Atapucha Waurá, do povo Wauja, visitou o acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e encontrou uma fotografia de sua mãe, Akaintsaritsumpalu, que morreu quando ele era bebê, após mais de 50 anos de espera. Ele e outros Wauja reconheceram diversos parentes em fotografias, recuperando parte de sua história e cultura. Os registros fotográficos são importantes para preservar a memória dos ancestrais Wauja.
1. Túlio Carapiá,
formado na Escola de
Belas Artes da UFBa,
é designer gráfico e
artista visual, já ilustrou
dezenas de livros, revistas,
trabalhos publicitários,
além de ter suas obras
autorais expostas no
Brasil e no exteriora
“Artistas fazem tudo para tirar
uma foto comigo, mas ele não.
Ele apertou minha mão e saiu”
Daniel Trielli
Juliana Ravelli / WASHINGTON
A
kaintsaritsumpalu carregava o filho Ata-
puchaenquantocantavacomoutrasWau-
ja durante o yamurikuma. Nesse festival,
asmulherestomamopapelqueoshomensgeral-
mente têm nos festejos do Alto Xingu: dançam,
cantamecompetememlutas.Eraomeiode1964
eAkaintsaritsumpalu,segundaesposadeYawala-
tumpa, mostrava o bom humor pelo qual era co-
nhecida. Momentos antes de as integrantes de
outras aldeias chegarem para o yamurikuma, ela
fazia a piada: “Vamos lá, vamos treinar (para as
lutas)”,sabendoqueotreino,naverdade,erafei-
to com muita antecedência; àquela altura, não
dava mais para se preparar.
Essa é uma das histórias que Atapucha Waurá
escutousobreamãe,daépocaemqueelanãopreci-
savadosufixorespeitoso–tsumpalu,reservadoàs
mulheresWaujaquemorreram.ComooAliásmos-
trou no domingo passado, Atapucha e mais dois
Wauja – Kuratu Waurá e Tukupe Waurá – visita-
riam,nessasemana,oacervodoMuseudeArqueo-
logia e Etnologia (MAE) da Universidade de São
Paulo (USP) para tentar encontrar uma foto de
Akaintsaritsumpalu.Atapuchanãolembravaoros-
todamãe,quemorreuquandoeleerabebê,eespe-
ravaqueoetnógrafoHaraldSchultz(1909-1966)a
tivesseregistradoemsuaexpediçãoaoAltoXingu.
Na madrugada, antes de visitar o MAE, Atapu-
chateveumsonhoemqueumapessoao apoiava
na busca pela foto. Horas de-
pois, após ver muitas imagens,
Kuratu,de61anos,reconheceu
Akaintsaritsumpalu. Ela é a
quinta da direita para a esquer-
daemumafotonaqualelacan-
ta ao lado de outras Wauja, e
carregaumbebê–opróprioAta-
pucha. Ele finalmente voltou a
ver sua mãe. A espera de mais
de 50 anos havia terminado.
“Comecei a chorar muito. Não
acrediteiqueissoestavaaconte-
cendo comigo. Meu sonho foi
realizado”,diz.“Parecequemi-
nhamãeestavadomeuladona-
quela hora. Fiquei muito emo-
cionado.” De quebra, ele tam-
bémdescobriuadataaproxima-
da de seu nascimento: entre o
fimde1963eocomeçode1964.
A redescoberta de Akaintsa-
ritsumpalu foi só uma das mui-
tas que os três Wauja fizeram
no MAE. Durante as seis horas
que ficaram ali, reconheceram
muitos outros parentes, entre
elesaavódeTukupe,Pulutapatumpalu.“Éacara
daminhamãequandoerabemnovinha.”Antes,a
única imagem que tinham dela estava em uma
ediçãodaNationalGeographicde1966,comprada
no eBay, em que seu rosto não pode ser visto.
SegundoaantropólogaSandraMariaChristia-
ni de la Torre, pesquisadora do acervo do MAE,
osWaujaviramainda peçasdoacervo efotogra-
faram objetos que não são mais confeccionados
para mostrá-los à aldeia. Também levaram có-
pias das fotos que serão vistas por outros an-
ciões para, então, recuperarem o nome de mais
pessoas. “A estada deles aqui foi muito emocio-
nante”, diz Sandra.
Na verdade, as últimas sete semanas têm sido
emocionantes para os Wauja. Entre 5 de setem-
bro e 14 de outubro, Kuratu, Atapucha e Tukupe
estiveramnosEstadosUnidosparaparticipardo
projeto “Recovering Voices”, do instituto Smi-
thsonian.Ainiciativafomentaoregistroeaprote-
çãodelínguaseculturasindígenasameaçadasde
extinção. Além de descrever objetos na língua
wauja, Atapucha procurou sua mãe em imagens
de Schultz que estavam no acervo do Smithso-
nian. A foto que tanto buscou, porém, só encon-
traria no retorno ao Brasil.
