O documento discute a legislação e currículo para o ensino de história da África em três partes: (1) analisa como as verdades são produzidas e legitimadas em diferentes sociedades; (2) detalha como a verdade é produzida e consumida no Brasil sob o controle de instituições políticas e econômicas; (3) argumenta que a seleção de conteúdo curricular é um ato de poder que privilegia certos grupos.
Ensino de História da África: legislação, currículo e luta antirracista
1. ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA
LEGISLAÇÃO E CURRÍCULO – PARTE 1 DE 4
ANDRÉ SANTOS LUIGI
PROFESSOR DE EDUCAÇÃO BÁSICA, TÉCNICA E TECNOLÓGICA
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO – CAMPUS REGISTRO
2. ESCOLA
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade:
isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros
dos falsos, a maneira como sanciona uns e outros; as técnicas e procedimentos
que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (1985, p12)
MICHEL FOUCAULT
MICROFÍSICA DO PODER
3. ESCOLA
Em nossas sociedades, a economia política da verdade tem cinco características
importantes: a "verdade" é centrada na forma do discurso científico e nas
instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica
e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o
poder político); é objeto, de várias formas, de uma intensa difusão e de um imenso
consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão do
corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é
produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns
grandes aparelhos políticos e econômicos (universidade, exército, escritura, meios
de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social. (1985, p.
13)
MICHEL FOUCAULT
MICROFÍSICA DO PODER
4. CURRÍCULO
Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é
uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma
identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder. As
teorias do currículo não estão, neste sentido, situadas num campo “puramente”
epistemológico, de competição entre “puras” teorias. As teorias do currículo
estão ativamente envolvidas na atividade de garantir o consenso, de obter
hegemonia. As teorias do currículo estão situadas num campo epistemológica
social. As teorias do currículo estão no centro de um território contestado.
(2010, p16)
TOMAZ TADEU SILVA
DOCUMENTOS DE IDENTIDADE
5. CURRÍCULO
Uma das mais importantes tarefas da crítica e da intervenção cultural em
educação consiste precisamente em perguntar quais grupos e interesses não
apenas estão representados no currículo, mas têm o poder de representar
outros. (1995, p125)
TOMAZ TADEU SILVA
DOCUMENTOS DE IDENTIDADE
6. HISTÓRIA E MEMÓRIA
A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso
crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna
sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer
como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela
é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A
história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação
para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções
e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o
relativo.
PIERRE NORA
ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA
7. ENSINO DE HISTÓRIA
A crítica do etnocentrismo e do racismo, assim como a do machismo, apresenta
uma oportunidade concreta aos/às educadores/as para começar a interromper
aqueles processos de reprodução e perpetuação de relações de poder num dos
locais onde eles se apresentam de forma mais constante e eficaz: na escola e no
currículo.
(1995, p194).
TOMAZ TADEU SILVA
DOCUMENTOS DE IDENTIDADE
8. ÁFRICA TEM HISTÓRIA?
A África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos,
progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela. Quer isto dizer que
sua parte setentrional pertence ao mundo europeu ou asiático. Aquilo que
entendemos precisamente pela África é o espírito a-histórico, o espírito não
desenvolvido, ainda envolto em condições da natureza e que deve ser aqui
apresentado apenas como no limiar da história do mundo (2008, p. 175)
HEGEL
10. COMO ESCREVER A HISTÓRIA DO BRASIL?
Disso necessariamente se segue que o português que, como descobridor,
conquistador e senhor, deu as condições e garantias morais e físicas para um
reino independente, que o português se apresenta como o mais poderoso e
essencial motor. Mas também de certo seria um grande erro para todos os
princípios da historiografia pragmática se desprezassem as forças dos indígenas
e dos negros importados, forças estas que igualmente concorreram para o
desenvolvimento físico, moral e civil da totalidade da população(...) O sangue
português, em um poderoso rio deverá absorver os pequenos afluentes das
raças índia e etiópica.
. VON MARTIUS
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
11. BRANQUEAMENTO
[...] durante o período alto do pensamento racial – 1880 a 1920 – a ideologia do
“branqueamento” ganhou foros de legitimidade cientifica, de vez que as teorias
racistas passaram a ser interpretadas pelos brasileiros como confirmação das
suas ideias de que a raça superior - a branca - acabaria por prevalecer no
processo de amalgamação. (1976, p 63)
THOMAS SKIDMORE
PRETO NO BRANCO
12. BRANQUEAMENTO
A população mista do Brasil deverá ter pois, no intervalo de um século, um
aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia,
aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão,
depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderiam persistir
ainda alguns traços do negro.
