4. João Carlos Petrini é Doutor em Ciências Políticas pela PUCSP onde lecionou durante muitos anos. Diretor do Pontifício Instituto
,
João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família e também
Coordenador do Mestrado em Ciências da Família, da
Universidade Católica (UCSal).
Maria Grazia Figini é Coordenadora do Setor de Apoio à
Entidades de Acolhida de Crianças e Adolescentes da CDO
(Companhia das Obras Itália).
Lílian Perdigão Caixêta Reis é Mestre em Ciências da Família
pelo Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e
Família/BA e Coordenadora do COF – Centro de Orientação da
Família/BA.
5. João Carlos Petrini
Maria Grazia Figini
Lílian Perdigão Caixêta Reis
(palestrantes)
Série Percurso Educativo
FAMÍLIA: O PRIMEIRO
SUJEITO EDUCATIVO
Luisa Cogo
Cilene C. Caetano Chaves
(organizadoras)
Associazione Volontari
per il Servizio Internazionale
Belo Horizonte
2003
6. Família: o primeiro sujeito educativo
Série Percurso Educativo
Organização: Luisa Cogo e Cilene C. Caetano Chaves
Preparação de textos: Cilene C. Caetano Chaves e Elisabete R. do
Carmo Silva
Revisão: Eneida Maria Chaves
Projeto gráfico: Juliana Vaz
Produção Gráfica: Derval O. Braga Júnior (www.e-mega.com.br)
Brasil 2003
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro
Família: primeiro sujeito educativo / Luisa Cogo,
Cilene C. Caetano Chaves (orgs.). Belo Horizonte:
CDM: AVSI, 2003.
84 p.; 21 cm. – (Percurso educativo)
ISBN: 85-88559-05-6
1. Educação, I. Cogo, Luisa. II. Chaves, Cilene
C. Caetano III. Título
9. Apresentação
Luisa Cogo
Família: o primeiro sujeito educativo é o último da trilogia Percurso Educativo, que
foi elaborado para auxiliar as Obras envolvidas no Projeto Rede de Infância, gerido
pela AVSI – Associação Voluntários para o Serviço Internacional e pela CDM –
Cooperação para o Desenvolvimento e Morada Humana – através de um convênio
realizado com a CEI – Conferência Episcopal Italiana – e o MAE – Ministério do
Exterior do Governo Italiano.
Os dois primeiros livros Educar-se para educar, e Sem construir, como pode
o homem viver? reuniram as atas de dois seminários; o primeiro teve como intuito
indicar os passos de um percurso educativo no qual a realidade das crianças e de suas
famílias é abraçada com todos os seus fatores constitutivos; o segundo, para além da
pergunta, retomava a origem de cada uma das Obras educativas, porque o que
aparentemente é só um fato histórico que marca a fundação de uma instituição se faz
presente no cotidiano de cada uma através da postura educacional adotada, na
escolha dos conteúdos e da metodologia de trabalho, chegando até ao nível organizacional.
Neste volume coletamos as atas de um encontro realizado em Belo Horizonte, com o intuito de ajudar a aprofundar o olhar sobre a família, enquanto sujeito
protagonista da educação.
As obras da Rede trabalham, em sua maioria, com famílias pobres, residentes
em periferias, e apresentam um contexto familiar frágil e muitas vezes desestruturado,
devido a fatores como desemprego, alcoolismo e dependência química. No trabalho
que se realiza diariamente se corre o risco de deixar-se levar pela assistência, que é a
7
10. Família: o primeiro sujeito educativo
8
forma mais imediata, rápida de responder a uma necessidade: trabalhar “para” a
família e não “com” a família, na pretensão de tentar definir as prioridades da mesma.
Na experiência compartilhada durante o seminário emergiu o desejo de que
a família seja reconhecida como capaz de educar, mesmo em um contexto frágil,
tornando-se um sujeito que estabeleça quais são as suas necessidades e prioridades.
Foi ressaltado o fato de que a educação acontece num recíproco pertencer,
onde adulto e criança/adolescente precisam de um lugar educativo, uma morada,
precisam encontrar um mestre, que os acompanhe no caminho da vida. Para a maioria
das crianças e suas famílias essa morada é encontrada nas obras. O centro educativo
e a creche com os sujeitos envolvidos, tornam-se uma morada que não substitui a
família mas a ajuda a tornar-se mais consciente do seu verdadeiro significado.
As palestras foram proferidas pelo Dr. João Carlos Petrini (Diretor do
Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre o Matrimônio com sede em
Salvador-BA), Maria Grazia Figini (Coordenadora do Setor de Apoio à Entidades de
Acolhida de Crianças e Adolescentes da CDO – Companhia das Obras) e Lílian
Perdigão Reis (Coordenadora do – COF – Centro de Orientação Familiar).
João Carlos Petrini demonstrou que a família, apesar de todos os sinais de
dificuldade e de vulnerabilidade continua viva e presente, resistindo às mudanças
sociais que estão ocorrendo em ritmo acelerado, se organizando e se reestruturando,
reagindo aos condicionamentos externos e ao mesmo tempo adaptando-se a eles,
encontrando novas formas de estruturação que se precisa compreender e fortalecer.
Maria Grazia Figini, indicou que a família é de qualquer maneira a
protagonista, a referência principal da educação, quando esta está presente é preciso
sustentá-la, apoiá-la, de forma que possa se tornar um sujeito capaz de desenvolver a
tarefa educativa. Nesse sentido é preciso olhar as famílias não como destruídas,
frágeis, como algo que deve ser cuidado, deve ser apoiado; mas como um sujeito,
lutando contra a mentalidade assistencialista, porque a família é um recurso que pode
também ser uma resposta social.
Lílian Perdigão, relatou a experiências do COF – Centro de Orientação
Familiar, localizado na cidade de Salvador – BA, no qual são realizadas ações, através
de equipe multidisciplinar, voltadas ao fortalecimento das famílias que buscam ajuda
no mesmo.
11. Apresentação
Luisa Cogo
O texto "Viver na gratuidade", em anexo, é oferecido aos leitores deste livro
porque expressa bem a raiz cultural que fundamenta a postura educativa que se tentou
declinar nos trabalhos operativos do seminário.
O seminário se colocou como uma contribuição para todas as pessoas
envolvidas direta ou indiretamente em ações com as famílias e para as pessoas que se
comprometem com a construção de uma mentalidade que considera a família como
recurso, na busca de tentativas originais de respostas às necessidades apresentadas.
O trabalho, não quis definir uma temática, dar receitas para enfrentar um
tema e uma questão, mas quis pôr em jogo todas as pessoas envolvidas na aventura
de educar, assim como o caminho que se tentou percorrer ao longo do
desenvolvimento do Projeto Rede de Infância, dentro das várias obras sempre
mostrou: para educar as pessoas que são encontradas é necessária uma
disponibilidade para se deixar educar, pois só isso permite a educação.
9
12.
13. Notas para uma
Antropologia da Família
Na sociedade contemporânea, a família é considerada um valor, ideal que a
maioria da população cultiva. No entanto, nestas últimas décadas, a família passa por
grandes mudanças, que a tornam particularmente vulnerável. Estão mudando o modo
de entender e o modo de viver o amor e a sexualidade, a fecundidade e a procriação,
o vínculo familiar, a paternidade e a maternidade, o relacionamento entre homem e
mulher.
A família encontra-se em constante mudança por participar dos dinamismos
próprios das relações sociais1. O processo social dos últimos séculos acelerou as
mudanças, com conseqüências substanciais em todos os aspectos da convivência
humana. A família, integrada nesse contexto, necessariamente passa por transformações de tal magnitude, que parece prestes a desaparecer.
A investigação científica mais recente, no Brasil e no exterior, acumula dados
que descrevem um enfraquecimento das relações familiares, mas identifica também
indícios e evidências de uma surpreendente vitalidade do ideal familiar. Não são
poucos os estudiosos que afirmam que, no meio das turbulências, a família empenhase em reorganizar, na sociedade pós-moderna, aspectos da sua realidade que o
ambiente sociocultural vai desgastando. Reagindo aos condicionamentos externos e,
ao mesmo tempo, adaptando-se a eles, a família encontra novas formas de estrutu-
1
SCABINI, 1998.
João Carlos
Petrini
Família e
mudança: entre
desaparecimento e
reorganização
11
14. Família: o primeiro sujeito educativo
ração que, de alguma maneira, a reconstituem2, sendo reconhecida como uma
estrutura básica permanente da experiência humana e social3.
A "família tradicional arcaica" descrita por Freyre4, que se afirmou no contexto da cultura rural, entrou em colapso há tempo. Os modelos de comportamento
que regulamentavam, nesse contexto, as relações entre os sexos e as relações de
parentesco, tornaram-se obsoletos e foram abandonados. A "família nuclear" urbana,
analisada por Parsons et al.5, na década de 50, que deveria constituir, segundo a
opinião dele, a forma mais adequada de resposta às exigências da sociedade moderna,
também não parece um modelo adequado para os tempos atuais. Outras formas
alternativas de respostas, que foram tentadas, não ofereceram soluções socialmente
significativas.
De um lado, ficam sem efeito muitas normas de orientação da conduta dos
casais, que tiveram vigência no passado; de outro, ainda não emergem novas formas
de agregação familiar, capazes de responder positiva e adequadamente às exigências
da vida afetiva, sexual, da gratuidade, e nos aspectos conexos à geração dos filhos, à
educação e à transmissão de valores. Como conseqüência disso, as novas gerações
encontram mais dificuldades para alcançar a estabilidade psicológica e afetiva,
necessárias para enfrentar os desafios da existência na sociedade moderna. Mudanças
familiares de grande significado são observadas, ainda que com variações, de acordo
com a especificidade de cada grupo cultural ou classe social. Emerge, também, uma
redefinição das transições familiares, isto é, uma mudança de status segundo o sexo e
a idade, sendo renegociados os papéis em termos de igualdade entre os sexos e as
relações entre pais e filhos, em termos mais democráticos, de acordo com uma
concepção de igual dignidade da pessoa humana.
As novas condições, nas quais se processam a construção da identidade e a
socialização, nas diversas etapas da existência, modificam a formação de vínculos e o
2
ARÌES, 1981.
4
FREYRE, 1992.
5
12
SCABINI e DONATI 1995; DONATI, 1998.
3
PARSONS et al, 1974.
15. Notas para uma Antropologia da Família
estabelecimento de sistemas de referência, tornando mais complexas as relações entre
as gerações. Nesse quadro, as redes sociais bem como as referências pessoais acabam
sendo visivelmente mais frágeis, resultando em maior risco para os elos mais vulneráveis do sistema familiar – crianças e adolescentes, mulheres e idosos. Este expressase em configurações diversas, que freqüentemente implicam, de uma forma ou de
outra, a exclusão social, seja no sentido da convivência, seja no da participação cidadã.
