, econômicas, psicológicas de enfrentar a gravidez, ela tem o direito de interrompê-la.
Dialogando com Débora
- Cada vez mais estou percebendo que o problema do aborto é muito sério e que, por
medo de falar sobre ele, estamos sendo injustas até com Deus, pois o colocamos como um
Senhor Todo Poderoso, dono de tudo, com muito poder, sem nada de amor, sem nada de
justiça, sem nada de misericórdia... E eu me lembro que Ele falou da vida, mas da vida em
abundância!
- Realmente é um assunto bem complicado, de muita dor, de muito conflito, de muitas
dúvidas.
- E certo... eu ainda tenho dúvidas... o que Pedro diz de ter a criança e entregar para
outros cuidarem, poderia ser uma saída...
- Isso é muito problemático. Existem dados que cerca de 300 mil crianças estão órfãs
hoje no Brasil, em virtude da morte das mulheres por aborto clandestino... E quantas crianças
estão hoje na rua?! Onde ficaria o direito da criança de ser aceita, ser recebida com amor e
carinho e ter as condições para se tornar uma pessoa humana? Agora, a afirmação da
Adelaide nos faz lembrar o respeito para com a vida das mulheres, com seus sentimentos, sua
afetividade, sua história pessoal. Onde ficaria a dignidade humana das mulheres? É inaceitável
pedir-lhes para parir o filho e dá-lo depois, como se fossem reprodutoras de seres humanos e
não elas mesmas, humanas, com dignidade própria.
- Agora, uma coisa sim tenho muito claro: a vida da mulher é sagrada, é importante... É
por isso que me pergunto: o que estará passando pela cabeça e pelo coração da Zezinha?
- É, Débora, muitas vezes as mulheres tomam a decisão de interromper uma gravidez
porque é a única saída que tem; e mesmo tendo esse direito, passam o resto da sua vida
sofrendo, considerando-se pecadoras... sendo condenadas e até ficam doentes e sofrem
traumas.
7 - A ESCOLHA DO MELHOR CAMINHO
Nas encruzilhadas da vida, é preciso decidir sempre pela que consideramos ser o melhor
caminho!
Casos da vida real
15. Joana, 38 anos, mãe de dois filhos, foi estuprada no paque Aliança, em Ribeirão Pires, estado
de São Paulo. Ela conta:
“Era uma segunda-feira, primeiro dia de trabalho com horário de verão. Tive de sair de
casa uma hora mais cedo, às cinco da manhã. Tomei meu banho de costume, pus uma boa
roupa - sempre fui vaidosa, gosto de andar arrumada - e fiz minhas orações. Não sou religiosa,
mas todas as manhãs peço a Deus que me ilumine.
Eu estava subindo aquela ladeira de asfalto deserta. É uma subida muito dura e como
sou gordinha, eu andava devagar, carregando minha bolsa e um casaco. Senti que vinha
alguém atrás de mim. Olhei para trás e me deu um grande frio. Era um homem. Foi a primeira
vez na vida que senti um frio igual. Quis voltar para casa, mas pensei: “Meu Deus, se eu voltar
e essa pessoa for ruim, posso estar levando-a para dentro da minha própria casa”. Sentia que
ele tentava me alcançar. Ainda tentei acompanhar um outro senhor que passou por mim
correndo, mas tive dificuldade. Com o sapato de saltinho que eu usava e o meu peso, não deu.
Senti a mão no alto do meu ombro. “Pára. É um assalto, tia. Fique quietinha”. Consegui
dizer que tudo bem, que ele podia pegar tudo o que quisesse. Ele só dizia: “Vamos andando,
vamos andando”. Quando deu uma parada ele puxou o revólver. “Eu não vou só te assaltar.
Você vai morrer”. Nessa hora eu pensei nos meus dois filhos, na minha vida e comecei a
chamá-lo de meu filho, pois pela idade ele poderia ser o meu filho. “Cale a boca, eu ainda não
peguei você”. Senti que algo mais grave iria me acontecer. Ele me arrastou para uma viela com
escada e mato dos dois lados. Minhas pernas amoleceram. “Tira a roupa”. Eu não conseguia
abrir a blusa, estava tremendo. Ele rasgou e arrancou tudo com uma mão, segurava a arma na
outra. “Filho, não faça isso”, pedi. Nesse momento comecei a morrer. “Quando alguém te achar
vai ser por intermédio dos urubus”, ele ainda falou. Fez tudo o que quis. Acredito que
desmaiei...