JOÃO BATISTA DE LACERDA
CONGRESSO UNIVERSAL DAS RAÇAS, LONDRES, 1911
13. BRANQUEAMENTO
Quanto mais se difundir a civilização no país, tanto mais intensa será a redução da
raça indígena, a qual, estou certo, desaparecerá como os negros daqui a um
século. (1912, p.98)
JOÃO BATISTA DE LACERDA
CONSTITUIÇÃO ETNOLÓGICA DA POPULAÇÃO DO BRASIL DAQUI A 100 ANOS
14. BRANQUEAMENTO
Tinham fé irrestrita na capacidade do estado de funcionar de maneira técnica e
científica para transformar a nação. Os condutores da expansão e reforma
educacional acreditavam que a maior parte dos brasileiros, pobres e/ou pessoas
de cor, eram sub-cidadãos presos na degeneração - condição que herdavam de
seus antepassados e transmitiam a seus filhos, enfraquecendo a nação. Os
mesmos educadores tinham também fé na sua capacidade de mobilizar ciência e
política para redimir essa população, transformando-a em cidadãos-modelo
(2006, p 12-13).
JERRY D’AVILA
DIPLOMA DE BRANCURA
15. DEMOCRACIA RACIAL
Afinal, o Brasil teria sido percebido historicamente como um país onde os
brancos tinham uma fraca, ou quase nenhuma, consciência de raça (cf. Freyre,
1933); onde a miscigenação era, desde o período colonial, disseminada e
moralmente consentida; onde os mestiços, desde que bem-educados, seriam
regularmente incorporados às elites2 ; enfim, onde o preconceito racial nunca
fora forte o suficiente para criar uma “linha de cor”. (2006, p. 269)
ANTONIO SÉRGIO GUIMARÃES
DEPOIS DA DEMOCRACIA RACIAL
16. DEMOCRACIA RACIAL
Para os educadores brasileiros e sua geração intelectual, raça não era um fato
biológico. Era uma metáfora que se ampliava para descrever o passado, o
presente e o futuro da nação brasileira. Em um extremo, a negritude significava o
passado. A negritude era tratada em linguagem freudiana como primitiva, pré-
lógica e infantil. Mais amplamente, as elites brancas equiparavam negritude à falta
de saúde, preguiça e criminalidade. A mistura racial simbolizava o processo
histórico, visualizado como uma trajetória da negritude à brancura e do passado
ao futuro. (p. 25)
JERRY D’AVILA
DIPLOMA DE BRANCURA
17. A LUTA PELO CURRÍCULO
1979 – Deputado Federal Adalberto Camargo
1983 – Deputado Federal Abdias Nascimento
1988 – Deputado Federal Paulo Paim
1988 – Deputada Federal Benedita da Silva
1993 – Deputada Federal Benedita da Silva
1995 – Senadora Benedita da Silva
1995 – Deputado Federal Humberto da Costa
1996 – Deputado Federal Ben-Hur Ferreira e Ester Grossi
1997 – Senador Abdias Nascimento
1998 – Deputado Federal Jorge Hage
18. LEI 10.639/03
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-
A, 79-A e 79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo
o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3o (VETADO)"
"Art. 79-A. (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência
Negra’."
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
19. LEI 11.645/08
Lei 10.639/03
Altera a Lei 9.394/98 LDB
Inclui os artigos 26 A e 79 B
Lei 11.645/08
Altera a Lei 10.639/03
Inclui a História Indígena
20. DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS
Parecer 004/03
Relatora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Resolução 001/04 do Conselho Nacional de Educação
Institui as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações
Etnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana
23. BIBLIOGRAFIA
CHESNEAUX, Jean. As armadilhas do quadripartismo histórico. In: Devemos fazer tabula rasa do
passado. Sobre a História e os Historiadores. Trad. Marcos Silva. São Paulo: Ática, 1994.
GATINHO, A. A. O movimento negro e o processo de elaboração das diretrizes curriculares nacionais
para a educação das relações étnico-raciais. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Educação. Universidade Federal do Pará, 2008.
LACERDA, J. B. Constituição etnológica da população do Brasil daqui a 100 anos. Congresso Universal
das Raças. Reunião Londres, 1911. Rio de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912.
SKIDMORE, T. E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1976.