Nesse cenário de mudanças, é necessário compreender os novos arranjos
familiares, as novas características que as relações intergeracionais assumem e os
sistemas de referência disponíveis para pessoas e famílias nos diversos momentos do
ciclo de vida, bem como as funções que assume a família na atualidade, sua relação
com os dinamismos sociais, em ambiente caracterizado por pluralismo ético, cultural
e religioso. As relações entre os sexos e entre as gerações constituem o fulcro da
realidade familiar, ao redor do qual diferentes modelos se estruturam e se decompõem, em conseqüência de circunstâncias históricas e sociais, culturais e ideológicas
diversas, dando origem, ora a modelos nos quais prevalecem a cooperação, a
reciprocidade, a solidariedade, a negociação, ora a modelos nos quais prevalecem a
disputa, a competição, ou a indiferença, a estranheza e o conflito.
No decorrer da evolução histórica, a família permanece como matriz do
processo civilizatório, como condição para a humanização e para a socialização das
pessoas6. É por isso que, apesar da variedade de formas que assume e das
transformações pelas quais passa ao longo do tempo, a família é identificada como o
fundamento da sociedade7. Nesse sentido, podem ser reconhecidos na família os
caracteres de universalidade e de constância no tempo, como relação social primordial
e universal8.
Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar continua presente nas
diversas culturas, em todos os períodos históricos, como forma de relação social
constitutiva da espécie humana. Esta encontra, no ambiente da família, não só os
6
LEVI-STRAUSS, op. cit.; ZIMMERMAN, 1971; RADCLIFFE-BROWN, 1973; MAUSS, 1974.
8
LEVI-STRAUSS, op. cit.; LEVI-STRAUSS, 1980.
Família, matriz do
processo civilizatório
LEVI-STRAUSS,1967; MALINOWSKI, 1973.
7
João Carlos Petrini
13
16. Família: o primeiro sujeito educativo
elementos favoráveis à sobrevivência, mas as condições essenciais para o desenvolvimento e a realização da pessoa. Alguma forma de agregação familiar pode ser
reconhecida em todas as culturas e em todas as épocas históricas9, define a família
como "a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma
mulher e seus filhos, é um fenômeno universal presente em todo e qualquer tipo de
sociedade"10. Cabe indagar a presença e a consistência de indícios, que alguns estudiosos estão apontando como reveladores de sua capacidade de adaptação e de
capacidade auto-generativa, nestas últimas décadas.
A família emerge, nos estudos destes últimos anos, como locus privilegiado e
adequado ao desenvolvimento humano e social, para o qual convergem as mais
diferentes linhas de análise. Esta confluência está consagrada em documentos
internacionais11 e, no caso do Brasil, em sua Constituição e no Estatuto da Criança e
do Adolescente.
A família constitui uma realidade simples, na articulação das relações entre
mulher e homem e entre pais e filhos, e, ao mesmo tempo, extremamente complexa,
pois essas relações se realizam segundo diferentes dimensões e envolvem diversos
aspectos. Com efeito, a família durante séculos foi objeto de reflexão dos filósofos e
dos teólogos, com contribuições nos campos da teologia bíblica, da patrística, da
teologia dos sacramentos, da teologia moral, da antropologia teológica, da doutrina
social da Igreja, com enfoques diferentes, num permanente diálogo com as
circunstâncias históricas e culturais. O mais recente magistério da Igreja, atento às
mudanças socioculturais da sociedade moderna, apresenta novas contribuições, ainda
pouco conhecidas. À medida que as ciências humanas foram se estruturando como
disciplinas científicas, começaram a estudar a realidade do matrimônio e da família,
segundo as mais diversas perspectivas epistemológicas, contribuindo para elucidar
aspectos muitas vezes não suficientemente considerados. A família passou, então, a
ser estudada sob o ponto de vista dos interesses econômicos que nela se encontram;
9
LEVI-STRAUSS, 1980. p.154.
10
14
DONATI, 1992. p. 77.
11
DONATI, 1998; Pontificio Consiglio per la Famiglia, 1999.
17. Notas para uma Antropologia da Família
sob o ponto de vista jurídico, pelos aspectos contratuais que o matrimônio e todas as
relações familiares contêm; sob o ponto de vista político, especialmente quando se
trata de grandes famílias detentoras do poder; sob o ponto de vista psicológico, para
estudar os influxos que as relações familiares têm na constituição e no desenvolvimento psíquico dos seus membros; sob o ponto de vista pedagógico, como primeira
fonte de educação para as diversas etapas dos ciclos familiares; sob o ponto de vista
da sociologia, estudando os processos de socialização, bem como os reflexos dos
diversos condicionamentos sociais na realidade familiar; e assim por diante. A lista das
disciplinas que se ocupam da família ainda incluem a arquitetura, a urbanística, a
medicina, a antropologia cultural, a psiquiatria, a sexologia, a ética, a bioética.
A família se diferencia de outras formas de relações sociais ao caracterizar-se
por um modo específico de viver a diferença de gênero, que implica sexualidade, e as
relações entre as gerações, que implicam parentesco12.
O ser humano não pode existir sozinho; pode existir somente como unidade
de dois e, portanto, em relação com outra pessoa humana. A diferenciação
homem/mulher aparece, assim, como expressão de uma originária unidade dual, que
implica e valoriza, simultaneamente, a identidade e a diferença13. A mesma dignidade,
os mesmos direitos qualificam a identidade do ser humano, que aparece na história
sempre como homem e mulher. A diferença sexual é originária, constitutiva do ser
humano, essencial à sobrevivência da espécie. Ao mesmo tempo, observa-se, ao longo
da história e nas diversas regiões do planeta, que a diferença sexual foi elaborada
culturalmente nas mais diversas formas, definidas, via de regra, em função do jogo de
poder entre os gêneros. As imagens e os modelos de comportamento masculino e
feminino, fruto de elaborações culturais historicamente determinadas, podem ser
rediscutidos, como vem acontecendo no momento presente, em busca de uma
correspondência maior para com as modernas exigências de igualdade e de
participação14. As relações entre os sexos constituem, nesse sentido, um interessante
12
SCOLA, 1998. p.32; SCOLA, 1999. p. 338-342.
14
NISOLI; BUFANO, 2000.
Relações familiares:
identidade e
diferença
DONATI, 1998. p.123.
13
João Carlos Petrini
15
18. Família: o primeiro sujeito educativo
entrelaçamento entre natureza e cultura, entre dados permanentes, não marginais na
definição da identidade masculina e feminina, e dados que refletem interesses de
natureza socioeconômica, bem como valores, crenças e modelos de comportamento,
próprios de cada época histórica e de cada cultura.
Nenhum homem e nenhuma mulher são capazes de vivenciar em plenitude,
de esgotar, individualmente, todas as possibilidades humanas. Cada um tem sempre,
diante de si, o outro modo de ser, irredutivelmente diferente do próprio. O ser humano
existe sempre e somente como masculino ou feminino, por mais confusas que, histórica e culturalmente, essas categorias possam parecer. A multiplicidade de experiências
existentes é reveladora de uma inquietação própria da cultura pós-moderna, que
encontra na sociedade pluralista o espaço para ensaiar novos modelos de convivência
entre os sexos, como importantes sinais da busca por soluções mais satisfatórias.
A unidade dual é dinâmica, dotada de plasticidade, devendo ser reconhecida,
aceita e, ao mesmo tempo, construída a cada momento, no fluxo mutável das circunstâncias históricas, a partir de valores ideais compartilhados. Da consideração dessa
unidade dual teve origem a que foi chamada de "antropologia dramática"15.
O ser humano, "unidade dual", verifica dentro de si uma carência que o abre
para o outro, para o diferente, fora de si. Isto quer dizer que a condição para a
realização da pessoa é "ser para o outro"16. O desejo de felicidade pode encontrar a
própria satisfação somente através do outro. Na diversidade de soluções que podem
ser encontradas na sociedade hodierna, a família, fundada no matrimônio, permanece
como o espaço onde as exigências humanas mencionadas encontram maior correspondência, isto é, são acolhidas, valorizando os diversos aspectos das relações entre
os gêneros, sem que nenhum deles fique excluído. Nesse sentido, na família, na
relação esponsal, realiza-se o paradoxo da condição humana: "o meu eu és tu", como
Romeu declara a Julieta17. A tendência a subestimar um dos elementos desta polari-
15
SCOLA, 2000. p. 345.
17
16
VON BALTHASAR, 1982; BOSI, 1991. p.131-139.
16
SHEAKSPEARE, 1995. p. 289-354.
19. Notas para uma Antropologia da Família
dade, exaltando ora a diferença, ora a identidade, tem provocado sérios problemas à
convivência familiar e social.
A família é um espaço de convivência humana ao qual cada membro
pertence. Ela constitui uma rede de relacionamentos, que definem o 'rosto' com o
qual cada um participa dos diversos ambientes que quotidianamente freqüenta, com
o qual encontra as outras pessoas. Para um filho recém-nascido, pertencer a pai e mãe
é uma questão decisiva para o seu desenvolvimento físico e psíquico. Mas, durante
todo o arco da existência, pertencer a uma realidade maior do que si próprio é, de
maneira análoga, fundamental para a pessoa18.
Pertencer a um conjunto de pessoas, que constituem uma família, por meio de
vínculos complexos e profundos, realiza a pessoa como pai ou mãe, como esposo ou
esposa, como filho ou filha, como irmão ou neto ou avô, como homem e como mulher. Os vínculos de pertença, todavia, foram, muitas vezes, motivo de opressão e abusos nas relações familiares. Afirmou-se progressivamente o ideal da liberdade, entendida como autonomia para determinar o próprio percurso de vida. Ampliou-se a disponibilidade a quebrar os vínculos familiares, entre pais e filhos bem como entre cônjuges, quando percebidos como limitadores da própria expressividade. Cabe investigar
circunstâncias socio-culturais e religiosas que favorecem a pertença ou a autonomia,
procurando identificar a diversidade de valores, que orientam a conduta das pessoas.
Os vínculos familiares realizam uma relação na qual a pessoa entra com a
totalidade de sua existência, de seu temperamento, de suas capacidades e limites,
diferentemente do que acontece com quase todos os outros ambientes da vida, nos
quais se estabelecem relações parciais, limitadas a capacidades específicas, correspondentes a funções determinadas.
Um grupo de pessoas é reconhecido como família quando se configura como
uma relação de plena reciprocidade entre os sexos e entre as gerações. Trata-se de um
recíproco pertencer, na maioria das vezes não simétrico, constituído através de
processos de vinculação desenvolvidos em contextos diádicos19.
18
DONATI, 1998; BRONFENBRENNER, 1996.
Família: um
recíproco pertencer
SCOLA, 2000.
19
João Carlos Petrini
17
20. Família: o primeiro sujeito educativo
O entrelaçamento
de amor,
sexualidade e
fecundidade
Essas características qualificam a família como complexo simbólico importante. Não é por acaso que, quando alguém quer dizer que venceu a estranheza na
relação com um ambiente ou com uma pessoa, diz que se tornou "familiar". O
complexo simbólico da família é o primeiro ponto de apoio, o primeiro cimento da
sociedade. Demonstra-o o fato de que a família é importante também quando a
pessoa vive distante, porque está presente como realidade simbólica que determina o
vivido psíquico e o sentido existencial das pessoas. A família é relação simbólica e
estrutural que liga as pessoas entre si num projeto de vida, que entrelaça uma dimensão horizontal (a do casal) e uma dimensão vertical (a descendência e a ascendência),
que supõe a geração de filhos. A família permanece o símbolo concreto de que cada
pessoa humana tem um lugar no mundo, não está condicionada a puros interesses ou
instâncias de poder. De um lado, o complexo simbólico familiar tem ampla difusão é
consideração positiva, por outro, parece perder seus contornos, uma vez que a família
é assimilada, às vezes, a qualquer forma de convivência sob o mesmo teto.
