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PEQUENO ENSAIO PARA LUÍS ATHOUGUIA
LUÍS ATHOUGUIA chega de Cascais, sua pátria, a Vila do Conde, que nos
calores luminosos de Julho se olha e refresca, na esteira das águas do Ave a
seus pés.
No Auditório Municipal inaugura-se a sua nova Exposição ― “Cenografias com
Feitiço”.
É uma dádiva. É uma dádiva e uma festa. Sim, uma festa! Pagã ou como
queiram, invocadora de todos os inícios e todos os fins, acedendo a todos os
ritos e aos limites do apreensível e do inteligível.
As obras de Athouguia confrontam-se, pelos argumentos consistentes da
abstracção, com o universo visível das formas e das cores, tal qual as vemos
por toda a nossa volta, nos seres e nas coisas da breve passagem.
É assim mesmo! Imperador do império da cor e das formas!
Ei-lo já há muito a prodigalizar a oferta dos signos e dos símbolos que inventa
ou recolhe no limbo dos sonhos: formas que ora se isolam, ciosas da sua
original singularidade, ora se repetem e reinventam, se cruzam ou justapõem,
formas que pressentimos a quererem derrubar as barreiras físicas das molduras,
e invadir e iluminar o vazio do negro galáctico.
Na Obra de Luís Athouguia, a aproximação à dimensão infinita da criação,
desperta os sentidos e apela à nossa cumplicidade.
O Pintor provoca-nos e solicita-nos para a descoberta do processo poético das
suas invenções e reinvenções, exige a nossa visão mais atenta e o esforço da
nossa leitura do jogo formal, múltiplo e de múltiplos significados, numa pintura
de geografia magistralmente convulsa e atormentada, sabiamente disciplinada
na ordem do fazer.
Na orquestração da sua Obra, instala-se um léxico original, vigoroso e
inconfundível, do abstraccionismo mais estreme, em que os lemas enfrentam a
tragédia da sua própria inexistência, num texto cromático e formal que se
sustenta da imponderabilidade de todos os mistérios, por ele sugeridos mas
nunca revelados.
As sínteses insondáveis da matéria e através dela, os excursos da alma.
A consagração do imprevisto.
A aparente negação da geometria reguladora dos gestos, num halo esplêndido
de intemporalidade.
E tudo isto (e o mais que não sei dizer), evocando o espaço de epopeia a que
Athouguia nos convoca, pelo ritual da cor que veste as formas da sua narrativa
sublinhada de neologismos ― cores originais do espectro, ora como intocadas,
ora transfiguradas, que se isolam, se misturam e se recompõem, em acordes
harmónicos ou em dissonâncias, assentes no domínio dos arquétipos culturais e
na mestria gestual do exercício oficinal constante.
Diagramas de fenómenos desconhecidos, as formas do vocabulário athouguiano
organizam-se como crisálidas de um metamorfismo encantatório, de um oráculo
revelador, de um rito impenetrável.
A pintura de Luís Athouguia é lugar de visões oníricas, lugar de muitos
cerimoniais, lugar iconográfico das abstracções das formas e dos conteúdos.
Nela convergem alegorias, sugestões e alusões a uma escrita que se escreve
por figurações no corpo do texto abstracto, no qual nos atrevemos a identificar
(ou só entrever) pássaros, peixes, rostos ou máscaras deles, emblemas, signos,
perífrases e paráfrases, silêncios marinhos, meias-luas, eflorescências e
cristalizações orgânicas, um olho alado, um olho escorpião, um olho dinossauro,
um olho alga…
E valerá decerto o conselho para uma viagem de descoberta pelos títulos das
obras de Athouguia: um repertório perturbador que abre uma janela toda, sobre
o território poético ― poético, sim senhor! ― do processo criador do Artista,
antes e depois das suas pinturas.