Quase três meses depois percebi que estava grávida: fiz os exames e o médico me
falou: “Você está grávida”. Foi naquela hora que eu morri pela segunda vez. Nunca mais deixei
que dissessem que eu estava grávida dessa coisa. Gravidez é vida, e aquilo era morte. Desde
o primeiro momento eu falei para mim: “Isto aqui não vai nascer. Isto não é um filho”...
Minha filha percebeu meu sofrimento e perguntou se eu estava grávida. Eu respondi
para ela:
“Não fale nunca que a mãe está grávida. Grávida eu fiquei de você e de seu irmão, com
muito amor. Isto daqui a mãe vai tirar. Essa violência que está dentro de mim a mãe vai
eliminar”. Falava muito com meus filhos e eles diziam para mim: “Mãe, tome a atitude que você
achar que é certa. Se houver complicações de saúde e tiver que nascer, não sei se vou
conseguir olhar a criança com carinho, como coisa nossa, mas vamos tentar”. Eu sabia que
seria impossível criar dentro da minha própria casa uma coisa nascida da violência. Como é
que eu ia poder olhar para essa coisa a cada minuto do meu dia, a toda hora?
Eu não vou matar, eu explicava para eles, pelo contrário, eu vou viver. Choramos muito.
Em nenhum minuto me senti como uma assassina, como se diz de quem aborta. Nem por um
minuto achei que estava tirando uma vida. Não guardei nenhuma culpa!” (Revista Veja, 13/12/
95)
Será que Joana escolhei o caminho certo? Será que ela pode continuar rezando cada
manhã e invocando a Deus?
16. Você sabia que...?
A Igreja Católica estabeleceu alguns princípios importantes que nos orientam e
iluminam, quando temos que agir nas diversas situações da vida. Um destes princípios é
o da “escolha do melhor caminho”. Isto quer dizer que, quando uma pessoa enfrenta um
problema, tem que fazer uma escolha e não sabe que caminho tomar, deve estudar, analisar e
ver qual é o melhor caminho para ela.
Por exemplo, uma mulher não queria engravida porque não tinha condições de criar
mais uma criança. Agora, se encontra frente a uma decisão difícil: continuar ou interromper a
gravidez?
Vejamos bem: nessa situação, entram em conflito duas coisas boas: uma, que é a
felicidade e o bem pessoal dessa mulher, a outra, que é a possibiidade dela dar à luz mais uma
vida. Portanto, estão em conflito dois bens!
Neste caso, é moralmente válido e religiosamente aceitável que ela escolha o que
considera ser o melhor caminho. Este é o princípio ético ensinado pela Igreja.
Vejam agora o caso de uma adolescente que engravida: a gravidez pode significar para
ela o fim dos estudos, da sua carreira profissional, da sua realização afetiva. Ela vai ter que ser
ajudada para escolher o melhor caminho, pesando os bens que estão em conflito: o futuro
desse embrião que se tornará uma nova pessoa humana, e o seu futuro...
Teólogos, que também discutem esta problemática do aborto, afirmam que, em
situações de conflito, ou seja, quando existem dúvidas de como agir, como no caso da
interrupção de uma gravidez, a situação tem que ser avaliada de uma forma global, bem
ampla: quais são os bens que vão ser defendidos com a decisão tomada? E ao falar do bem
que é a vida, não se pode pensa na vida só como sobrevivência. Deve-se pensá-la com as
necessidades básicas atendidas, e outros bens relacionados com a vida humana: segurança,
paz, bem estar, realização pessoal, etc.
Por isso, no caso da interrupção de uma gravidez, assim como se pergunta pelo
respeito a uma vida em gestação, deve-se perguntar também pelo respeito a uma vida em
gestação, deve-se perguntar também pelo respeito à vida da mãe e dos demais familiares,
pelas consequências a que pode levar uma gravidez indesejada, tanto para a própria criança
que vai nascer, como para a mãe e para os demais membros da família.
Por outra parte, teólogos afirmam que, quando falamos do direito que as pessoas têm à
vida, devemos nos lembrar da dignidade da pessoa humana como ser racional, responsável, e
que se deixa guiar pela inteligência humana, que reconhece a existênciade valores. A vida é
um bem, mas não se trata só de um bem individual. É um bem familiar, social.