Na divisão da existência entre atividade produtiva e lazer, a família tende a ser
colocada na esfera do "lazer". Nessa perspectiva, a dimensão lúdica parece, muitas
vezes, esgotar o significado da sexualidade humana, que não encontraria mais limites,
podendo-se eliminar dela qualquer responsabilidade ou vínculo que estenda seus
efeitos para além do momento em que se realiza como jogo. Outra conseqüência
deste fato é a redução da importância do trabalho e do sacrifício que, num outro
horizonte sociocultural, eram assumidos como valores para atender às necessidades
do outro, a fim de proporcionar-lhe bem estar e satisfação. Nota-se também certa
tendência a reduzir-se a responsabilidade dos cônjuges para com as tarefas da convivência familiar, especialmente no tocante à geração e à educação dos filhos20. Com
efeito, a autoconsciência da pessoa e a forma das relações com os outros e com a
realidade social se estruturam a partir da própria inserção no mercado do trabalho e
pelo acesso ao consumo, atribuindo-se importância menor à própria inserção na rede
de relações familiares.
20
18
FOUCAULT, 1984.
21. Notas para uma Antropologia da Família
João Carlos Petrini
Na sociedade moderna, muitas vezes, parece mais decisivo, para a própria
realização pessoal, crescer na carreira profissional, dando mais importância às relações
funcionais que se caracterizam pela competição individualista e tendem a favorecer a
fragmentação da pessoa. Além disso, difunde-se uma sensibilidade que considera
qualquer vínculo como uma amarra mortificante, parecendo desejável ficar livre de
qualquer relacionamento mais profundo.
O entrelaçamento de amor, sexualidade e fecundidade que, tradicionalmente,
constituiu o núcleo do matrimônio e da família, nestas últimas décadas, parece dispensável, podendo-se viver a sexualidade sem a fecundidade, a sexualidade sem o amor,
a fecundidade sem a sexualidade21. Estes três elementos ultimamente se distanciaram,
cada um percorrendo um itinerário próprio, distinto dos outros, com conseqüências
importantes. Por exemplo, a sexualidade separada do amor e da fecundidade afasta-se
da esfera da cultura, isto é, da vivência de valores livremente acolhidos, aproximandose sempre mais da esfera da natureza, isto é, da instintividade22. De forma análoga, a
fecundidade separada do exercício da sexualidade e do amor aproxima-se da atividade
produtiva, segundo a lógica do mercado capitalista, incluindo a avaliação de custos e
benefícios. Nesse ambiente, é fácil que o amor seja vivido como sentimento efêmero
ou paixão, perdendo aquela riqueza de experiência e de humanidade, que a literatura
mundial de todos os tempos documenta amplamente.
As novas tecnologias de fecundação artificial, clonação e de manipulação
genética apresentam novas questões, ainda em debate, cabendo aprofundar, não apenas os aspectos médicos e psicológicos, mas também éticos e morais23. Com efeito,
não somente a sexualidade pode estar separada da paternidade e da maternidade, mas
torna-se possível a procriação sem o exercício da sexualidade. A fecundidade desligada de uma relação de amor aparece agora como definida pela decisão individual e
pelo acesso à tecnologia sofisticada24. Ainda que soluções desse tipo sejam quantita
21
MELINA, 1996; SCOLA, 2000.
22
CAFFARRA, 1992.
23
SEGUIN, 1997.
24
OLIVEIRA, 1993; RHONHEIMER, 2000; AZEVEDO, 2000; SEGRE e COHEN, 2000.
19
22. Família: o primeiro sujeito educativo
20
tivamente pouco significativas, recebem tamanha divulgação que, juntamente com
outras circunstâncias da cultura contemporânea, favorecem uma imagem de vida
adulta "livre" da convivência familiar, reforçando a tendência que considera dispensável o vínculo familiar. Os meios de comunicação social projetam estilos de vida e
imagens de família muitas vezes atípicas e contribuem decisivamente para a formação
e a difusão de novos valores e novos modelos de comportamento na convivência
conjugal.
Muitos casais optam, em época mais recente, por uniões de fato. Na
realidade, em muitos casos não se trata de uma opção, mas de necessidade imposta
pela situação de pobreza que desaconselha despesas com o matrimônio, aguardando
tempos mais propícios para consagrar jurídica e/ou religiosamente a própria união.
Há, no entanto, uniões de fato, que não pensam em postergar, mas ignoram ou
rejeitam o compromisso conjugal estável. Esquiva-se uma oficialização do vínculo,
para evitar complicações de natureza jurídica, caso termine o interesse em partilhar a
vida, ou pelo temor de que o vínculo se torne uma amarra, que poderá limitar a
liberdade individual.
É importante compreender como o homem e a mulher elaboram essas circunstâncias, com que grau de liberdade cada um escolhe ser companheiro (a) do
outro, em que medida se trata de uma forma de relação que nasce da conquista da
igualdade entre os sexos ou de uma edição nova da antiga supremacia masculina. Vale
a pena estudar os itinerários dessas uniões no transcorrer do tempo, quanto à duração
e a possíveis mudanças do significado daquela união, quanto à cooperação nas tarefas
educativas com relação a eventuais filhos e na administração da casa. Cabe indagar
como se reorganizam as relações familiares, a paternidade e a maternidade e o
parentesco mais amplo, como são vividas as relações com os órgãos da administração
pública (escola, centro de saúde, etc.), como, de fato, a legislação é utilizada para
defender os interesses dos membros mais frágeis nessas relações. Também se deve
elucidar o que parece uma ambigüidade paradoxal: de um lado, a recusa de um vínculo
jurídico e/ou religioso que legitime aquela união como família, de outro, a necessidade
de serem reconhecidos e aceitos como uma família entre as outras.
Nas uniões de fato, o recíproco pertencer-se de um homem e de uma mulher
e de eventuais filhos é pensado, pelo menos de início, como uma realidade precária e
23. Notas para uma Antropologia da Família
como uma questão privada, irrelevante para a sociedade, um fato que diz respeito
apenas à intimidade dos envolvidos, com o qual a sociedade no seu conjunto não
estaria diretamente implicada. Mas, no caso em que a união de fato se consolida e dura
no tempo, a ponto de seus membros serem amparados pelo ordenamento jurídico,
com a atribuição de direitos e deveres análogos aos de uma família juridicamente
constituída desde a origem, cabe ainda falar de união de fato? Com efeito, a precariedade que havia sido prevista foi superada e a união vivida apenas como fato privado
deixa de existir.
A família responde a necessidades humanas e sociais relevantes, por isso é
considerada um recurso para a pessoa e para a sociedade25. Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar permanece, sob uma multiplicidade de formas, nas
diversas culturas, em todos os períodos históricos, como forma de relação social
constitutiva da espécie humana26.
A família constitui um recurso para a pessoa, nos mais diversos aspectos de
sua existência, estando presente como uma realidade simbólica que proporciona
experiências no nível psicológico e social, bem como orientações éticas e culturais27.
Nela encontram-se os elementos fundamentais da identidade simbólica do indivíduo
enquanto ser humano, que o diferenciam de um indivíduo animal. No espaço da vida
familiar, verificam-se experiências humanas básicas que duram no tempo, independentemente da vontade das pessoas envolvidas, tais como, a paternidade, a
maternidade, a filiação, a fraternidade, a relação entre as gerações e seu impacto na
descoberta do nexo com a geração da vida e com a realidade da morte. Em suma, a
família é um requisito do processo de humanização, que enraíza a pessoa no tempo,
através das relações de parentesco, destinadas a permanecer durante toda a existência.
Por outro lado, essas relações remetem a pessoa para a busca de um significado
adequado. Nascer, amar, gerar, trabalhar, adoecer, envelhecer, morrer são ações ou
processos ligados às relações de parentesco e, quase sempre, escapam ao controle da
25
João Carlos Petrini
Família: recurso
para a pessoa e
para a sociedade
KALOUSTIAN, 1994. p. 11; CHINOY, 1993. p. 203.
26
CHINOY, 1993. p. 203; ANSCHEN, 1974.
27
MORANDÉ, 1994; BRONFENBRENNER, 1996; WINNICOTT, 1997.
21
24. Família: o primeiro sujeito educativo
Família: lugar de
socialização e
educação
pessoa. Por causa disso, exigem uma reflexão que busque, para além das circunstâncias dadas, um significado mais profundo.
A família também constitui um recurso para a sociedade, pois facilita respostas a problemas e necessidades cotidianos de seus membros. A família é um recurso
sem o qual a sociedade, da forma como está organizada atualmente, entraria em
colapso, caso fosse obrigada a assumir tarefas que, via de regra, são desempenhadas,
de forma melhor e a menor custo, por ela. Através da proteção, da promoção, do
acolhimento, da integração e das respostas que oferece às necessidades de seus
membros, a família favorece o desenvolvimento da sociedade.
A família, constituída por um homem e uma mulher e eventuais filhos, tem
sido o lugar fundamental da socialização, da educação das novas gerações. Com efeito,
na família é transmitida não apenas a vida, mas o seu significado, o conjunto de
valores e critérios de orientação da conduta, que fazem perceber a existência como
digna de ser vivida, em vista de uma participação positiva na realidade social28.
Na família, a criança faz a experiência de ser acolhida e amada gratuitamente,
isto é, sem condições prévias, já no ventre materno e, em seguida, nas diversas etapas
do desenvolvimento, até a maturidade. Ela experimenta a positividade de pertencer a
pai e mãe, não como um objeto mas como pessoa, no respeito e no diálogo, em
contexto afetivo29.
Na família, a criança faz experiências e aprende a conviver com a diferença
(sexual, de idade, de temperamento, etc.) como algo positivo, educando-se a viver
relacionamentos interpessoais de colaboração, serviço recíproco, tolerância, indispensáveis para um equilibrado desenvolvimento. Nesse ambiente, também estão
presentes limites de diversa natureza, sendo o maior deles a morte. A convivência
familiar apresenta também conflitos, disputas, ausências, escassez de recursos materiais, agressividade e, em alguns casos, desvios do comportamento e violência. Cabe
indagar quais condições tornam possível enfrentar positivamente os problemas emer-
28
22
PIAGET, 1977; PIAGET, 1996.
29
BOWLBY, 1984; DOR, 1991; EMDE, 1995.
25. Notas para uma Antropologia da Família
João Carlos Petrini
gentes, percebidos como provocação para o desenvolvimento da personalidade e
quais condições, pelo contrário, produzem desajustes diversos.
A criança dá passos de maturidade quando, acompanhada pelos pais, tem a
possibilidade de enfrentar esses limites como desafios que exigem esforço para
superá-los ou, caso sejam invencíveis, para aceitá-los30.