Eis alguns desses títulos, transcritos sem razão de ordem, cronológica ou outra:
Trajectória Indecifrável, Horizontes do Silêncio, Oficina de Símbolos, Outro Lado
da Farsa, Cápsula Primordial, Serpente Telúrica, Sonhando até por Detrás dos
Cântaros, Visão para ser Entregue a uma Rainha, Vértice do Feitiço, Horizons of
the Silence: Dream or Tragedy of Humankind, Blow Up, Estruturas Sub-visíveis
do Ser, Ornato de Antemundo Gestual, Totem de Sangue, Alerta Messiânico,
Atlante Mediúnica… ― títulos que são frestas iniciáticas e convidam a
perscrutar, nos vieirianos “horizontes do tempo” em que vivemos, o universo
esotérico e tão singular da criatividade de Athouguia, um universo muito
pessoal, vigoroso, feito como que de fragmentos aleatórios do espaço cósmico e
aliterações de um imaginário primordial ― o seu “Primordial Abstraccionism”.
No final da tarde, o sol do poente marinho da foz do Ave, desliza suavemente
para montante, sobre a manta tranquila do rio, e vem iluminar o rosto sorridente
de José Régio ― poeta do “Romance de Vila do Conde”, seu chão natal ― que
veio da eternidade para sabiamente conferir as “Cenografias do Feitiço”, de Luís
Athouguia.
Carlos-Antero Ferreira

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  • 2. tragédia da sua própria inexistência, num texto cromático e formal que se sustenta da imponderabilidade de todos os mistérios, por ele sugeridos mas nunca revelados. As sínteses insondáveis da matéria e através dela, os excursos da alma. A consagração do imprevisto. A aparente negação da geometria reguladora dos gestos, num halo esplêndido de intemporalidade. E tudo isto (e o mais que não sei dizer), evocando o espaço de epopeia a que Athouguia nos convoca, pelo ritual da cor que veste as formas da sua narrativa sublinhada de neologismos ― cores originais do espectro, ora como intocadas, ora transfiguradas, que se isolam, se misturam e se recompõem, em acordes harmónicos ou em dissonâncias, assentes no domínio dos arquétipos culturais e na mestria gestual do exercício oficinal constante. Diagramas de fenómenos desconhecidos, as formas do vocabulário athouguiano organizam-se como crisálidas de um metamorfismo encantatório, de um oráculo revelador, de um rito impenetrável. A pintura de Luís Athouguia é lugar de visões oníricas, lugar de muitos cerimoniais, lugar iconográfico das abstracções das formas e dos conteúdos. Nela convergem alegorias, sugestões e alusões a uma escrita que se escreve por figurações no corpo do texto abstracto, no qual nos atrevemos a identificar (ou só entrever) pássaros, peixes, rostos ou máscaras deles, emblemas, signos, perífrases e paráfrases, silêncios marinhos, meias-luas, eflorescências e cristalizações orgânicas, um olho alado, um olho escorpião, um olho dinossauro, um olho alga… E valerá decerto o conselho para uma viagem de descoberta pelos títulos das obras de Athouguia: um repertório perturbador que abre uma janela toda, sobre o território poético ― poético, sim senhor! ― do processo criador do Artista, antes e depois das suas pinturas. Eis alguns desses títulos, transcritos sem razão de ordem, cronológica ou outra: Trajectória Indecifrável, Horizontes do Silêncio, Oficina de Símbolos, Outro Lado da Farsa, Cápsula Primordial, Serpente Telúrica, Sonhando até por Detrás dos Cântaros, Visão para ser Entregue a uma Rainha, Vértice do Feitiço, Horizons of the Silence: Dream or Tragedy of Humankind, Blow Up, Estruturas Sub-visíveis do Ser, Ornato de Antemundo Gestual, Totem de Sangue, Alerta Messiânico, Atlante Mediúnica… ― títulos que são frestas iniciáticas e convidam a perscrutar, nos vieirianos “horizontes do tempo” em que vivemos, o universo esotérico e tão singular da criatividade de Athouguia, um universo muito pessoal, vigoroso, feito como que de fragmentos aleatórios do espaço cósmico e aliterações de um imaginário primordial ― o seu “Primordial Abstraccionism”. No final da tarde, o sol do poente marinho da foz do Ave, desliza suavemente para montante, sobre a manta tranquila do rio, e vem iluminar o rosto sorridente de José Régio ― poeta do “Romance de Vila do Conde”, seu chão natal ― que veio da eternidade para sabiamente conferir as “Cenografias do Feitiço”, de Luís Athouguia. Carlos-Antero Ferreira