Dialogando com Débora
- Pois é, nós, mulheres, fazemos tanta coisa na vida: criamos os filhos, os educamos,
seguramos as pontas da família, cuidamos dos doentes, trabalhamos em casa e fora dela,
assumimos muitas vezes o papel de pai e mãe. Por que não acreditam que podemos ser
17. responsáveis por nossa vida reprodutiva?
- É mesmo, Débora, temos que confiar na capacidade que as mulheres têm de tomarem
decisões éticas e responsáveis sobre suas vidas.
- Mas é muito difícil, pois as mulheres se sentem culpadas. E que hoje o aborto é ilegal,
é penalizado, é considerado pecado.
- Pois é, com estes temas que temos estudado, o que queremos é diminuir a culpa
injusta que pesa sobre os ombros das mulheres e afirmar a nossa autonomia para decidirmos
sobre nosso próprio corpo e os filhos que desejamos ter ou não.
- Parte da opinião pública pensa que legalizar o aborto vai trazer como consequência
mais abortos, como se as mulheres fizessem aborto por gosto!...
- O aborto é uma questão de autodeterminação para as mulheres e é profundamente
ofensivo para a dignidade da mulher sugerir que, com a legalização, haveria um uso
irresponsável dessa prática.
- Seria bom diminuir os abortos, não é verdade?
- Pois é, quando existe a combinação da legalização do aborto e um serviço de
qualidade, com informações a respeito dos métodos anticoncepcionais, os índices de aborto
podem baixar bastante! E diminuir o número de morte de mulheres. Por isso, acreditamos que,
se o Estado oferecesse educação sexual para as crianças e adolescentes para que, desde
cedo pudessem preparar-se para a vida sexual, sem tantas marcas negativas, sem tanta
ignorância que traz sofrimento, o aborto iria diminuir e muito! Se o Estado organizasse serviços
de saúde onde se explicasse a homens e mulheres as coisas da vida reprodutiva e eles
tivessem acesso aos métodos anticoncepcionais, o aborto seria menos necessário. Mas
também, um bom serviço de atendimento às mulheres que decidem abortar, nos hospitais
públicos e nos particulares, evitariam muitos males. A mortalidade materna não teria os altos
índices que existem em nosso país; as doenças e sequelas físicas por abortos mal feitos e em
condições inumanas poderiam desaparecer. Tudo isto é defender a vida, não de uma maneira
abstrata mas sim de uma maneira muito concreta.
- Eu, Débora, que fiz aborto, que sou catequista, que não conhecia os princípios que a
Igreja ensina para orientar nossa vida, que achava que o pensamento da Igreja era um só, que
não podia discordar do que o Papa falava... sinto-me feliz porque compreendi muita coisa boa.
Aprendi, principalmente, que Deus me ama, pois me deu uma vida com muita liberdade, com
uma inteligência e que precisamos usar essas capacidades para responder por nossas vidas.
Ou seja, o que fazemos e as decisões que tomamos movidas por razões retas, para melhorar
nossa vida, levam a um reconhecimento da soberania de Deus. Não como alguns pensam, que
seria ir contra a Vontade de Deus.
8 - A DECISÃO DE RITA
O estudo desta problemática, que afeta tão profundamente nossas vidas, continua.
Temos muito para refletir e descobrir outros aspectos ou mais elementos que nos ajudem à
compreensão deste tema. A defesa de nosso direito a decidir sobre nosso corpo e nossa vida
significa a defesa do direito inalienável à autodeterminação. As mulheres defendemos e
cuidamos da vida porque queremos uma vida em abundância para todas e todos.
18. Queremos convidá-las e convidá-los a assistir e debater as informações e ideias que se
apresentam no vídeo: “A Decisão de Rita”.
http://vimeo.com/5988183
9 - BIBLIOGRAFIA
Universidade Externado de Colômbia, “Problemática Religiosa de La Mujer que Aborta”,
Editora Arte-Publicaciones. Bogotá 1994.
Católicas pelo Direito de Decidir “Uma história não contada”, Editora IPAC. Montevideo
1992
Ivone Gebara, “Aborto não é pecado” In Revista Veja 06/10/96 - Editora Abril. São
Paulo, Brasil.
Joana Leal Lima, “Fui uma morta-viva” In Revista Veja 13/12/95. Editora Abril. São
Paulo, Brasil.
Depoimentos de mulheres de Marudá (Pará)