A família constitui uma rede de solidariedade31, mais ou menos sólida, quase
sempre eficaz para oferecer os cuidados necessários a seus membros, especialmente
quando apresentam incapacidade temporária ou permanente para prover autonomamente suas necessidades, como nos casos de crianças e idosos ou nos casos de enfermidades físicas e psíquicas ou, ainda, de desemprego. Os cuidados que são recebidos
na família resultam particularmente importantes quando não está previsto o atendimento especializado por parte de instituições públicas e quando os serviços de
instituições privadas tornam-se inacessíveis, como é o caso da maioria da população.
A família, por ser o lugar da primeira socialização e por desempenhar funções
socialmente importantes junto aos seus membros, constitui um ponto nevrálgico com
relação a um amplo conjunto de necessidades. Com efeito, quando a família se
encontra em situação de fragilidade e ausente da existência das pessoas, os problemas
enfrentados tendem a agravar-se. Pelo contrário, à proporção que a família consiga
interagir nas novas circunstâncias socioculturais, pode contribuir para amenizá-las. A
família é, portanto, um sujeito social, alvo estratégico de políticas públicas que
venham a atuar no sentido de promovê-la, enquanto rede social eficaz, conduzindo,
através do seu fortalecimento, ao desenvolvimento de toda a sociedade.
30
PIAGET, 1987; PIAGET, 1990.
31
SANNICOLA, 1994; SANTORO; PETRINI; MORANDÉ; FORNARI (Org.) 1990.
23
26. Família: o primeiro sujeito educativo
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26
29. Família, Lugar de
Acolhida e Solidariedade
Maria Grazia
Figini
Agradeço muito por terem me convidado para este encontro, Família: o
primeiro sujeito educativo, cuja temática é fundamental não só no Brasil, mas no mundo
inteiro. Estamos de fato numa fase, que se caracteriza culturalmente, de ataque, pelo
poder, à família e à sua origem.
Como vocês sabem, o poder mundial está tentando atacar na raiz o sujeito da
família, porque uma pessoa que sabe quem ela é e a quem pertence, mais dificilmente
pode ser manipulada.
A Declaração do Direito Universal afirma que toda criança tem o direito de
crescer dentro do contexto familiar, um critério que parece contraditório com o que
expressei até agora.
Nessa aparente contradição, em que, de um lado, se diz que a criança tem o
direito de crescer dentro de uma família, proclamado pela Declaração do Direito
Universal, e, por outro lado, ataca-se a família na raiz, podemos concordar que são
aspectos relacionados à temática família, no entanto tendo cada um formas culturais
diferentes de conhecimento da mesma. A família da qual eu vou falar hoje, é um lugar
no qual está um pai e uma mãe, que decidem de forma consciente acompanhar o
destino dos próprios filhos, ou seja, educá-los. Vocês podem dizer: o que tem a ver
essa introdução comigo, que trabalho dentro de uma obra educativa, num centro
diurno para adolescentes? É que nós devemos entender o que significa educar. Este é
um trabalho que dura a vida inteira. Compreender o que significa a palavra educar não
pode acontecer num instante, mas é um percurso contínuo, uma aventura da vida
toda; porque educação implica dois sujeitos: um eu e um tu.
27
30. Família: o primeiro sujeito educativo
Fundamentos da
educação: um
recíproco pertencer.
Família:
referência principal
da educação.
28
Eu conheci muitas das realidades de vocês e estimo o trabalho que fazem
com as crianças e com as famílias, porque vocês levam em conta o fato de que a
educação se fundamenta sobre um recíproco pertencer em que o adulto e a criança
tenham um lugar objetivo com o qual comunicar-se, escutando com afeição a resposta
do outro.
Uma criança começa a ser feliz quando ela começa a perceber que pertence
a alguém. É nesse ponto que pode acontecer o relacionamento, a experiência do
relacionamento. É só dentro desse relacionamento que se pode transmitir o sentido
daquilo que se é e daquilo que se faz. A educação é um processo muito importante,
através do qual uma criança pode se tornar adulta, uma pessoa responsável, ou seja,
tornar-se capaz de enfrentar todas as situações cheias de desafios da vida cotidiana,
sobretudo nos contextos difíceis de risco. Esse direito de cada criança – de se poder
tornar adulta e poder ser educada – é um direito que tem a ver também com a família.
É a família que tem o direito de educar: só através de uma hipótese positiva no
relacionamento vivido em família que a criança pode ter o desejo de se tornar adulto,
de crescer.
Introduzi nessa minha primeira parte o fato de que, para educar, precisa-se
de uma família, precisa-se de um adulto, um eu, um tu e um lugar que se chama
morada.
Entendo que o que estou dizendo não faz parte de algo popular, porque o
conceito que estou explicando, ou seja, que é possível educar só através de um
pertencer, é algo atacado. Vocês sabem que, para poder entrar em relacionamento
com um problema, com um objeto, com uma pessoa, precisa-se ter um método: é o
objeto, algo que estou observando, que vai determinar o método que eu devo usar
para olhar. Por isso não posso estabelecer a priori um método para enfrentar o objeto
de um problema. Essa é a reviravolta do trabalho educativo e do trabalho social. Do
outro lado, viu-se também na Europa que a resposta à necessidade social dentro da
educação tem como ponto de partida um aspecto fundamental: a liberdade. As
respostas pré-definidas não podem responder às necessidades do homem, mas
respondem apenas ao poder dominante no momento.
Para crescer a criança precisa fazer dentro do contexto familiar ou educativo
experiência de confiança. Só dentro de um relacionamento de confiança pode acon-
31. Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade
tecer o desenvolvimento. A família é em qualquer caso a protagonista, é a referência
principal da educação; quando está presente, é preciso sustentá-la, apoiá-la, de forma
tal que possa se tornar sujeito que desenvolva a tarefa educativa.
O adulto, o educador, deve sempre ter consciência das razões do que é
educar. Educar significa acompanhar ao sentido da vida. Eu devo saber por que eu
vivo, para decidir viver. As regras que vou encontrar enquanto cresço devem ser
instrumentos para desenvolver a minha razão e não para poder determinar o
desenvolvimento da minha liberdade. O risco do educar é o risco de uma liberdade, é
o risco de uma razão afetiva, é um risco de se colocar num diálogo, é um risco que
valoriza as potencialidades positivas da família e da criança, é um diálogo contínuo.
Eu sei que vocês poderiam levantar logo uma objeção: como é possível
trabalhar com a família se não existe família? Vamos dar o exemplo de uma creche: a
mãe vem e pede para poder inscrever a sua criança. Aqui nós podemos ter dois
caminhos: podemos encontrá-la de forma burocrática, formal, ou podemos começar
a olhar para essa mãe ou para esse casal que se apresentou e quer fazer a inscrição do
filho. Só se eu tenho a razão, a consciência daquilo que eu estou fazendo, posso
decidir empenhar, comprometer o meu tempo e os instrumentos que tenho à minha
disposição para conhecer aquela pessoa que está na minha frente; e por isso eu
começo a falar com ela, a encontrá-la ou a visitá-la na casa para entender quem é essa
criança, de quem se trata; se existe uma família, como é essa família.
O conhecimento não é uma forma de cobrança social, não se trata de verificar como é a casa, os cômodos, etc. mas, se vai acontecer a inserção na creche, eu devo
conhecer quem é essa pessoa que eu estou colocando na escola: Quem é essa criança?
Qual é a sua história? Qual é sua família? Quais são os seus relacionamentos? Quem
são os amigos? Quais são as necessidades dessa mulher, dessa mãe e dessa família?
A creche não é um lugar onde deixar as crianças por algumas horas, mas é o
encontro de pessoas desconhecidas que começam uma história, uma história de
relacionamento, um relacionamento também de ajuda. Vocês entendem que o primeiro momento, que pode ser o da matrícula, coloca nossa atenção sobre a família,
considerando a origem da criança, a família dela, qualquer que essa seja.
Toda a nossa vida é uma busca pela nossa origem. Seja consciente ou inconscientemente, nós estamos buscando a nossa origem. Nós entendemos que educar
Maria Grazia Figini
Tarefa educativa:
um projeto comum
compartilhado
29
32. Família: o primeiro sujeito educativo
Compartilhar
objetivo e sentido
30
levando em conta o pertencer, levando em conta a família, significa colocar em ato
algumas ações e usar instrumentos, porque nós temos que despertar as potencialidades que estão presentes nesta criança, que se apresenta com a mãe para ser inserida
na creche. A nossa tarefa não é só a de ensinar algumas competências para essa
criança, mas é a de educá-la. E, nesse sentido, a tarefa educativa não pode ser algo
individual, mas o resultado de um projeto comum, compartilhado por adultos que
livremente assumem a responsabilidade de conduzi-lo. Isso cria de imediato uma
visibilidade e também uma cultura no nível civil e social.
O processo educativo, se é algo compartilhado entre adultos, que são os
educadores e a família, em um lugar, isso logo determina um processo e provoca uma
mudança em oposição àquele conceito reduzido de família.
Olhando as famílias como destruídas se olham como algo que deve ser
cuidado e deve ser apoiado; pelo contrário, a família é um sujeito, um recurso e
enquanto sujeito, ela não se coloca logo como um sujeito doente. Nós devemos lutar
todos os dias para tirar a mentalidade, que nos foi colocada, de que a família é um
sujeito que deve ser ajudado. Pelo contrário, a família é um recurso que pode ser uma
resposta social.
Desculpe-me se fico muito animada falando dessas coisas, mas neste momento temos muitas notícias nos níveis nacional e internacional que vão contra a
família, considerações que se apresentam com uma visão psicológica e sociológica
parcial de abordagem à família. Eu não sou contra a utilização de algumas técnicas
especializadas, mas é preciso entender que educar é diferente de curar. A educação é
feita pelos adultos educadores e pela família; a cura fica nas mãos dos especialistas. O
que está acontecendo é que está desaparecendo o conceito de educação, para introduzir alguns conceitos psicológicos com abordagem na criança, para tirar o ponto
final, o objetivo, a meta da educação, porque educar é difícil. Para educar, é preciso
compartilhar entre os adultos o objetivo e o sentido, é preciso que nos deixemos
educar. Meu lema é educar-se para educar, ou seja, uma contínua tensão para querer
compreender e ajudar essa criança que está na minha frente a crescer. Isso leva a um
diálogo, uma aventura do educar, no qual cada ação, cada passo no processo educativo
deve ser a base para enriquecer e criar sempre novos instrumentos, porque é possível
educar se nós mudamos. A educação é algo que muda. O trabalho de educar é o
33. Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade
trabalho mais fascinante, mais interessante da vida porque é uma provocação contínua
no encontro de dois rostos, de duas pessoas que juntas procuram e constroem
respostas adequadas. Se eu olho para aquela mãe que veio até minha creche para
inscrever o filho na escola materna e a olho como família e não só como uma mulher
mais seu filho, logo começa-se um envolvimento educativo com a família que coloca
algo de novo dentro do ambiente educativo e do ambiente que está ao redor.
A liberdade de um povo pode ser compreendida pela liberdade da educação,
porque o risco de educar é essa contínua aventura evolutiva. Vocês aqui presentes são
os protagonistas desta aventura. Essa consciência pode livrar e fermentar os lugares
de vocês, nos quais família e criança podem ser acolhidas e educadas, podem nascer
sempre novas respostas também sociais de apoio às famílias mesmo que sejam de
risco.