NosEUA,osWaujaficaramnacasadaantropó-
loga e pesquisadora do Smithsonian Emilienne
Irelandedeseumarido,PhilTajitsuNash,profes-
sordeEstudosAsiático-AmericanosdaUniversi-
dade de Maryland. Emilienne conhece os Wauja
desde 1981, viveu com eles e fala fluentemente
sua língua. O pai de Atapucha, Yawalatumpa, foi
seu professor e a tratava como uma irmã. Por
isso, Atapucha a chama de tia.
A antropóloga conta que os Wauja ficam tris-
tes pela multidões nas cidades, que desconhe-
cem as relações familiares entre si. Os Wauja
criamlaçosdefamíliamesmosemterelossanguí-
neos,sabemosnomeseashistóriasdeseusante-
passados. Seus ancestrais são muito preciosos
para eles. “Seria terrível para eles verem essas
imagens,no futuro, enão saber quem são aspes-
soasretratadas.É ótimoqueconseguimos evitar
isso”, diz Emilienne.
No entanto, no passado, os Wauja não gosta-
vam de ver fotos e até de pro-
nunciar o nome daqueles que
morreram.Paraasantigasgera-
ções, as imagens e o apego fa-
riamcomqueosespíritosficas-
sem presos na Terra; também
fariammalaosvivos,poisatris-
tezacausadoenças,segundoos
Wauja.Mas,háalgunsanos,co-
meçaram a entender que era
preciso mudar, e que as fotos
são fundamentais para que as
histórias de seus heróis ances-
trais não desapareçam. “Está
bemclaroparamimquenãoda-
va mais para a gente ficar desse
jeito”, diz Tukupe, de 34 anos.
“Nosso conhecimento está
ameaçado. Vou falar para meu
povo para a gente estudar cada
vez mais, para ver se encontra-
mos mais coisas.”
Em São Paulo, os Wauja fo-
ramacompanhadospelosantro-
pólogos Marcelo Fortaleza Flo-
res–queosconhecedesde1996
– e sua mulher, Rafaela Vargas,
queestudaadançadoyamurikuma.SegundoMar-
celo,asimagenstêmumpapeltransformador.“O
próprioencontrodasfotoscomelespreencheum
vaziotremendo.Asfotos,antes,oqueeram?Fotos
de índios em rituais, dançando. Agora, não. São
pessoasreais,comhistóriasreais,conhecidaspelo
grupo indígena que vai dizer em que contexto
aquela imagem foi tirada. De repente essas fotos
voltaramaviver.”
Naquinta-feira,osWaujavoltaramparaoXin-
gu,comotesourodafotodemãedeAtapuchana
bagagem (tesouro exclusivo, já que os trâmites
da USP não permitem, por exemplo, que a foto
seja publicada em um jornal sem autorização de
um conselho). Agora, sonham com um museu
próprio. “Um museu força a cultura a olhar para
si mesma. É um reconhecimento dessa cultura
como parte de uma coisa maior”, diz Nash. Co-
modisseEmilienne:“Elesqueremsercuradores
desuaprópriacultura”.Tambémdesejamqueas
portas dos museus do homem branco permane-
çam sempre abertas. “Peço isso no Brasil não só
para os Wauja, mas para todos os povos indíge-
nas. Acredito que ainda existam pessoas mais
velhas, com 80, 100 anos que podem identificar
objetos que estão lá”, diz Tukupe. Para ele, não
hácomoprotegeraculturaindígenasemapartici-
pação direta dos donos dessa história: os índios.
BETTY FARIA, atriz, em entrevista a Pedro
Bial, questionando as incoerências entre
drogas legalizadas e permitidas no Brasil
Teje preso. O ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, é conduzido por policiais federais ao IML de Curitiba para exame de corpo de delito. Ele foi preso na
quinta-feira pela Lava Jato e levado à carceragem da PF em Curitiba. Acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução de divisas, Cunha teve R$ 220,7
milhões bloqueados, estimativa de prejuízo ao erário. A prisão deixa o governo Michel Temer e o Congresso apreensivos, por receio do que ele possa revelar
“Maconha não
vicia, o que vicia
é Marlboro vermelho”
OUTUBRO
TUKUPE WAURÁ
20
HEDESON ALVES/EFE
BARACK OBAMA, presidente dos EUA, sobre o dia em que
encontrou o cantor Bob Dylan, agora Nobel de Literatura, depois de
um show. “Mas é o máximo que você espera de Bob Dylan, certo?”
IMAGEM DA SEMANA
PASSADO
COM
NOME
História. Atapucha mostra a foto da mãe, Akaintsaritsumpalu (a quinta
da direita para a esquerda), que morreu quando ele era bebê
Após mais de 50 anos, Atapucha
Waurá – do povo Wauja, do
Alto Xingu – conhece o rosto
de sua mãe em uma fotografia
guardada no acervo do Museu
de Arqueologia e Etnologia da USP
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 23 DE OUTUBRO DE 2016 Aliás E3