Lembrem-se que olhar para uma pessoa é a coisa mais difícil porque eu posso
ver uma pessoa, mas para olhá-la eu devo me envolver com esse sujeito que está na
minha frente.
Não é suficiente dizer que é importante o trabalho com as famílias, mas nós
devemos entender o que significa o trabalho com as famílias. Trabalhar com as
famílias é diferente de trabalhar para as famílias, porque, quando eu trabalho “para” a
família, tenho uma ótica assistencialista; quando digo que trabalho “com” as famílias
significa colocar em ação uma dinâmica entre dois sujeitos desconhecidos. Significa
conhecer, entender do que esse sujeito precisa. Como faz uma pessoa para entender
tudo isso? Só há um modo: trabalhando junto, sendo complexa a situação, resposta
não pode ser dada só por uma pessoa, mas pode acontecer dentro de um compartilhar, uma co-divisão entre adultos.
Continuo insistindo sobre esses conceitos, porque é fácil partirmos de uma
posição de já sabermos como estão as coisas: eu sei o que é uma família, eu sei o que
significa educar, eu sei o que é uma criança. Pelo contrário, permanecer sobre o sentido significa um tempo muito longo de trabalho, mas significa antes de tudo que seu
trabalho não pode se tornar uma rotina, que seu educar não pode se tornar um simples ensinamento de algumas competências, mas é um pedido contínuo que diz: o que
essa criança precisa? O que essa criança quer me dizer? Quem é a família dela? Como
faço para estar junto dela? As respostas são diferentes e podem se dar nos encontros
Maria Grazia Figini
Trabalhar com as
famílias, não para
as famílias
31
34. Família: o primeiro sujeito educativo
Reconhecer a
unicidade de cada
família
32
com as famílias nas escolas, nos momentos de festas. Mas, na minha maneira de ver,
a questão fundamental é que a família junto com o educador, qualquer que seja o nível
cultural da família, possa participar e compartilhar o projeto educativo para aquela
criança. Se não é assim, cada ação se torna simplesmente um instrumento, um espaço
de tempo e de relacionamento, mas vazio de significado, de sentido. Para educar, nós
devemos continuamente despertar em nós o sentido, porque as nossas respostas às
crianças e às famílias não devem ser pré-definidas mas devem ser uma contínua
surpresa, quase uma antecipação do pedido. Este é o trabalho com as famílias, parece
pouca coisa, ou não ter algo de novo, mas é só um cotidiano paciente, uma capacidade
de olhar de modo profundo que pode permitir o trabalho real com as famílias.
Sendo cada pessoa única e irrepetível, assim cada família é única e irrepetível,
eu não posso tratar do mesmo modo todas as famílias, tendo presente isso o seu
trabalho se torna uma novidade contínua, não pode ser um costume; eu não posso já
saber hoje aquilo que vai acontecer amanhã, porque onde existe um relacionamento
entre duas pessoas sempre acontece uma novidade, algo de novo. Há sempre algo que
me suscita maravilha, há sempre algo que me antecipa.
Estamos falando de ambiente, de família, de educação e de relacionamento.
Tudo isso faz parte de uma história, da história pessoal daquela criança, da história
daquela família e da história daquele povo. Povo, uma palavra que agora não estamos
mais acostumados a usar.
Esta história é o trabalho com as famílias; o desejo de conhecer esta história,
o desejo de descobrir as raízes e as tradições dessa história, não de cortá-las, porque
lembrem-se que cada pessoa que está obrigada, por um poder ou por situações ou por
qualquer outra razão, a cortar as próprias raízes não pode ser uma pessoa livre.
Lembrem-se que a liberdade não significa fazer aquilo que se quer, mas ter um lugar,
uma casa onde se possa desenvolver a competência e se tornar adulto. Quando
alguém quer tirar a minha raiz, quando alguém quer que eu esqueça a minha origem,
este é um inimigo, e não se pode educar entre inimigos, só entre amigos. Amigo é um
nível de responsabilidade, de autoridade da pessoa adulta que é consciente da criança
que está na frente dela.
Educação vem de uma palavra latina e-ducere que significa tirar para fora. Isso
significa fazer com que cada pessoa possa ser aquilo que deve ser. Essa é a tarefa
35. Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade
Maria Grazia Figini
educativa, a mesma tarefa que temos no trabalho com a família. Para que uma mãe
possa ser acolhida como uma pessoa que pertence a um núcleo familiar, deve ser
olhada de forma diferente, esse olhar que ela recebe, seguramente vai gerar algumas
perguntas, e nós podemos criar uma cultura nova só através de perguntas sucitadas e
não de respostas pré-definidas impostas.
Muitas vezes, nós podemos entender a educação e também a cultura como
algo que se baseia sobre o conhecimento de algumas respostas, mas o homem é um
pedido contínuo desde o momento no qual uma criança nasce até o momento no qual
morre; nós devemos continuamente despertar essa pergunta para podermos trabalhar
com a família. Eu não dei para vocês algumas receitas, alguns modelos, eu não deixo
algumas respostas, algumas ferramentas, porque essa é a aventura do seu trabalho, de
vocês, educadores, dos seus responsáveis e das equipes especialistas. Eu não acredito
em um esquema. É importante ter ferramentas, ter instrumentos para poder avaliar
de forma qualitativa o trabalho, mas os instrumentos e as ferramentas mudam. Cada
vez mais vocês vão crescer nessa dinâmica entre um eu e um tu e as ferramentas se
inovarão. Quando as ferramentas permanecem estáveis por muito tempo significa que
nós adquirimos um esquema. Dentro de um trabalho de relacionamento, dentro do
trabalho com as famílias, dentro do trabalho educativo, não se avança através de
esquemas, mas indo cada vez mais fundo no conhecimento. Ou seja, educar-se para
educar, estar com as famílias para trabalhar com as famílias.
O poder nos quer como indivíduos, quer homens sozinhos, livres de
estabelecer qualquer tipo de relacionamento como e quando se quer. O sentido da
vida e o sentido do viver vão contra essa concepção de tipo individualista, porque,
para buscar o sentido da vida, eu devo estar com outros, devo dialogar com outros,
devo me comparar com outros, e, assim, nos tornamos homens livres.
33
36.
37. COF – Uma Experiência com Famílias
A idéia é poder contar para vocês um pouco da nossa história, do trabalho
do COF, o Centro de Orientação da Família, desenvolvido nesses três anos, na cidade
de Salvador (BA), e relatar também as perspectivas de continuidade.
O COF nasceu como uma intervenção do curso de mestrado. Ontem, vocês
conheceram o Padre João Carlos Petrini que dirige o Instituto João Paulo II, sede do
mestrado em Ciências da Família. Essa iniciativa de criar centros voltados para a
questão da família veio do Papa, com a proposta de desenvolver estudos e pesquisas,
através do mestrado, mas promovendo também intervenções práticas dentro da
realidade da cidade . A forma encontrada para realizar esse projeto foi através de um
convênio com a CEI – Comunidade Episcopal Italiana –, a instituição mantenedora,
sendo escolhidas para executá-lo a AVSI – Associação de Voluntários para o Serviço
Internacional – que é uma ONG italiana, e a CDM – Cooperação para o Desenvolvimento e Morada Humana –, a ONG brasileira parceira da AVSI.
O COF como estrutura tem dois aspectos básicos: os consultórios fixos e o
trabalho móvel que se dá através da realização de cursos em outras instituições,
escolas, associações, paróquias, instituições públicas e privadas.
A equipe atua numa perspectiva de trabalho científico junto ao instituto,
participando de grupos de pesquisa e organizando seminários sobre o tema
família.
O objetivo do nosso trabalho é acompanhar e fortalecer famílias em
dificuldade.
O projeto foi implantado em maio de 2000, com a realização de um curso,
Lílian
Perdigão
Caixêta Reis
Objetivo e
público alvo
35
38. Família: o primeiro sujeito educativo
destinado à formação da nossa equipe, aberto também a alunos do mestrado e
profissionais parceiros.
A estrutura do COF é pequena, temos três consultórios, uma sala de reunião
e a recepção. E ao todo, atualmente, são seis profissionais desenvolvendo esse
trabalho. Os recursos são em torno de 150 mil reais por ano, praticamente para a
manutenção dos profissionais.
O público alvo – como o COF está situado num bairro central – integra toda
a área metropolitana de Salvador, não tendo esse critério de definir uma região ou um
grupo de pessoas. O COF, com seu trabalho gratuito, é aberto, sendo recebidas
pessoas de todos os tipos, até mesmo famílias do interior da Bahia.
A equipe é interdisciplinar, composta pelos seguintes profissionais:
• uma médica – Giuseppina Gallicchio;
• uma advogada – Isabela Bulos;
• uma assistente social – Luciana Leal de Andrade;
• duas psicólogas – Lílian Perdigão C. Reis e Sylvana L. A. dos Santos e
• um orientador espiritual – João Carlos Petrini.
Os serviços
oferecidos e o
método de trabalho
36
Os serviços oferecidos são: aconselhamento psicológico, serviço social,
orientação sexual e planejamento familiar; atendimento jurídico e mediação familiar;
orientação espiritual; orientação na educação dos filhos (todos os membros da equipe
têm um cuidado educativo no trabalho); orientação para adolescentes e orientação
profissional.
O método de trabalho, que é base de toda a condução do projeto, tem como
ponto de partida o reconhecimento da centralidade da pessoa, a questão do
acolhimento: acolher a pessoa naquilo que ela é, aceitar a pessoa, a dignidade da
pessoa naquilo que ela é. É uma abordagem horizontal; então, a pessoa é valorizada
em todos os seus aspectos. Não é a questão de ver só o psicológico ou só o biológico,
mas de ver toda a pessoa, todo o contexto de vida dela, buscando conhecer a história
dessa pessoa. Numa abordagem integrada, a equipe é interdisciplinar e tem essa visão
mais ampla da situação da família, adota uma abordagem global, porque atua dentro
de uma perspectiva de rede de suporte, buscando conhecer todo o contexto em que
essa família está inserida e identificando pontos de apoio para essa família.
39. COF – Uma Experiência com Famílias
Como é a chegada da pessoa ao COF? A inauguração do COF foi divulgada
em todos os jornais de Salvador e na televisão, o que criou uma difusão imensa: no
primeiro dia de atendimento, nós tínhamos 40 pessoas já inscritas. A partir daí, os
encaminhamentos passaram a ser feitos pelas pessoas atendidas, não precisamos mais
nos preocupar em divulgar o COF. As famílias ou os profissionais passaram a ser os
maiores divulgadores desse projeto, assim como outras instituições.
Quando a pessoa chega para um atendimento, passa por uma primeira
entrevista. A pessoa pode ter mais de um encontro com a assistente social, que, nesse
primeiro encontro, pode chamar algum membro da família antes de fazer algum
encaminhamento. Um aspecto que enriquece nosso trabalho é que a assistente social
do COF é formada em terapia familiar sistêmica, possuindo uma especialização que
ajuda na condução do atendimento. Essas primeiras entrevistas são importantíssimas,
porque ali buscamos conhecer essa pessoa; não é o problema que é enfatizado, pois a
pessoa é diferente do problema. Não se centraliza no problema, mas, sim, na pessoa.
Nessa primeira entrevista, é iniciado um processo de ajuda, compartilhando
a história individual dessa pessoa ou da família. Esse compartilhar a história vai
permitindo uma compreensão dessa família e, ao mesmo tempo, a própria pessoa é
ajudada no sentido de se apropriar da sua realidade. Quando eles estão contando para
a assistente social o que está acontecendo com eles, de onde eles são, quem são eles,
vão repensando a sua vida; esse já é um momento de reorganizar, de tentar repensar
a sua estrutura de vida e de família. Nesse momento, a assistente social também
explica e apresenta o trabalho do COF, todo o funcionamento da equipe, deixando a
pessoa ciente de que as questões dela vão ser confrontadas com uma equipe. É
interessante isso no nosso projeto, porque a pessoa não confia em um profissional,
mas em uma equipe. A assistente social faz os encaminhamentos para a equipe ou
para profissionais da rede de apoio externa, se na primeira entrevista ela percebe que
a pessoa precisa de uma ajuda médica, já faz esse encaminhamento e, quando leva
para a reunião, já se adiantou essa parte. O que é principal nesse trabalho da primeira
entrevista é que a pessoa sai daquela postura imediatista, e nós também aprendemos
isso. Não é que ali ela vai chegar e resolver um problema de imediato ou que a equipe
do COF vai ter uma resposta mágica para dar naquele dia; a pessoa, a partir desse
confronto com a assistente social, começa a entender que está começando a percorrer
Lílian P Caixêta Reis
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40. Família: o primeiro sujeito educativo
Atendimento
psicológico
38
um caminho e que existe um caminho que pode ser percorrido. Esse é o principal
aspecto na finalização da primeira entrevista.
Agora, vamos conhecer cada um dos serviços que o COF oferece. O mais
procurado é o atendimento psicológico e, na origem do projeto, esse serviço seria de aconselhamento e orientação. Quando se fala de aconselhamento, pressupõe-se em torno
de 10 sessões, normalmente uma sessão por semana, um trabalho de curto prazo. Que
mudanças aconteceram conosco e que adaptações foram necessárias dentro desse
trabalho? Primeiro, os psicólogos do COF tiveram que entender como realizar o
trabalho compatível com a metodologia da instituição, obedecendo àquele aspecto da
centralidade da pessoa. A abordagem que encontramos que mais se identificou com
essa proposta foi o aconselhamento centrado na pessoa, inspirado no modelo de Carl
Rogers. Nesse tipo de aconselhamento, o profissional se coloca como pessoa perante
a outra pessoa, busca um relacionamento de reciprocidade, de acolhida, de aceitação
da pessoa naquilo que ela é, de empatia, que é o colocar-se no lugar do outro e tentar
compreender o outro naquilo que ele está vivenciando. Um aspecto no qual fomos
crescendo dentro do trabalho, é que começamos a adotar também o modelo de relação
de ajuda, a escuta ativa. Nessa escuta ativa o profissional busca atuar, não só ouvindo o
que a pessoa está falando, mas ouvindo nas entrelinhas também e olhando para a
pessoa. Assim, não só o conteúdo da fala, mas que sentimentos ela expressa, o
pensamento dela, como você vê a organização do pensamento dessa pessoa, depois,
o profissional devolve, confrontando suas impressões com a pessoa. Enfim, uma
escuta mais ampla.
Outra coisa que adotamos em nosso trabalho foi um repertório de intervenções.
Por quê? Porque os profissionais do COF têm formação diferente. Por exemplo, a
assistente social é terapeuta de família; eu sou logoterapeuta e estou me formando no
mestrado em ciências da família; e a outra psicóloga é formada em grupo operativo.
Então, começamos a usar dentro do nosso trabalho técnicas e recursos que vinham
dessa formação que cada profissional já possuía, valorizando também a experiência de
cada um. Isso permitiu uma flexibilidade de recursos: para cada família, é possível usar
recursos, intervenções e encaminhamentos diferentes.
Como exemplos de recursos, posso pedir que a pessoa faça simplesmente
uma lista das coisas mais importantes na vida dela. A partir daí, pode-se ver o que ela
41. COF – Uma Experiência com Famílias
valoriza. Listas do que a pessoa gosta, o que ela faz e não gosta de fazer; que
responsabilidades, que obstáculos percebe em sua vida, o que pensa na forma de
enfrentar esses obstáculos. Usamos muito estas listas, pois, quando a pessoa começa
a listar essas coisas, pensa possibilidades a partir dali. Também utilizamos técnicas de
desenho, de colagem, dinâmicas com a família, um jogo familiar lúdico quando
crianças estão presentes. Um recurso interessante da terapia familiar sistêmica é o
genograma, um tipo de uma árvore genealógica. Você faz a história da família, busca
averiguar os vínculos entre as pessoas dessa família, o relacionamento, a quem esta
pessoa é mais apegada.
No COF houve muita demanda para atendimento psicológico e, como não
era possível lidar com esta, buscamos alternativas para supri-la. Quando a pessoa tem
necessidade de outro encaminhamento, recorremos a profissionais de psicoterapia ou
psiquiatras, mas já aconteceu de não conseguir encaminhar a pessoa e, diante de sua
situação de sofrimento, optamos por manter o atendimento no COF.
Por isso, demos início a um trabalho de psicoterapia breve, que dura em torno
de seis meses. Alguns casos chegaram até a um ano, porque era uma necessidade
daquela pessoa e decidimos em equipe que era mais interessante que permanecesse
em acompanhamento conosco. Assim, há casos que permaneceram um tempo maior.
Outra alternativa que encontramos foi o trabalho com grupos. Chamados grupos
de encontro, são compostos por pessoas que já passaram pelo atendimento individual:
grupos de mães, grupos de jovens e de jovens adultos. Existe uma organização desses
grupos em termos de questões, de problemáticas que estão enfrentando. Quando uma
pessoa no contexto do grupo confronta, partilha aquilo que ela está vivendo e
descobre que outras pessoas vivem questões semelhantes, ou enfrentam as próprias
dificuldades com outros recursos, isso também abre um leque de possibilidades para
a pessoa de perceber a realidade dela de uma forma diferente.
No relacionamento com parceiros, nossos parceiros externos se tornaram quase
que membros da equipe. Por exemplo, não há um médico psiquiatra no projeto, mas
a convivência, o fato de encaminhar as pessoas para os psiquiatras, fez com que
criássemos um vínculo com esses profissionais. Então, muitas vezes ligamos para o
profissional para confrontar aspectos relativos ao atendimento (com autorização das
pessoas atendidas). Isso cresceu a tal ponto que hoje esses médicos recomendam às
Lílian P Caixêta Reis
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42. Família: o primeiro sujeito educativo
Orientação sexual
e o planejamento
familiar
Orientação espiritual
40
pessoas que eles estão atendendo que procurem o COF. Tornou-se, assim, uma
parceria recíproca.
Outro trabalho é a orientação sexual e o planejamento familiar. O planejamento
familiar não é o uso de métodos contraceptivos; como viver a maternidade e a paternidade responsável é o ponto principal que focalizamos nesse trabalho. A surpresa
para nós é que a demanda maior que apareceu no COF foi justamente de mães que
queriam orientações de como lidar com a educação dos filhos em relação à questão
da sexualidade.
Outras questões são de pessoas com dificuldades sexuais, situação de impotência, frigidez ou mesmo algum problema de adoecimento, ligado a algum vírus.
No planejamento familiar, surgem questões de pessoas que não conseguem
ter filhos e querem lidar com isso, além da orientação sobre os métodos
contraceptivos. A médica apresenta todos os métodos, os riscos implicados nestes e
ainda ensina a fazer uso do método natural.
Focalizamos a questão da escuta médica, porque ela escuta a pessoa como um
todo, a família como um todo e não só aquele ponto do problema que ela traz.
É muito importante no trabalho médico e de toda a equipe a questão
educativa. Por exemplo, como repertório de intervenções, usamos a indicação de
textos, um livro para a família ler, um texto que lemos junto com a mãe sobre os filhos
etc. Na orientação sexual, o trabalho educativo, voltado para a responsabilidade na
vida sexual, ajuda a entender o sentido da própria sexualidade.
A orientação espiritual é principalmente um trabalho de diálogo e confronto,
com o orientador, a pessoa desabafa. Depois, volta aliviada para o atendimento com
a assistente social e consegue falar com mais tranqüilidade das questões que está
vivenciando para os outros profissionais. Há uma abertura maior a partir do momento
no qual se confronta com o orientador espiritual. É muito claro para nós e para as
pessoas que recorrem a este trabalho que não é uma confissão, mas um diálogo de
confronto com o orientador espiritual.
No COF nós temos dois orientadores que nos apóiam que são o padre
Petrini e o Padre Guido. É interessante o trabalho do Padre Petrini nessa perspectiva
de lidar com os conflitos familiares, ou oferecendo esclarecimentos sobre a visão da
igreja. Às vezes, a pessoa tem uma série de superstições e crenças em relação ao que
43. COF – Uma Experiência com Famílias
a igreja permite, ao que não permite, às proibições etc. Quando faz esse confronto
com o orientador, começa a entender que pode ser acolhida dentro da igreja naquilo
que ela é, com suas dificuldades.
Outro ponto é dos dilemas religiosos, quando as pessoas, diante da
dificuldade, buscam uma resposta mágica em religiões diferentes, indo do candomblé
ao espiritismo, à igreja católica, nessa confusão acerca da fé.
É ainda na orientação espiritual que as pessoas buscam conforto e
acolhimento diante de situações de perda ou adoecimento; aprendem a lidar com isso
e a aceitar essa dificuldade.
O principal aspecto é que, neste trabalho de orientação espiritual, se resgata
a dimensão espiritual, também dentro do trabalho da equipe. É entender a pessoa não
só do ponto de vista biológico, médico, psicossocial, mas a pessoa também como dimensão espiritual. Aqui se percebe mais claramente o significado do reconhecimento
da pessoa em sua totalidade, sua valorização em todas as dimensões.
Contamos ainda com a ajuda do Padre Guido que trabalhou com jovens que
faziam uso de drogas, e nos tem dado grande apoio na orientação a famílias que têm
dificuldades em relação à dependência química.
A orientação jurídica há uma identificação entre o COF e a advocacia. A nossa
advogada sempre fala: qual é o objetivo do direito? É o bem da pessoa. Ela coloca que
no COF é permitido que seja resgatado o interesse pela pessoa, a preocupação com
o bem do outro. Há uma postura de encontro com a pessoa da parte da advogada e
isso dá uma perspectiva diferente do trabalho. Por exemplo, às vezes, no trabalho com
casais separados, temos dificuldade de chamar um pai para o atendimento psicológico.
Este resiste. "Eu? Psicóloga, o quê? Não preciso disso não". Aí, quando enviamos a
carta da advogada, eles vêm na hora, se é questão jurídica aparecem. E se
surpreendem porque, nesse encontro, quando ela fala do COF e conta o que está
sendo feito com a família, esses pais passam a se tornar parceiros e se abrem ao
trabalho como um todo.
Recursos que a advogada usa e que são muito importantes para nós são essas
cartas convite, chamando para a entrevista, e o acordo extra-judicial, por exemplo em
questões de pensão alimentícia ou da guarda dos filhos. A advogada orienta a família
no COF e quando estes vão ao juiz é praticamente para homologar o acordo feito.
Lílian P Caixêta Reis
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Orientação jurídica
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44. Família: o primeiro sujeito educativo
Dinâmica do
trabalho
42
Há um atendimento em conjunto com a assistente social, nos casos em que
toda a família é convidada. A assistente social participa e ajuda nas intervenções, o que
é muito importante.
Existe também o trabalho de mediação familiar, que não é buscar a conciliação ou reconciliação. Muitas vezes a mediação familiar é ajudar a família a lidar com
a situação de sofrimento gerada pela separação ou pela situação de sofrimento que as
crianças estão vivenciando, para que os pais possam perceber que eles não são só um
casal, mas são pais, que têm filhos para cuidar. O que se busca mais é essa capacidade
de diálogo do casal em relação à questão dos filhos, a fim de acalmar essa tempestade
dentro do contexto do sofrimento que eles estão vivenciando.
E, finalmente, para vocês entenderem a dinâmica do trabalho como um todo:
a pessoa vem, passa pela secretária, que foi treinada para fazer o atendimento
telefônico e para receber a pessoa. É preciso cuidado de não ficar conversando dos
problemas com a pessoa na recepção. A pessoa chega ali num momento de confusão,
de grande angústia, e às vezes fala muito de si na recepção ou pelo telefone; então,
nós nos preocupamos com essa questão, isto é, cuidar da pessoa desde a recepção.
Depois, acontece a entrevista, e as informações são levadas para a equipe,
que trata da pessoa dentro de um contexto de família. O caso é discutido,
confrontado pela equipe como um todo. A pessoa volta para a assistente social que
faz o encaminhamento para os próprios profissionais ou para outras instituições.
Mesmo quando a pessoa é encaminhada para outras instituições, um tempo depois
buscamos um contato, averiguando como que a pessoa está. Nós já estabelecemos
um vínculo de relacionamento com as instituições de forma que os próprios
profissionais nos ligam para dizer "Olha, recebi alguém de vocês". Ou, quando a
assistente social liga, já tem a confirmação de que aquela pessoa já foi atendida. As
pessoas são sempre encaminhadas com uma cartinha dizendo o nome do profissional
que as está encaminhando. No final, é feita uma avaliação do trabalho com a pessoa,
que é encaminhada para outra instituição ou acontece o desligamento do COF. Esse
desligamento pode acontecer depois de um encontro, de dois, de um ano, depende
da família. Já aconteceu caso em que com apenas um atendimento foi possível
esclarecer e a família já conseguiu entender suas dificuldades e daí pôde ser desligada
do COF.
45. COF – Uma Experiência com Famílias
Quanto ao trabalho de equipe, funciona como uma rede de apoio interna. As
nossas reuniões são obrigatórias, uma vez por semana, com quatro horas de duração,
duas para discussão dos casos e duas para estudo. Nós nos ocupamos da análise dos
casos, da revisão metodológica, de ver o que a gente está fazendo, se o caminho certo
é esse, que método é o mais indicado.
O momento de estudo, que é obrigatório, parte principalmente das questões
que estamos enfrentando, temas como depressão, psicopatologia, mediação familiar,
planejamento familiar, enfim, aquilo que nasce do nosso trabalho é estudado, aprofundado pela equipe como um todo.
O que motiva o nosso trabalho? Essa pergunta foi muito interessante, porque
no início ficávamos preocupadas em atender à demanda, parecia que tínhamos que
atender toda a população de Salvador. Depois, nós nos demos conta de que não era
isso, que o nosso trabalho nasce da pessoa. Assim, a nossa preocupação hoje é oferecer um trabalho de qualidade para aquela pessoa, o que implica em ser presença para
aquela pessoa e em estabelecer um relacionamento com ela. Quando entendemos isso
começamos a elaborar melhor a angústia da lista de espera.
No primeiro atendimento, a assistente social esclarece para as pessoas que
não há horário para atendimento psicológico, mas caso queiram aguardar seu nome
será inserido em uma lista de espera. Como a demanda é imensa, algumas pessoas só
foram chamadas para atendimento psicológico depois de um ano de inscritas.
Ficamos surpresas ao constatar que estas ainda tinham necessidade de acompanhamento e que até aquela data não tinham conseguido atendimento em outro local.
Por outro lado, estas pessoas ficaram agradecidas por terem sido respeitadas e
chamadas na sua vez. A partir daí, começamos a valorizar a lista de espera de outras
instituições, incentivando as pessoas para que se inscrevam e acompanhando-as até
que sejam chamadas.
Aprendemos a trabalhar juntos, dentro de uma visão complexa e interdisciplinar. A equipe também é um espaço de conforto e de contenção para a própria ansiedade e angústia do profissional. Lidamos com situações de muito sofrimento: muitas
vezes o profissional fica vulnerável e a nossa fragilidade aparece naquele atendimento.
Além disso, a responsabilidade é partilhada, porque você tem uma segurança,
mesmo que cometa um erro no atendimento, pode repensar isso junto com a equipe.
Lílian P Caixêta Reis
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Trabalho de equipe
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46. Família: o primeiro sujeito educativo
A rede de apoio
Recursos e
instrumentos
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As nossas hipóteses são confrontadas, o que nos dá uma firmeza de postura no
relacionamento com o outro. E tanto acontece que percebemos um amadurecimento
dos profissionais do projeto. Se antes recorreríamos à equipe a toda hora, hoje
conseguimos ter uma autonomia no atendimento, porque já assimilamos uma postura
de trabalho, uma postura de como nos colocar perante a outra pessoa. Amadurecemos nessa capacidade de relacionamento com o outro.
A rede de apoio externa é composta por esses contatos já mencionados.
Hoje, temos vínculo com várias instituições públicas e com outros projetos e profissionais, como psiquiatras, farmacêuticos, fisioterapeutas, médicos, homeopatas e
clínicos. Visitamos todas as instituições e profissionais aos quais encaminhamos
pessoas do COF. Nesta visita, avaliamos se a instituição tem uma estrutura que vai
favorecer a pessoa e nos perguntamos se esse profissional tem uma postura coerente,
uma postura ética, e se o espaço que ele está oferecendo é adequado para a pessoa que
estamos encaminhando.
O resultado disso é que hoje as famílias atendidas são nossos maiores
parceiros. Inclusive uma pessoa que foi atendida no COF, elaborou um guia da
comunidade, com uma série de instituições que ela visitou e trouxe dizendo: "– Olha
encontrei esses parceiros para vocês!" Eles se tornam nossos parceiros, dessa maneira:
"– Consultei com um médico que é muito bom, aqui está o nome e telefone dele para
vocês indicarem às pessoas." Enfim, participam do nosso trabalho.
Nossos recursos e instrumentos: – a reunião de equipe, como eu falei que é
obrigatória; – os relatórios de atendimento (todo profissional tem um caderninho onde
anota cada atendimento, os procedimentos que foram feitos, intervenções, o que
pensa de tarefa, de condição do trabalho, para confrontar com a equipe); – indicação de
leituras para as pessoas que estamos atendendo e para os profissionais em relação ao
aprofundamento de algum tema; – o prontuário – toda família ou pessoa atendida no
COF tem um prontuário que só é acessível aos membros da equipe, por uma
preocupação ética, tendo o cuidado no sentido de não estar expondo as famílias que
estão sendo atendidas. Então, esse material, essas anotações nossas só são acessíveis
aos membros da equipe. Enfim, a carta de encaminhamento e as visitas às instituições.
Atualmente estamos nos dedicando ao trabalho de organização do banco de
dados, que parte um pouco do prontuário, no sentido de identificar o perfil das
47. COF – Uma Experiência com Famílias
pessoas que foram atendidas, as demandas, a situação socioeconômica, a escolaridade
das pessoas que vieram até nós. E à sistematização, que é escrever essa experiência do
COF para que ela possa ser multiplicada e divulgada em outros contextos.
Resultados do nosso projeto – em termos quantitativos já realizamos em dois
anos e meio de trabalho 16 cursos, sendo beneficiadas 150 pessoas. Aproximadamente 350 famílias foram atendidas no COF, isso não quer dizer 350 pessoas, porque
partimos de um núcleo familiar e caminhamos em direção a uma família mais extensa.
Desse modo, é um número bem maior de pessoas atendidas.
Firmamos convênios com cerca de 25 instituições, como a Secretaria de Saúde, o Centro de Referência do Idoso, o Centro de Referência do Diabético, hospitais,
enfim, várias instituições. E fizemos parceria com duas farmácias, isso é importante
porque muitas pessoas que atendemos fazem uso de medicamentos para depressão ou
outros quadros, além de parcerias com profissionais, como médicos, psicólogos, até
fisioterapeutas.
Aspectos qualitativos – o que confirma principalmente o valor do trabalho
que foi realizado em três anos pelo COF é o retorno das pessoas, pelo relato da
história de vida, a mudança, o percurso que a pessoa faz conosco. A pessoa ou família
chega de um jeito no COF e, quando sai, muda, mudou na forma de enfrentar a
dificuldade ou no relacionamento. Não quer dizer que sai dali com todos os
problemas solucionados, mas consegue ter uma compreensão e melhor clareza da sua
própria realidade, da sua situação. O reconhecimento principal vem das famílias que
voltam e que nos dão retorno, depois de um ano. E o COF hoje se tornou uma
referência dentro de Salvador, não só para as famílias, mas para outros profissionais
que ligam pedindo recomendações, indicações de estudo etc. Ainda, o convite
constante para palestras e para participação em congressos ou eventos.
Enfim, a satisfação interna da equipe, a paixão pelo trabalho que realizamos,
o reconhecimento do valor do que fazemos e do quanto amadurecemos como
pessoas e profissionais dentro desse projeto.
O projeto vai ter uma continuidade, através da construção de um centro que
funcionará em Novos Alagados. Implica a participação do COF dentro de um projeto
maior, de um programa de recuperação infantil, de crianças e adolescentes em
situação de risco, não só na questão da desnutrição, mas da violência e outros aspectos
Lílian P Caixêta Reis
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Resultado
quantitativo e
qualitativo
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48. Família: o primeiro sujeito educativo
46
de risco. Há perspectivas também de que o projeto, a partir dessa sistematização, atue
no contexto educativo mais amplo. Além disso, há outros centros que estão tentando
multiplicar esta experiência.
Concluindo, o mais importante que descobrimos, nesse trabalho, veio a partir
de uma pergunta de uma pessoa que falou: "Pôxa, como é que vocês conseguem lidar
com tanta pobreza?" Aí nós nos demos conta de que não atentávamos para a pobreza,
porque olhamos a pessoa, o nosso trabalho parte das pessoas que chegam até nós, do
valor dessa pessoa, da dignidade que ela tem. Toda pessoa tem potencialidades, toda
pessoa tem aspectos de qualidade e capacidade de enfrentar suas dificuldades. E
enfrenta sua realidade com os recursos que consegue perceber. Então, quando
consegue ampliar sua visão acerca dessa realidade, também percebe novas
possibilidades de atuação ali naquele contexto. O nosso trabalho é todo no sentido de
fortalecer e capacitar essas famílias para que elas possam se tornar conscientes da
própria vida e da responsabilidade que têm pela própria vida, para serem
protagonistas. A nossa tarefa é ajudá-las a assumir esse protagonismo, e é o que
confirmamos que acontece lá no trabalho. E obviamente isso favorece para o
enfrentamento de outras dificuldades, o desemprego, a violência, quando se abrem
novas perspectivas dentro da comunidade de enfrentar as dificuldades.
Outro aspecto é o valor do trabalho interdisciplinar. Comprovamos que é
possível trabalhar em equipe. Do ponto de vista profissional, a riqueza da diversidade
e a amplitude que um trabalho assim pode abarcar. E do ponto de vista humano, o
apoio para enfrentar a realidade, o caminhar juntos, a certeza de que não estamos
sozinhos. A ajuda para olharmos todos os fatores da pessoa que está sendo atendida.
De fato, a possibilidade foi de olhar a pessoa como um todo, cada membro da equipe
sendo suporte para o outro.
E ainda a formação continuada, o tempo todo nos preocupamos com o
estudo, a formação, tanto valorizando a competência de cada profissional, como
aprofundando esses estudos. Percebemos que nasce uma motivação nos profissionais
no sentido de estudar e ampliar a sua formação. Duas profissionais do COF, hoje,
estão buscando fazer o mestrado. Nossa advogada está se especializando em
mediação familiar; esse desejo de crescer profissionalmente nasceu da experiência do
trabalho do COF.
49. COF – Uma Experiência com Famílias
Lílian P Caixêta Reis
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Desse modo, conclui-se que, quando a família é valorizada e fortalecida como
primeiro núcleo educativo, ponto de origem, de partida para a vida, conseguindo
enfrentar as adversidades e apoiar seus membros no seu processo de desenvolvimento, torna-se um recurso para a sociedade. Comprovamos isso neste trabalho, em
que a capacitação das famílias repercute no contexto social, contribuindo para a
redução de situações de pobreza e violência. Portanto, nossa perspectiva de agora,
com a proposta de mudança para Novos Alagados, é de nos integrarmos aos projetos
existentes naquela área – creche, centro educativo, projeto de saúde materno-infantil
etc. –, unindo-nos a estes para colaborar com a melhoria de vida de famílias que vivem
em situação de risco.
Espero ter conseguido ser clara e objetiva. O que eu posso dizer é que é uma
experiência muito bonita e é muito bom poder estar aqui partilhando isso com vocês.
47
50.
51. Família:
O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Maria Grazia
Figini
João Carlos
Petrini
Maria Grazia falou, na sua intervenção, que "Só uma capacidade de olhar
pode permitir um trabalho real com as famílias". A pergunta é: como manter
esse olhar?
Esse é um problema de educação, de educar-se. Há vários tipos de métodos
de observação que ajudam, como se dessem um treinamento para observar. Existem
instrumentos e técnicas de formação que, às vezes, levam anos na formação, mas
aquilo que eu estava entendendo é a capacidade de colocar a atenção em quem está
na minha frente. Uma pessoa tem sempre uma pergunta escondida e nas primeiras
conversas que estabeleço com ela nunca me é feita essa pergunta, esse pedido, só um
homem livre pode colocar um pedido. Logo, nós devemos ajudar para que esse
pedido possa emergir, não devemos dar a resposta. Compreendo que isso possa gerar
uma objeção em vocês, mas a única coisa que eu posso dizer é: experimentem!
Normalmente, quando nós fazemos uma entrevista – também a entrevista para a
inserção na creche ou para enfrentar qualquer problema da situação familiar –, logo
ficamos tensos para entender quais respostas qualificadas podemos dar do ponto de
vista profissional. Estamos pouco atentos para saber o que essa pessoa quer, o que
essa pessoa está me perguntando. É muito fácil escorregar entre o pedido e a resposta,
porque estar atento à pergunta é como se gerasse no operador uma ansiedade porque
a pergunta do outro faz vir à tona também a minha pergunta, o meu pedido. No
momento em que eu estou oferecendo um serviço é como se eu tivesse que dar uma
resposta, sou eu que devo ajudar. Nessa ótica, é impossível permanecer diante do
Descobrir o pedido
do outro
49
52. Família: o primeiro sujeito educativo
pedido, porque eu não sei dar respostas, mas eu estou ali para escutar o pedido e para
compreender do que se trata. A minha resposta sempre escorrega na questão moral:
estar frente ao pedido me ajuda a estar na origem para não dar respostas que estão
pré-definidas. Como eu faço para saber qual é o bem daquela família, daquela criança?
Eu devo conhecer aquela situação e o conhecimento é sempre uma ação afetiva; eu
devo entrar em relacionamento de conhecimento daquele núcleo familiar ou daquela
criança, devo decidir estar com aquelas pessoas. A distância não me ajuda a compreender, a ordem de um conhecimento afetivo é a verdadeira distância, é o
verdadeiro respeito. Às vezes, a resposta é como uma tentativa de possuir o outro: eu
sei qual é a necessidade e sei responder. Ao invés, a verdadeira posição é descobrir de
que o outro necessita e como se pode ajudar nisso. Essa é a verdadeira reviravolta de
todo trabalho educativo e social. Não é um método cômodo, porque é uma busca
contínua. Para poder trabalhar dessa forma, eu preciso trabalhar com outros e é nesse
ponto que pode nascer a equipe. A verdadeira resposta nasce da unidade de sujeitos
que se colocam em frente ao pedido do outro para compreender e conhecer aquilo de
que ele necessita para fazer juntos um pedaço de caminho, sempre redefinido. É só o
pedido que gera a resposta e é a tentativa de resposta que gera um pedido.
Queremos entender melhor quando Maria Grazia falou que a questão
fundamental é que família e o educador possam participar e compartilhar do
projeto educativo da criança.
Dinâmica do
trabalho
50
Se nós estamos pensando que a escola, a creche, é uma tentativa de adultos:
família, educadores, diretoras, administradores, que procuram acompanhar uma
criança por um período importantíssimo da vida, logo, se entende que esses adultos
devem compartilhar alguma coisa.
A melhor forma para poder compartilhar é realizar passos juntos. Se eu,
educador, dentro da minha sala de aula tenho vinte crianças e consigo olhar cada uma
delas e vejo que uma criança deve aprender as cores ou desenvolver o aspecto
psicomotor, isso significa construir um projeto educativo com a família. Significa
conhecer aquela família, o espaço onde aquela família mora, os relacionamentos
daquela família no território e, por isso, convidar aquela família com o educador de
53. Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate
Figini e Petrini
referência, ou com o diretor ou o pedagogo, e descrever e contar o que se faz para
alcançar um objetivo.
Nesse diálogo no qual se explica como alcançar os objetivos, eu posso ter
algumas sugestões por parte da família. Ao mesmo tempo, educo a família, para que
ela não se comprometa somente em levar a criança para passar um tempo na creche,
mas entenda que, se a criança está em um lugar com algumas pessoas a realizar
algumas atividades, essas pessoas sabem o que estão fazendo.
Quando a criança volta para a casa, é diferente o olhar dos familiares, e dessa
forma tudo se une, porque nós devemos lutar contra o fenômeno da cultura pósmoderna, que é o conceito de soma de atividades e compromissos: uma criança
aprende a ler e a escrever, depois faz ginástica, depois aprende uma outra língua, é
como se nós tivéssemos que preencher todos os espaços dessa criança para que ela
não fique à toa. Pelo contrário, uma criança precisa respirar o fluxo de uma vida
cotidiana, um fluxo no qual ela é sujeito com a família e com o educador, de forma
que não passe a vida preenchendo os tempos vazios, mas aprenda a usar o tempo,
aprenda o que significa dormir, o que significa comer com os outros, o que significa
brincar de forma que seja protagonista. Se nós pegamos uma criança sem um projeto
educativo comum, sem envolver a família, tudo aquilo que agora eu descrevi se torna
algo artificial. Lembrem-se que uma criança sabe muito bem se os adultos trabalham
juntos e, se os adultos trabalham juntos, nesse caso uma criança se percebe abraçada,
se percebe pensada, e daqui pode começar a esperança do viver; o delito maior que
nós, adultos, podemos cometer é matar a esperança das crianças.
Novamente outra colocação da Maria Grazia, pois parece que ela gosta de nos
provocar. Ela disse: "Para educar precisa-se de um adulto e de uma morada".
Gostaríamos de entender melhor a concepção de morada.
As crianças e também nós precisamos de uma morada, de uma casa. Usei a
palavra morada para não pensarmos logo na nossa casa. Pensem nas experiências que
vocês viveram nestes dois dias: vocês estão em um lugar onde há limites, no qual são
vividos juntos alguns momentos, alguns vão para casa, mas alguns dormem aqui com
os colegas. Este local que tem um limite permite relacionamentos e conhecimentos
Concepção de
morada
51
54. Família: o primeiro sujeito educativo
novos. Se esse território não tivesse limites, seria muito mais difícil estabelecer
relacionamentos. A sala na qual nós almoçamos permite-nos nos olhar, nos conhecer,
permite um relacionamento entre nós, permite entender o que gosta a pessoa que está
na minha frente porque eu vejo o que ela come; tudo isso é possível porque há um
lugar. Um lugar é de fato algo que chama atenção para a esperança de uma
construção, que me dá uma certeza para pensar também no meu futuro (a beleza de
um lugar, que não significa um luxo, mas uma ordem, uma cor), me educa, me faz
pensar que é possível para mim ir em frente, me chama atenção para um sentido. Por
que logo que duas pessoas se casam vão procurar uma casa? Porque elas precisam de
um lugar para desenvolver um relacionamento. O lugar é como a academia (lugar para
treinar o relacionamento), a academia da afeição, a academia da certeza, a academia
do sentido. Só através de um lugar posso me lançar também em uma dinâmica de
amor.
O que significa mostrar para a família qual é a sua verdadeira função?
Descobrir a riqueza
dos relacionamentos
familiares
52
Petrini
Em primeiro lugar, eu diria que a ajuda que pode ser dada à família é que o
casal compreenda o significado daquela convivência, porque muito facilmente o
significado da convivência familiar é reduzido à utilidade imediata. Desta forma,
depois de um pouco de tempo, percebe-se o peso. Então, o olhar facilmente se
desloca do valor positivo, do significado positivo para a própria vida sobre o peso, o
problema que aquela criação familiar constitui. Normalmente, as pessoas não são
habituadas a refletir, a pensar; então, a primeira ajuda é essa: uma atenção para
reconhecer quanta riqueza de humanidade está contida e pode ser vivida naquela
relação conjugal e depois na relação com os filhos. Muitas vezes, acontece de se ver
como casais começam, depois de alguns anos, a dedicar toda a atenção aos filhos e
começam a deixar de lado a própria relação de marido e mulher. Isso também é uma
deformação que, ao longo do tempo, poderá ter gravíssimas conseqüências.
Precisa-se reconhecer a riqueza de duas pessoas que compartilham a vida e
que se educaram para dialogar, para pensar juntos e ver o significado de tudo que
estão fazendo e planejam ter uma casa e comprar um móvel e discutem em qual escola